quarta-feira, 8 de junho de 2016

Convergência, abril de 2014: Por uma espiritualidade viva que jamais estacione

POR UMA ESPIRITUALIDADE VIVA QUE JAMAIS ESTACIONE
* Pe. Nicolau João Bakker, svd

            Introdução:
            Neste nosso mundo, as espiritualidades apresentam cores muito variadas. Conhecemos melhor nossa própria espiritualidade cristã, mas sabemos que existe a espiritualidade não-cristã, a asiática ou oriental, as africanas, indígenas, e muitas outras mais. As diferenças são significativas e profundas. Se olharmos com mais atenção para cada uma delas percebemos que, dentro delas, conforme as culturas locais, existe ainda uma grande variedade de vertentes. Cada vertente, por sua vez, está sujeita a um processo histórico que vai revelando surpreendentes novas expressões e adaptações. Também a espiritualidade cristã passou e passa por idêntico processo.1
            As tradições místicas dos povos se alimentam de raízes muito profundas e antigas. São muito anteriores às primeiras civilizações que surgiram em volta do Mar Mediterrâneo uns dez mil anos atrás. Costuma-se dizer que, naquele tempo, as tradições espirituais, pela primeira vez, "se institucionalizaram". Em especial no último milênio antes de Cristo vemos surgir códigos de leis, escritos sagrados, liturgias, santuários e diversas formas de um "poder sagrado" firmemente estabelecido. Todos nós ouvimos falar de Lao Tsé, Confúcio e Buda que, nos séculos V a VII a.C, deram origem a uma espiritualidade asiática que, até hoje, marca profundamente o modo de ser oriental. Da mesma forma, no mundo árabe-ocidental, Moisés, Jesus e Maomé definiram a tradição monoteísta que tão profundamente marca a vida de judeus, cristãos e muçulmanos.
            Afastando-nos um pouco das "grandes" tradições espirituais, e focalizando melhor as "pequenas" tradições religiosas dos nossos povos indígenas ou africanas, o que nos surpreende é que encontramos, basicamente, o mesmo. As expressões culturais são incrivelmente variadas, mas precisamos atentar para o que está "por detrás" delas. Podemos retroceder até o tempo das cavernas e os poucos vestígios sobreviventes ainda nos mostrarão o mesmo cenário: pessoas humanas que buscam um "sentido" para o seu viver, conviver e sobreviver, encontrando este sentido em algo que está "além" de sua própria insuficiência e miserabilidade. Freqüentemente são forças divinas ou espirituais em que a pessoa irá colocar sua confiança, mas, reparem, - isto é especialmente importante -,  estas forças divinas ou espirituais sempre exigem que a própria pessoa busque "superar-se a si mesma", indo, individual e coletivamente, em direção a algo que está mais adiante, alguma forma de libertação, iluminação, ou salvação. É desta profunda necessidade humana de ir sempre em busca de algo que transcenda sua pequenez que surgem os códigos de comportamento, os ritos a serem celebrados e as lições a serem apreendidas. Estará presente sempre também o xamã, pajé, mestre, sábio ou santo, para indicar ao simples mortal "o caminho" a seguir.
            Vale a pena lembrar aqui o que aconteceu na assim chamada "modernidade". Ocorreu algo de muito estranho. Aparentemente, todas as espiritualidades que, durante milênios, alimentavam o espírito humano, de repente parecem ter perdido sua razão de ser. O rápido processo de modernização das sociedades, iniciado no séc. XVI, trouxe consigo uma forte secularização que, particularmente no mundo ocidental, fez com que todas as religiosidades fossem colocadas sob suspeita. A razão tomou o lugar da mística, colocando-se em oposição a ela. No norte europeu, igrejas antes lotadas agora estão vazias e à venda. É verdade que, hoje, em dez anos, o mundo muda mais do que nos cem anteriores. Será que, com o fortíssimo processo de globalização em andamento, chegamos ao início do fim da mística humana? São muitos os que falam em sociedades pós-cristãs e/ou pós-religiosas.
            Nós não acreditamos nisto. As aparências enganam. Fato, no entanto, é que as tradições místicas, hoje, podem mudar de configuração num espaço de tempo relativamente curto. Não apenas na Europa. Quem de nós, católicos brasileiros, por exemplo, poderia acreditar, anos atrás, que, em tempo tão curto, as igrejas evangélicas alcançariam 25% da população brasileira? Sim, a "flecha do tempo", como dizem alguns, se acelerou, e ninguém está muito seguro do que pode trazer o futuro. Mas, longe de nós a crença no fim da mística. A mística, mais do que um dado cultural, é um dado antropológico. Para por fim à mística é preciso por fim ao ser humano. Independentemente de tempo e lugar, o ser humano sempre estará em busca de um "sentido" para seu viver, conviver e sobreviver. Com inacreditáveis diversidade e criatividade, ele dará sempre novas expressões culturais a esta sua ânsia fundamental. Os "descrentes" - veja os militantes ateus da modernidade - às vezes com maior fundamentalismo ainda do que os crentes. Como já dissemos: as aparências enganam.
            O que queremos ressaltar neste artigo é que, também na nossa espiritualidade cristã, devemos desenvolver um aspecto que a torne mais resiliente ao rolo compressor do tempo. Não basta viver do passado. É preciso construir uma espiritualidade capaz de absorver os impactos do presente e do futuro, pois eles são muitos, profundos e desconcertantes.
I A Revelação como fonte da espiritualidade cristã
            A tradição judaico-cristã (e muçulmana) tem algo de muito próprio: ela parte do princípio da Revelação. O próprio Deus toma a iniciativa de se revelar aos homens e às mulheres. Nesta tradição não é o ser humano que toma a iniciativa de trilhar um caminho de libertação ou iluminação. É Deus quem indica o caminho. Deus fala a Abraão, Isaac e Jacó. Deus revela sua identidade (o "Inominável") a Moisés e lhe mostra, em detalhes, o que deve fazer para alcançar a libertação do povo. O Deus único e soberano coloca seu arco-íris entre as nuvens do céu e, no alto da montanha, grava em pedra os mandamentos a seguir. Cabe ao ser humano cair de rosto em terra para adorar, ouvir e obedecer. O "pacto" é sagrado, selado com sangue. Inúmeras vezes o ser humano irá falhar diante das exigências divinas, mas nunca faltarão profetas para reconduzi-lo ao bom caminho. É inadmissível contestar uma Palavra ou uma Lei que vem do próprio Deus. Nem Jesus não quer mudar uma única vírgula (Mt 5,18). Apenas mostrará o verdadeiro rosto deste Deus: não um Soberano distante, mas um Pai muito próximo que ama todos os seus filhos e filhas com infinito amor. Um exemplo divino a ser seguido por todos nós.
            Muito cedo no cristianismo, a Revelação foi codificada em uma doutrina, tida como imutável exatamente por sua origem divina. Com o passar do tempo, esta doutrina evoluiu, foi explicitada de diversas formas e, em alguns momentos, criou ares de dogma. A Igreja-Instituição, até hoje, defende este legado com inabalável firmeza. O Concílio Vaticano II, porém, após longo processo de amadurecimento teológico, deixou claro que Deus não se revela de forma direta, como que à viva voz, mas por meio do difícil interpretar das realidades terrestres, pela leitura atenta aos sinais dos tempos, e pelo bom senso do povo de Deus guiado por seu Espírito. Faz-se necessário, portanto, ler a Sagrada Escritura de forma criteriosa, respeitando sua evolução histórica, e, da mesma forma, fazer teologia fazendo clara distinção entre a verdade revelada em si e sua formulação, histórica e transitória.  Tudo isto mantendo como critério máximo nossa fidelidade à autêntica tradição da Igreja, preocupação primeira do magistério eclesial.
            No contexto desta tradição, a mística vivida pelos cristãos, desde o início até hoje, demonstra claramente duas vertentes: uma que podemos chamar de "institucional", e outra que vamos chamar de "antropológica".
II A Mística Institucional e seu grande apego à Tradição
            Com certeza, a imensa maioria dos nossos leitores é constituída de religiosos ou religiosas, sacerdotes, leigos ou leigas, todos/as muito próximos/as e comprometidos/as com a Igreja assim como ela, historicamente, se configurou. É desta Igreja que, desde muito cedo, recebemos a consciência religiosa que nos anima. Do contexto familiar, da catequese recebida e do caldo de cultura do nosso tempo recebemos o núcleo central daquilo que fundamenta a nossa fé, a orientação básica que norteia nosso comportamento, e o conjunto essencial de ritos a serem praticados para não perder nossa própria identidade de cristãos/ãs, membros da Igreja. No processo de amadurecimento da nossa fé, especialmente na fase decisiva quando optamos, livremente, por nosso modo particular de inserção no mundo, como leigos/as comprometidos/as, religiosos/as ou sacerdotes, usamos como instrumentos de aprofundamento da fé aquilo que a Tradição da Igreja nos ofereceu: a Sagrada Escritura com sua interpretação adaptada ao tempo (desde a histórico-crítica até as mais modernas) e sua vivência considerada mais proveitosa (como a hoje muito divulgada "lectio divina"); recebemos também, como importante instrumento complementar, o essencial da Teologia da Igreja, seja a mais tradicional, seja a mais aberta às tendências modernizadoras.  
            O que devemos perceber é que tudo isto tem um fortíssimo elo de ligação com a Revelação. Uma Revelação, basicamente, incontestável. As interpretações dos textos bíblicos, nas últimas décadas, tanto do lado católico quanto do lado protestante, têm sido muito ricas e diversificadas, mas em nenhum momento algum biblista sério pretendeu "substituir" a Revelação original expressa nos textos. O Concílio Vaticano II reconhece como real e legítimo o "avanço" no entendimento da Palavra Revelada (Dei Verbum 8), mas, ainda recentemente, no Sínodo especialmente convocado para este fim (2007), o magistério oficial da Igreja alertou para a necessidade permanente de uma interpretação "canônica", isto é, uma interpretação fiel à Tradição legítima da Igreja. O mesmo pode ser dito da Teologia. Não existe teologia cristã sem fidelidade à Revelação. No decorrer dos dois mil anos de história do cristianismo, as teologias oficialmente adotadas pela Igreja demonstraram uma variedade significativa, mas em nenhum momento manifestaram a intenção de "substituir" a Revelação em que se fundamentam. Também a nível latino-americano, o surgimento de novas teologias, ou enfoques teológicos, tem sido uma constante. Depois do Vat. II vemos uma espécie de inversão: de uma Doutrina (fixa) que ilumina a história, a Teologia percebe agora que é a própria história que ilumina a Doutrina (em permanente reformulação). Seja qual for o ponto de vista adotado, de nenhum lado se quer desfazer da Revelação como o fundamento original (e permanente) da Teologia.
             O ponto que nós queremos ressaltar é que deste cristianismo, baseado numa Revelação traduzida em Teologia, surge, necessariamente, uma Mística de grande apego à Tradição. Ela, sempre de novo, se fixa no ponto onde tudo começou. Trata-se do que podemos chamar de "Mística Institucional". Bons religiosos, bons padres e bons leigos se alimentam desta mística ou dificilmente serão reconhecidos como pessoas exemplares da Igreja. Trata-se do melhor que a Igreja, como Instituição, tem a oferecer. Observando como que "de relance" vamos perceber que a imensa maioria dos cristãos - padres, religiosos ou leigos - se alimenta exclusivamente desta mística. Ela tem um pilar de sustentação muito forte na recepção regular dos sacramentos, em especial da Eucaristia. Particularmente do lado católico, a Eucaristia às vezes parece ser a fonte exclusiva da autêntica mística cristã. Outro pilar muito forte é a oração. Sem atentar muito bem para a diferença entre estar em (atitude de) oração e fazer oração, nós, desde criança, nos habituamos a fazer muitas orações. O povo simples, é verdade, ganha de nós, padres ou religiosos/as, com facilidade, mas nós também temos nossos momentos programados de oração pessoal ou comunitária. Rezamos os ofícios divinos e, a vida inteira, incansavelmente, repetimos especialmente os salmos, de forma cantada, rezada ou salmodiada. Ninguém venha nos dizer que nos falta espiritualidade ou que não levamos a sério a nossa obrigação de cristãos/ãs.
            Não temos nenhuma crítica a respeito. Muito ao contrário. Vemos que esta espiritualidade institucional levou inúmeras pessoas ao mais alto grau de santidade, gerou uma corrente interminável de mártires, e deu origem a uma fila de pessoas extraordinárias que se tornaram fundadores/as de instituições religiosas ou "mestres" da vida espiritual. Ainda assim, vemos também uma ameaça: na mística institucional, exatamente por seu apego inerente à tradição, se encontra o germe do fechamento ao novo, da tradição pela tradição, da repetição sem aprofundamento (= espiritualidade "estacionada"), do aferrar-se ao que já foi e da não-percepção do que vem pela frente. Desta "cegueira" Jesus acusou as pessoas consideradas mais religiosas e mais comprometidas com a instituição religiosa do judaísmo (Mt - Cap. 23).
III A Mística Antropológica e sua grande abertura ao novo
            Existe uma outra Mística que não se fundamenta numa Revelação institucionalizada, mas que brota espontaneamente do coração humano. Chamamo-la de "antropológica". Onde podemos encontrá-la? Em qualquer lugar do mundo onde o "sentido" que a pessoa dá à sua vida (ao seu viver, conviver e sobreviver) ainda não é determinado por critérios institucionais que lhe direcionam. Dizemos "ainda" porque, em muitos sentidos, a pessoa já nasce institucionalizada. Não existe vida humana desligada de um determinado contexto sócio-cultural, lingüístico e ideológico. Um certo "direcionamento", portanto, já vem dado. Ainda assim, há uma variedade muito grande na liberdade institucional que as pessoas desfrutam, ou nas restrições institucionais às quais as pessoas, consciente ou inconscientemente, se sujeitam.  
            Nenhuma instituição religiosa nos parece mais cerceadora da liberdade humana do que a judaica, cristã ou muçulmana. Em princípio, a liberdade de aderir ou não é total, mas, uma vez feita a adesão, em qualquer denominação, o crente sincero assume, na autêntica vida comunitária, um determinado modo de pensar e de agir que não permite muitos desvios. Há graus de santidade, não de liberdade. Não se discute uma religião de origem divina. É diferente nas outras religiões. A religiosidade asiática ou oriental, nas suas diversas formas, desconhece o fator "Revelação". Está no centro não um Deus que se impõe, mas o próprio ser humano que, livremente, partindo de sua situação de miserabilidade, sofrimento ou insuficiência existencial, sai em busca de um caminho de libertação ou iluminação. Da mesma forma na religiosidade africana ou indígena não encontramos uma "Revelação" no sentido tradicional cristão. Nós, cristãos, depois do Vaticano II, dizemos que a Revelação está presente nas religiões não-cristãs, mas elas, por si próprias, não se entendem assim. Impõe-se com muita força a própria tradição cultural local. O mundo do sagrado tem alto significado e forte presença social, mas todo o conteúdo do pensar e do agir tem como único critério a própria comunidade. Nada de fora tolhe a liberdade e a espontaneidade do coração. A "mística" que guia os passos não vem de fora, mas de dentro. Seu berço principal não tem feição institucional, sua matéria prima é a antropológica.
            Por não possuir uma ligação intrínseca com alguma autoridade externa, a mística antropológica apresenta grande abertura ao novo. O "Deus" da mística antropológica se encontra no próprio coração humano, e o coração humano, em meio à multifacetada realidade cultural, social e ambiental, se vê na imperiosa necessidade de escolher um caminho (entre muitos possíveis). Não havendo quem lhe determine os passos, ele mesmo, individual e coletivamente, escolherá o caminho que lhe parecer melhor. Sua mente, dizem as ciências modernas, possui a tendência inata de sempre buscar o melhor (em meio às mil dúvidas e erros do caminhar humano).2 O novo ou diferente não gera suspeita. É seu natural. Algo disto podemos perceber também se dermos novamente uma olhada nas modernas sociedades secularizadas. Nelas, a instituição religiosa como tal perdeu grande parte de sua credibilidade. Com isto se fortalece também um sentimento de descomprometimento com as tradições religiosas. Um número cada vez maior de pessoas as abandona. Uma vida familiar toda ela pautada por costumes religiosos é deixada para trás e, aparentemente, nada parecido entra em seu lugar. Uma filósofa muito atenta a isso, Simone Weil (†1943), talvez tenha sido uma das primeiras filósofas a perceber o "vácuo cultural" que esta nova realidade estava ocasionando. Seu último livro fala do "desenraizamento" europeu. Mas todos os vácuos - como o vácuo quântico - estão cheios do novo. A Europa fervilha de novas angústias e novas tentativas para dar um novo sentido à existência. Quando a mística institucional vacila, a antropológica retoma sua força.
IV Nosso grande desafio: manter a chama acesa
            Sendo religioso, costumamos fazer uma visita ocasional à casa central da nossa Província Religiosa. Não muito tempo atrás, no horário do meio dia, entramos na Capela e vimos algo que, até certo ponto, nos comoveu. Diante do sacrário estava ali, em cadeira de rodas, nosso antigo mestre espiritual agora já muito idoso. Dormia, tranquilamente, o sono dos justos. Veio-nos à mente o famoso quadro dos "sapatos de Van Gogh". Sapatos maltratados. Porém, não é deles que o pintor nos fala, mas da pessoa desafortunada que os usou. Assim também estava ali o velho religioso: em seu semblante  de tranqüila seriedade transparecia uma vida inteira da mais pura mística institucional. Será que esta mística institucional nos basta? Temos sérias dúvidas quanto a isso, especialmente no nosso tempo de transformações rápidas. Façamos algumas reflexões:
            a) A batalha entre corpo e mente
            Sempre pensávamos que é a mente que guia o corpo. Mas agora os neurocientistas descobriram que é, muito mais, o corpo que guia a mente. Já se sabe com segurança que corpo e mente não são duas entidades separadas. Só podemos pensar corporalmente. Especialmente nós, religiosos, ou leigos muito chegados à Igreja, esquecemos - porque contraria nossa sensibilidade religiosa tradicional - que esta unidade corpo/mente é fruto de uma longa evolução biológica. Nós, seres humanos da espécie sapiens, descendemos da "Classe dos Mamíferos". Estes começaram a povoar o Planeta Terra 200 milhões de anos atrás, e (somente) com eles partilhamos um cérebro dotado de um "hipocampo". Com este hipocampo os animais mamíferos aprenderam a se locomover melhor no espaço, gravando em sua memória - o hipocampo é a sede da memória - as diversas coordenadas espaciais que facilitavam sua sobrevivência. O gato que vemos agachado no telhado do vizinho, à espreita do passarinho que, inadvertidamente, chegou perto, faz exatamente isso. Usando os fracassos e êxitos gravados em sua memória sabe exatamente até onde pode se aproximar, e a que altura deve pular, para agarrar o pobre do tico-tico que, para sua grande infelicidade, nasceu sem hipocampo.
            Vale a pena aprofundar este dado um pouco mais para entender melhor porque a mente - e daí sua possibilidade de crescimento espiritual! - é tão dependente do corpo. O nosso grande córtex cerebral, dizem os entendidos, evoluiu a partir do hipocampo. Cada vez mais nossos antepassados mamíferos, passando pela fase da "Ordem dos Primatas", aprenderam a coordenar as distâncias e cartografar os diferentes caminhos, gravando-os na memória. Possuindo uma índole gregária desenvolveram também uma linguagem grupal cada vez melhor, além de novos hábitos alimentares para satisfazer um cérebro cada vez maior e mais necessitado de energia. Um dos mais afamados fundadores da "linguística cognitiva" dos anos 1970, o Prof. George Lakoff, da Universidade da Califórnia, demonstrou (em Philosophy in the Flesh: the embodied mind and its challenge to Western Thought, com Marc Johnson, Basic Books, New York, 1999) que nossa linguagem, reflexo da mente, está cheia de conceitos espaciais (e, conseqüentemente, também temporais): dentro, fora, acima, abaixo, antes, depois, para frente, para trás, etc. A partir desta mente fortemente "sensorial", o ser humano foi desenvolvendo sua mente moderna, mais "abstrata", também ela fortemente marcada pelo uso "metafórico" destes conceitos espaciais e temporais (ver em: Metaphors we live by, G. Lakoff, com Marc Johnson, University of Chicago Press, 1980). Pessoas menos abstratas e mais ligadas ao dia a dia adoram a linguagem metafórica ou pictórica, como mostram as parábolas de um certo Galileu: "Um homem 'descia' de Jerusalém para Jericó e 'caiu' nas mãos de ladrões... (Lc 10,30).
            Sim, nossa mente depende inteiramente do corpo. Infelizmente, durante 2.000 anos, a Igreja batalhou contra o corpo. Para ressaltar o espírito, as coisas do céu, a "alma" criada por Deus, era preciso opor-se ao mundano, às coisas da terra, ao corpo, feito do pó da terra. Muito já foi escrito sobre isto. A espiritualidade cristã, assumindo o caldo de cultura do mundo ocidental,  sempre separou espírito e matéria, corpo e alma. Uma batalha permanente... que ainda não terminou.
            b) A centralidade da "experiência mística" na espiritualidade cristã
            Paralelamente à mística institucional que sempre caracterizou o dia a dia normal do mundo cristão, que pautou a vida exemplar dos Santos Padres da Igreja, que orientou a vida regular dos mosteiros, chamando ora à ação, ora à contemplação, e que levou à honra dos altares inúmeros dos nossos venerados santos e santas, sempre existiu entre nós também a mística antropológica, aquela que simplesmente brota do fundo do coração. O institucional, o regular, ritual ou costumeiro, tem mesmo algo de sonolento. Não mexe com as entranhas, não emociona, e não acumula novas energias. Muito cedo alguns cristãos (e cristãs!) irrequietos se meteram no deserto, seguindo as pegadas do Batista e de Jesus. Na ânsia de corresponder aos apelos divinos batalharam contra a mediocridade, contra o demônio, e também contra o corpo e todas as suas tentações. O deserto não fazia parte do programa oficial da Igreja como instituição. Era o local onde apenas os mais abnegados e os mais generosos se refugiavam, buscando uma união verdadeira com o Deus do coração. O que chama nossa atenção é que, por mais que "desprezassem" o corpo, dele exigiam enormes sacrifícios em abstinência, jejum e oração para, assim, chegar ao objetivo.
            Também a Vida Religiosa nos inúmeros mosteiros europeus da Idade Média, - embora com alguma freqüência marcada pela  traição às intenções originais, e até pela acolhida aos privilégios feudais, - por mais que a mera institucionalidade eclesial ou a pura formalidade religiosa às vezes quisessem dar o tom, ela nunca deixou de voltar às origens e buscar novos caminhos. Seu objetivo maior sempre foi essa: alcançar e viver a "experiência mística". Algo muito difícil de definir. Ela pode brotar da mística institucional, mas, como dissemos, não é comum. Trata-se de uma flor típica da mística antropológica. Por isso não é privilégio de mosteiros, nem da religião cristã. Buscar a experiência mística é a essência de todas as religiões. Em muitos sentidos é a essência do coração humano. Todo ser humano está em busca de algo que lhe é superior. Um dos mais profundos formuladores da experiência mística, Dionísio, o Areopagita (†500), afirma que, para superar toda a fragilidade e ser permeado de força divina, o ser humano deve "deixar para trás os sentidos e as operações do intelecto" (em Teologia Espiritual, cap. 1). Somente o "estar em" Deus, sem mais nem menos, possibilita ao ser humano superar toda a sua miserabilidade e alcançar sua realização (e felicidade) máxima, tanto individual quanto coletiva.
            Na vida cristã, esta busca da união mística com Deus será perseguida sempre de novo. Quando a Igreja, na Idade Média, robustece sua institucionalidade, homens como Bernardo de Claraval (†1153) clamarão pelo "retorno a Deus" e por um novo comprometimento com a "experiência do deserto". O contexto cultural muda a linguagem e as formas de agir, mas a busca espiritual continua a mesma: haurir da experiência mística novas energias para superar a onipresente pequenez humana. O "povarelo" de Assis (†1226) encontra uma força divina extraordinária na identificação com o Cristo crucificado, espelhado no rosto dos leprosos e famintos na beira da estrada. O Mestre Eckhart (†1328) repetirá em suas pregações que de nada valem as vaidades humanas, nem as da Igreja. Deus, que mora no "fundo da alma", é tudo, mas Ele só pode ser encontrado por aquele que "nada mais deseja, nada mais sabe, e nada mais possui". A experiência mística - repetem todos os místicos - requer esforço extraordinário. Até a suave Santa Tereza de Lisieux (†1897) que se achava "pequena demais para subir a rude escada da perfeição" não se cansa dos muitos "pequenos sacrifícios". Lava e passa a roupa do convento até não poder mais.
            c) A "caminhada" rumo à experiência mística, hoje
            Voltemos ao ponto. Por mais que a tradição cristã tenha "desprezado" o corpo, em nenhum momento deixou de exigir dele um imenso esforço para poder alcançar e viver a experiência mística. E exatamente neste ponto ela se iguala à tradição de todas as grande místicas mundiais. Por isso entendemos que a mais profunda mística cristã (normalmente) não é a institucional, mas a antropológica que tem presença universal. Os estudiosos da Vida Religiosa, assim como ela hoje se apresenta, têm dito com freqüência que ela perdeu a característica original da "experiência mística". Nossa impressão é a mesma. Diante da necessidade de adaptar-se à vida moderna, a Vida Religiosa - além de entrar muito na normalidade institucional - assumiu, inadvertidamente, também um dos seus traços mais fortes: a cultura burguesa. A cultura burguesa é extremamente benevolente com o corpo. Faz-lhe todas as vontades. O problema não está na adaptação à modernidade, mas na adoção de sua inesgotável voracidade consumista. Não apenas no comer e no beber, mas no inteiro estilo de vida dos que deixaram a pobreza para trás. Nada mais nos falta. Convencemo-nos, com razão, que o corpo não está aí para ser "desprezado", tudo bem, correto, mas isto não significa automaticamente que deve ser paparicado. Durante milhões e milhões de anos, para ter saúde, foi duramente exigido, como ainda hoje acontece com os animais na floresta. Qualquer excesso lhes prejudica. Em toda a natureza é assim: as flores são mais bonitas e os perfumes mais agradáveis apenas quando as condições materiais da terra são adequadas. A mente humana é como a flor do campo: apenas "brilha" quando o corpo viceja. A "experiência mística" é a mais alta realização do ser humano. Por isso, sendo inseparável a unidade corpo/mente, ela não se concretiza quando o corpo não está nas melhores condições.          
            Todas as grandes religiões possuem "mosteiros", locais de aperfeiçoamento espiritual. Também vemos diferentes "escolas" de aprofundamento desta ou daquela vertente espiritual. Em todos elas, sem exceção, o corpo é duramente exigido a fim de que a mente possa dar a direção adequada e superar a fragilidade humana. Neste artigo não há espaço para expor isso de forma mais completa, mas gostaríamos de trazer presente um exemplo que encontramos no recente livro (ainda não traduzido) de Ineke Albers, teóloga holandesa, especializada em neurociência, que fez seu doutorado sobre esta relação mente/corpo (ver em: De God van het lopen - De monnik, de sporter en de weg naar verlichting, Edição Atlas Contact, Amsterdam/Antwerpen, 2013). O budismo não conhece um Deus único que se revela. Parte do próprio ser humano, mergulhado em sofrimento, que busca um caminho de superação. Buda despertou (Buda = "Desperto") para este caminho quando alcançou sua "iluminação" (seu entendimento final e completo) após um imenso esforço de meditação. Diz a história que ficou uma semana inteira sentado debaixo da árvore, meditando. A pessoa "desperta" venceu todos os desejos do corpo, vive em plena conformidade com a realidade (individual, coletiva e ambiental) e está livre para uma vida de "compaixão": de total respeito às forças divinas, superiores, e aos seres da terra ainda mergulhados na dor e na cegueira. Não havendo, nesta cultura, separação entre corpo e mente, como no Ocidente, é o corpo que deve ser treinado para que a mente se "liberte", ou "desperte", plenamente.
            Os monges "kaihôgyô", da vertente budista "Tendai", que vivem nos mosteiros da região montanhosa de Enrakuji, não muito longe de Kyoto, são treinados de uma forma muito peculiar. No primeiro ano do "noviciado" varrem e limpam o mausoléu do monge fundador Saichô (†822), aprendendo a concentrar a mente por meio de ações muito simples. No segundo ano fazem, com dieta sóbria, cem caminhadas noturnas ininterruptas de 35 km., recitando continuamente mantras (da divindade Fudô Myô-ô: namaku samanda bazaranan sendan makaroshana sowataya untarata kanman) e executando, nos devidos lugares, 250 mudras (ritos manuais místicos) em atenção às inúmeras entidades divinas que habitam as montanhas (nas pedras, cachoeiras, árvores, paisagens, etc.). No dia da septuagésima noite andam mais 54 km. pela cidade de Kyoto para que os moradores se beneficiem de suas energias sagradas. O terceiro ano é dedicado inteiramente à arte das longas horas de meditação. Apenas um corpo disciplinado molda a mente. Passada esta primeira fase, os monges ainda não se tornaram "Budas vivos". Podem pedir à Direção de Enrakuji iniciar um retiro de 12 anos em que não podem mais abandonar a montanha. Fazem as mesmas peregrinações noturnas (sem que isto mude o programa diário), mas agora durante mil noites (divididas sobre 7 anos). Não se pode desistir da empreitada espiritual por nenhum motivo. Numa pequena mochila estão guardadas uma faca (para praticar "seppuku" - abrindo a barriga - quando necessário) e uma corda (para enforcamento, mas aí a vergonha da desistência não é desfeita). No quarto e quinto ano desta nova fase, os monges fazem a mesma peregrinação duzentas noites seguidas. A partir do sexto ano as seguidas caminhadas noturnas são de 60 km., com 260 mudras. Depois de 700 caminhadas o monge está preparado para seu "dô-iri", a prova máxima. Após despedida dos monges companheiros se fecha no templo de Myôô-dô onde permanece nove dias e nove noites sem comer, beber ou dormir. Recita durante horas o Lotus Soetra budista, algo como o Novo Testamento cristão. Após o quinto dia, para não comprometer a mucosa bucal, pode molhar a boca (não beber!). Dois monges companheiros o acompanham, revezando, cutucando-o se ameaçar cair no sono. Depois desta "novena" budista, o inteiramente exausto monge é acolhido e aclamado com veneração pelos colegas, e pelo povo da cidade (TV presente). O corpo forjou uma mente iluminada e deu à luz um "novo Buda". O país inteiro festeja. No sétimo e último ano de treinamento (nos cinco anos restantes do retiro já funcionam como "abades" profissionais), os monges fazem cem vezes seguidas caminhadas de quase 80 km., percorrendo Kyoto, abençoando a população!
V A título de conclusão
            Se a Vida Religiosa atual quiser recuperar o antigo dom da "experiência mística" deverá ir "além" da mística institucional que a enreda com seus muitos tentáculos, e buscar novas energias na fonte originária da mística antropológica. Esta requer um corpo "treinado" de tal forma que possa fazer "brilhar" a mente. O caminho normal para isto, tanto na mística cristã original quanto na oriental, é - poderíamos assim expressar-nos - uma "meditação persistente num corpo resistente". Algo raro na atual mística institucional. Todos os autênticos religiosos entre nós conhecem os ocasionais "picos" de experiência mística que o hábito da meditação prolongada proporciona. Picos que enchem a unidade mente/corpo de novas energias que tendem a traduzir-se em atitudes permanentes de compaixão, amor e dedicação.

Endereço do autor:R. Juruá, 798 - Jd. Paineiras
09932-220 Diadema SP
Email: nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>

* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Foi educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), São Paulo, coordenando os programas de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Representa, atualmente, a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP) e atua na pastoral paroquial de Diadema/SP. Além de cartilhas populares publicou diversos artigos na REB, Vida Pastoral, Verbum e Grande Sinal.
1) Ver em: Grande Sinal, nos3,4,5 e 6 e Convergência no..../2014
2) Ver em  Vida Pastoral nos278, 279, 281 e 282 (2011/12)

Para reflexão em grupo:
1) Você percebe "picos" na sua experiência mística pessoal? O que você sente nestes momentos?
2) Em sua opinião, a "mística institucional", retratada neste artigo, proporciona estes picos?
3) A "meditação" faz parte de sua espiritualidade? De que forma?



           



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