sexta-feira, 3 de junho de 2016

REB, janeiro de 2016: Laudato Si: Rumo a uma nova antropologia

LAUDATO SI: RUMO A UMA NOVA ANTROPOLOGIA
Pelo Pe. Nicolau João Bakker, svd*
Diadema, SP

            Síntese: A Igreja do Brasil dedica a Campanha da Fraternidade de 2016, mais uma vez, à causa ecológica. No presente artigo, o autor se propõe refletir sobre a afirmação do papa Francisco: "Não há ecologia sem uma adequada antropologia" (Laudato Si  118). Inicialmente é apresentada a antropologia tradicional que, no decorrer de três mil anos, caracterizou o pensar judaico-cristão, facilmente observável em qualquer documento eclesiástico. Em seguida expõe a íntima conexão entre linguagem e compreensão da realidade. Finalmente expõe a nova antropologia que permeia a Encíclica 'Laudato Si', constituindo-se em uma nova linguagem que, por sua vez, revela uma nova compreensão da realidade. Algumas considerações pastorais encerram o artigo.
            Palavras-chave: Interdependência ecológica. Antropologia cristã dualista. Antropologia integral. Linguagem contextual. Antropocentrismo despótico. Espiritualidade ecológica.
            Abstract: Once again, the Brazilian Church dedicates the Fraternity Campaign of 2016 to the cause of ecology. In this article, the author intends to reflect on the Pope Francis´ affirmation: "there is no ecology without any adequate anthropology" (Laudato Si 118). Initially, the traditional anthropology which, throughout three thousand years, characterized the Jewish-Christian thinking and which is detectable in whatever ecclesiastical document, is going to be exposed. In sequence, the author shows the intimate connection between the language and the understanding of reality. Finally, the new anthropology that permeates the Laudato Si, will be proposed as a new language and understanding of reality. Some pastoral considerations finalize the article.
            Keywords: Ecological interdependency. Dualistic anthropology. Integral anthropology. Contextual language. Despotic anthropocentrism. Ecological spirituality.

Introdução
            Em 2015, o papa Francisco surpreendeu o mundo, dando à luz a Encíclica Laudato Si (LS) que não se contenta em apenas expor o pensamento tradicional da Igreja. Vai muito além. Os ambientalistas podem deliciar-se com sua leitura, especialmente porque entra em inúmeras questões práticas. Pouquíssimas questões da teoria e prática ambientais foram deixadas de lado. Como é praxe nos documentos magisteriais, são inúmeras as citações de pronunciamentos papais, ou curiais, mas chama especial atenção o espaço generoso que o papa concede à posição das diversas conferências episcopais regionais, e até à do patriarca ortodoxo, Bartolomeu. Há uma evidente preocupação com a sinodalidade eclesial.
            Contudo, o que, no nosso entender, mais caracteriza o documento é a "nova" antropologia que nela está presente. Não nova no sentido de simplesmente substituir uma anterior, possivelmente superada. Veremos que a anterior, por razões sólidas, continua presente, mas, ainda assim, suficientemente nova para abrir um amplo leque de aproximações teóricas e práticas até hoje pouco presentes no panorama eclesial oficial. Mais do que uma simples evolução no pensamento da Igreja, trata-se de um verdadeiro salto qualitativo que coloca tudo, em especial a ação pastoral, em nova perspectiva. Começa a impor-se, lentamente, a nova cosmovisão ecológica da qual tratamos em outras oportunidades.1 A leitura que o papa Francisco faz da realidade ambiental mundial tem, como veremos,  um sólido alicerce nas modernas ciências da microbiologia, da biologia evolutiva e da bioquímica, como também nas demais ciências que têm "a vida" como enfoque central. Não enfoques isolados, de cada ciência em particular, mas, acompanhando a preocupação crescente das últimas décadas, um enfoque sistêmico ou holístico, já fortemente ressaltado também pela própria física moderna (quântica) do século passado.
             Mesmo dando à Encíclica este forte embasamento científico, o papa Francisco não se apresenta com a mesma preocupação doutrinária de seus antecessores. Sua preocupação maior é, antes de tudo, pastoral, ou - também, e principalmente - espiritual. "Não se trata tanto de propor ideias", diz o papa, "como sobretudo falar das motivações que derivam da espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo... Não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima." (216). Vejamos agora, em primeiro lugar e brevemente, algo da antropologia cristã tradicional que, sem dúvida, ainda faz parte do nosso imaginário, da nossa linguagem e do sentido profundo que damos à existência humana.
I A antropologia da Tradição cristã
            Quem é o ser humano que os primeiros capítulos de Gênesis nos apresentam, e qual o ensinamento mais profundo que perpassa a mensagem bíblica, do começo ao fim? Quem é o ser humano do qual não se cansa de falar a Tradição cristã, desde a Patrística até os dias atuais? Não pode haver dúvida: somos criaturas, sim, porém, criados à imagem e semelhança do Criador! No imaginário cristão, o Deus onipotente criou, com perfeição, todas as suas criaturas, uma a uma. Entre as criaturas se destaca, de modo único, o ser humano, pois o Criador soprou para dentro dele algo de Si próprio. Com isso não deixa de ser criatura. Feita do pó da terra, voltará ao pó da terra, como todas as demais criaturas, mas o sopro divino que habita o ser humano o faz semelhante a Deus, portanto, existe no ser humano algo que é indestrutível, eterno. Quando o evangelista João faz Jesus dizer "o Espírito é que vivifica, a carne para nada serve" (Jo 6,63), é exatamente isso que quer expressar: por ter recebido o Espírito divino, o ser humano - como Jesus - é chamado a se elevar acima da sua mera condição carnal. Tem consciência do bem e do mal e, como tal, é chamado a assumir sua responsabilidade.
            A linguagem da Bíblia, que é a linguagem da fé, encontra seu paralelo na Filosofia, que é a linguagem da razão. Enquanto os autores sagrados se aproximam do Mistério - o divino dentro do humano será sempre algo inexprimível - usando a linguagem simbólica, os filósofos, crentes ou não, farão o mesmo, usando apenas a linguagem racional. Quando falamos de autores sagrados não pensamos apenas nos autores da nossa própria Escritura Sagrada. Temos em mente os autores sagrados de qualquer religião, grande ou pequena. Diante do divino, ou das divindades, o sábio religioso não se propõe, sem mais, explicar o inexplicável. Muito mais busca motivar, iluminar, abrir espaço para que o coração ou a mente humana use de sua dimensão espiritual para, de alguma forma, unir-se ao Mistério que lhe transcende e, a partir disso, percorrer um caminho que supere a simples condição carnal. Já os filósofos, desde a antiguidade, buscam apenas o entendimento, o conhecimento racional da verdade, sem mais nem menos. Não orientam; explicam.
            Ambos, porém, têm apenas um único ponto de partida: a realidade. Por mais que a linguagem bíblica, frequentemente, sugira o contrário, Deus não se comunica de forma direta. Moisés não ouve a voz de Deus "por entre as nuvens". É a dura realidade da escravidão, e a sua situação pessoal covarde de fugitivo no deserto, que apela ao coração e à mente de Moisés. "Eu Sou" disse, e Moisés "ouviu" - apenas os crentes "ouvem" -: volte, estarei contigo! Iniciou-se assim a grande peregrinação do povo de fé abraâmica, onde Deus fala e seus crentes ouvem. Enquanto isso, os filósofos não ouvem nada; têm apenas a realidade a interpretar. Seu ofício é apontar para a verdade que surge do contexto histórico, da rica diversidade cultural, da sabedoria dos antepassados e do avanço das ciências. Não lhes é permitido qualquer sentimentalismo. Sua ferramenta de trabalho é apenas a razão. Unir fé e razão, essa é a tarefa dos teólogos. Tarefa difícil. É comum que fiquem obcecados por um dos lados. Bem que Bento XVI dizia que há teólogos "de gabinete" e outros que fazem teologia "de joelhos".
II A linguagem, prisioneira do tempo e do espaço
            A antropologia cristã tradicional tem seu alicerce mais profundo em Gn 1,27 e 2,7: "Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou." - "Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente." No ser humano que crê, a dimensão espiritual perpassa a dimensão carnal. Por isso "reconhece" seu Criador, do fundo de sua miserabilidade. Impelido por esta espiritualidade sentirá vontade de romper as amarras do presente, recordar com saudade os bons momentos do passado e sonhar com as infinitas possibilidades do futuro. Lembrará o paraíso da origem, os pecados do presente, e a Nova Jerusalém a alcançar. Já, sem esse dom da fé, o não crente não ouve, e nem vê as coisas desta forma. Sua leitura da realidade e sua linguagem serão outras. Não reconhecerá o divino no humano - a não ser a partir de sua fé -, mas apenas o humano em permanente transformação.
            A linguagem que usamos não é uma roupagem neutra que independe do tempo e do espaço. É, ao contrário, o veículo privilegiado por meio do qual os seres vivos se comunicam entre si para dar sentido exatamente ao que ocorre dentro do tempo e dentro de cada espaço. A linguagem é sempre "contextual" e temporal. Além disso, cada ser vivo comunica-se de acordo com seu grau de complexidade. Para as plantas e as flores bastam as cores e os perfumes. Os insetos e os pássaros entendem esta linguagem perfeitamente. Isole-se um dia no meio da floresta ou do cerrado e observe com qual perfeição todos se comunicam entre si, mantendo o ecossistema do lugar, de acordo com os tempos que correm. Assim também os animais. Mas estes usam sistemas de comunicação muito mais elaborados. Sons, expressões faciais, movimentos, posturas, tudo tem significado preciso para os demais membros, dentro do mesmo ecossistema local e em igual período histórico. A linguagem humana não constitui uma exceção a esta regra. Também é o instrumento de comunicação entre os membros dos diferentes ecossistemas, com impressionantes variações conforme tempo e lugar. Mas a complexidade da linguagem humana é de qualidade, digamos, superior. Com muito mais intensidade adquirem papel significativo as emoções, o raciocínio elaborado, a doação e o amor, assim como o ódio, a astúcia e a enganação.
            É importante observar como diferentes "torres de Babel" dividem a humanidade. Exatamente porque a linguagem é a expressão das culturas locais. A comunicação tem estreita ligação com a realidade de cada lugar e época. As pessoas se comunicam sobre o que estão vendo, ouvindo e sentindo e, especialmente, sobre o que estão pensando a respeito de tudo aquilo. Surgem assim as sabedorias locais, as tradições regionais, em fim, o humor, o sotaque e o jeito próprios de cada cantinho do planeta. As neurociências se encarregam de demonstrar como tudo isso se sedimenta em convicções - e "fés" - muito profundas que, frequentemente, dão origem a guerras e fundamentalismos. Nunca devemos esquecer: nosso pensar e nosso falar revelam o chão que pisamos!
            Nas tradições cristãs, o "hálito de vida" soprado por Javé, a presença do divino no humano, acabou dando na "alma" humana. No imaginário cristão tradicional, trata-se de uma alma separada do corpo. Determinados conceitos e tradições ultrapassam as fronteiras locais e se tornam herança comum, especialmente quando propagados por sábios reconhecidos e santos populares. A longa e quase onipresente cultura greco-romana que acolheu dentro de si o cristianismo não podia deixar de exercer forte influência sobre o movimento iniciado por Jesus. Todas as religiões se caracterizam, de um lado, por uma inspiração original que apela ao coração humano, e, de outro, por uma roupagem cultural posterior nem sempre inteiramente fiel à origem. Roupagens culturais que, como vimos, variam conforme o tempo e o lugar. Diferentes correntes filosóficas, muito influentes nos tempos anteriores e posteriores à vinda de Jesus - com destaque para o platonismo, o gnosticismo e o maniqueísmo -, contribuíram fortemente para o surgimento de uma "antropologia cristã dualista". Nela, o ser humano é visto como tendo um corpo - carnal, imperfeito e passageiro - e uma alma - espiritual, perfeita e eterna. São Tomás de Aquino (†1274) ainda falará de uma alma "ab extrinseco inmissa", isto é, colocada por Deus dentro do corpo. Linguagens são sempre "imperfeitas", ou limitadas, "contextuais" como já observamos, isto é, só conseguem expressar o que, de alguma forma, já está presente na realidade e no conceituário do tempo e do lugar.
            Jesus não usa esta linguagem porque o conceituário judeu, especialmente o popular, era diferente. Nele não existe alma separada do corpo. Para Jesus, o ser humano, por inteiro, é, antes de tudo, criatura, vinda, como as demais criaturas, das mãos do Criador. Não mais o Criador severo que algumas correntes judaicas imaginavam, mas um Criador Pai, cheio de amor e sempre presente junto a todas as suas criaturas. Jesus, evidentemente, não deixa de perceber claramente a diferença entre a criatura humana e as demais. Viu que apenas o ser humano é capaz de abandonar a casa do Pai, perder-se pelo caminho e cair na desgraça. Ainda assim, opina Jesus, o Pai não desiste. Cabe ao filho arrepender-se e voltar. O Pai estará à espera. Se Ele não se esquece nem do passarinho sobre o telhado, e veste com esmero até o humilde lírio do campo, quanto mais vai querer abraçar o filho querido que volta para casa!  Para Jesus, Deus não salva almas, mas pessoas inteiras. Onde há amor, Deus aí está. Onde o amor não está presente, Deus está ausente. Jesus entende que há uma diferença radical entre os "benditos do Pai" e os "malditos apartados" (Mt 25,31-46). Apenas aos benditos do Pai está reservada a herança do Reino. Como Ele mesmo, ressuscitarão "ao terceiro dia", isto é, no exato momento em que a morte - assim pensavam os judeus - se torna definitiva. Quando o Reinado do Pai se concretizar pra valer, tudo será redimido. Nem a dor nem a morte farão mais sentido.
            No judaísmo dos últimos séculos antes de Jesus já vinha crescendo, tanto na religiosidade popular quanto em algumas correntes farisaicas, a crença na ressurreição, sempre da pessoa inteira, corpo e alma.  Jesus, tomado pela consciência de um Deus Pai amoroso, sobre quem o mal não tem nenhum poder, só podia pensar daquela forma. A ressurreição - também da "carne" - se tornou a essência da fé cristã porque, sem ela, como afirma Paulo (1Cor 15,19), seríamos os mais miseráveis dos homens. Estaríamos submetidos ao poder do mal para sempre. É uma pena que a antropologia cristã, na sua concepção e linguagem dualistas, contaminou frequentemente o caminhar da Igreja. Cada vez que a Igreja privilegia a alma, imaginando-a separada do corpo, o ser humano, e o mundo real que o envolve, perdem a mensagem de salvação.
III A nova antropologia da Encíclica Laudato Si
            Percorrendo os 246 parágrafos da Encíclica podemos facilmente encontrar o "conceito-chave" da mesma: "tudo está interligado". Vejam em: 4; 5; 6; 16; 20; 22; 34; 41; 42; 46; 48; 52; 66; 68; 70; 79; 86; 91; 92; 111; 117; 120; 137; 138; 139; 140; 141; 142; 155; 164; 220; 240. Por que é importante dar a devida atenção a esta abordagem insistente da Encíclica? Exatamente porque o fato de tudo estar "inter-conectado" - tanto no mundo físico quanto no mundo dos seres vivos - constitui o real fundamento da correta compreensão ecológica. E é desta compreensão que surge a "antropologia adequada" citada pelo papa Francisco. Da mesma forma é apenas de uma antropologia adequada que surge o correto cuidado com a natureza. "Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo", diz Laudato Si 118. O papa Francisco abandona a tradicional antropologia cristã que via o ser humano "isolado" das demais criaturas, muito acima delas e com a vocação de submetê-las a si. Estamos, portanto, diante da proposta de uma "nova" antropologia.
            Mas, o Concílio Vaticano II (1962/65), após séculos de um ferrenho combate, já não havia se reconciliado com a Modernidade, reconhecendo que também à Igreja cabe respeitar o legítimo avanço das ciências e o respeito a todas as realidades terrestres? Há realmente "algo novo" no ar? Sim, é preciso insistir neste ponto. Se a Igreja-Instituição, reunida em Concílio, em tese, aceita a Modernidade, isso não significa que ela aceitará facilmente "o todo" da Modernidade; nem que ela aceitará, sem mais nem menos, os novos avanços científicos que vão ocorrendo. Além do mais, a Igreja-Instituição não é a única existente. Há a Igreja-Povo, a comunidade dos batizados, aquela que foi "priorizada" pelo mesmo Concílio. No imaginário cristão popular, o "novo" é acolhido com mais desconfiança ainda do que na Igreja-Instituição. A religiosidade humana tem raízes muito profundas, milenares. A tradição judaico-cristã (e islâmica) - como todas as demais - nasce destas entranhas. Jesus não caiu das nuvens. Tudo na Igreja - e na espiritualidade humana - precisa de tempo para ser digerido, como convém. "O tempo é superior ao espaço", diz o papa (178; cf. EG 222).
            Mas, se a Igreja parar no tempo, ela deixará de ser fermento e luz. A compreensão e sua consequente linguagem devem mudar quando a colheita está madura. É o que o papa Francisco faz quando diz - Bento XVI já o disse em CV  51 - que tudo no universo está inter-conectado. Na primeira metade do século passado, a ciência que mais revolucionou o pensar humano foi a da própria física (quântica). A matéria, antes considerada morta, inerte, imóvel, de repente mostrou seu surpreendente lado interno, interior, íntimo, onde nenhuma partícula subatômica - todas em constante "movimento" -, possui existência isolada; a identidade de cada uma depende inteiramente das outras. Laudato Si as menciona no parágrafo 138. Já, na segunda metade do século passado, os maiores avanços científicos ocorreram do lado da bioquímica. Algumas vezes, meio de passagem, o papa se refere aos "sistemas abertos" (79 e 81), item fundamental para a compreensão da vida no planeta. Um dos primeiros e mais afamados cientistas a falar deles foi o Nobel de Química, Ilya Prigogine (†2003). Contrariando a 2ª lei da termodinâmica, que trata da entropia crescente em sistemas fechados - até alcançar o equilíbrio termodinâmico -, seres vivos, dizia Prigogine, são sistemas com "estruturas dissipativas", na verdade "sistemas abertos", isto é, sistemas que recebem energia do meio ambiente, superam a entropia e evoluem  para sistemas vivos mais complexos.2 Darwin (†1882) já o havia observado no passado. Hoje, destacados estudiosos da biologia evolutiva ou da microbiologia, como, por exemplo, Lynn Margulis, em seus lindíssimos livros Simbiotic Planet e Microcosmos, mostram, passo a passo, como a vida vem evoluindo sobre o planeta Terra há mais de 3,7 bilhões de anos.3 Uma evolução sempre presa às possibilidades criadas no passado, mas sem rumo pré-definido quanto ao futuro. Para quem tem fé, a Nova Jerusalém se aproxima; para os outros, resta apenas uma incógnita.
            O ser humano, portanto, não é aquele ser mágico que, dotado de inteligência única e alma imortal, se levanta do pó da terra e sai andando pelo paraíso, dando nome às plantas e aos animais, em total superioridade. Por mais que cursos de bíblia e teologia tenham arranhado em nós esta imagem, ela perdura no nosso subconsciente religioso e pode nos incapacitar para novas práticas pastorais e para a urgente adoção de uma "espiritualidade ecológica". Laudato Si dedica um capítulo inteiro à "educação e espiritualidade ecológicas", e insiste na necessidade de uma autêntica conversão: "A crise ecológica é um apelo a uma profunda 'conversão interior'" (217; ver também: 5; 8; 9; 16; 59; 98; 111; 202; 208; 216; 219; 222; 224). "Falta a consciência de uma origem comum, de uma recíproca pertença, e de um futuro partilhado por todos. Essa consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções, novas atitudes e novos estilos de vida" (202). Faz parte desta espiritualidade a abertura ao transcendente: 6; 9; 10; 11; 88; 119; 199; 204; 210; 227; 233; 234; 235; 240. Ela desenvolve em nós o hábito de "cuidar" do que nos foi doado: 11; 71; 139; 213; 232. Nossa alma, portanto, tem a cor da terra, provém da terra, como a alma das plantas e dos animais. Em nós, porém, ela se tornou muito mais complexa, o que faz toda a diferença. Nossa inteligência, por exemplo, tem forte parentesco com a das nossas antepassadas, as "primitivas" cianobactérias que, há dois bilhões de anos, já capacitadas para captar a energia da luz solar pela fotossíntese, mas muito carentes do hidrogênio do ar cada vez mais escasso, aprenderam a  captar este alimento de uma nova fonte, inesgotável: a água. Liberando no ar o então muito tóxico oxigênio, se apropriaram do hidrogênio, garantindo uma sobrevivência muito melhor. Contudo, apenas em nós a inteligência adquiriu a complexidade da consciência, o que nos transformou nos seres livres e responsáveis que somos. Diz o papa: "Esquecemo-nos que nós mesmos somos terra. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta... Crescemos pensando que éramos seus (da terra) proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la" (2)... "Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou promovendo uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo... mas a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável" (116).
IV Consequências pastorais
            Se é verdade, como afirma a Encíclica, que "tudo está interligado", então esta nova antropologia, com certeza, conduz a uma nova ação pastoral. A preocupação preponderantemente pastoral do papa Francisco o leva a apontar diversas pistas. Destacaremos apenas algumas que nos parecem mais significativas para o momento atual.
4.1 Combate às causas estruturais
            Qual a principal causa da crise ecológica atual? O papa lembra que, sem dúvida, não podem ser descartadas nossas pequenas responsabilidades individuais (211), mas impressiona a quantidade de vezes em que a Encíclica Laudato Si atribui a maior culpa ao atual sistema econômico e tecnológico predominante que pretende, por si só, resolver todos os problemas do mundo. Ver em: 4; 6; 15; 16; 20; 26; 31; 36; 48; 54; 56; 104; 106; 108; 109; 110; 111; 113; 127; 128; 136; 144; 161; 166; 167; 169; 173; 175; 177; 179; 183; 189; 190; 191; 193; 194; 195; 196; 203. "O todo é superior à parte" é um dos princípios de fundo que orienta a reflexão papal, tanto em Evangelii Gaudium (237) quanto em Laudato Si (141). Diante do enorme poder dos sistemas e das estruturas (políticas, econômicas, tecnológicas, culturais, etc.), os indivíduos, sozinhos, encontram-se muito debilitados. Vale também o oposto: quando a estrutura - "o todo" - dá apoio, os indivíduos se fortalecem, e muito. Infelizmente, na maioria dos casos, os indivíduos nem se dão conta das traiçoeiras correntes que os arrastam.
            Vejamos um exemplo prático. Nos últimos tempos, o Brasil passa por um verdadeiro "choque emocional", observando, dia após dia, a desfaçatez de uma vergonhosa corrupção que tomou conta não apenas de pessoas, mas das entranhas do próprio sistema político-econômico do país. Por toda parte reina um sentimento de perplexidade: como o país pôde chegar a esse ponto? Muitos foram para a rua, frequentemente sem proposta. As polaridades políticas se aguçaram. A mídia, em geral, botando mais gasolina na fogueira, sem jamais apontar para a estrutura econômica que a sustenta. E nós, e a Igreja? A CNBB, já não mais tão profética como antes, mas, motivada pela Campanha da Fraternidade de 2015, fez a opção correta: deu apoio à proposta da "Constituinte Soberana por uma Reforma Política".  Porém, a grande maioria dos bispos, padres e lideranças leigas não entrou de cabeça na campanha. Ficam as críticas, faltam as atitudes. A Igreja, perigosamente, se volta para as suas próprias preocupações internas, sua "autorreferencialidade", diria o papa Francisco.  É o pecado da omissão. Sem uma corajosa Reforma Política não há saída. A solução é construirmos, pastoralmente, articulações (suprarreligiosas e suprapartidárias) locais, regionais e nacionais com efetivo poder de enfrentamento das estruturas iníquas.
4.2 Cuidar da nossa alfabetização ecológica
            O capítulo VI da Encíclica dedica um tópico à educação ambiental. Diz o papa: "Os jovens têm uma nova sensibilidade ecológica e um espírito generoso, e alguns deles lutam admiravelmente pela defesa do meio ambiente, mas cresceram num contexto de altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a maturação de outros hábitos. Por isso, estamos diante de um desafio educativo" (209). E segue: "A educação ambiental deveria predispor-nos para dar esse salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo" (210). E ainda: "É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas até dar forma a um estilo de vida" (211). E finaliza: "E não se pense que esses esforços são incapazes de mudar o mundo... O exercício desses comportamentos... permite-nos experimentar que vale a pena a nossa passagem por este mundo" (212).
             Palavras sábias que, ao mesmo tempo, nos questionam: a educação ecológica está presente na nossa catequese, ou formação religiosa, em todas as faixas de idade? E o nosso testemunho pessoal confirma o que está sendo ensinado? O muito respeitado físico Fritjof Capra tem insistido na necessidade de uma espécie de "alfabetização ecológica". Tomamos a liberdade de copiar a essência desta proposta, já publicada em outra ocasião, já então também na perspectiva de um novo fundamento antropológico.4 O alfabeto é feito de seis conceitos básicos: 1) A "teia da Vida" é uma rede onde tudo é interdependente; 2) nos ecossistemas da Vida, tudo é "cíclico", tudo se renova sem deixar lixo, pois tudo é reciclado, e a morte é apenas um elo indispensável na corrente da Vida; 3) a Vida não é feita de competição, mas de "parceria", pois há uma cooperação generalizada em todos os níveis (células, organismos, ecossistemas); 4) a Vida na Terra depende basicamente de "energia solar", transformada em energia química pela fotossíntese, que sustenta todos os ciclos ecológicos; 5) a Vida sobrevive graças à "diversidade" (biológica e cultural), pois é ela que permite a recuperação das desordens e desequilíbrios naturais e culturais; 6) existe um "equilíbrio dinâmico" na Vida, pois os inúmeros elos de realimentação na rede lhe permitem recuperar a estabilidade e evoluir a partir das desordens e flutuações.
4.3 Pastoral ecológica e pastoral social
            Como "tudo está interligado", Laudato Si dedica boa parte do texto à seguinte mensagem: não faz sentido cuidar bem da ecologia e descuidar do social, em especial do pobre. O documento lembra que os bens da terra pertencem a todos (2; 22; 30; 36; 43; 45; 49; 94; 95; 104; 174), que continua válida a opção preferencial pelos pobres (16; 20; 22; 25; 27; 48; 49; 71; 95; 110; 128; 139; 158; 162; 175; 196; 198; 201), e que a tendência atual é de perda dos vínculos sociais (43 a 47; 110). "Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social", diz o papa, e é preciso ouvir "tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres" (49). É suspeito, portanto, o discurso "dos verdes" (49) quando passam por cima do conflito social. Aqui também o papa lembra um conceito-chave de suas reflexões: "a unidade é superior ao conflito" (198; EG 228). Não se resolve o problema da ecologia sem, concomitantemente, resolver  o problema social.
            Mais uma vez aparece aqui a "nova" antropologia. O fato de possuir dentro de si o "hálito" do Criador, e daí uma semelhança com Deus, não significa que o ser humano, como Deus, pode colocar-se "acima" da criação. Sua vocação é responsabilizar-se pelo bem comum - toda a realidade sócio-ambiental -, com especial atenção pelo que é mais fraco, não por possuir uma alma sobrenatural, superior, mas por ter uma alma, como mostra a história de Caim e Abel, com consciência de que Deus pede contas "do sangue do irmão" (Gn 4,10-11). Uma alma livre, mas não sem limites (6; 53; 75; 82; 104; 105; 155; 203). O ser humano sabe que "não pode comer de todas as árvores do jardim" (Gn 3,1). Por não se dar conta de ser criatura, como as demais, o ser humano (especialmente o cristão/a cristã?) se transformou num/a prepotente. Por isso, e muito mais, perdeu o paraíso. Para não deixar dúvida, o papa cita o Catecismo da Igreja Católica (340): "A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espetáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras" (86). Se a responsabilidade humana se estende ao cedro e à florzinha, como não se preocupar com o pobre que vive ao nosso lado? É difícil não perceber nestas palavras do atual sucessor de Pedro a indispensabilidade e urgência, como também o conteúdo e a riqueza,  da nossa pastoral social e ambiental.
Conclusão:
            Falar de uma nova antropologia é modismo apenas, ou estamos realmente diante de uma visão renovada do ser humano? É interessante observar que tanto a compreensão tradicional quanto a compreensão moderna se fundamentam, parcialmente, no mesmo teólogo, São Tomás de Aquino. Talvez ninguém melhor do que este inteligente e piedoso monge beneditino tenha arquitetado o conjunto da obra teológica (tradicional) da Igreja. Para São Tomás, cada criatura que saiu das mãos de Deus deve corresponder à natureza com a qual foi criada. Nada e ninguém pode se opor à vontade do Criador. Todas as criaturas manifestam a presença de uma "lei natural" que, além de perpassar todo o universo, perpassa também o ser humano. Faz parte desta lei, diz Tomás, o ser humano buscar tanto seu bem pessoal quanto o bem comum, não havendo oposição entre ambos. Tanto o Estado quanto a Igreja encontram nesta lei natural uma diretriz a seguir. Esta doutrina teológica de Tomás foi inúmeras vezes questionada pelo fato de a Igreja, no decurso da história, interpretá-la de forma equivocada. Nada mais natural quando, como vimos, a verdade só pode surgir da complicada interpretação da realidade. Mas uma ma interpretação da lei não significa necessariamente uma ma lei. A realidade acaba se impondo, ou, como costuma dizer o papa Francisco: "a realidade é superior à ideia" (110; cf. EG 231).
            O papa, repetidas vezes, apela a esta lei natural (5; 6; 69; 79; 80; 81; 82; 83; 86; 88; 90; 99; 117; 155; 157; 221), mas agora não mais na perspectiva de um "antropocentrismo despótico" (68), mas na perspectiva de uma "ecologia integral" (10; 62; 124; 137), onde os bens individuais, coletivos e ecológicos se relacionam em plena harmonia. "O ser humano é chamado a respeitar a criação com suas leis internas... Hoje, a Igreja não diz... que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano..., mas ensina que... o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas" (69; cf. CIC 339). E com muita propriedade confronta a ciência com a fé: "Neste universo, composto por sistemas abertos que entram em comunicação uns com os outros, podemos descobrir inumeráveis formas de relação e participação. Isto leva-nos também a pensar o todo como aberto à transcendência de Deus" (79).
            Falar de uma nova antropologia não é, portanto, um mero modismo ou uma questão semântica apenas. Com a Encíclica Laudato Si, a linguagem do magistério oficial sem dúvida faz um avanço significativo. Sendo a linguagem uma adaptação gradativa a novas compreensões da realidade, como vimos, o papa, para não ser mal entendido, ocasionalmente, recorre também à linguagem tradicional. Esta, quando bem entendida, e colocada dentro do contexto do tempo e do lugar, continua válida. Para um ouvinte moderno, porém, ela é insuficiente e ambígua. Novos contextos exigem uma nova linguagem para serem compreendidos de forma adequada. A nova antropologia não é apenas uma natural evolução da linguagem; ela é também uma nova compreensão da realidade. E apenas novas compreensões, aliadas a novas linguagens, permitem uma orientação adequada para uma pastoral e espiritualidade condizentes com os tempos que correm.
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1) Ver em: Vida Pastoral 278/2011; 279/2011; 281/2011; 282/2012.
2) PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Order out of Chaos. New York: Bantam Books, 1984.
3) MARGULIS, Lynn. Simbiotic planet: a new view of evolution. New York: Basic Books, 1988.
_______, SAGAN, Dorion. Microcosmos. São Paulo: Cultrix, 2002.
4) Ver em: Vida Pastoral 299/2014.

* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular, de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema SP. Além de cartilhas populares, publicou artigos pastorais diversos em REB, Vida Pastoral, Verbum, Convergência e Grande Sinal


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