Obrigado/a, irmã água
Nicolau João Bakker, SVD*
Introdução:
A Campanha da Fraternidade de 2017, mais uma vez,
nos convida a entender melhor, e tratar com mais carinho, a natureza que nos
envolve. Apresentando como tema "Fraternidade: biomas brasileiros e defesa
da Vida", ela pede nossa atenção para os diferentes biomas brasileiros e
nos alerta: os biomas têm a ver com a "Vida" que, como cristãos e
cristãs, somos chamados/as a defender. A
questão é séria. Morrendo os biomas, morreremos com eles. Mas, perguntemos antes,
quais são os biomas brasileiros? Tradicionalmente são seis: a Amazônia, a
Caatinga, o Cerrado, o Pantanal, a Mata Atlântica e os Pampas do Sul.
Ultimamente acrescenta-se a eles a Zona Costeira e Marinha. O que estes biomas
têm a nos dizer? É provável que a Revista Vida
Pastoral, nos primeiros meses de 2017, publique um artigo nosso que
mostrará em detalhes "a Vida como ela é", e como os biomas expressam
em escala maior o que a Vida é em escala menor. Por onde olharmos para a
"Vida", desde a mais pequenina célula de qualquer ser vivente até o
grande bioma, sempre encontraremos uma "teia partilhada", feita
inteiramente de "relações colaborativas". Uma teia onde, como diz o
papa Francisco, "tudo está interligado". Também as sociedades humanas
são expressões desta "Vida". Ou, melhor, deveriam ser a expressão
dela. Apenas o ser humano, com sua consciência, pode passar por cima da
"fraternidade biológica" e, rompendo as relações colaborativas,
faltar com a "fraternidade cristã".
Neste
artigo não trataremos da "Vida" de forma genérica. Vamos olhar para o
elemento da natureza que mais a sustenta: a água. Se a Campanha da Fraternidade
nos pede para atuar "em defesa da Vida", é antes de tudo da água que
devemos cuidar. A Vida, como veremos, tem sua origem na água e dela depende.
Iniciaremos nossa "meditação" olhando para a água como a fonte da
"Vida". Em seguida veremos o que pode ser feito para cuidar dela de
forma mais colaborativa.
I A água:
fonte da "Vida"
O Planeta Terra, também chamado Planeta Água, já
tem quase cinco bilhões de anos de existência. Nasceu de um espirro cósmico, de
um cosmos em permanente transformação. Sua localização se provou privilegiada,
nem muito perto nem muito distante do sol. Surpresas não tardariam a acontecer.
No início, "Vida", nem pensar. Não havia água, nem oxigênio, nada
além de uma espécie de bola de fogo que, lentamente, esfriava. Mas, 3,8 bilhões
de anos atrás, as coisas já começam a acontecer. A crosta terrestre é impactada
de cima por enormes meteoritos e de baixo por vulcões de lava e torrentes de
vapor. Com o esfriamento da Terra, as nuvens de vapor se condensam e chove
torrencialmente sem parar durante milhares de anos, formando oceanos rasos. A
atmosfera terrestre, antes muito tóxica, agora se renova e está repleta não só
de vapor de água, mas também de nitrogênio, neônio, argônio e dióxido de
carbono. Especialmente os átomos de carbono vão ter uma função vital. Num
ambiente propício de calor e umidade se combinam facilmente com os átomos de
hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo e enxofre. Você, leitor/a, sabia que
apenas estes seis átomos constituem 99% do peso seco do nosso corpo, e assim
também dos demais seres viventes? O carbono é como que a mãe de toda a vida
orgânica.
Pois,
há aproximadamente 3,7 bilhões de anos, é da água que a "Vida" surge.1
Nas ciências da Vida não há dúvida sobre isto. Existe uma espécie de
"fraternidade inicial" entre os diferentes elementos da natureza.
Eles se atraem entre si formando moléculas, as moléculas da Vida, em especial
os minúsculos aminoácidos. Um conjunto de apenas cerca de vinte aminoácidos,
ligados em cadeias que variam de algumas dezenas a várias centenas, compõem as
proteínas de todos os organismos conhecidos na Terra. Na rica sopa química dos
primórdios da Terra, dizem os entendidos, encontravam-se os dinâmicos "catalizadores
químicos" que deram origem a pequenos "ciclos químicos". Estes,
por sua vez, sempre com ajuda da energia solar e um meio ambiente propício,
formaram "superciclos", e assim, aos trancos e barrancos, foi-se
formando o primeiro "DNAzinho" que hoje, de forma aperfeiçoada, está
presente em todas as células de qualquer ser vivente. A principal
característica do DNA é que ele possui a capacidade de
"auto-replicar-se", quer dizer, tirar cópias de si mesmo. É o que
todas as células do nosso corpo - e de qualquer ser vivente, seja planta,
animal ou qualquer outro ser vivo - fazem até hoje. Auto-replicação, ou
"autopoiese", é a essência daquilo que chamamos "Vida".
Todas as células do nosso corpo se renovam permanentemente. Só para ter uma idéia:
as células da nossa pele se renovam a uma velocidade de cem mil por minuto!
Embora
ainda existam muitos pontos a serem esclarecidos, a microbiologia dos últimos
tempos fez grandes avanços. Nos primeiros dois bilhões de anos, é o
"reino" das bactérias que domina o mar e a terra. Vivemos desprezando
as bactérias, mas estes minúsculos seres unicelulares são os verdadeiros
artistas da Vida. Sem qualquer tipo de sexo, muitas delas podem multiplicar-se
a cada vinte minutos e simplesmente transferir para outras bactérias até 15% de
sua carga genética, e isto diariamente! Desta forma diversificaram-se
espetacularmente. Com o passar do tempo, as bactérias aprenderam a fixar o
nitrogênio do ar, a pigmentação, a locomoção, etc., tudo da maior importância
para os seres vivos até hoje. Uma das primeiras técnicas "inventadas"
por elas foi a da "fermentação", através da qual transformam cadeias
de carbono (açúcares!) em moléculas de ATP (adenosina trifosfato). As bactérias
que mais sucesso obtiveram foram as "fotossintetizantes", chamadas
"cianobactérias". Sabiam, pela fotossíntese, aproveitar bem a energia
solar e o hidrogênio e dióxido de carbono do ar, para transformar tudo em
energia química, decompondo os açúcares e compondo as tais moléculas de ATP.
São estas as moléculas que até hoje fornecem a energia necessária para
movimentar os nossos músculos, intestinos e cérebros. Quando, há
aproximadamente 2,5 bilhões de anos, o hidrogênio do ar escasseava cada vez
mais, estas criativas bactérias verde-azuladas inventaram mais outra técnica bioquímica:
captar o hidrogênio da água. Descobriram uma fonte inesgotável. Decompunham a
molécula de água (H2O), absorvendo o hidrogênio e liberando no ar o oxigênio.
Até então o oxigênio do ar era quase inexistente. Mas vejam só a ousadia.
Depois de encher a atmosfera de oxigênio, que subiu de 0,0001% para os atuais
21% - causando a maior poluição da história do Planeta! -, uma linhagem de
cianobactérias, há aproximadamente dois bilhões de anos, inventou a respiração
aeróbia. Passaram a realizar a fotossíntese, gerando oxigênio, e a respirar,
consumindo oxigênio! O oxigênio se tornou, desta forma, o novo e mais poderoso
dínamo do processo da Vida. Enquanto a fermentação em geral produz apenas duas
moléculas de ATP para cada molécula de açúcar decomposta, na respiração com
oxigênio a mesma molécula de açúcar pode produzir até trinta e seis!
Constatou-se
nas últimas décadas que houve também um processo de "simbiogênese".2
As bactérias aprenderam a "parasitar", colaborando umas com as
outras, até fundirem-se completamente, dando origem a novas formas de Vida. Há
aproximadamente dois bilhões de anos, como fruto destas simbioses, começa a
surgir um novo reino, o dos "protistas", que existe até hoje. A
característica principal dos protistas é que sua célula possui um "núcleo
central", rodeado de membrana, que abriga o DNA. Debaixo da lupa podemos
ver que a nova célula é uma fusão entre dois tipos de bactérias: a
"arqueofermentadora" e a "nadadora". Depois veio conviver
na mesma célula, simbionticamente, ainda uma terceira bactéria, a da respiração
aeróbia. A característica principal dos protistas é que têm uma vida celular
muito mais complexa do que a das bactérias que não têm núcleo central. O grande
divisor do mundo vivo é entre os "procariontes", que não possuem núcleo
central, e os "eucariontes" que possuem núcleo central. Os protistas,
ainda unicelulares, receberam depois ainda a companhia de uma quarta bactéria,
a fotossintetizante. Com esta complexidade toda, novos caminhos de evolução se
abriram. Tornando-se multicelulares, os protistas puderam, por um caminho, dar
origem ao reino das plantas que, em seus "cloroplastos", usam a
fotossíntese e, por um outro caminho de evolução, ao reino dos animais e dos
fungos que apenas mantiveram, em suas "mitocôndrias", a respiração
aeróbia. Ambos os caminhos, porém, foram percorridos na água. Não é sem motivo
que todos os seres viventes da natureza têm em torno de 90% de água em sua
composição. Uma planta, sem água, morre imediatamente. E nós, sem ingerir as
proteínas das plantas, também morremos em pouco tempo. É a água que sustenta o
viver.
Vejamos agora mais de perto o reino animal
ao qual - querendo ou não - todos nós pertencemos. O início deu-se, novamente,
na água, há aproximadamente 750 milhões de anos. Os protistas, tornando-se
multicelulares, deram origem a conjuntos de células muito interligados e perfeitamente integrados chamados
"blástulas". Estas blástulas, - até hoje o início da vida humana -,
evoluíram para diferentes linhagens de pequenos seres marinhos, globulares e
vermiformes, que se tornaram progressivamente maiores. Desenvolveram a técnica
de excretar o indispensável mas excessivo cálcio do mar - no mar o cálcio é
10.000 vezes mais concentrado do que nas nossas células -, que transformaram em
esqueletos, conchas, crânios e dentes para melhor enfrentar as ondas e os
predadores. Entre estes seres marinhos surge, há aproximadamente 450 milhões de
anos, o Filo dos Cordados, caracterizado por um tubo nervoso central e um
pequeno cérebro. Em pelo menos uma fase da vida os cordados desenvolvem também
fendas branquiais, as quais, nos seres humanos, ainda são visíveis debaixo das
orelhas durante o desenvolvimento do feto. O subfilo dos cordados ao qual
pertencemos é o dos vertebrados. Há 400 milhões de anos, peixes do subfilo dos
cordados, providos de mandíbulas, barbatanas carnudas e pulmões - bránquias
modificadas - rumaram para a costa, transformando-se nos anfíbios que formam o
elo entre o mar e a terra. Como podem ver, a terra não é o nosso mais
costumeiro "habitat", mas o mar. Será por isso que todos/as gostamos
tanto de um dia de praia?
Vindo
para a terra, os animais não deixaram de levar consigo inúmeras lembranças do
mar. Há 300 milhões de anos, os répteis de tronco primitivo, nossos
antepassados distantes, começam a transplantar os anfíbios. Já inteiramente
adaptados à terra, com mandíbulas fortes e
pele resistente, trazem uma nova invenção biológica: o ovo (que
encapsula o ambiente aquático). Pouco depois, há uns 210 milhões de anos, os
répteis de tronco primitivo dão origem à Classe dos Mamíferos. Também estes
apresentam, além de pêlos e glândulas mamárias, uma outra grande novidade: o
útero. O útero, feito mar, preserva a vida em seu líquido amniótico. Da Classe
dos Mamíferos surge, há 66 milhões de anos, a Ordem dos Primatas e, dela, há 4
milhões de anos, a Família dos Hominídeos. O cérebro inicial dos cordados, à
essa altura, já se complexificou muito. Há 500.000 anos surge o Gênero Homo que
dá à luz, muito muito recentemente, a Espécie Sapiens. Somos nós, os/as
"filhos/as da água". Até hoje fazemos nossos primeiros passos
cambaleantes sobre o Planeta Terra. Em muitos sentidos continuamos
"irmanados/as" com a água. Espermatozóides e óvulos, como também a
blástula e o embrião, sempre se encontram em um meio úmido. As concentrações de
sal na água do mar e no sangue são praticamente idênticas. As proporções de
sódio, potássio e cloreto nos tecidos humanos são semelhantes às do oceano. O
que suamos e choramos é basicamente água do mar. Ainda pode haver dúvida que a
água é a fonte da "Vida"?
II Biomas:
a "Vida" em escala maior
Biomas são grandes extinções de terra onde a
"Vida" apresenta características próprias. Cada bioma possui uma
identidade particular, embora não seja autônoma. Assim como cada minúscula
célula viva tem uma "membrana", resistente mas permeável, em volta de
si, - é através dela que os indispensáveis elementos químicos vão e vêm -,
assim também o bioma, por maior que seja, não tem uma existência isolada. As
características próprias do bioma são fruto das forças cósmicas que o envolvem:
a luz e o calor do sol; o ritmo das estações; os ventos fortes ou a leve brisa
do mar; maior ou menor presença de oxigênio, a umidade do ar, e assim por
diante. O fator principal, no entanto, - será que surpreende? -, é... a água!
Um bioma sem ou com pouca água vira um deserto; com água abundante uma
Amazônia. O mundo vivo é um mundo verde. Como nós não temos a capacidade da
fotossíntese, as plantas verdes fazem isto por nós. Dependemos totalmente das
proteínas destas plantas verdes para sobreviver. Na "Vida", tudo
colabora com tudo. Por onde olharmos para ela, encontraremos sempre uma
"teia partilhada". Qualquer isolamento significa morte. Também os biomas são, portanto, teias
partilhadas de "Vida" própria.
Por
isso, em cada bioma, até os seres humanos têm características próprias, já que
fazem parte da teia. Seu viver, conviver e sobreviver depende do bioma. Havendo
muita água disponível, o ser humano que encontramos é o ribeirinho, o
seringueiro, o pantaneiro ou, quem sabe, o castanheiro. Com menos água será um
outro ser humano: o beduíno do deserto, o lavrador do cerrado, ou, quem sabe, o
nordestino de traços fortes talhados pela seca. Se prestarmos atenção veremos
que até o modo de falar e de pensar são diferentes, pois a mente nada mais é do
que o reflexo da realidade em que vivemos. No nosso mundo globalizado e
urbanizado, tudo é atravessado por uma despudorada máquina homogeneizadora, que
leva à quase-extinção toda a riqueza da diversidade, mas é preciso resistir. A
"Vida" depende inteiramente da riqueza de sua teia colaborativa.
III Biomas
brasileiros e a defesa da "Vida"
Quem quer defender os biomas deve defender as
suas águas. Não é algo simples e a Igreja deve deixar de lado certo amadorismo
com que muitas vezes trata a questão ecológica. Vejamos em primeiro lugar
algumas pré-condições para a ação a fim de, em seguida, tratar da ação em si.
3.1 Ter
consciência da gravidade da situação
Esta é a primeira pré-condição. Dentro e fora da
Igreja há os que pregam que a batalha já está perdida e que não há retorno. Um
dos mais famosos cientistas que alerta para a gravidade da situação é o inglês
James Lovelock. Famoso por sua "hipótese Gaia" - que vê o Planeta
Terra como um ser vivo - publicou, em 2009, o livro Gaia: alerta final (Rio de Janeira: Ed. Intrínseca, 2010).
Especialista em atmosfera e profundo conhecedor do aquecimento global, o autor
afirma: "Calor crescente e destruição do ecossistema florestal para prover
terra arável irão continuar e apressar a conversão da floresta tropical em
cerrado e deserto" (p. 86). "Uma tabela sobre a produção de dióxido
de carbono em g/kWh (grama por quilowatt-hora) de energia produzida por diferentes
fontes energéticas dá o seguinte resultado: nuclear 4; eólica 8; hidro de larga
escala 8; safras energéticas 17; geotérmica 79; solar 133; gás 430; diesel 772;
petróleo 828 e carvão 955" (p. 106). Não é sem motivo que o autor, apesar
da forte resistência mundial, prefere as odiadas usinas nucleares a qualquer
outra fonte de energia. "Depois de 40 anos de geração de energia nuclear,
mal existe o bastante (no caso: lixo nuclear) para encher uma única vez o
Albert Hall. Comparemos essa sala de espetáculos com a montanha de 1.600 metros
de altura, 19 kilómetros de circunferência de base, de dióxido de carbono
solidificado que o mundo produz a cada ano. Enterrar o lixo nuclear é um
problema menor, mas o rejeito de dióxido de carbono matará a todos nós se
continuarmos a emiti-lo".
Se não bastar a advertência do controvertido
cientista inglês, podemos também ouvir (em entrevista ao Valor Econômico) o alerta de um brasileiro, mestre em biologia
tropical e doutorado em biogeoquímica, Antonio Nobre, pesquisador do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais. De olho na Conferência de Paris, disse, em
2009: "Temos cinco ou seis anos para impedir que uma catástrofe maior se
estabeleça... Um ataque sem precedentes aos biomas, com tratores e correntões,
motosserra e fogo não desperta revolta. É claro que temos que desenvolver,
precisamos de agricultura. O Blairo Maggi (um dos maiores produtores de soja do
mundo) perguntou outro dia se queremos árvores ou se queremos comida. É um
dilema totalmente falso... A Amazônia é uma bomba hidrológica gigantesca que
traz a umidade do Oceano Atlântico para dentro do continente e garante que a
região responsável por 70% do PIB da América do Sul seja irrigada... Medimos o
quanto a Amazônia evapora, é um número astronômico: 20 bilhões de toneladas de
água em um dia. Para ter ideia do que é este volume, o rio Amazonas lança 17
bilhões de toneladas de água por dia no Atlântico... Está-se descobrindo que a
floresta é dez vezes mais importante do que se imaginava... Não é para parar
com o desmatamento da Amazônia em 2015. Era para ontem. Tem que ser zero,
nenhuma árvore mais derrubada. Precisamos replantar a floresta". E,
explicando como chuvas, ventos, oceanos e florestas estão interligados e por
que alterar este equilíbrio pode trazer danos irreversíveis à "Vida",
finaliza: "A queima de combustíveis fósseis tem papel importante, mas a
destruição dos órgãos de manutenção do clima, florestas e oceanos, é o
principal fator para o descontrole global. Não adianta todos os carros virarem
elétricos se continuarmos a desmatar". A situação, portanto, é grave.
Precisamos pôr as barbas de molho.
3.2 Pegar o
bonde andando
Esta é mais outra pré-condição. A Igreja,
infelizmente, acordou tarde para o grande desafio de preservar a
"Vida" no planeta. Agora só nos resta pegar o bonde andando. Quanto
às águas, o Brasil já tem uma legislação bastante desenvolvida. Infelizmente,
nosso problema costuma estar mais na fiscalização e na execução do que na
própria legislação. Em 1997, pela lei federal 9.433, foi lançado o Plano
Nacional de Recursos Hídricos, sob coordenação do Ministério do Meio Ambiente,
ficando a implementação prática sob a responsabilidade da Agência Nacional das
Águas. O Plano foi oficialmente aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos
Hídricos em 2006. As grandes "Bacias Hidrográficas" do país foram
divididas em diferentes "Sub-Bacias", e estas, por sua vez, estão
divididas em inúmeras pequenas "Microbacias". O Estado de S. Paulo,
por exemplo, tem 21 bacias hidrográficas. Cada bacia tem o seu "comitê de bacia",
que deve ser compartilhado pelo poder público, pelos usuários, e pela sociedade
civil. Objetivo: garantir a quantidade e a qualidade da água para, assim,
salvar a "Vida" do bioma.
Observando
o que nós fazemos nas nossas dioceses e regiões pastorais em termos de defesa
da água, em geral é muito pouco. Frequentemente são ações muito isoladas que
carecem de "articulação" com outras forças atuantes. Também costumam
falhar por ausência de perspectiva política. Sem enfrentamento político suficientemente
hábil, planos tão complicados quanto a gestão das águas costumam ficar na
gaveta por anos e mais anos. Em certa fase de minha vida tive o privilégio de
poder participar muito ativamente de uma ONG ambiental na "Bacia
Hidrográfica Piracicaba, Capivarí, Jundiaí” (S. Paulo). O comitê daquela bacia
foi um dos primeiros e é considerado um dos melhores do estado. Ainda assim,
ninguém se mexia com relação às quase 500.000 toneladas de veneno químico que
(em parte clandestinamente) foram depositadas no "aterro Mantovani",
na divisa entre os municípios de Holambra e Santo Antonio de Posse. A enorme
"pluma tóxica" que se formou debaixo da terra, junto aos lençóis
freáticos e ao lado de um córrego, estava pondo em perigo toda a grande Bacia
do Rio Piracicaba, com cinco milhões de habitantes. Quem enfrentou a questão de
peito aberto foi a ONG.3 Após anos de ação persistente, mobilizando
as entidades ambientais e as Câmaras Municipais da região, foi possível, com a
ajuda do Ministério Público Estadual, conseguir a condenação legal das 63
grandes empresas (nacionais e multinacionais) envolvidas. Foram obrigadas a
"limpar" a área. Tarefa de altíssimos custos que continua até hoje. A
Igreja deve entender que não é a única instituição preocupada com a água. O
bonde está passando e não vemos. Não seria melhor embarcar e atuar em conjunto?
3.3 A
microbacia e a defesa das águas
Todos nós, concretamente, vivemos numa
microbacia. Ela é a nossa "casa". Numa única Paróquia podem existir
muitas delas. Uma microbacia é uma pequena área geográfica; toda água nela
existente, ou toda chuva que nela cair, acaba fluindo para o mesmo córrego que
lhe dá o nome. Anos atrás fiz uma cartilha sobre "As Microbacias de
Holambra". Holambra é um pequeno município paulista, alimentado por 16
córregos que lhe dão "Vida". Na capa da cartilha a seguinte frase:
"Você quer salvar o Planeta Terra? Comece na sua Microbacia!" Você,
prezado/a leitor/a, sabe o nome de "sua" microbacia? É aí que deve
começar sua ação em defesa da Vida, como pede a Campanha da Fraternidade. O
começo é sempre na nossa própria casa. Muitíssimas pequenas ações, isoladas ou,
de preferência, em conjunto, são possíveis. Vejamos algumas:
3.3.1 Campanhas pelo tratamento do esgoto
doméstico
Não é preciso enfatizar, o Brasil anda muito
atrasado neste item. É a maior ameaça às nossas águas. No Brasil em geral, 75%
do esgoto doméstico não é tratado! A qualidade da água depende principalmente
da quantidade de oxigênio dentro dela. As bactérias, atraídas pelo esgoto
doméstico, se multiplicam com espantosa rapidez, consumindo todo o oxigênio
disponível. Consequência: o rio (ou o córrego da nossa microbacia!) morre.
Existe uma classificação nacional para a água dos nossos rios, expressa em
cores, e valores de 1 a 5: 1) azul escuro: água limpíssima; 2) azul claro: OD
não inferior a 5 mg/l (miligramas por litro; OD = Oxigênio Dissolvido); 3)
verde; 4) amarelo: 5) marrom (OD inferior a 0,5 mg/l). É doloroso ver o mapa
das nossas bacias hidrográficas e constatar que o rio vem limpinho, de cor
azul, e, passando por uma cidade, de repente adquire a cor marrom. Muita coisa
pode ser feita para evitá-lo. Especialmente nas áreas rurais, fossas céticas
familiares e biodigestores nas empresas ajudam muito, mas a maior pressão deve
ser exercida sobre as Câmaras Municipais (legislação!) e as Prefeituras
(tratamento e fiscalização!). Qualquer Paróquia pode ajudar com eventos de
conscientização e campanhas as mais diversas.
3.3.2 O lixo é reciclável!
Os
aterros municipais ou regionais (ou então os muitos lixos acumulados na nossa
microbacia!) são outra grande ameaça às nossas águas. Por acaso, nesta semana
em que escrevo, tivemos um encontro com autoridades municipais e entregamos um
abaixo-assinado com 1.800 assinaturas solicitando, entre outros, uma coleta seletiva
mais generosa. Ouvimos que o orçamento está curto, mas alguns
"ecopontos" serão providenciados. Já é alguma coisa. Façam uma vez o
exercício de visitar um aterro municipal. É inacreditável a quantidade de lixo
recolhido, a grandes custos. E praticamente todo lixo é reciclável! Lembrem: em
cada célula viva de qualquer organismo vivo existe uma usina de reciclagem e
nada é desperdiçado! Ainda há muitos aterros "a céu aberto",
infelizmente. Outros municípios usam o "aterro em vala", cobrindo o
lixo enterrado com terra, o que é melhor. Mas um bom aterro fica a mais de 500
metros das moradias, mais de 200 metros do córrego mais próximo, e mais de 3
metros acima do lençol freático e em solo de pouca permeabilidade. Leis
municipais para melhorar a situação são fundamentais. A Câmara Municipal tem aí
um grande papel. Mas, novamente, a Paróquia (ou Região) pode ajudar muito,
sugerindo, fiscalizando, cobrando, e, principalmente, conscientizando. Todos/as
devem começar em casa, separando o lixo seco (papel, vidro, plástico, latas,
etc.) do lixo orgânico (restos de comida, varredura de vegetais, etc.).
Facilita enormemente a coleta seletiva que é aonde se quer chegar. A
"Vida" agradece.
3.3.3 Por uma agricultura sustentável
É
impressionante como a Igreja ainda vive distante dos reais pontos onde a
"Vida" é mais ameaçada. No nosso país, um dos pontos mais sensíveis é
a agricultura. Não existe agricultura sustentável onde não se preserva (com
generosidade e muito cuidado) a mata ciliar nativa. Esta mata, com suas raízes,
transforma o solo numa espécie de "esponja" que segura grande
quantidade de água e não deixa chegar ao rio (ou ao córrego da microbacia!) a
erosão do solo e a poluição, melhorando a qualidade e a quantidade de suas
águas. Hoje, muitos proprietários rurais estão interessados em recompor a mata
ciliar. Você, padre ou leigo/a de Paróquia, faça uma vez, com as crianças ou
jovens das pastorais, a "campanha do plantio de mudas", e vejam o
enorme sorriso no rosto das crianças (ou dos jovens) ao sentirem que estão
plantando "Vida". Nem é preciso falar dos inúmeros defensivos
agrícolas e fertilizantes químicos que são despejados numa terra que era muito
mais feliz quando não os conhecia. Cabe-nos defender não o selvagem
"agrobusiness", mas, antes, a saudável agricultura orgânica e
familiar (a "economia alternativa"). E sabiam que, por lei, as
embalagens tóxicas usadas na agricultura devem passar por uma "tríplice
lavagem" para, em seguida, serem encaminhadas a uma central de reciclagem?
Finalmente,
já diz o ditado: desgraça pouca é bobagem. Desgraça das mais brabas são aquelas
trombas d´água que, de vez em quando, desabam sobre nossas microbacias. É de
cortar o coração. O solo perde sua camada mais fértil, a enxurrada abre
verdadeiras crateras nas ruas, córregos e lagos são assoreados, um fim de
mundo. As Paróquias podem ajudar muito para criar uma "vida rural"
mais benéfica à "Vida". O que mais segura as águas do solo são as
chamadas "curvas em nível" e o "plantio direto na palha".
Os comitês de bacia insistem em "planos municipais por microbacia". A
chuva não respeita divisas de propriedade. As curvas em nível devem ser feitas
de acordo com o desnível das terras em toda a microbacia, às vezes interligando
propriedades particulares, com inclusão das estradas. Há estados e municípios
que financiam estes projetos. Pressione, amigo/a, sua Câmara Municipal para que
leis adequadas sejam feitas, e o/a Prefeito/a para que as fiscalize, mesmo que
perca votos com isso!
Conclusão:
lembremos de São Francisco de Assis
Nada do que foi dito será feito se não houver uma
forte vontade interior. O que faz o ser humano agir não é o conhecimento, mas o
sentimento. Na sua surpreendente Encíclica Laudato
SI, o papa Francisco dedica um capítulo inteiro ao assunto. Sem a força da
fé, sem uma mística, o mundo não mudará o perigoso rumo por onde enveredou.
Hoje, em todos os biomas, a "Vida" está ameaçada. É grande a
responsabilidade da Igreja. Nosso melhor exemplo é São Francisco de Assis. Este
sim, sem conhecimentos mais profundos, entendia que não apenas os seres humanos
são nossos irmãos e irmãs, mas todos os seres vivos.... e até as pedras no
caminho. Ninguém melhor do que o filho de Assis para nos dizer que também a
água é nossa irmã, porque a "Vida", na verdade, está presente em
tudo. Obrigado/a, irmã água! E como S. Francisco ensinava melhor quando falava
em linguagem poética, permitam-me encerrar este artigo com uma poesia, feita
para um "dia de campo" com agricultores:
PRECE DA TERRA
Certa
vez, ao entardecer, um humilde lavrador sentou-se na sombra de uma paineira e
se pôs a pensar. De repente, em meio a um silêncio muito profundo, teve a
sensação de ouvir a terra rezar:
"Meu Deus, até quando devo suportar
essa dor!
1) Fui feita para a vida. Carrego nas
costas, facilmente, uma floresta inteira,
mas olha só o que me fizeram: nem uma
roça de milho consigo sustentar.
Revolveram minhas entranhas, e as
expuseram ao calor do sol,
minhas veias endureceram, por mais que eu
tente, mal consigo respirar.
2) Morro de saudades das muitas aves que,
nas árvores, vinham se aninhar,
hoje mais pareço um deserto e, quando
chove, céus, até me mudam de lugar.
Protesto, Deus! Gosto da companhia dos
insetos, das raízes, da minhoca,
não aguento mais aquele adubo esquisito
que me tentam empurrar.
3) Produzia plantas, flores, alimentos,
tudo crescia, numa variedade sem igual,
de madrugada, quando o sol se levantava,
a animação da roça era geral.
Agora, até onde a vista alcança, só vejo
a mesma planta, onde já se viu!,
até me dão banho de veneno, cruz credo,
cadê a joaninha, e os pulinhos do tiziu?
4) Mas há um consolo, Deus, me permita confessar,
nos "dias de campo" muitos
lavradores voltam a me respeitar.
Você me fez daquele jeito, sou teimosa,
não vou mudar,
só quem respeita minha natureza verá sua
roça de milho prosperar!"
* Pe.
Nicolau João Bakker é missionário do Verbo Divino (SVD), sacerdote formado
em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais. Atuou sempre na pastoral prática,
rural e urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Instituto de Teologia de S. Paulo
(ITESP/SP) e coordenou programas contra a violência urbana e de formação de lideranças
numa ONG de Direitos Humanos e Educação Popular, em S. Paulo (CDHEP/CL). De
2001 a 2008 foi vereador, pelo PT, no Município de Holambra SP. Atualmente atua
na pastoral paroquial em Diadema SP. Nos últimos anos escreve regularmente nas
revistas REB, Vida Pastoral, Grande Sinal
e Convergência. Endereço do autor: Rua
Juruá, 798, Jd. Paineiras, 09932-220 Diadema SP. Para consulta aos artigos do
autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br> E-mail: <nijlbakker@hotmail.com>.
1) Maiores detalhes em Vida Pastoral Nº 278/2011.
2) Ver em: Margulis Lynn, Symbiotic Planet: a new vision of evolution, New York: Basic Books,
1988; e Microcosmos, São Paulo: Ed.
Cultrix, 2002.
3) Maiores detalhes em Vida Pastoral Nº 281/2011.
Questões para ajudar a leitura individual ou o
debate em comunidade:
1) Os biomas brasileiros são muito diferentes
entre si. Quais as diferenças que você percebe?
2) Quais as diferenças entre a "vida"
de um ser humano e a vida dos demais seres viventes?
3) Uma "mística" adequada é importante
para uma Igreja mais "ecológica"?
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