Um
“novo” fundamento antropológico para a teologia, a pastoral e a espiritualidade?
Pe. Nicolau João Bakker, svd*
Introdução:
Se existe um
“novo” fundamento, é porque deve existir um “antigo” que parece estar
necessitando de algum tipo de reparo ou substituição. De fato, este antigo
fundamento existe. É tão antigo quanto a própria tradição judaico-cristã. Ele tomou
forma quando os autores bíblicos de Gênesis elaboraram o maravilhoso relato
sobre a criação do universo, do mundo e dos seres humanos. Talvez seja o relato
bíblico mais conhecido universalmente e o que mais profundamente plasmou a alma
popular. Seguramente reflete o modo de pensar dos judeus no tempo da monarquia
de Saul, David e Salomão. Sua composição literária não visava ser um ensinamento
científico, já que sua intenção era religiosa. Nem por isso deixa de ser um
relato do que, cientificamente, era senso comum nas lideranças religiosas da
época.
Qual o ponto ao qual o relato dá grande destaque? Sem
dúvida cabe um lugar central à posição que o ser humano ocupa em meio a todas
as demais criaturas. Ressoam com solenidade as palavras de Gn 1,27: “Deus criou
o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou, homem e mulher ele os criou”.
O Criador dá uma atenção toda especial ao primeiro casal: insufla-lhes nas
narinas o “hálito da vida” (2,7) e dá-lhes grandes responsabilidades, entre as
quais a de “dar nomes” (2,19) aos animais da terra e aos pássaros do céu, além
de “cultivar e guardar o jardim de Éden” (2,15). Infelizmente, diz o texto,
“Deus os expulsou do jardim porque não agiram de acordo com sua
responsabilidade” (3,23).
Este grande destaque dado pela Bíblia ao ser humano recebeu
um imenso reforço da cultura grega. Muito antes de Jesus, os filósofos gregos,
especialmente Aristóteles (†322 a.C), já tinham colocado o ser humano no topo de
todos os seres existentes, definindo-o como “animal racional”. Para os gregos,
apenas a razão humana elevava o ser humano acima das coisas meramente materiais.
Quando os primeiros cristãos foram expulsos das sinagogas judaicas e começaram
a formar suas próprias comunidades cristãs, foi este o caldo de cultura
encontrado. Muitas vertentes da época manifestavam até desprezo pelo corpo. Os
gnósticos e os maniqueístas, por exemplo, fizeram uma separação radical entre
matéria e espírito, corpo e alma, valorizando apenas o espiritual.
Para se fazerem entender, os “Santos Padres”, as
lideranças cristãs mais fortes da Igreja primitiva, usaram a linguagem do seu tempo. Sempre é
assim: o modo de pensar, em cada época, tem seu próprio modo de falar. Os
primeiros tratados teológicos, os primeiros movimentos espirituais, como também
a primeira ação pastoral da Igreja, todos, em conjunto, manifestam uma grande
estima pelo espiritual e um certo desprezo pelo corpo e pelas coisas materiais.
De modo particular Santo Agostinho (†430) colaborou muito para sacramentar de
vez o que podemos definir como “o primeiro fundamento antropológico”: o ser
humano é “imagem de Deus” por ser uma criatura de natureza racional, mas
trata-se de uma natureza “decaída”, pois, pelo pecado, a natureza humana vive
num estado permanente de obscurecimento que só pode ser vencido pela graça de
Deus.
Quando falamos de fundamento “antropo-lógico” – ser
humano, em grego, é “anthropos” -, falamos, concretamente, do “modo de conceber”
o ser humano. No decorrer dos séculos, a Igreja fala do ser humano,
preferencialmente, como imagem de Deus, e os filósofos laicos ressaltam,
preferencialmente, a natureza racional do ser humano. Mas mesmo quando, hoje,
nossos teólogos e místicos apresentam o ser humano como imagem de Deus, quase sempre
o fazem baseando-se em Santo Anselmo (†1109) e São Tomás de Aquino (†1274) que
deram grande destaque à razão como um importante instrumento de apoio à fé. Os
filósofos laicos da Modernidade deixarão a fé de lado e seguirão o caminho
trilhado por Descartes (†1650). Para este, apenas a razão, por ser
não-material, eleva o ser humano acima das coisas materiais. Apenas a razão faz
do ser humano um “sujeito”, e todo o resto é “objeto”, que só será conhecido
quando submetido a uma análise racional rigorosa. Por este fundamento
antropológico, o ser humano se tornou um ser isolado de tudo, inteiramente
acima – e até “dono” - do restante da natureza.
Um determinado modo de conceber se traduz num determinado
modo de agir (e vice-versa). O fundamento antropológico que, de forma muito
rudimentar, esboçamos acima criou, de fato, não apenas o mundo que temos, mas
também a Igreja que conhecemos, com sua teologia, sua espiritualidade e sua
ação pastoral correspondentes. Hoje, com muita freqüência, ouvimos dizer que o
mundo está em crise, como também a própria Igreja. O que está acontecendo?
Acontece que exatamente este antigo fundamento antropológico do crer e do agir
está mudando radicalmente e, com feições cada vez mais claras, está surgindo um
novo. O objetivo deste artigo é trazê-lo à tona, e isto para evitar que nossa Igreja
se transforme, como observava Jesus, numa “figueira seca” (Lc 22, 29-33),
deixando de produzir frutos.
I
Que novo fundamente é este?
Durante alguns
milênios, já dissemos, apenas o ser humano era considerado “imagem” de Deus. Da
mesma forma apenas ao ser humano se atribuía uma “alma”. Sem dúvida expressões
lindíssimas que ressaltam, com propriedade, o lugar muito específico que
ocupamos na grande corrente de vida que a Terra produziu. Aos olhos da Bíblia,
tudo o que Deus criou foi “bom”, mas, apenas quando foram criados Adão e Eva,
Deus viu que foi “muito bom” (Gn 1,31). Na cultura da época – judaica, grega ou
romana – o que distinguia o ser humano de todo o resto das criaturas era a
razão. Por sua capacidade de raciocinar, as primeiras escolas
filosófico-científicas da Grécia, e depois as romanas e cristãs, consideravam o
ser humano “semelhante” a Deus ou às divindades. E até muito recentemente,
devido à sua capacidade de raciocínio, o ser humano era considerado
essencialmente diferente das plantas e dos animais.
Pois, é exatamente
esta antiga concepção antropológica do ser humano que as ciências modernas
deitam por terra. Aos olhos destas novas ciências, especialmente da biologia
evolutiva, não existe uma diferença essencial entre a alma humana e, digamos, a
alma das plantas ou dos animais, ou de qualquer outra criatura viva. O que difere uma da outra é apenas o grau de
complexidade. A alma de todos os seres vivos é a mesma: é a própria Vida. No
decorrer de alguns bilhões de anos, a vida foi evoluindo sobre a face da Terra,
complexificando-se cada vez mais, até desenvolver o cérebro humano que, sem
dúvida, é a estrutura mais complexa que podemos encontrar. A rigor, portanto,
(e isto para quem tem fé) não apenas o ser humano é imagem de Deus, mas
qualquer ser vivo, por mais insignificante que (aparentemente) possa parecer. Na
história da Igreja, os místicos, mais intuitivos, entenderam isto bem melhor do
que nossos teólogos, mais racionais. Veja o exemplo de São Francisco.
Mas como deixar isso mais palatável, uma vez que a grande
maioria das lideranças eclesiais, religiosas ou leigas, teve pouca ou nenhuma
formação neste campo das ciências? De fato, é mais do que urgente incluir o item
“Concepção de Vida” na pauta da formação permanente (teológica e espiritual)
das nossas lideranças, e do povo cristão em geral. Para vir ao encontro desta
necessidade urgente, tracemos o desenvolvimento do cérebro humano – ou da
racionalidade – dos últimos 750 milhões de anos.
Não há discussão a respeito. Dizem todos os entendidos
que nós, os atuais seres humanos, pertencemos à “Espécie Sapiens”. Estamos presentes na Terra há apenas uns 150.000
anos. Com nosso cérebro, superdesenvolvido, o planeta Terra deu origem a uma
diversidade extremamente rica de culturas, a um desenvolvimento tecnológico que
parece não ter limite, e a um conhecimento vasto e profundo de quase todos os
segredos da natureza e do universo. Mas este nosso supercérebro é muito
recente. Comprimindo todo o tempo do desenvolvimento da vida sobre a Terra em
apenas uma hora, nossa espécie sapiens surgiu agora, nos últimos segundos do
último minuto!
Este ser maravilhoso, que nós nos imaginamos ser, não foi
colocado por Deus no paraíso do jeito como a Bíblia sugere. Na verdade somos
descendentes do “Gênero Homo”, seres
muito parecidos conosco cujos diferentes gêneros surgiram há 2.4 milhões de
anos. Todos foram extintos. Um deles, o “homo erectus” – isto é, “o que anda de
pé” – foi, provavelmente, nosso parente mais próximo. Porém, se nosso atual
cérebro é do tamanho de 1500 cm3, o do homo erectus – que surge há aproximadamente
1.8 milhão de anos - tinha apenas 1100 cm3. Com o passar do tempo, o
cérebro humano foi sempre evoluindo mais, tornando-se mais complexo e
integrando novas habilidades.
E estes companheiros do homo erectus, de onde vieram?
Nenhuma dúvida. Todos foram descendentes da “Família dos Hominídeos”, os tais macacos-homens ou homens-macacos,
de diversos tipos (sempre bípedes), que habitavam a Terra desde há 4 milhões de
anos. Seus cérebros eram bem menores. No lento processo de “hominização”, um
dos possíveis elos de ligação conosco pode ter sido o “Man 1470” que, há
2.600.000 anos, possuía um cérebro de 800 cm3. Mesmo assim, estes nossos
parentes foram suficientemente espertos para inventar a pedra lascada e o fogo.
Já aparecem melhores estratégias de caça coletiva, linguagem mais apurada e
muito maior afeto familiar, especialmente entre mãe e filhos, fruto de um
processo de criação muito longo (neotenia). Diz o antropólogo Edgar Morin que a
necessidade da distribuição equitativa da caça entre os grupos de caçadores
deve ter dado origem à “primeira lei sócio-antropológica”1.
E estes hominídeos, de onde vieram? Seguramente não de
extraterrestres. Sempre pelo caminho silencioso da seleção natural (com base nas
mutações genéticas), como descobriu o grande naturalista Charles Darwin
(†1882), os hominídeos são todos descendentes da “Ordem dos Primatas”. Os primatas (com cérebro de 500 cm3),
entre os quais os macacos e símios que ainda hoje existem, puderam desenvolver-se
logo depois do grande desastre ecológico – provavelmente um meteorito
gigantesco – que, há 65 milhões de anos, extinguiu da Terra os dinossauros, e
com eles 11% de todas as formas vivas do nosso planeta. Partilhamos com os
primatas não apenas um cérebro, mas também muitas outras habilidades, como
olhos mais centralizados e polegares oponíveis, que nos ajudam muito a
sobreviver melhor.
Os primatas, por sua vez, são descendentes da “Classe dos Mamíferos” que povoam a
Terra há 200 milhões de anos. Suas características principais são pelos, glândulas
mamárias e úteros. Seus cérebros são pequenos, mas, como sempre, perfeitamente
adaptados ao meio ambiente onde vivem. O cérebro nada mais é do que um
instrumento que a própria vida inventou para dar conta de todos os desafios que
o meio ambiente apresenta. Os mais “aptos” sobrevivem, dizia Darwin. Ainda bem.
Sem o aprendizado dos animais que nos precederam, a nossa extinção estaria à
vista na primeira esquina.
Os mamíferos,
finalmente, devem sua existência ao “Filo
dos Cordados”. Este filo, porém, surgiu não na terra seca, mas no oceano,
há 450 milhões de anos atrás. Entre muitos outros animais marinhos que vieram
para a terra, como os ancestrais dos antrópodes (insetos e aracnídios), moluscos
(caramujos p. ex.), e anelídios (invertebrados vermiformes segmentados), o filo
dos cordados (subfilo dos vertebrados) já possuía um elaborado sistema nervoso,
com espinha dorsal ligado a um diminuto cérebro. Não estão vendo aí um projeto
de ser humano em miniatura? Os cordados tinham também fendas branquiais (os
futuros pulmões) para absorver o oxigênio da água. Também estas fendas
branquiais ainda aparecem debaixo das nossas orelhas numa determinada fase de
desenvolvimento dos fetos humanos. Na natureza é assim. Os órgãos necessários
vão se aperfeiçoando, os desnecessários atrofiam e desaparecem.
A aventura do “Reino
Animal” ao qual pertencemos começou no oceano há 750 milhões de anos quando
se formou, a partir da vida pluricelular (dos protistas), o primeiro conjunto
de células perfeitamente integradas chamado “Blástula”, que depois se transforma no embrião. A característica
principal da animalidade é esta perfeita integração e interdependência entre as
diversas células e órgãos, altamente especializados e engenhosamente
interconectados. Entre todos os animais, somos a espécie de maior complexidade,
comandada por um cérebro superdotado que não está mais preso aos cegos comandos
genéticos. Abandonamos, muito recentemente, nossa jaula, caminhando em direção
à liberdade. Surgiu então um novo desafio, social e ambiental: o que fazer com
ela?
É este o novo fundamento antropológico: nossa “alma” não
veio do céu, mas da terra. Deus não nos deu a alma num momento mágico,
insuflando-a para dentro do nosso corpo como sugere o relato do paraíso, nem no
momento da concepção, como ainda reza a fé cristã. Usando a linguagem da fé,
mas respeitando os dados da ciência, devemos dizer que Deus fez tudo isso de
modo ainda mais maravilhoso. Deus permitiu que a Vida fluísse, em primeiro
lugar, do próprio universo quando este, 4.5 bilhões de anos atrás, gerou a
Terra, e depois, das entranhas da Terra, sempre adaptada às circunstâncias,
Deus fez a Vida fluir, de forma auto-organizativa, dotada de uma inimaginável
diversidade e criatividade.
Durante
dois bilhões de anos, a vida unicelular, e, depois, pluricelular (bactérias e
protistas), venceram – não sem inúmeras revezes - todos os desafios de um meio
ambiente em constante transformação, estabilizando a atmosfera terrestre e
inventando todas as tecnologias biológicas que ainda hoje nos permitem viver,
entre outras a obtenção de energia por meio da fermentação, da fotossíntese (nas
plantas que comemos) e da respiração aeróbia. Nossa carga genética e
metabolismo atuais ainda revelam, com perfeição, o aprendizado destes bilhões
de anos. E quando as condições o permitiram, a vida animal surgiu. A
inteligência, que é uma característica da própria vida, em nós evoluiu para o
estágio da auto-reflexão ou da consciência. Podemos reagir ao nosso meio
destruindo-o, ou aperfeiçoando-o. E exatamente aí entra o papel da teologia, da
espiritualidade e da ação pastoral.
II
Consequências teológicas do novo fundamento antropológico
Algumas questões-chave das indagações teológicas atuais
têm relação direta com o novo fundamento antropológico acima esboçado. Vejamos
algumas:
2.1
Fim das certezas dogmáticas e início do diálogo cultural
Evolução
biológica e evolução cultural não percorrem caminhos paralelos. Na verdade
estão profundamente inter-relacionados. Desmoronou-se o antigo paradigma que
opunha a natureza à cultura. Esta é uma evidência das novas ciências. Durante
alguns milênios, como vimos acima, existia uma fé quase cega na “superioridade”
absoluta, quase divina, da razão. A Modernidade aprofundou ainda mais esta
concepção quando, com Descartes, fez uma separação radical entre o “res
cogitans” (o eu que pensa) e o “res extensa” (a coisa pensada). Impôs-se, desta
forma, a “antropologia cultural”: tanto a Igreja quanto a Ciência, cada uma a
seu modo, se habituaram a conceber e valorizar o ser humano apenas levando em
conta sua perspectiva racional/cultural.
A biologia evolutiva mostra que é a mente que faz a
cultura, sim, mas é igualmente a cultura que faz a mente. Cérebro e cultura se
desenvolveram juntos, em mútua relação. Cultura e genética se influenciam
mutuamente. O grande cérebro nasceu a partir da complexidade cultural crescente
e não vice-versa como sempre se pensou. No decorrer do longo processo de
hominização, os agrupamentos “humanos” se viram, permanentemente, colocados
diante de um meio ambiente muito hostil, e diante de uma crescente complexidade
sócio-cultural em termos de vivência, convivência e sobrevivência. Interferências
ecológicas, genéticas, sociais e culturais “co-produzem” o ser humano.
Mutações
genéticas levam a novos hábitos. Chimpanzés, até hoje, nascem com 70% do
cérebro já desenvolvido, o ser humano apenas com 23%, o que prolonga
enormemente o tempo de infância e adolescência. Surge, deste modo, uma nova
“cultura familiar” e, concomitantemente, regressa o comportamento inato ou
genético. Um cérebro maior gera novas competências linguísticas, lógicas e
inventivas, e esta crescente complexificação cultural, por sua vez, age sobre o
filo, favorecendo mutações genéticas que aumentam as potencialidades do
cérebro. Novos hábitos se tornam estruturas inatas, passando para a herança
genética e recalcando os comportamentos estereotipados. A cada passo diminui a
dependência generalizada do meio ambiente e aumenta a complexidade social a ser
transmitida culturalmente de pais para filhos. Para muitos, este processo de
hominização ainda não terminou. A interação entre cultura e cérebro continua e,
ao que parece, sem direção definida.
A
Igreja (Católica) construiu suas certezas dogmáticas vendo no ser humano,
dotado de razão, a imagem e semelhança de Deus. Um ser humano capacitado para
entender a Revelação Divina, mas sujeito a uma autoridade eclesiástica que
garante a veracidade deste entendimento. A Ciência, também, acreditou na total
superioridade da razão para construir suas próprias certezas. O novo fundamento
antropológico veio mostrar que nem a Igreja recebeu as verdades prontas do céu,
nem a Ciência construiu suas certezas com o recurso exclusivo da razão. Tudo
foi fruto de um longo e penoso processo de aprendizagem cultural, deslanchado
desde o início pelo imperativo máximo da própria Vida: auto-organização.
A
conseqüência teológica é imediata: chega ao fim a era das certezas dogmáticas e
nasce a Igreja do diálogo. A força da Igreja não está mais na sua certeza
doutrinal, mas na imensa riqueza de sua tradição espiritual.2 Sem o
“mito da superioridade”, como nos lembrou o teólogo americano Paul F. Knitter, é
esta riqueza que justifica a nossa universalidade e unicidade, tão enfaticamente
defendidas pela Congregação da Doutrina da Fé na Declaração Dominus Iesus
(2000). Todas as tradições religiosas do mundo perfazem o mesmo caminho: buscar
sentido e construir Vida em meio às ambiguidades da realidade ambiental e
sócio-cultural. O diálogo se impõe, com respeito e humildade, mas também sem
falsa modéstia. Temos muito a oferecer. Felizmente, embora ainda com as
suspeitas de Roma, nossa teologia, nas últimas décadas, tem feito grandes
avanços nesta direção.
2.2
A “função reparadora” da religião
Numa máquina, qualquer desordem nas engrenagens a faz
parar. Num ser vivo é o contrário: da desordem se faz ordem. Já dissemos que
vida é auto-organização. Um bom exemplo encontramos nos primeiros passos da
vida sobre a face da Terra. Há aproximadamente 3.7 bilhões de anos, a atmosfera
terrestre era totalmente diferente da atual. Não existia oxigênio, nem camada
de ozônio. Os primeiros códigos genéticos em fase de formação sofreram o
impacto violento da radiação ultravioleta do sol que ainda incidia diretamente
sobre a terra. Frequentemente os genes se danificavam. O próprio processo
bioquímico auto-organizativo dentro do código genético reagiu à desordem
inventando as “enzimas reparadoras”, até hoje presentes, e muito importantes,
em qualquer processo vital.
Na
medida em que os hominídeos se transformaram no homo sapiens, uma grande
desordem se instalou. Ficaram mais para trás o paleocéfalo, herança dos nossos
antepassados reptílicos, o mesocéfalo, herança dos nossos primeiros parentes
mamíferos, e o neocéfalo, herança dos mamíferos superiores e dos primatas que
evoluiu para a grande massa neocortical do sapiens. São agora 1500 cm3 de bilhões
e bilhões de neurônios, e trilhões e trilhões de sinapses, com grande
capacidade de interconexões em todas as direções. Embora frágil e instável,
podendo ser ofuscado (p. ex. pelos impulsos afetivos), o córtex superior do
nosso cérebro exerce enorme poder de influência sobre o pensar e o agir do ser
humano, interrompendo a natural vivência harmônica com o meio ambiente.
Surgiu
o que os antropólogos chamam de “brecha antropológica”: a consciência subjetiva
(que confunde o real com o imaginário) pode sobrepor-se inteiramente à
consciência objetiva (que compreende o real). Não existe qualquer dispositivo
na consciência que diferencia a verdadeira consciência da falsa. Da mesma forma
como não existe qualquer dispositivo interno no cérebro que diferencia a visão
alucinatória da percepção visual real. Como o pensamento, também o
comportamento humano pode desligar-se inteiramente dos padrões genéticos. Na vida
humana, ordem e desordem convivem numa tensão permanente. Os incessantes
desafios ambientais e a crescente complexidade sócio-cultural exigiram um novo
cérebro muito mais criativo. E ele veio.
Surgiu
assim um novo ser humano. Um ser com novas aptidões e necessidades
psicoafetivas, que agora ri quando as coisas dão certo e chora quando
contrariado. Um ser cujo eros não está mais circunscrito à época do cio, como
nos primatas, mas que agora pervaga o corpo o tempo todo. Um ser que se
pergunta de onde vem e para onde vai, que cria deuses, anjos e demônios numa
impressionante diversidade cultural. Em fim, um ser humano sensível para o belo
e o feio, o certo e o errado, sempre, de alguma forma, em busca de “ordem” em
meio a tantas desordens e dúvidas.
Muitos
darwinistas convictos, especialmente entre os atuais militantes ateus, colocam
a religião como fruto do mundo imaginário acima mencionado. Uma fantasia. Quem
observa a religião “de fora”, apenas racionalmente, pode facilmente chegar a
esta conclusão. A religião serviu – e ainda serve -, de fato, para os mais
deploráveis desvios. Mas para quem olha a religião a partir “de dentro”, ou a
partir de uma real experiência mística, o mundo da imaginação cede lugar a uma
fortíssima realidade. No fundo daquilo que chamamos “alma” – e onde repousa,
acreditamos, o próprio Espírito de Deus -, o ser humano encontra energias
jamais imaginadas. Todas as pessoas religiosas, de qualquer religião, usam
estas energias para por “ordem” na desordem. Nós, cristãos, somos privilegiados
porque nossa tradição religiosa é riquíssima e acreditamos que, em Jesus, Deus
nos mostrou um exemplo perfeito. Em certo sentido, a religião é como a enzima
reparadora à qual nos referimos. Ela nos liga (ou re-liga) ao Deus em que
cremos, à natureza que nos gerou e que continuará nos amparando se soubermos
respeitá-la, e ela nos liga novamente aos nossos irmãos e irmãs, restabelecendo
a ordem cada vez que fizemos alguma desordem. Esta religião “reparadora” não é uma fantasia,
ela é a herança sagrada que faz parte da essência da própria Vida.
III
Consequências pastorais do novo fundamento antropológico
O novo fundamento antropológico coloca em nova
perspectiva quase toda a ação pastoral da Igreja. O limitado espaço deste
artigo nos obriga a ser sucinto, mas vejamos alguns exemplos:
3.1
A “alfabetização ecológica” no processo da evangelização
Há poucas
décadas ainda ninguém falava em ecologia. O antigo fundamento antropológico não
permitia descobrir sua importância. E quando o mundo acordou para a questão, a
Igreja continuou dormindo o sono dos justos. Com base no fundamento antigo,
para a Igreja, o que importava era a alma e não o corpo. “Salva tua alma!” se
proclamava dos púlpitos. A espiritualidade dos primeiros séculos se voltava prioritariamente
para o “outro mundo”. Depois veio a “fuga do mundo”. A teologia da Igreja,
durante 2000 anos, priorizou a vida do espírito, a razão e a doutrina. Até hoje
nossa catequese visa, basicamente, um indivíduo desligado de seu meio ambiente.
Porém, no novo fundamento antropológico este indivíduo não existe. Não é
possível salvar a alma sem o corpo, ou o indivíduo sem seu contexto
sócio-cultural. Nem se salva a sociedade descuidando do meio ambiente. Está
tudo irremediavelmente interligado e interdependente.
Nas escolas, o meio ambiente já está na agenda, na Igreja,
com raras exceções, ainda não. Criamos analfabetos ecológicos. Sob ponto de
vista de “salvação” um verdadeiro desastre pastoral. Atenção! Para nós não
basta ensinar ecologia simplesmente. Importa anunciar o Evangelho da Vida, em
todos os momentos da nossa catequese e evangelização. Para dar Vida Plena, ou
abundante (Jo 10,10), ao ser humano precisamos preservar a Vida como ela é:
fruto e dependente da natureza, e preservada apenas em fidelidade a ela.
As
renovadas teologias da Criação e da Salvação, unidas, nos apresentam a
“Cartilha da Alfabetização Ecológica” que estava faltando. Ela, seguindo uma
sugestão do físico Fritjof Capra, pode ser resumida em seis pontos: 1) A “Teia
da Vida” (que Deus criou) é uma “rede” onde
tudo é interdependente; 2) Nos ecossistemas da Vida tudo é “cíclico”, tudo se renova sem deixar lixo, pois tudo é “reciclado”,
e a morte é apenas uma dimensão da Vida; 3) A Vida não é feita de competição,
mas de “parceria”, pois há uma
cooperação generalizada em todos os níveis (células, organismos, ecossistemas);
4) A Vida na Terra depende basicamente da “energia
solar”, que é transformada em energia química pela fotossíntese, que
sustenta todos os ciclos ecológicos; 5) A Vida sobrevive graças à “diversidade” (biológica e cultural),
pois é ela que lhe permite recuperar-se das desordens e desequilíbrios naturais
e culturais; 6) Existe um “equilíbrio
dinâmico” na Vida, pois os inúmeros elos de realimentação na rede lhe
permitem recuperar a estabilidade, ou evoluir, quando ocorrem desordens e
flutuações.
3.2
A recuperação pastoral do corpo
Ainda em 1958,
nós, noviços devotos, recebemos do nosso mestre espiritual um pequeno “flagelo”
para castigar o nosso corpo a fim de preservá-lo de todas as tentações deste
mundo. Sem chance, a proposta já não “pegava”. O novo fundamento antropológico
já mostrava sua cara. Neste, o corpo (desvalorizado) não é mais separado da
alma (supervalorizada). A alma, se quisermos continuar falando dela, continua
importante, mas como dimensão específica do corpo. Acima falamos da “brecha
antropológica”, isto é, a capacidade da mente de entrar, com muita facilidade,
no mundo da imaginação, da fantasia. Com a secular sobrevalorização da mente, a
teologia da Igreja (sem grande sucesso no meio popular!) elaborou doutrinas
pouco simpáticas ao corpo. Mas é exatamente o corpo que faz a alma cantar ou
chorar! Se o corpo não é tocado, a alma não canta. É um instrumento só.
O mundo secular, séculos afora, guerreou pelo progresso
material. A Igreja não vestiu a camisa nem do capitalismo, nem do socialismo.
Apenas o progresso espiritual interessava. O espírito, porém, não precisa de
pão, o corpo sim. Apenas o novo fundamento antropológico que une corpo e mente permitiu
à Igreja descobrir a importância da sobrevivência corporal. Do pão e do corpo.
A nova pastoral se alimenta das teologias do corpo: corpo faminto (teologia da
libertação), corpo sexuado (teologia do gênero), corpo não discriminado
(teologia afro), corpo preservado (ecoteologia), etc. Há mais: uma pastoral que
esquece o corpo (na sua realidade individual, social e ambiental) não condiz
com Jesus Cristo. Esquece a Boa Nova do Reino.
Por
receio de romper com uma tradição muito sagrada, o magistério da Igreja e
muitas lideranças eclesiais bem intencionadas, costumam defender a Vida a
partir do enfoque da “alma eterna”, vinda diretamente de Deus, e que habitaria
dentro do nosso corpo. Este modo de pensar fica patente na intransigência da
Igreja com relação ao aborto, à prática homossexual, ao sexo fora do casamento,
à proibição dos meios anticoncepcionais, à eutanásia, e muitas outras questões
ligadas ao nosso corpo. Tudo entra na lista das graves proibições porque seria
contra a “natureza humana”. Na concepção do mais influente teólogo do passado,
São Tomás de Aquino (†1274), cada criatura deve comportar-se de acordo com sua
“lei natural”, isto é, a lei que corresponde à sua natureza, criada por Deus, e
que o ser humano pode conhecer quando faz bom uso da razão.
São Tomás, como as
demais lideranças religiosas da época, estava preso ao fundamento antropológico
do seu tempo. Não há o que criticar. Todas as nossas concepções têm sempre o
colorido do tempo em que vivemos. A concepção antropológica do nosso tempo,
porém, é muito diferente da de São Tomás. A mente é tão corpo quanto o restante
do corpo. É a aptidão do corpo – de qualquer corpo vivo – de relacionar-se com
seu meio (ambiental e sócio-cultural) e perceber o que constitui uma ameaça à
Vida ou o que a faz prosperar. A “alma” é a própria Vida que nos anima. Em
muitos sentidos podemos identificá-la com o próprio Deus, mas aí já é uma questão
de fé e não de ciência. Todas as proibições morais tradicionais da Igreja, a
partir do novo fundamento antropológico, recebem um novo olhar, de grande
alcance prático. Fica, e até se reforça, a intransigência em defesa da Vida,
mas não se trata de defender apenas uma presumida alma eterna desligada do
corpo. Entram em cena, também, as psicoafetividades da pessoa humana, as
exigências da vida em sociedade, e a incondicional necessidade de preservar a
Vida no planeta Terra.
3.3
Um novo enfoque para a pastoral sócio-transformadora
Edgar Morin, um
dos mais eminentes antropólogos da atualidade, em seu livro Terra-Pátria (Ed. Sulina, 2005) lamenta
o que considera um equívoco das religiões e ideologias tradicionais que
ofereceram ou uma salvação celeste (os cristianismos tradicionais) ou uma
salvação terrestre (as esquerdas políticas tradicionais), ambas, na opinião do
autor, inexistentes. Com base na nova concepção antropológica, ele propõe (sem
ironia) o “Evangelho (não da Salvação, mas) da Perdição” (Cap. 8). Ninguém pede
para nascer, nem para morrer. A Vida na Terra evolui sem rumo definido e,
inexoravelmente, terminará quando se esgotar o atual ciclo de energia do sol. Estamos,
portanto, “perdidos”. Ainda assim, ele diz, não se trata de uma marcha para o
abatedouro. Ideias-guia são bem-vindas, e viver bem vale a pena. Finalizando
seu raciocínio, o autor se pergunta: “Será que não se poderia degelar a enorme
quantidade de amor petrificado em religiões e abstrações, e votá-lo não mais ao
imortal, mas ao mortal?... O apelo da fraternidade não se encerra numa raça,
numa classe, numa elite, numa nação... Mas, por que evocar a palavra religião?
Porque temos necessidade para levar adiante a hominização...” (p. 172).
Morin não acredita em religiões, mas leva muito a sério a
religiosidade. Do ponto de vista da ciência não existe nem objetivo, nem
projeto, nem planejamento na natureza (não-consciente). Para Morin, isto não
significa que a vida seja arbitrária e sem sentido, como afirma a escola
mecanicista do neodarwinismo. Em especial a vida social (consciente) depende em
grande parte dos significados oferecidos. E aí entra um novo enfoque para a
pastoral social. A qualquer nível (célula, órgão ou organismo), a vida
biológica sobrevive graças à recepção de um permanente fluxo de energia
(basicamente oxigênio, água e insumos). A Vida lida com este aporte de energia
de forma autônoma ou auto-organizativa.
A
vida social do ser humano consciente se organiza com base numa nova energia:
significados! Não significados impostos de fora, por alguma hierarquia ou
doutrina. Não se controla um ser humano como se controla uma máquina. Entre
milhares de significados oferecidos ele, autonomamente, seleciona o que lhe
parecer melhor. Mas, já vimos, sua mente é, digamos, um tanto “ilusória”. Se de
todos os lados (Direita, Esquerda, Sindicatos, Movimentos) vem como único
significado importante o ter, consumir, desfrutar, etc., sua consciência
imaginária pode facilmente perder de vista o próprio fundamento antropológico
que anseia por Vida Plena (integrada). Cabe à pastoral social da Igreja lembrar
ao ser humano (e aos governantes!) que o objetivo da Vida não é simplesmente “ter”,
mas, tendo o necessário, relacionar-se saudavelmente (em redes eco-sociais) e
“ser”.
Nicolau
João Bakker: R. Juruá, 798, Jd. Paineiras, 09932-220 Diadema SP. Email: nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
*Missionário do Verbo
Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais.
Atuou sempre na pastoral prática, tanto rural quanto urbana. Foi educador no
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo/SP (CDHEP/CL), São
Paulo, coordenando os programas de formação de lideranças eclesiais e de
combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de
Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no
município de Holambra/SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a
Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema SP.
Além de cartilhas populares publicou artigos pastorais diversos na REB, Vida
Pastoral e Grande Sinal.
1) Para o embasamento
deste artigo usamos em parte o ainda valioso livro de Edgar Morin: O Enigma do Homem (Zahar Editores, 1979).
2) Para conhecer melhor
a história da espiritualidade cristã, dentro do antigo e do novo fundamento
antropológico, sugerimos uma série de 4 artigos de nossa autoria, publicados na
Revista “Grande Sinal” (a partir de maio/junho de 2012).
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