A
PASTORAL EM NOVAS PERSPECTIVAS IV
PERSPECTIVA
POLÍTICA ECOLÓGICA E PERSPECTIVAS PASTORAIS1
___________________________________________________________________________________
Pe. Nicolau João Bakker, svd*
A reflexão pastoral que segue tem íntima
relação com o artigo A Pastoral em Novas
Perspectivas I – Introdução ao Tema, publicado em Vida Pastoral No 278/2011. Sugerimos, portanto, uma
atenta leitura do mesmo antes de ler a presente reflexão.
Introdução
ao tema
Nos artigos anteriores a este, tratando
do mesmo tema, ressaltamos que as três fontes mais significativas para a
pastoral, ou para a ação concreta da Igreja, são: a cosmovisão da época, a
espiritualidade, e a perspectiva política de futuro.2 Das
perspectivas pastorais que surgem da cosmovisão da época, como também das que
brotam de sua espiritualidade correspondente, já tratamos. Neste último artigo
sobre o tema gostaríamos de abordar a terceira fonte da pastoral, a da
perspectiva de futuro, ou perspectiva política. As três fontes não podem ser
vistas como desligadas entre si. São três fontes que abastecem o mesmo riacho,
dissemos, É importante ressaltar também que, em conjunto, elas formam não
apenas a “alma” do cristianismo, mas, igualmente, das religiões em geral.
Temos dito que, na dinâmica interna da
vida, e até da própria matéria, existe uma espécie de “caso de amor” que faz
com que, nelas, tudo se relaciona com tudo e tudo coopera com tudo. Em nenhum
momento a lógica interna é de auto-destruição. A “morte” individual tem sempre
o sentido de possibilitar a sobrevivência do todo coletivo. Em especial na
dinâmica da vida biológica encontramos sempre também uma tendência de
auto-superação, uma busca constante por melhor “qualidade” de vida. A tentação
é traduzir isto imediatamente em termos religiosos, mas a maioria dos
especialistas opina que esta conclusão é apressada. A vida parece poder evoluir
em mil direções e nada determina o curso exato. Apenas se constata que a vida
nunca anda para trás. Existe uma certa “direção”, portanto. A vida tem
“perspectiva”. É desta perspectiva que queremos tratar por causa de sua alta
significância para a pastoral. Veremos que a cosmovisão de cada época muda a
perspectiva de futuro, a perspectiva política do ser humano, e que as novas
perspectivas geradas também mudam o conteúdo da ação pastoral da Igreja.
I
Perspectiva política na cosmovisão teológica
1.1 A política teocrática
Aproximadamente uns três milhões de anos
atrás, dentro da “família” dos hominídeos, o pequeno autralopithecus começa a desenvolver um novo sistema nervoso, com
um cérebro que aumenta rapidamente em tamanho e cujo lado esquerdo – o lado
mais “técnico” – é levemente maior que o lado direito. Surge assim o homo habilis, um velho conhecido dos
nossos paleontólogos. Com muito maior habilidade nas mãos e um cérebro muito
mais capacitado para gerenciar informações, este “pré-humano” inventa a
primeira técnica que possibilitou um maior controle sobre seu meio envolvente:
a “pedra lascada”. Para muitos antropólogos, todo o “processo civilizatório” da
humanidade se deu com base nas sucessivas invenções tecnológicas, criando novos
meios de sustento, novas linguagens e novos relacionamentos.3 Cada
nova técnica representou também um novo “poder” sobre o meio ambiente e sobre
os não-possuidores desta mesma técnica. Muito antes de os cidadãos da Grécia
denominarem de “política” a promoção do bem-estar de sua querida cidade de
Atenas, os caçadores e coletores já se articulavam coletivamente para garantir
sua sobrevivência do melhor modo possível. Pela sua própria natureza, todo ser
humano é, portanto, um ser “político”, um ser que busca, coletivamente, manter
e aperfeiçoar sua qualidade de vida.
Depois do surgimento de uma “consciência”
que podemos chamar de humana, há mais de 100.000 anos, os primeiros
agrupamentos humanos, todos caçadores/coletores, desenvolvem relações sociais
sempre mais complexas. Diversas cavernas no sul da França mostram que, há
30.000 anos, já existia uma “cultura humana”: comunicação visual, rituais,
crenças, e a provável existência de “xamãs”, os primeiros até hoje
privilegiados detentores dos segredos da natureza. Estes grupos, muito isolados
uns dos outros, sobrevivem basicamente ao sabor da natureza..... até que, há
aproximadamente 10.000 anos, surge uma nova e
decisiva invenção tecnológica que constitui o primeiro grande “marco” da
civilização ocidental: a agricultura e a domesticação de animais. Agora os
agrupamentos “se estabelecem” e surgem pequenas civilizações em torno do Mar
Mediterrâneo. As relações humanas se tornam muito mais complexas. Depois da
comunicação por meio de gravações em ossos de peixe, objetos de argila ou
pedra, desenvolve-se a linguagem escrita. Grande avanço é possibilitado pela
técnica da irrigação. Aos poucos, as pequenas cidades se organizam em torno de
uma típica divisão de responsabilidades: de um lado governantes e funcionários,
engenheiros, sacerdotes, curandeiros, metalúrgicos, sábios, etc., e, do outro,
um grande número de guerreiros e trabalhadores comuns, freqüentemente controlados
pelo mecanismo da escravidão.
Limitando nosso enfoque, como dissemos no
primeiro artigo, ao mundo ocidental, podemos dizer que, em todo este tempo de
evolução humana, a política é exercida de uma forma “teocrática”. Na lógica da
cosmovisão teológica desta época, forças divinas ou espirituais determinam a
sorte e o destino de todas as pessoas. Ninguém tem autonomia pessoal para
decidir seu próprio futuro. Nem mesmo os xamãs têm poder político para isto.
Quando em muitas destas sociedades antigas, em especial as mais avançadas,
surge a figura do rei, este exerce o seu poder em nome dos deuses e,
freqüentemente, o próprio rei é divinizado. O monoteísmo parece ter suas raízes
mais longínquas no Egito. Em 1350 AC, aproximadamente, o faraó Amenófis IV
introduz um rigoroso culto monoteístico - ao Deus-Sol Aton -, como religião do
Estado, um culto abortado logo após a sua morte. É dentro deste clima de um
Deus Supremo que, de acordo com os relatos bíblicos, Abraão “sai de sua terra”
(Gên 12, 1) em busca de um novo futuro. Com isto a perspectiva de futuro, a
perspectiva política, muda radicalmente. A fé num Deus Único, que comunica
pessoalmente a sua Lei – 4000 anos antes de Cristo o rei Ur-Engur da
Mesopotâmia já declara querer governar “em conformidade com as leis dos deuses”
– não permite a existência de qualquer outro ídolo, e a obediência à sua Lei
deve ser irrestrita. Com uma novidade de importância fundamental: pela primeira
vez na história Deus se compromete com o futuro dos mais fracos. A derrota do
Faraó é também a derrota dos seus deuses. O Único Deus, Javé, fará Aliança
apenas com os hebreus, filhos da escravidão. Não muda a cosmovisão teológica,
mas muda a perspectiva política. Ao menos para um pequeno povo, o hebreu, um
Deus muito poderoso, mas também muito familiar, garante a “seu” povo um futuro
promissor, uma “terra onde corre leite e mel” (Êx 3, 17).
O último milênio antes de Cristo é
caracterizado por grande efervescência filosófica e religiosa, com destaque
para a Grécia. Do multicolorido caldo de cultura da sociedade grega, algumas
convicções sagradas vão percorrer o mundo: 1.- O mundo espiritual, divino, é
essencialmente diferente do mundo material, humano; 2.- A razão humana é
espiritual e, como tal, deve guiar a conduta humana; 3.- Uma boa política é
aquela que preserva o bem comum. Na prática, a condução política grega oscila
entre duas tendências, uma mais democrática, que expressa o legado
Aristotélico, e outra, mais aristocrática, que expressa o legado Platônico.
1.2 A política hierocrática
Muitos
historiadores fazem distinção, no longo período da cosmovisão teológica, entre
governos teocráticos e governos hierocráticos. Quando Deus governa diretamente
sobre o pensar e o agir humano falam em governos teocráticos. Quando líderes humanos
se vêem a si mesmos como governando em nome de Deus – ou dos deuses – falam em
governos hierocráticos. A distinção ajuda a compreender melhor como, até hoje,
o mundo judaico-cristão lida com as questões políticas. Moisés e os profetas
concebem um governo mais teocrático onde o Deus da Aliança é sempre o elemento
decisivo. Já, posteriormente, os reis judeus e os sacerdotes do Templo costumam
ter uma concepção mais hierocrática, acompanhando o que já se tornou comum na
cosmovisão da época. Jesus, ao proclamar a vinda iminente do Reino de Deus,
entrará de cheio na proposta teocrática, porém, com uma ressalva: as
autoridades deste mundo podem até governar, pois Deus lhes permite isto, mas
seus governos somente serão legítimos se tiverem a marca de Javé e “servirem”
antes de tudo para a superação de todas as formas de escravidão (Mt 20, 24-28).
Para Jesus, o ser humano é criatura, e toda a sua existência está sob o domínio
do Criador. Neste sentido, toda autoridade vem “do alto”, até a autoridade de
Pilatos (Jo 19, 11). Para seus discípulos, porém, valerá a seguinte regra:
qualquer governo que seja, se não serve para servir, não serve! O critério de
validação para qualquer proposta política será sempre este: o amor samaritano.
Nos
primeiros séculos do cristianismo, os cristãos “dão a Cézar o que é de Cézar e
a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21). Para justificar uma espiritualidade sem
conotação política é comum ouvir dizer que a fé neotestamentária não demonstra
preocupação com as estruturas injustas do império. Não existiria nas primeiras
comunidades cristãs uma perspectiva política de mudança. Para a vivência da fé
bastaria o coração.
Em seu livro Gerechtigheid en Liefde, o grande
teólogo belga Edward Schillebeeckx (†2009) faz um apelo apaixonado contra este
modo de pensar. O pensar e o agir do cristão tem sempre o limite de sua
mediação histórica. Sendo inteiramente impensável qualquer superação das
estruturas do império, é a partir de dentro, nas próprias comunidades, que os
cristãos iniciam um novo modo de viver, uma sociedade nova onde não haverá “nem
escravos nem livres” (Gl 3, 28).
1.3
A política cesaropapista
O bispo Eusébio (†337), de Cesareia, o
primeiro a escrever uma “História da Igreja” já esboça uma espécie de teologia
imperial na sua obra “Elogio de Constantino” (335). Deus governa o mundo
através de um soberano na terra, chamado por Eusébio de “o bispo de fora”. É
Santo Agostinho (†430), porém, que, por primeiro, apresenta uma mais elaborada
“teologia política” que vai ter poderosa influência até os nossos dias. Seu
“agostinismo político” é elaborado num contexto onde a religião cristã já é a
religião que tem o apoio oficial do Estado desde o imperador Constantino
(†337). Partindo da situação “decaida” do ser humano, Agostinho vê a necessidade
de um poder civil forte onde todos “dão a Cézar o que é de Cézar”, mas este
poder civil, imperfeito, deve, o quanto antes, ceder lugar a uma espécie de
política religiosa onde, superadas as fraquezas humanas, todos “dão a Deus o
que é de Deus”. Para os romanos, numa visão mais hierocrática, o poder de Cézar
já era o poder de Deus. Na sua interpretação da proposta jesuânica, Agostinho
quer a Cidade de Deus, sua maior obra
literária, governando sobre a Cidade dos Homens. Já a vê, de forma parcial,
presente na Igreja, ficando sua concretização máxima reservada para o fim dos
tempos. Baseando-se em Santo Agostinho, o papa Gelásio I (†496), numa estranha
exegese, fará uso, pela primeira vez, de uma tal “teologia das duas espadas”,
lembrando a passagem de Lc 22, 38 onde Jesus diz aos discípulos que “duas
espadas bastam”. A política “cesaropapista” do império, em especial do lado
Bizantino onde o poder civil predomina largamente sobre a Igreja, é criticada.
Porém, afirma o papa, trata-se de domínios separados: o rei está sujeito ao
bispo no domínio espiritual, mas o bispo está sujeito ao rei no domínio
temporal. No Ocidente, durante o Império Carolíngio - em 800 Carlos Magno (†814) é coroado
imperador – e especialmente no decorrer do Sacro Império Romano Germânico, a
política cesaropapista está muito presente.
1.3 A hierocracia papal
O tom do discurso muda muito com os papas
Gregório VII (†1085), Inocêncio III (†1216) e Bonifácio VIII (†1303). O monge
cisterciense de Cluny, Gregório VII, defenderá claramente a superioridade do
poder espiritual sobre o poder temporal. O grande movimento reformista
encabeçada pelo mosteiro de Cluny – muito centrada na famosa “querela da
investidura leiga” -, resulta, em 1122 na “Concordata de Worms”: cabe ao papa a
investidura espiritual, cujos símbolos são o anel e a cruz, e ao imperador a
investidura temporal, cujo símbolo é o báculo. Inocêncio III dirá que o poder
espiritual é como o sol e o poder temporal como a lua; quando um brilha, o
outro desaparece! E a Bula Unam Sanctam
de Bonifácio VIII usa explicitamente a teologia das duas espadas: uma é
exercida pela Igreja, a outra deve
ser exercida a favor da Igreja. Numa
espécie de “hierocracia papal”, o papa “delega” poder ao soberano civil. Para
muitos, o uso deste poder constitui o “totalitarismo dogmático e espiritual” da
Igreja na época da cristandade. O líder religioso mais influente desta época,
São Bernardo de Claraval (†1153), com base nesta teologia das duas espadas, não
titubeará em convocar “os soldados de Cristo” para a guerra das cruzadas contra
os infiéis muçulmanos. Matar e morrer por Cristo é considerado uma honra. É a
cosmovisão teológica imperando na política. Como dissemos no artigo
introdutório ao nosso tema: “a Idade Média termina com os papas dando as cartas
no mundo ocidental”. É com esta mesma perspectiva política que a Igreja ainda
dará apoio, logo depois, às monarquias européias quando estas se lançam à
conquista das colônias.
II
Perspectiva política na cosmovisão antropológica
2.1
A política monarquista
Um
conceito que predominou ao longo de toda a cosmovisão teológica foi a origem
divina do poder. São Tomás de Aquino (†1274) também pensou desta forma, mas ele
insistiu na natureza racional do ser humano e no imperativo da busca do bem
comum. Na prática, a hierarquia eclesiástica demonstrou sempre uma preferência
clara pelas concepções mais aristocráticas de Platão (†347 AC). A passagem da
hierocracia papal para a política monarquista não foi nada tranqüilo. Quando
surgem os estados soberanos, a partir da “Paz de Vestfália” (1648), o papa
Inocêncio X (†1655) ainda condenará em termos muitos duros estes novos arranjos
do poder chamando-os de “nulos, írritos, inválidos, iníquos, injustos,
perniciosos, malvados, inanes, e vazios de sentido e efeito por todo o tempo”.4
A irrupção da Modernidade – para o teólogo Paul Tillich (†1965) esta “abalou os
alicerces da religião e da cultura” -, foi por muitos comparada ao rompimento
de uma barragem. Aparentemente nada ficou de pé. Novos movimentos religiosos –,
das ordens mendicantes, do pietismo popular, do protestantismo, etc., -, além
de ondas sucessivas de laicismo por parte das novas ciências, dão origem a uma
nova concepção de poder. Por longo tempo a Igreja convive aos tapas e beijos
com o poder monárquico, mas, aos poucos, por baixo das sagradas alianças entre
clero e nobreza, vai surgindo uma nova perspectiva política: a da
democracia.
Ocorreu um processo histórico que visava
basicamente três autonomias: a “autonomia do sujeito”, dando primazia à razão e
à liberdade; a “autonomia da natureza”, sujeita a uma lei e ordem internas, e
não à intervenção divina; e a “autonomia política” do poder civil frente ao
poder espiritual das Igrejas. As três autonomias envolviam liberdades que a
Igreja Católica estava pouco habituada a permitir. A austeridade de vida
pregada pelo protestantismo, especialmente por Calvino (†1564), de acordo com a
conhecida análise de Max Weber (†1920), será uma preciosa alavanca para o
crescimento da nova classe social da burguesia. É ela que, nos Estados
soberanos, clama por crescentes liberdades econômicas, em permanente conflito
com as monarquias absolutistas e o poder do clero. A barragem rompeu em 1789
com a Revolução Francesa.
2.2
A política das “democracias liberais”
A “queda da Bastilha”, em Paris, entrou
na história como marco simbólico. O grito longamente sufocado por mais
“liberdade, fraternidade e igualdade” será ouvido por toda parte e surgem os
Estados Democráticos de Direito com a clássica “independência harmônica” entre três
poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Os debates, evidentemente,
são apaixonados: “direitos humanos” e “lei natural” estão na ordem do dia.
Quando a Revolução Francesa fez publicar sua “Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão” (1789), de teor marcadamente democrático, o episcopado francês o
saudou como “um conjunto de posições estúpidas”. De fato, para o Magistério
Eclesiástico, cabia a ele a interpretação da lei natural, uma vez que esta, de
acordo com a Teologia Escolástica, é o reflexo da lei divina no coração do ser
humano, e Deus instituiu o Magistério da Igreja como única interpretação
autêntica tanto da lei natural quanto da sobrenatural. Esta postura claramente
hierocrática bateu de frente com a nova postura antropológica de confiar apenas
na razão e não na simples autoridade. Na
medida em que o “liberalismo” avança – na economia, na política e na cultura em
geral, - dando clara demonstração de querer criar um novo mundo independente de
critérios religiosos, a Igreja se posiciona fortemente contra o novo clima. O
longo processo histórico de conquista dos direitos humanos – civis, políticos,
econômicos, sociais, culturais e ambientais -, como também a longa batalha por
democracias realmente eficazes, se fará, de fato, com a oposição das Igrejas,
tanto católicas quanto protestantes.
Em defesa contra o modernismo, a Igreja
irá implantar, a partir da segunda metade do Séc. XIX, o modelo ultramontano,
centralizando o poder na pessoa do papa. O fará com mais convicção ainda quando,
em 1870, com a perda dos estados pontifícios, o papa se torna “prisioneiro do
Vaticano” graças às idéias liberais! O combate à proposta socialista da
democracia proletária, por excluir qualquer tutela religiosa, será ainda mais
feroz do que o combate à democracia liberal. Diante daquela, esta acaba sendo
até tolerada. Pio X (†1914) declara o modernismo – que então inclui a ameaça do
“ateísmo materialista” – a “síntese de todas as heresias”. No entanto, com o
implacável avanço da onda democrática, a estratégia mais comum de Roma será
ceder o anel para não perder os dedos. A partir de 1920, a Santa Sé faz acordos
ou alianças com as mais diversas nações para não perder os últimos nacos do seu
poder medieval.
2.3
A política das “democracias cristãs”
Nas últimas décadas antes do Concílio
Vat. II a maré vira. A “Nova Teologia” substitui a Neoescolástica e inicia um
clima de maior abertura, ressaltando inclusive o papel humanizador das
“Democracias Cristãs” fundadas, democraticamente, por partidos fiéis à Igreja.
A cosmovisão antropológica vai, aos poucos, conquistando seu espaço também
dentro da Igreja. O Concílio Vat. II, buscando um diálogo positivo, e não
impositivo, com a sociedade, dará acolhida a quase todas as conquistas da
modernidade. Assumindo em Gaudium et Spes, no 36, a “perfeita
legitimidade” da autonomia das realidades terrestres dará seu aval também às
democracias liberais ocidentais, desde que voltadas ao bem comum. A Igreja
dispensa privilégios, mas mantém a antiga “potestas directiva”, isto é, o poder
de emitir um juízo moral sobre qualquer política (GS, no 76). Em
diversas oportunidades, porém, não teve medo de privilegiar a política
partidária das democracias cristãs, especialmente quando confrontadas com o
crescente poder dos partidos comunistas. Com relação à política democrática de
forma geral, ainda recentemente o papa J. Paulo II manifestou a postura dúbia
da Igreja ao afirmar: “Não sou o evangelizador da democracia; sou o
evangelizador do Evangelho. À mensagem do Evangelho pertencem, evidentemente,
todos os problemas dos direitos humanos; e se democracia significa direitos
humanos, ela pertence também à mensagem da Igreja”.5 Como dissemos,
a cosmovisão antropológica, ainda que hegemônica, convive com a teológica.
Hoje, porém, ambas perdem em credibilidade.
III
Perspectiva política na cosmovisão ecológica
3.1
A democracia representativa em crise
Dissemos mais acima que
a história da Igreja Católica se caracterizou, durante um longo período, por
uma espécie de “totalitarismo dogmático e espiritual”. No âmago da matéria e na
bioquímica da vida, porém, não existem totalitarismos. Ali as unidades estão
sempre harmonicamente inter-relacionadas e as isoladas estão fadadas a morrer.
Também na convivência humana, historicamente, todos os grandes impérios e todas
as políticas totalitárias tiveram um fim inglório. Na interminável busca do ser
humano por qualidade de vida, os desequilíbrios são constantes, mas a tendência
permanente é para um equilíbrio entre os diversos elementos em jogo. Quanto
maior o desequilíbrio, tanto maior a reação ao mesmo.
Dentro da cosmovisão ecológica, a
proposta democrática recebe um novo vigor, mas não sem uma mudança profunda na
sua conceituação. Podemos dizer que, nas últimas décadas, a democracia representativa
tradicional passa por profunda crise no mundo inteiro. Como filha legítima da
cosmovisão antropológica ela, desde o início, rejeitou o diálogo, não apenas
com as Igrejas, mas também com qualquer corrente de espiritualidade. Hoje, em
muitos lugares, ela se sente órfã e está em busca de alguma forma de
fundamentação. O teólogo canadense, Gregory Baum, lembra importantes documentos
onde a Igreja toma posição contrária não apenas à democracia, mas também ao
estado liberal, à soberania popular, às liberdades civis, à separação entre
Igreja e Estado e à liberdade de religião: a Breve Quod Aliquantum (1791) de Pio VI, as Encíclicas Mirari Vos (1832) de Gregório XVI e Quanta Cura (1864) de Pio IX6.
Outro teólogo, Erik Borgman, enfocando mais a postura antimodernista, lembra a Lamentabili et Pascendi Dominici Gregis
(1907) de Pio X e a Humani Generis
(1950) de Pio XII, desembocando na Fides
et Ratio (1998) de J. Paulo II7.
Em meio a tudo isto, outros autores de
grande influência se mostraram mais favoráveis à democracia, ressaltando
valores a serem preservados. Emmanuel Mounier (†1950) propõe seu “personalismo
comunitário” e Jacques Maritain (†1973), em Du
regime temporelle et de la liberté (1933) e Humanisme Intégral (1936) elabora uma teoria católica a favor da
democracia, afirmando que “o impulso democrático irrompe como uma manifestação
temporal da inspiração do Evangelho”. Quando o papa João XXIII (†1963), na
Encíclica Pacem in Terris (1963)
acolhe favoravelmente a democracia não deixa de insistir na necessidade de
fundamenta-la com valores “sobrenaturais”. O critério fundamental da democracia
não está na simples decisão da maioria, mas antes de tudo na defesa do bem
comum. A crise da democracia formal sempre teve como um dos seus eixos centrais
o “liberalismo econômico”. O mundo socialista o questionou, desde o início, em
profundidade. O mundo cristão, de fato, o tolerou, mas não sem ressalvas. A
mais forte encontramos na Exortação Apostólica Ecclesia in America (1999) de J. Paulo II quando este condena “a
globalização do capitalismo neoliberal” pelo fato de submeter-se apenas às leis
do mercado.
Tanto o capitalismo quanto o marxismo
surgiram na esteira da cosmovisão antropológica. Ambos revelam uma “visão
otimista” da natureza humana: uma aposta na capacidade da razão humana para
construir um paraíso terrestre desde que respeitadas – mediante a democracia
liberal - as leis do mercado livre;
outro, com a mesma fé na razão humana, promete o paraíso terrestre desde que
respeitadas – mediante a democracia proletária – as leis do partido da classe
trabalhadora. Entre democracia liberal e democracia proletária, a Igreja –
embora mais à vontade no campo liberal - sempre optou pelo meio do campo,
propondo alguma forma de política hierocrática, em busca do Reino de Deus “que
não é deste mundo” (Jo 18, 36). Ela revela – em seguimento a S. Agostinho - uma
“visão pessimista” da natureza humana: nenhum governo, por mais democrático que
seja, é capaz de governar-se a si mesmo sem ajuda “dos céus”. Nascidos de uma
inabalável fé, monoteísta, na Verdade Única, todos estes modos de pensar e de
agir partem de concepções dogmáticas, de índole totalitária, inerentes às
cosmovisões teológica e antropológica.
3.2
Perspectiva política da democracia participativa
A cosmovisão ecológica vê a natureza
humana de outra forma, nem pessimista nem otimista. Não existe uma verdade
definitiva, nem um futuro certo a alcançar. Não existe uma vitória final da
democracia representativa, nem o fracasso definitivo da democracia proletária.
Todas as construções humanas deixam pegadas na areia e ajudam a construir o
futuro. Não existem povos eleitos ou religiões privilegiadas. Povos e religiões
nascem sobre a terra como as flores do campo, cada uma com seu perfume e sua
cor. Não existe um Deus que intervém a favor de um e contra o outro, nem um
Criador que ora está presente, ora se ausenta. Simplesmente está aí, em todo
lugar, para quem quiser ver e acreditar. Não existem doutrinas ultrapassadas
nem filosofias definitivas. O saber humano se constrói sobre uma memória
coletiva onde tudo se transforma e nada se perde. A cosmovisão ecológica vê o
ser humano, com seu crer e seu agir, como um desdobramento daquilo que pode ser
observado dentro de cada átomo e dentro de cada célula viva: um universo de
transitoriedade e diversidade interdependente, sempre voltando,
auto-organizativamente, a um novo equilíbrio, recriando-se permanentemente. A
cosmovisão ecológica pede humildade. As grandes utopias e os grandes relatos do
mundo ocidental foram todos construídos sobre a areia movediça da arrogância
dogmática e da competição. A argamassa da vida, porém, não é feita de
competição, mas de cooperação. Quem sabe chegou a hora do homo globalis8, não uma Nova Era, mas uma era nova de um
pensar e agir diferentes, mais ecológicos.
Isso significa o abandono de qualquer
perspectiva política? Uma democracia sem identidade? Um sincretismo barato? Um
cristianismo sem Revelação e sem Tradição cristã? De forma alguma. Nos
diferentes artigos sobre o tema em foco ressaltamos que todos nós temos, no
nosso substrato físico e biológico, a busca permanente por maior qualidade de
vida. Sua força-motriz mística é a busca por “vida em abundância” (Jo 10, 10).
Nesta dinâmica interna não existe nenhuma forma de “liberalismo independente”,
mas apenas unidades que adquirem sentido a partir da coerência e harmonia com
“o todo”. A democracia do futuro, necessariamente, será fruto de cooperação
mútua: Norte e Sul, mundo desenvolvido e mundo em desenvolvimento, capitalista
e socialista. Nossa contribuição cristã específica, para não nos afastarmos da
“marca” de Javé e da “pegada” de Jesus, neste momento histórico, é construir a
democracia “de baixo para cima”, centrada numa “ética humanitária e
eco-planetária”, sem qualquer forma de dominação. Muitos a chamam de
“democracia participativa”.
IV
Perspectiva política ecológica e perspectivas pastorais
Nenhum ser humano vive sem alguma
perspectiva de futuro ou, como costumamos dizer, sem perspectiva política.
Sabemos do papel importante da teologia escatológica na tradição da Igreja. A
Bíblia inicia falando de um paraíso perdido e termina falando de um paraíso a
alcançar. Em muitos sentidos o futuro é um livro em branco. O percurso, porém,
não é inteiramente aleatório, como vimos na introdução ao nosso tema. O futuro
é sempre fruto dos passos feitos no passado. Para Jesus, tudo se resume na
construção do “Reino de Deus”, a semente com vocação de árvore (Lc 13, 18-19).
Como se dá isso, politicamente, nos dias atuais?
4.1
Manter uma proposta pluripartidária na ação pastoral
Existe um certo consenso entre os
analistas políticos, confirmado mais uma vez no 7o Encontro
Ecumênico Nacional de Fé e Política (2009), que o atual governo petista, de
cunho democrático-popular, foi o resultado de três movimentos de vital
importância: o movimento operário-sindical, o movimento popular, com inclusão
do acadêmico, e o movimento pastoral das Igrejas comprometidas. Detalhes à
parte, talvez seja. Nos três movimento reina hoje uma enorme “saudade” de um
tempo em que idéia, mística, e ação, de diversas origens, se aglutinaram para,
em conjunto, dar um salto qualitativo na perspectiva política da população. O
“clima”, agora, arrefeceu. Mesmo assim, os avanços em vivência democrática são
evidentes, principalmente quando analisados sob perspectiva histórica. Na
cosmovisão teológica são os deuses, ou seus representantes, que governam, o que
exclui a perspectiva política democrática, enquanto que, na cosmovisão
antropológica, a proposta democrática é colocada com firmeza, embora, na
prática, nunca tenha convencido plenamente.
O que não pode passar despercebido é que,
na cosmovisão teológica, surpreendentemente, surge uma proposta da maior
importância. De acordo com o teólogo metodista Néstor O. Míguez, Jesus propõe,
em Mc. 6, 14-44, uma teocracia onde impera o “banquete da vida” do pão
partilhado – uma espécie de simbiose entre teocracia e democracia – em oposição
ao “banquete da morte” oferecido por Herodes. Na opinião deste autor, Jesus, na
verdade, propõe uma “laocracia” (do grego “laos” = povo comum) a partir da
organização popular, dando um claro sentido político à palavra “symposion” (Mc
6, 39), usada uma única vez em todo o Novo Testamento9. O banquete
da vida surge aí em clara oposição ao governo hierocrático de Jerusalém onde a
figueira não produz (Mt 21, 19) e onde as ovelhas estão sem pastor (Mt 10, 36).
A cosmovisão ecológica se opõe
frontalmente a qualquer democracia baseada em políticas excludentes. Da mesma
forma como rejeita as “verdades” únicas rejeita também “partidos” únicos ou
“classes” únicas. A nível mundial, as “modernas” democracias do mundo ocidental
passam por uma “crise de valores”, conseqüência direta da exclusão histórica
das vertentes espirituais. O ex-presidente da Comissão Européia, Jacques
Delors, tem dito com freqüência que havia necessidade de “dar uma alma à
Europa, dar-lhe espiritualidade e sentido”10. Para o teólogo
holandês Erik Borgman, a única alternativa é uma democracia “de baixo para
cima”, uma vez que, do contrário, sempre ocorre alguma forma de violência11.
Também o teólogo dominicano Ulrich Engel afirma que a democracia deve
desfazer-se de gestos violentos e definitivos e descobrir o valor religioso da
vulnerabilidade12. Para Peter Berger, o Ocidente Europeu, por força
da secularização, tornou-se “o beco sem saída do cristianismo”. Giuseppe
Ruggieri critica a forte tendência européia de apelar a uma espécie de
“religião civil” para garantir desta forma, funcionalmente, a coesão social e a
coexistência pacífica das sociedades complexas. Estas sociedades, observa,
“ignoram a pretensão das Igrejas de entrar com os objetivos próprios de sua
missão irredutível”, em especial a defesa das “vítimas”13. Também a
teóloga irlandesa, Maureen Junker Kelly, atual diretora da revista Concilium,
observa, citando as palavras do jurista e antigo membro do Tribunal
Constitucional da República Federal da Alemanha, Ernst-Wolfgang Böckenförde,
que “o Estado liberal secularizado vive de pressupostos que ele próprio não pode
garantir”14. Para ela, cortado o cordão umbilical entre Igreja e o
Estado, a Igreja deve encontrar, internamente, as bases pré-políticas, morais,
éticas e religiosas, para motivar a democracia.
Também no mundo em desenvolvimento o
frágil barquinho da democracia representativa está fazendo água. Jon Sobrino
cita seu colega Ignácio Ellacuría (†1989): “o que precisamos não é de
democracia, mas de direitos humanos”, e “o que o manejo ideologizado do modelo
democrático busca não é a autodeterminação popular quanto ao modelo político e
econômico, mas o encobrimento da imposição capitalista”. Existe, observa ele,
um problema epistemológico: as democracias não se auto-analisam a partir dos
pobres e, ideologicamente, se analisam apenas a partir da experiência da
modernidade do Ocidente. Conseqüentemente “o bem-viver do 1o mundo é
o mal-viver do 3o”. Para Sobrino são exatamente as tradições
religiosas e a tradição jesuânica que oferecem os melhores critérios para a
superação das atuais democracias. No centro não deve estar a liberdade, mas a
compaixão; não a igualdade, mas a parcialidade, no sentido da opção pelos
pobres; não o desenvolvimento – pois “o amor à riqueza é é a raiz de todos os
males” (1Tim 6, 10) -, mas a justiça15. José Comblin, igualmente,
opina que, pelos resultados concretos das democracias formais, elas resultaram
num “fracasso universal”. Razão: o “princípio” democrático foi substituído pelo
princípio de mercado. Também o teólogo de Sri Lanka, Felix Wilfred, vê a
democracia em profunda crise. Observa que a democracia, como sistema de
governo, está fadada a fracassar se não estiver imbuída de “espírito de
democracia”. O cristianismo, corretamente, combate a “tirania da
maioria”, pois é sua tarefa proteger os pequenos. Apenas uma “espirtualidade da
democracia” pode superar a democracia liberal que consagra e legitima a
desigualdade social. Na opinião dele “é tarefa de cada cristão/ã ampliar o
processo democrático”, e a separação entre esfera pública e esfera religiosa
apenas ajuda o papel pró-ativo e crítico da Igreja em face do Estado16.
Este amplo panorama da “crise da
democracia” revela um dado importante: não será fácil “transformar a democracia
que temos na democracia que queremos”. Sem dúvida não se esgota na primeira
experiência – após 500 anos de uma política mais excludente por parte das
classes dominantes – do governo democrático-popular do PT. Por parte das
lideranças políticas, a maior tentação é a manutenção da crença na verdade
única, no caso, a “nossa” proposta partidária, o “nosso” conceito de revolução
social, a “nossa” política de alianças, etc. Dentro da cosmovisão ecológica
mais valem coligações partidárias unidas em torno de propostas comuns do que a
imposição de uma hegemonia partidária. Um pluripartidarismo sadio não dificulta,
mas facilita a qualidade de vida “do todo”. Por parte das lideranças
religiosas, a maior tentação – muito forte na atual conjuntura eclesial - é o
“refúgio da sacristia”. Uma postura não de vida, mas de morte.
Na ação pastoral da Igreja é preciso
manter a todo custo a proposta jesuânica do pão partilhado. Dentro da atual
estrutura política do país, isto requer a defesa da democracia participativa,
“de baixo para cima”, aproveitando, inclusive, os nacos de boa vontade que
podem surgir “de cima para baixo”. Sob ponto de vista de espiritualidade, como
refletimos no artigo anterior sobre o tema em foco, não podemos esquecer que a
busca por qualidade de vida, a religiosidade da ética humanitária e
eco-planerária, é algo inerente a todo ser humano. Garantir uma “mística
transformadora” – o “Reino de Deus”, dizia Jesus – é o papel pastoral
primordial da Igreja. O que arrasta as multidões, dissemos, não são as idéias,
mas as emoções, a mística. Não foi um programa partidário que levou as massas
populares para a rua e colocou o presidente Lula no governo. Não foi também o
carisma de uma única pessoa ou de um único partido. Foi uma estranha “mística”
que, num determinado momento, aglutinou forças antes isoladas, permitindo um
salto na qualidade de vida de grande parte da população. É exatamente esta a
perspectiva política da cosmovisão ecológica. Uma pastoral aberta à proposta
pluripartidária permite manter as portas abertas para místicas aglutinadoras e
renovadoras. É a semente do Reino virando árvore.
4.2
Apoiar um pluripartidarismo de linha profética.
Para Jesus, a partilha do pão é a marca
registrada dos seus discípulos. Se fosse possível, teologicamente, manter a
antiga separação entre corpo e alma, espírito e matéria, vida natural e
sobrenatural, poderíamos, quem sabe, ainda alimentar a esperança de apenas
salvar a alma das pessoas, sem qualquer preocupação material. Mas, filosófica e
teologicamente, esta postura foi abandonada definitivamente. Não dá para salvar
a alma sem salvar o corpo. Por isso só podemos salvar pessoas concretas,
pessoas que estão sempre inseridas em determinados contextos políticos e
culturais. Aumentar a “qualidade de vida” destas pessoas requer muito mais do
que apenas oferecer “desenvolvimento”. Pouco antes do Concílio Vat. II, uma
certa “teologia do desenvolvimento” criou grande euforia. Ao assumir, em
Gaudium et Spes a “autonomia das realidades terrestres”, o Concílio, de certo
modo, assumiu também o modelo de desenvolvimento das “democracias de bem-estar
social” da Europa tidas como exemplares. Quem desmistificou este mito foram os
cientistas sociais da Am. Latina ao adotarem, na década de 1960, a “teoria da
dependência”17. Sem romper com as estruturas de dependência,
mantidas pelo domínio dos países desenvolvidos, é pura ilusão, diziam, pensar
em desenvolvimento para todos. A partir desta mesma leitura da realidade, os
teólogos latino-americanos, pouco depois, embarcaram na teologia da libertação.
São estes que vão dizer ao mundo com toda a clareza: sem rompimento das estruturas
de dominação não acontece nem desenvolvimento, nem democracia, e – em sentido
religioso - nem o Reino de Deus.
Aqui chegamos a um ponto central: se
salvação implica em mudança do contexto histórico de pessoas concretas, e se
esta mudança envolve a superação de estruturas de dominação, então torna-se
evidente que uma ação pastoral sem profetismo não “salva”. O documento de
Aparecida insiste na superação de uma mera “pastoral de conservação” (No
370). Vimos no 1o artigo do nosso tema que a cosmovisão teológica –
ainda muito presente – é a cosmovisão da estabilidade, mas esta não chega ao
ponto de impedir o profetismo. Apenas o profetismo “salva”. Onde ninguém “sai
de sua terra”, nada acontece. Abraão enfrentou, profeticamente, um novo
desafio. Moisés rompeu com a barreira da escravidão. Em toda a história do povo
de Israel, os profetas apontaram para caminhos novos. Jesus pagou com a vida
pelo anúncio de um Reino onde a “laocracia” da partilha substituiria as
“sagradas” leis do Templo e do Império. A história da Igreja está repleta de
profetismo. Não estamos acostumados a ver as coisas desta forma, mas existe
profetismo em todas as religiões, e até no ateísmo. O/a profeta é o/a que muda
o contexto histórico e faz a “Vida” acontecer.
Se a Igreja tem uma missão claramente
suprapartidária, isso não significa que ela possa adotar uma espécie de
“neutralidade política”. Em qualquer democracia existem partidos políticos que
dão sustentação – não no seu programa partidário, mas na sua prática histórica!
– às forças economicamente dominantes, politicamente excludentes e
ideologicamente elitizantes. O caráter insubstituível do profetismo cristão não
nos permite apoiá-los. Da mesma forma existem partidos que, na prática, dão
sustentação às forças economicamente solidárias, politicamente participativas e
ideologicamente igualitárias. O profetismo cristão nos obriga a apoiá-los. Sob
ponto de vista de compromisso pastoral nos parece da maior importância que
apoiemos um “pluripartidarismo de linha profética”, e isto pelo motivo já
indicado: sem ele não ocorre salvação.
Evidentemente podemos rebater dizendo que
a imensa maioria das pessoas não se dá conta deste raciocínio teológico, seguem
com liberdade e consciência suas próprias convicções políticas, e não é
possível excluí-las do projeto divino de salvação. Quanto a isso não temos a
menor dúvida. Sob ponto de vista exclusivamente pessoal, o critério cristão
decisivo é “vestir o nu e dar pão a quem tem fome” (Mt 25, 31-46). Isso, no
entanto, não é perspectiva política, mas espiritualidade. Nosso foco, neste
momento, é a perspectiva política da ação pastoral. Esta nos diz que existe um
Reino a construir, um “novo céu e uma nova terra” a alcançar (Apoc 21, 1). Os
“sinais” do Espírito nos indicam a clara necessidade de um caminho novo. A
perspectiva política da cosmovisão ecológica é a da cooperação. Sem uma mística
profética e sem um pluripartidarismo voltado para o “novo”, este objetivo não
se concretiza.
4.3
O uso da linguagem “trans-imanente”
Nos artigos anteriores sobre A Pastoral
em Novas Perspectivas, como também neste, temos dito, com reiterada
freqüência, que a Revelação de Deus sempre passa por alguma “mediação
histórica”, que Deus não age “sobre” a natureza, mas dentro dela, de forma
imanente, e que não existe “um caminho direto entre Deus e o ser humano”.
Porém, nove em cada dez cristãos continuam vendo a ação direta de Deus em suas
vidas, a cada momento e em cada evento, embora a “graça” de um implique muitas
vezes na “desgraça” do outro. Há algo
até engraçado com a religiosidade humana. Para uns, Deus existe, mas não
interfere. Neste sentido Einstein se considerava “um ateu profundamente
religioso”. Para outros, Deus interfere sempre. É só pedir e “a porta se abre”
(Lc 11, 9-13). Quem tem razão? Basicamente ambos.
Cada cosmovisão tem sua própria
linguagem. Já observamos que as três cosmovisões, apesar de seu seqüenciamento
histórico, estão concomitantemente presentes. Elas interferem no crer e no agir
de todos nós, mas não de forma idêntica. Em alguns o novo já se sedimentou, e o
velho morreu. Em outros é o velho que ainda empolga e o novo não é nem sequer
vislumbrado. Por isso existem religiosidades mais à moda antiga,
transcendentais, e outras mais à moda moderna, imanentes. Quanto mais instruído
ou, melhor dizendo, quanto mais “consciente” a pessoa se torna do mundo em que
vive e do Deus que o criou, mais “secular” se torna seu pensamento, isto é,
melhor entende a “autonomia das realidades terrestres” propagada por Gaudium et
Spes. Ao compreender que as realidades terrestres, com inclusão do próprio ser
humano, são governadas por leis e princípios inerentes a elas mesmas, sobram ao
ser humano apenas duas opções: crer num Deus que age de forma imanente, dentro
dos contextos históricos, ou então esquecê-lo de vez. A nível mundial é este o
maior desafio atual da pastoral.
A linguagem que usamos na pastoral ou
está adaptada ao nosso público ou estaremos falando ao vento. Se usarmos a
linguagem transcendental, uma faixa crescente da população, especialmente a
classe média mais formada – a não ser que tenha sido “trabalhada” de forma um
tanto quanto fundamentalista – não nos entenderá. Sua tendência será procurar
outro alimento espiritual. O especialista em secularização, Peter Berger, tem
observado que o “supermercado religioso” hoje é abundante. Se usarmos a
linguagem imanente, ainda que racionalmente mais correta, grande parte da
população não se sentirá empolgada e tenderá a procurar cultos espirituais onde
a emoção transcendental ainda está à flor da pele. Um dos complicadores nas
Igrejas Cristãs – não nas Igrejas Evangélicas! – é que padres e pastores, por
força de sua longa formação teológica, não se sentem mais à vontade com uma
linguagem marcadamente transcendental. Não conseguem mais ver “demônios” atrás
de cada desgraça humana, nem “milagres” de Deus em cada evento feliz.
Tendo diante de nós um público de
consciência geralmente bem diversificada, a solução pastoral mais adequada, no
nosso entender, é o uso do que poderíamos chamar de “linguagem trans-imanente”.
Isto é, não sair do modelo racional da imanência, mas usá-lo com a maior emoção
transcendental possível. Ainda que Deus não “intervenha” diretamente na sua
Criação, Ele a “sustenta” permanentemente. Podemos perceber sua presença e ação
amorosas nos incontáveis “sinais” – bons e maus – na estrada da nossa vida.
Podemos nos alegrar por eles, como fez Jesus ao passar pelas praças da
Galiléia, ou chorar sobre eles, como fez Jesus ao contemplar a cidade de
Jerusalém. Não precisamos de revelações mágicas, sobre-naturais, para conhecer
nossa responsabilidade e nossa missão, ou para sensibilizar-nos com uma “ética
humanitária e eco-planetária”, como vimos no artigo sobre a espiritualidade
ecológica. Tudo isso já está no “sacrário pessoal” com o qual nascemos. Mas não
pode faltar, vindo do coração, “emoção transcendental” na nossa linguagem. Todo
ser humano é carente de espiritualidade. Não ouvindo Deus na nossa linguagem,
desliga. Existe um tesouro escondido no campo e Jesus falava dele em parábolas
(Mt 13, 44). Belos exemplos de uma linguagem “trans-imanente”.
*Missionário do Verbo
Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Ver
o currículo na introdução ao tema em foco (VP No 278/2011).
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Notas:
1. O presente artigo dá
continuidade aos artigos A Pastoral em
Novas Perspectivas I a III, publicados em VP Nos 278, 279 e 281
de 2011.
2. Os artigos referidos
foram publicados em VP, Nos 278, 279 e 281 de 2011.
3. Para aprofundamento
sugerimos ler O Processo Civilizatório, D.
Ribeiro, Ed. Companhia das Letras, 2000, São Paulo, e The Axemaker´s Gift, R. Ornstein e J. Burk, Ed. G. Putnam´s Sons,
1995, New York.
4. F. Wilfred, em Cristianismo e processo democrático global,
Concilium, 322 / 2007, 118.
5. F. Wilfred, em Cristianismo e processo democrático global,
Concilium, 322 / 2007, 114.
6. G. Baum, em A Igreja pró e contra a Democracia,
Concilium, 322 / 2007.
7. E. Borgman, em Verdade como conceito religioso,
Concilium, 314 / 2006.
8. Expressão tirada de João
Edênio dos Reis Valle, em Interpretando
os sinais destes tempos agitados, REB, 263 / 2006, 569.
9. N. O. Míguez, em Jesus, o povo e presença política,
Concilium 322 / 2007, 71.
10. e 11. E. Borman, em
A “nova” Europa: um gesto espiritual,
Concilium, 305 / 2004, 35-44.
12. U. Engel, em Religion
and Violence: plea for a weak theology, New Blackfriars 82.
13. G. Ruggieri, em Uma religião civil européia?, Concilium,
305 / 2004, 95-104.
14. M. Junker-Kelly, em
As bases pré-políticas do Estado,
Concilium, 314 / 2006, 115-127.
15. J. Sobrino, em Crítica às democracias atuais e caminhos de
humanização a partir da tradição bíblico-jesuânica, Concilium, 322 / 2007,
75-90.
16. F. Wilfred, em Cristianismo e processo democrático global,
Concilium, 322 / 2007, 114-133.
17. Para quem quer
conhecer melhor esta importante inflexão no pensamento latino-americano,
aconselhamos ler o livro de Octávio Ianni, Imperialismo
na Am. Latina, Ed. Civilização Brasileira S. A., 1974, Rio de Janeiro.
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