“IR PARA AS MISSÕES”: AINDA VALE A PENA?
INTRODUÇÃO
Quando o padre
secular Arnold Janssen (†1909), na década de 1870, tomou a
decisão de fundar uma Congregação Missionária, não fez nada de
extraordinariamente original. “Ir para as missões” era o pensamento corrente da
Igreja do seu tempo. Diversas outras Congregações Missionárias já haviam sido
criadas, e, não muito longe de sua Capelania junto às Irmãs Ursulinas de
Kempen, nascia Teresa de Lisieux (†1897) que, sem pisar em terras estranhas,
se tornaria a “Padroeira das Missões” (1927) por ser esta a mais profunda de
suas aspirações religiosas. Desde a descoberta do Novo Mundo, em 1492, esta era
a grande proposta da Igreja, manifestada com muita frequência nos documentos e pronunciamentos
eclesiásticos. Ir para as missões havia se tornado, desde a corajosa jornada de
Inácio de Loyola (†1556) e seu pequeno grupo inicial de
companheiros, um apelo particularmente desafiador também para a Vida Religiosa.
I MISSÃO: UM CONCEITO
EM EVOLUÇÃO
Desde a
segunda metade do século passado olhamos para o conceito de “missão” a partir
de uma nova perspectiva, passando de um conceito de cunho preponderantemente
geográfico para outro de cunho mais teológico. O Concílio Vat. II, como
todos/as sabemos, refletiu o forte espírito pré-conciliar da “Nouvelle
Théologie”. Novas ideias brotavam por toda parte, nem sempre em plena
concordância com a inspiração proveniente dos venerados túmulos dos fundadores.
Ainda assim, o Decreto Conciliar Ad gentes usa, com naturalidade, o tradicional
conceito de “terra de missão” (26; 38). A linguagem corrente é a da
“implantação da Igreja” entre os povos ainda não cristianizados: “o fim próprio
desta atividade missionária é a evangelização e a implantação da Igreja nos
povos ou grupos em que ainda não está radicada” (6).
Sem dúvida,
especialmente no imaginário popular, a ideia geográfica de “ir para...” (“ad”
gentes) constituía o pensamento dominante ainda no tempo do Concílio. Qualquer
jovem de índole religiosa e tradição familiar, católica ou protestante, poderia
facilmente ser despertado pela figura heroica de um missionário ou missionária
que, voltando das missões, contava suas proezas nos respeitados púlpitos
paroquiais. Ainda hoje, nós, missionários idosos, assinalados pelas marcas do
tempo, sentimos aquele forte tremor de corpo e as lágrimas rolando, quando um
festejado missionário vinha das missões para mostrar aos seminaristas aquelas
impressionantes séries de slides, um mais belo que outro. Juntávamos selos e
“papel prateado” para presentear o missionário com nossa preciosa coleta de
poucas dezenas de dólares.
Porém, será
que esta conotação geográfica era tão significativa quanto se costumava
afirmar? Acreditamos que não. Ainda que possa ter sido dominante enquanto apelo
popular, ou enquanto linguajar cultural da época, a motivação mais profunda sempre
foi genuinamente religiosa. A empreitada missionária dos últimos 500 anos –
passando por cima de tempos mais distantes – custou a vida a milhares de homens
e mulheres. Nenhum apelo geográfico explica tal fato, nem foi essa a proposta
teológica do documento conciliar Ad Gentes. A motivação mais profunda dos
muitos missionários/as que davam aquele toque alegre e colorido às longas
viagens de navio em direção às “terras de missão”, sempre foi uma só: salvar
gente! O que estava em jogo era o Evangelho e nada mais. Salvar gente, porém, é
um conceito teológico, e qualquer concepção teológica, sabemos hoje, vem sempre
vestida na roupagem própria de seu tempo e lugar. O documento Ad Gentes, no Prefácio,
inicia dizendo que a Igreja, devido a sua própria catolicidade, foi
“divinamente enviada para as nações do mundo para ser-lhes sacramento universal da salvação” (1). Baseando-se em 1Tm 2, 4-6 e
em At 4, 12, afirma que só em Cristo se encontra a salvação, e “não há salvação
em nenhum outro”. Portanto, “é preciso que todos se convertam a Cristo...e que
sejam incorporados, pelo Batismo, a Ele, e à Igreja, seu corpo” (7). Estão aí lembrados
os dois conceitos teológicos que, por séculos, orientaram todos os esforços
missionários: a universalidade do destino e a unicidade do Salvador. Crer nestas
verdades absolutas constituía, de fato, a pedra angular de toda arquitetura
cristã-ocidental.
II MISSÃO NA VIDA
RELIGIOSA APOSTÓLICA
A) Nas origens:
E quanto esforço! O documento lembra que
foram especialmente os religiosos e as religiosas que se dedicaram à desafiante
tarefa (n. 40). Não havia apenas as dificuldades externas à vida da Igreja, mas
também as internas. Era preciso inventar uma nova forma de Vida Religiosa. O
Vaticano, não é de surpreender, era contra. Vida Religiosa é vida contemplativa
e ponto final. Que despautério querer ser religioso/a e estar metido/a, dia a
dia, numa ação missionária lá nos cafundós da China ou entre os povos indígenas
da América do Sul? Hoje rimos destes episódios, mas nunca devemos julgar o
passado com os olhos do presente. Inácio de Loyola (†1556) não se rendeu
facilmente. Como militar a serviço do vice-rei de Navarra já havia estraçalhado
sua perna, defendendo, sem chance, a cidade de Pamplona. Além do mais era
impelido por uma experiência religiosa única, aprofundada durante onze meses no
mosteiro do povoado de Manresa. Ali, sentado à beira do rio Cardona, como diz
seu biógrafo, “abriram-se-lhe os olhos do entendimento com uma iluminação tão
grande que todas as coisas lhe pareciam novas”. Era preciso retomar, de uma
forma nova, a antiga inspiração de seu grande ídolo, São Francisco de Assis (†1226). Voltar às origens e criar missionários itinerantes,
como Jesus e o apóstolo Paulo, agora, de verdade, “até os confins do mundo”.
Roma estava
com medo. O modelo consagrado era o de São Bento de Núrsia (†547). Este sim tinha ideias firmes e seguras. Quando, no alto
do Monte Cassino, elaborou sua “Regra”, Bento levou em conta a já longa experiência
do monaquismo oriental. Guardou de Santo Antão (†356) sua “mística do deserto”; de
Pacômio (†348) a fraternidade comunitária; e de Basílio de Cesareia (†379) a abertura ao pobre. Dizia Basílio: “pertence àquele que
passa fome o pão que tu guardas; àquele que está nu a capa que tu conservas nos
teus guarda-vestidos; àquele que está descalço os sapatos que apodrecem em tua
casa; ao pobre o dinheiro que tu tens guardado; assim, tu cometes tantas
injustiças quantas as pessoas às quais poderias dar”. Cumprir a missão do
Mestre, para São Bento, era, antes de tudo, dar testemunho desta fé.
Contemplação e ação, “ora” (Ofício Divino) et “labora” (auto-sustento e
partilha com os necessitados). Sonhava com mosteiros que fossem centros de
irradiação mediante o testemunho. Do outro lado do Monte Cassino, em Roma, seu
amigo e admirador, o papa Gregório Magno (†604), o ex-prefeito de Roma apelidado
de “pai dos pobres”, em meio ao caos da queda do império romano, fazia a sua
parte. Surgem nestes tempos os alicerces da Idade Média. Durante esta, como
afirmam os historiadores, somente a famosa Ordem de Cluny, fiel à Regra de São
Bento, chegou a ter 17.000 mosteiros subordinados a ela. Os inúmeros
missionários/as vindos da Europa, anos atrás, são todos/as o longínquo fruto
deste imenso esforço evangelizador.
Mas como
salvar o Novo Mundo, pensa Inácio, sem mudar o estilo monástico? Como garantir
a indispensável mobilidade apostólica? No século VI o próprio papa Gregório,
ele mesmo monge beneditino, não havia enviado 40 colegas monges em missão para
dar um basta à idolatria dos ingleses? E
não foram monges irlandeses que, no século VIII, cumpriram a difícil missão no
norte da Europa? Além do mais, a salvação da alma, de acordo com a mais
legítima espiritualidade medieval, não estava acima de tudo? Era esta, de fato,
a grande preocupação. São Tomás de Aquino (†1274)
tinha tirado as últimas dúvidas: em cada ser humano existe – “ab extrinseco
inmissa” – uma alma imortal. Salvar esta alma do fogo do inferno era a primeira
das caridades. O papado da época não estava sem a segunda intenção de
estabelecer um rigoroso controle sobre o comportamento cristão, de preferência
no mundo inteiro. Inácio, por própria experiência, viu a Inquisição por toda
parte, sempre à caça dos “alumbrados espirituais” que pipocavam por todos os
lados. O novo espírito renascentista despertava novos anseios humanos. O papa,
contudo, precisava urgentemente de pregadores anti-protestantes e evangelizadores
para o Novo Mundo. Com dispensa da obrigatoriedade do Ofício Divino, Inácio e
seus companheiros conseguem, em 1540, a aprovação do papa Paulo III para sua
“Companhia de Jesus”. Um novo projeto missionário se iniciou “ad maiorem Dei
gloriam”. A juventude da época entendeu. Na morte de Inácio, os jesuítas já são
mil.
B) Em épocas mais recentes:
Quando, nos séculos XIX e XX, nossas
Congregações Missionárias enviam centenas de missionários/as “para as” missões,
elas ainda bebem desta fonte. A Vida Consagrada Apostólica passou por modelos e
fases diferentes, mas a preocupação de fundo permaneceu a mesma: salvar gente! Se
no século XII São Bernardo de Claraval (†1153) ainda podia aconselhar aos
muitos noviços que entravam que deixassem seus corpos do lado de fora, uma vez
que “a carne não vale para nada”, a partir do século XVII surge uma
impressionante leva de “santos da caridade”: São Francisco de Sales (†1622),
São Vicente de Paulo (†1660), Santa Luisa de Marillac (†1660), o beato Frederico
Ozanam (†1853), São João Bosco (†1888), e muitos outros. Estes, sem esquecer a
alma, cuidaram antes de tudo do corpo. Não foi apenas a teologia escolástica,
muito simpática ao uso da razão, mas especialmente a nova espiritualidade que,
a partir da famosa “Escola de Deventer” de Geert Groote (†1384), introduziu um
novo clima. Geert Groote, por sua vez, foi muito influenciado pela “mística
renana”, ou flamenga, do Mestre Eckhart (†1328). João de Ruysbroeck (†1381),
Nicolau de Cusa (†1464) e Thomas à Kempis (†1471) se inspiraram claramente nela.
O dominicano Eckhart, não muito ligado à Escolástica, afirmava que, “no fundo
da alma”, o ser humano poderia fundir-se com a “abissalidade” (abgründigkeit)
de Deus, mas, ainda assim, “é melhor dar de comer a quem tem fome do que
entregar-se a uma prolongada contemplação interior”. Thomas à Kempis confessou
que “cada vez que ia ao mundo voltava pior”, mas, mesmo assim, fiel à “devoção
moderna” do seu tempo, afirma, na sua “Imitação de Cristo”, que o caminho da
salvação passa pelo caminho concreto do amor ao próximo. Por isso, limitar a
piedade aos conventos é uma heresia, dizia Francisco de Sales. A Revolução
Industrial já estava mostrando sua cruel fisionomia. As ruas das cidades viviam
apinhadas de pobres e doentes, sem qualquer atenção. O novo contexto histórico
não trouxe apenas uma nova espiritualidade e novos carismas apostólicos. Trouxe
também uma nova visão teológica. Querer salvar a alma sem cuidar do corpo
tornou-se problemático. O avanço da modernidade iria demonstrar sua inteira
impossibilidade.
III A TEOLOGIA DA MISSÃO NO TEMPO DE
SANTO ARNALDO
Quando ainda criança, Arnold Janssen reza, de joelhos, todas
as noites, o terço em família. Tradição firme em todas as casas católicas. Nós,
padres idosos de origem europeia, vivenciamos quase todos a fase final desta
tradicional religiosidade popular. A imagem do Sagrado Coração de Jesus
costumava estar aí por perto, irradiando uma tranquila confiança no futuro.
Geralmente cabia às mães puxar o terço e indicar a intenção. Como as intenções
eram muitas – a “vida paroquial” era intensa -, acrescentavam-se pai-nossos e
ave-marias no final do terço, por esta e mais aquela intenção. Uma das mais
comuns era pela conversão dos “povos pagãos” ou “pelas missões”. Toda a vida de
Arnold Janssen é um claro reflexo desta infância e deste contexto cultural. Na
sua vida sacerdotal, sob ponto de vista teológico, nenhuma novidade. Predominam
em seu tempo as águas tranquilas da teologia escolástica, sem contestação. Sua profunda
espiritualidade o leva a ter algumas devoções preferenciais, no mais também
comuns à época: a SS. Trindade, o E. Santo, a Divina Providência e, em
especial, o Sagrado Coração de Jesus. O que o distingue fortemente dos seus demais
colegas no sacerdócio é seu extraordinário carisma missionário. É a partir
deste carisma que Santo Arnaldo desenvolve sua visão teológica e sua
espiritualidade: o destaque dado ao Verbo Divino e à indispensável presença do
Espírito Santo para fecundar a obra missionária. Seu conceito de missão e salvação
é próprio do seu tempo. O “Concílio Plenário da Am. Latina”, por exemplo, realizado
em Roma no ano de 1899, define a meta da missão como “a civilização das tribos
que ainda permanecem na infidelidade”. A trilogia missionária comum é: pagãos /
infidelidade / missão. O conceito teológico de fundo é o mesmo do tempo de São
Francisco Xavier (†1552), ex-colega de pensionato e
companheiro de Santo Inácio. Quando os aflitos
japoneses lhe perguntavam sobre o destino dos seus venerados antepassados, lhes
respondia tranquilamente que, com certeza, por falta de conversão e batismo,
estavam todos no inferno. Ainda em 1960, um Congresso Protestante sobre as
Missões constatou que “depois da II Guerra Mundial mais de um bilhão de pessoas
passaram desta para a vida eterna e mais da metade foi para o fogo do inferno
sem ter sequer ouvido o nome de Jesus Cristo”. Para nós, que vivemos a pós-modernidade,
é difícil avaliar corretamente a certeza absoluta desta convicção na época. É
dela que brotava o ardor missionário do padre Arnold, e por causa dela afirmava
que a própria pregação do Evangelho era a prova mais sublime do amor ao
próximo.
IV MISSÃO NO TEMPO DO
VATICANO II
O documento
Ad Gentes é de outra época, bem diferente. Antes do Concílio já havia um forte
movimento ecumênico e a postura conservadora do Vaticano vivia sob constantes
ataques. Fatalmente os documentos conciliares iriam refletir as duas
tendências. Em geral, contudo, na opinião de boa maioria dos atuais teólogos,
no Vat. II “uma minoria lúcida prevaleceu sobre uma maioria sem proposta”. Como
o documento Ad Gentes relaciona o enfoque central “missão e salvação”?
Abordando a questão das outras religiões, afirma: “os esforços humanos para
encontrar Deus precisam ser purificados,
mas podem às vezes ser considerados uma preparação
evangélica para o Deus verdadeiro” (3). “Não
há dúvida de que o Espírito Santo atuava
no mundo antes de Cristo ser glorificado” (4). Os padres conciliares
concebem um certo “gradualismo”: “a Igreja, embora de si possua a totalidade ou
a plenitude dos meios de salvação,.... quanto aos indivíduos e povos, só gradualmente os atinge...e os traz à
plenitude católica” (6). Há mais: “Tudo o que de verdade e de graça se
encontrava já entre os gentios como uma
secreta presença de Deus, Cristo, o autor da salvação expurga-o de
contaminações malignas” (9). E, um dos destaques mais lembrados: “(os fiéis
cristãos) façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo neles (os povos) adormecidas” (11).
Especialmente
esta última palavra, inspirada, das “sementes do Verbo”, acolhidas com alegria
e respeito, iriam produzir inúmeros frutos pós-conciliares. Não sem fortes
resistências. O próprio papa Paulo VI, logo após o Concílio, teve a coragem de
dizer que “a fumaça de Satanás” ainda não havia se afastado do Vaticano. O
cardeal Sirí opinava que a Igreja levaria cinquenta anos para corrigir o que
João XXIII estragou em cinco. Em especial depois do Sínodo de 1985 houve uma
clara tendência de reverter os avanços conciliares. O teólogo jesuíta José González
Faus chegou mesmo a falar em um autêntico “golpe do Vaticano”. Na conjuntura
atual, a cada ano que passa, fica mais claro – fazendo uma leitura, digamos, um
tanto “funcionalista” da Instituição Igreja – que a razão de ser da Cúria
Romana não é mesmo a de abrir estradas para o futuro, mas muito mais a de
confrontar as novas estradas que vão se abrindo com as riquezas do passado.
Seja como for, foi com enorme alívio que o mundo cristão recebeu as palavras de
João XXIII na sessão inaugural do Concílio: “uma coisa é o depósito da fé, outra
a sua formulação!” O papa, Bento XVI, que, sem dúvida, não pode ser acusado de
relativizar demasiadamente as coisas, em diversos pronunciamentos confirmou
este novo olhar sobre o passado eclesial. Ganhou espaço crescente a tese do
grande mestre francês Marie-Dominique Chenu, tardio intérprete do catolicismo
social da “École de théologie: Le Saulchoir”. Embora, como disse, o Concílio
“batizou com água benta” o texto que preparou, a “teologia das realidades
terrestres” foi assumida, como também seu destaque dado à leitura dos “sinais
dos tempos” (Gaudium et Spes). No final do Concílio observou: “a expressão (sinais
dos tempos) tende hoje em dia, de maneira bastante sensacional, a converter-se
numa das categorias fundamentais da teologia emergente para definir
particularmente as relações da Igreja com o mundo”.
V MISSÃO DEPOIS DO
CONCÍLIO
A proposta
de ir para as missões e salvar gente receberia novos enfoques teológicos em
tempos de globalização. A teologia deixou de ser europeia e a Europa deixou de
ser centro. A América Latina trouxe seu enfoque libertador. Missão, numa
concepção latino-americana, é dar testemunho de um Deus que não fez opção pelos
pobres por motivos de caridade (“charity”), mas por ter-se revelado um Deus
comprometido, essencialmente, com os injustiçados. A Ásia colocou em pauta a
indispensável exigência do diálogo. Um diálogo não feito a partir de um centro
privilegiado, mas a partir da certeza de que Deus, “kenoticamente”, veio
habitar o coração da humanidade inteira. E na África amadureceu a ideia da
inculturação. Não apenas a inserção de costumes cristãos nas culturas locais,
mas, muito além disto, também uma abertura teológica ao modo de pensar e sentir
dos povos africanos. Uma autêntica “inculturação doutrinal” com
“des-helenização e des-ocidentalização dos conteúdos de fé”, observa o teólogo
africano Leonard Santedi Kinkupu. No Sínodo de 1974, os bispos africanos
declararam ultrapassada a “teologia da implantação”, optando pela “teologia da
inculturação”. Na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Africa, o papa
J. Paulo II afirmou que a inculturação era “um dos maiores desafios do
continente”. Os primeiros avanços pós-conciliares, contudo, se fizeram ouvir na
Europa. O teólogo Karl Rahner (†1984) falava em “cristãos anônimos”.
Hans Küng rebatia dizendo que este “inclusivismo” era, na verdade, um
“exclusivismo”, pois negava a salvação a quem não fosse cristão. Timidamente
começaram a surgir vozes defendendo caminhos pluralistas de salvação, e o
debate “exclusivismo - inclusivismo – pluralismo” ocupou por um bom tempo o
palco eclesial.
VI MISSÃO NO CONTEXTO
DO PLURALISMO RELIGIOSO
O mais
destacado teólogo do pluralismo religioso, nos EUA, é Paul F. Knitter. Em seu
muito aclamado livro No other Name? (1992)
observa: “os cristãos estão
aprendendo que para uma coisa ser verdadeira não se exige que seja absoluta”. Já
em 1987, em Um diálogo necessário: entre
a teologia da libertação e a teologia do pluralismo Knitter havia dito que
“a libertação integral (política, econômica, ecológica, etc.) é uma tarefa
grande demais para que seja assumida por uma única nação, cultura ou religião,
uma vez que cada uma traz a sua própria contribuição para a superação do modelo
da globalização neoliberal que ameaça de morte a humanidade e o planeta, sendo
imprescindível manter em tensão dialética e mutuamente fecundante a polaridade dinâmica dos pobres e das
religiões”. Em diversas ocasiões o teólogo belga Schillebeeckx (†2009) se manifestou no mesmo sentido. Em 1995, em One earth, many religions: multifaith
dialogue and global responsability, Knitter apela a um esforço
inter-religioso com o horizonte comum do “eco-bem-estar” e, em 2009, escreve Without Buddha I could not be a Christian.
Passa-se de um pluralismo religioso de fato para um pluralismo religioso de
princípio.
Na Europa, outro destacado mestre do
pluralismo religioso é o jesuíta Jacques Dupuis (†2004). Deu sequência ao grande
esforço ecumênico do teólogo conciliar Yves Congar (†1995). Este já havia destacado que “a vontade salvífica de
Deus é universal”, que “a graça vive fora das fronteiras da Igreja” e que as
religiões são “mediações de salvação”. Em Homme
de Dieu, Dieu des Hommes (1995) Dupuis critica os “dogmatismos fechados”, insistindo
numa espécie de “de-centração”, e explicitando
que cada Igreja local (a intérprete), necessariamente, recebe determinada
doutrina (o texto), devendo traduzi-la para sua própria realidade cultural (o
contexto), ocorrendo desta forma uma recepção
criativa da fé. Em seu último livro Rumo
a uma teologia cristã do pluralismo religioso (2001) mais uma vez lembra “a
distinta percepção da mesma fé em contextos diversos”. A Igreja, hoje, opina
Dupuis, precisa de uma metanoia teológica
que propicie “um tríplice mecanismo de purificação: da memória, da linguagem e
do entendimento teológico”. Deus se revela em cada cultura contra suas próprias
forças destrutivas internas. Por isso, na opinião de Dupuis e muitos outros, a
teologia da inculturação é sempre uma teologia libertadora. Nesta mesma linha,
o africano A. Ngindu Mushete propõe, em Les
thèmes majeurs de La théologie africaine (1989): “a Igreja da África...deve
sair dos caminhos batidos de uma práxis que a encerra numa espécie de sono dogmático”. Muitíssimos outros
teólogos e pensadores poderiam ser citados, mas o foco é sempre o mesmo. Na Am.
Latina, um grupo de teólogos, José M. Vigil, Luiza E. Tomita e Marcelo Barros, todos
da Comissão Teológica da “Associação Ecumênica de teólogos e teólogas do
Terceiro Mundo na Am. Latina” (ASETT) está editando um conjunto de cinco livros
sobre a íntima relação entre teologia da libertação e pluralismo religioso. Com
destaque para uma nova forma de espiritualidade
missionária, cientes de que não são as doutrinas, mas as místicas que
propulsionam os povos.
Vemos, portanto, que as adormecidas “sementes
do Verbo”, semeadas nos mais variados contextos, quando acordadas, produzem as
mais variadas flores. Mas, e Roma? Bem, Roma não deixa de observar esta
metanoia teológica sobre missão e salvação com grande preocupação. A Cúria
Romana e o teólogo Ratzinger, além de “notificarem” alguns dos nossos mais
renomados mestres, reagiram, em 2000, com a Declaração da Congregação da
Doutrina da Fé “Dominus Iesus”. O
documento reafirma solenemente a universalidade do destino salvífico e a
unicidade do Salvador e da Igreja. Afirma, com rude violência, que as outras
religiões se encontram “numa situação gravemente deficitária” (DI 22). Não é de
admirar que muitos, entre os quais Paul Knitter e o teólogo de Sri Lanka, Tissa
Balasuriya, acusam a Igreja de propagar o “mito da superioridade religiosa”.
Dominus Iesus tornou-se um dos documentos mais mal recebidos no mundo cristão.
A nosso ver sem necessidade. Para quem tem os olhos voltados apenas para o
futuro, o documento é uma porta fechada. Mas, no nosso entender, não é esta a
função da Cúria... o que não diminui em nada a necessidade urgente de sua
reforma institucional. Cabe, não à Cúria, mas aos teólogos e teólogas abrir
estradas para o futuro, com a indispensável liberdade de pesquisa e opinião. A
Igreja, porém, não é um mero projeto de futuro, por mais que se oriente para a
consolidação do Reino de Deus na terra. A Igreja deve fidelidade ao Espírito e
às enormes riquezas humanitárias acumuladas em seu passado. Há necessidade de
uma instância que faz o balanço entre passado e futuro, sendo o presente,
fatalmente, uma busca, um caminho em meio a muitas incertezas.
Não há nada no pluralismo religioso
que não possa ser harmonizado com a Igreja “sacramento
universal da salvação”. Como sacramento a Igreja é apenas um humilde
“sinal”, uma mediação, um instrumento. Quem, gratuitamente, quer salvar a todos
é Deus, e não cabe à Igreja definir de qual forma Deus deve exercer sua
“catolicidade”. O grande teólogo asiático, Felix Wilfred, atual Diretor da Revista
Concilium, tem dito que o excessivo dogmatismo eclesial corre perigo de
transformar a Igreja, chamada a ser kat-ólica, em uma Igreja kat-áutica, isto
é, fechada sobre si mesma. Diante das outras religiões propõe um “pluralismo
contemplativo”, de linha apofática, sem disputa teórica. Não há nada mais
idolátrico do que o próprio ser humano colocar-se no lugar de Deus. Moisés, no
deserto, descobriu estar diante de um Deus cujo nome é impronunciável. Elias sentiu
sua presença apenas numa brisa imperceptível. E o Jesus histórico, tão
ressaltado pelas atuais “cristologias de baixo”, submeteu sua vontade à vontade
do Pai, o Pai querido em cujas mãos entregou seu espírito. Deus, na mais
legítima mística cristã, foi sempre um Mistério insondável. Em sua Teologia Mística, o Pseudo-Dionísio (†500 aprox.), após séculos de construção doutrinal contra as
heresias, define Deus como o “além de tudo” ou “a escuridão atrás da luz”, e “Deus
é tudo e não é nada”; para alcançá-lo, é preciso “deixar para trás os sentidos
e as operações do intelecto”. A Internet afirma que São Tomás de Aquino o cita
mais de 1700 vezes! Ficou, de fato, famosa a frase de Tomás: “de Deus não
podemos saber o que é, mas apenas o que não é”. Todas as correntes místicas do
cristianismo tiveram uma forte ligação com a espiritualidade “apofática” de
Dionísio, desde, como já assinalamos, o Mestre Eckhart e seus seguidores,
passando por Santo Alberto Magno (†1280) e São Boaventura (†1274), até a mística espanhola de Santa Tereza d´Ávila (†1582) e São João da Cruz (†1591), desembocando, finalmente, na
nova espiritualidade missionária do pluralismo religioso. O teólogo chileno
Diego Irarrázaval diz que – quando silenciada a disputa – ouvimos a “polifonia
espiritual” dos povos.
Falando de Jesus, Ad gentes diz que
“não há salvação em nenhum outro”, e Dominus Iesus retoma o antigo adágio “fora
da Igreja (Católica) não há salvação”. Mas, de qual salvação e de qual Igreja
os documentos, de fato, falam? A ciência linguística tem lembrado que a
linguagem, em qualquer contexto cultural, funciona como uma “quase-prisão”. Nas
últimas décadas, o trato hermenêutico se tornou comum na teologia exatamente
porque as palavras tendem a ser mal-entendidas sem uma elucidação precisa do
contexto histórico e cultural-religioso em que surgiram. As palavras “salvação”
e “Igreja”, mais do que ser conceitos e doutrinas, falam de modos concretos de
viver e conviver. Os modos que “identificam” a plena vida proposta por Jesus e
sua Igreja, facilmente, podem estar mais presentes entre “povos pagãos” do que
no assim denominado “mundo cristão ocidental”. Qualquer missionário/a passa por
esta sensação inúmeras vezes. O excessivo dogmatismo da Igreja gerou, no
decorrer da recente história eclesiástica, inúmeros movimentos de resistência.
Não apenas gerou os movimentos protestantes, mas levou ao extremo também os
movimentos laicos e anti-clericais da modernidade. No século passado deu origem
ainda ao maior movimento missionário de todos os tempos, ainda em franca
expansão: o pentecostalismo. No Brasil, festejado como “o maior país católico
do mundo”, um milhão de católicos abandonam a Igreja, anualmente. Quase sempre
partem para alguma Igreja Pentecostal. O Espírito de Deus é indomável. É também
implacável com qualquer instituição. Os bispos da Am. Latina e do Caribe realizaram
em 2007 (Aparecida) sua 5ª Conferência Episcopal, tendo como tema central: “a
missão”. Apelam os bispos a uma generalizada “conversão pastoral”, tendo em
vista uma grande “Missão Continental”. Entre os “sinais” do nosso tempo não
vemos nenhum que nos indica tal possibilidade. No mundo inteiro, a
credibilidade da Igreja está em baixa. Como sinal do tempo verdadeiramente
gritante – e há, parece-nos, um quase-consenso sobre isto entre teólogos e
teólogas, sem falar do sempre importante “sensus fidelium” – vemos apenas um: a
imperiosa necessidade e urgência de uma reforma institucional nas estruturas e
ministérios da nossa própria Igreja. Esta “conversão institucional” é conditio
sine qua non para a missão no mundo de hoje. Santo Arnaldo, em seu tempo, foi
obstinado na perseguição de seus sonhos. Trata-se de “um santo ou um louco”
dizia o bispo de Roermond (Holanda), em 1874, após autorizar ao estranho padre
alemão abrir uma casa missionária às margens do rio Mosa. Na missão cristã, o Espírito é tudo. É Ele que
nos impele à luta corajosa para superar nossas próprias estruturas inadequadas.
A Congregação Missionária do Verbo Divino está inserida neste indispensável esforço
internacional? Uma das demandas da Igreja é a de-centralização, com maior autonomia
continental. A SVD, como instituição, aplica isto a si mesma? Carisma e
instituição exigem um diálogo permanente.
VII SIM, AINDA VALE A
PENA, DESDE QUE.....
Todas as Congregações Missionárias, de tempos em tempos, fazem seus
Capítulos Gerais para re-avaliar sua caminhada institucional, partindo do
carisma original que a inspirou. Uma grande tentação se apresenta de imediato:
confundir o carisma do momento da fundação com o carisma primeiro que lhe deu “origem”.
Querer retomar a teologia, ou mesmo a espiritualidade, do tempo de Arnold
Janssen é colocar-nos, fatalmente, numa estrada sem futuro. Não que esta
teologia e esta espiritualidade tirem uma única vírgula da grandeza espiritual
e autenticidade virtuosa do fundador ou fundadora. Esta grandeza e
virtuosidade, porém, não residem na sua expressão local e temporal, mas
exatamente na fidelidade ao Evangelho e na espiritualidade cristã original em
que elas se fundamentam. Bem como intuía João XXIII: uma coisa é a fé, outra a
sua expressão local e temporal. Pelo que vimos na reflexão feita, os modos de
pensar e vivenciar a proposta de Jesus e seu Reino – sua “missão” – mudaram
substancialmente no decorrer dos tempos. Especialmente neste nosso tempo globalizado,
quando esta missão universal, iniciada pelo Galileu de Nazaré, é pela primeira
vez ouvida, vivenciada e interpretada teologicamente na perspectiva de todos os
continentes, nos damos conta da “abissalidade” das riquezas de Deus, não apenas
“adormecidas” ou “secretas”, mas plenamente presentes nas mais diversas
culturas locais. Esta descoberta, própria do nosso tempo, gera consequências
significativas para a missão:
A) Uma boa missão
requer uma boa antropologia
Santo Arnaldo Janssen e seus primeiros companheiros entenderam muito bem
que “ir para as missões” requeria um bom entendimento das “culturas pagãs”.
Predominava no século passado a chamada “antropologia cultural”. Ela
privilegiava os aspectos mentais ou racionais do ser humano: seu modo de
pensar, suas crenças, seus ritos, seus comportamentos, em fim, sua cultura.
Grandes equívocos foram cometidos esquecendo que o ser humano não é apenas
mente, mas também corpo. A cultura europeia, cristã, considerava-se superior a
qualquer outra, não-cristã. Para muitos, o objetivo da missão era “extirpar as
idolatrias”. Hoje, as teologias do terceiro mundo clamam por uma
“descolonização da mente”, com inclusão da teologia. Nas últimas décadas do
século XX surgiu com força a “antropologia natural”, mais ligada ao corpo ou à
biologia humana. Esta não exclui a mente, mas a vê como parte do corpo.
Recentemente um pensador africano, Eboussi Boulaga, plagiou a famosa frase de
Descartes “penso, logo existo” e, para exprimir uma visão de mundo inteiramente
diferente, disse “danço, logo existo”. A antropologia natural deve muito às
ciências naturais da modernidade. A biologia evolutiva nos fez admirar a grande
“sinfonia da vida” sobre o planeta Terra. Bilhões de anos de vida unicelular,
bacterial, diversificando-se, até oxigenar a atmosfera e criar um meio ambiente
favorável à vida multicelular, depois às plantas e florestas, e finalmente aos
animais. Muito recentemente surgiu um animal com um córtex cerebral avantajado
que se autodenomina “homo sapiens”. Vendo os resultados, porém...., bem,
pulemos esta parte. Os neurocientistas demonstraram que o grande cérebro não
nos elevou acima da natureza, nem nos fez capaz de olhar, objetivamente, para o
mundo à nossa volta. Apenas nos dotou de um novo e sofisticado mecanismo para
sobreviver melhor. Desde que Ilya Prigogine (†2003), em seu maravilhoso livro Ordem a partir do Caos, demonstrou que a
essência da vida é contrariar a segunda lei da termodinâmica e, em vez de
degenerar para o caos crescente pelo efeito da entropia, criar novas e sempre
surpreendentes formas de vida cada vez mais complexas, sabemos que todos os
caminhos estão abertos ao ser humano, inclusive o de viver e conviver melhor.
Quando Jesus falou do “Reino” e os primeiros cristãos de “O Caminho” – como o Tao dos antigos chineses -, sem esquecer
Arnold Janssen quando falava do Verbo de
Deus, é disto que estão falando. O pensamento humano não vai parar de
evoluir. Por isso uma boa antropologia (e as demais ciências ligadas ao “sentido”
da vida humana) será sempre fundamental. Cada Província SVD tem isto em mente
ao planejar (formação permanente, especializações, etc.) seu futuro?
B) Uma boa missão exige
a construção do Reino
Jesus não pregou a si próprio, nem priorizou o fator Igreja. Não veio
para fundar uma nova religião. “Jesus nem foi cristão”, disse, com ousadia, o arcebispo
anglicano Desmond Tutu, assustando meio mundo. Jesus iniciou um movimento, um
modo de viver. “O Reino de Deus está próximo”. “Que venha a nós o Vosso Reino”.
“Não basta dizer Senhor, Senhor”. É preciso olhar para as pessoas à beira da
estrada. Reparem, esta é a essência de todas as religiões, o sonho da
humanidade. A busca por melhor qualidade de “vida” (“plena vida”) é também o
cerne da própria natureza viva. A atual ecoteologia acrescenta a redenção
cósmica. Diante das atuais evidências não resta dúvida: ou fazemos do planeta
Terra nossa casa comum, digna de se viver, ou iremos todos precipício abaixo.
Será que o velho Tomás de Aquino tinha razão, afinal, dizendo que Deus deixou
sua ordem gravada no universo, e basta a razão humana adequar-se a esta “lei
natural”? A “missão” à nossa frente promete uma colheita maravilhosa e
promissora se soubermos harmonizar o melhor do pluralismo religioso com o
melhor das teologias de libertação. A diversidade religiosa não é problema, é
solução. Dupuis a chamava de “providencial”. O jesuita Aloysius Pieris (Sri
Lanka) – para quem “fora da aliança de Deus com os pobres não há salvação” - falou
de uma “religiosidade simbiótica”. Assim como a diversidade biológica torna a
natureza mais “resiliente”, assim também a diversidade cultural-religiosa
permite ao ser humano crescer em consciência. Uma consciência mais “crística”,
diria Teilhard de Chardin (†1955).
O primeiro
mundo, faz tempo, está em busca de uma espécie de “ética global” (Küng).
Surgiram críticas: não basta uma espécie de mínimo humano, aceitável ao mundo
secular. A teologia política de J. B. Metz colocou no centro o “princípio
misericórdia” (“mitgleid”), mais próximo da tradição e “memória” cristãs. No
terceiro mundo também surgiram vozes dizendo que “mais valem os máximos
particulares do que os mínimos comuns” (J. Sobrino). Raimon Panikkar (†2010) insiste em dizer que o diálogo inter-religioso exige
não deixar a própria riqueza “na soleira da porta”. A teologia pós-moderna aposta
facilmente numa etérea “espiritualidade pós-religiosa”, mas isto parece muito
pouco para quem crê em Alguém que morreu numa cruz para fazer valer sua
proposta. Os teólogos do diálogo inter-religioso, mais recentemente, têm
insistido na “pedagogia da escuta” (Marcelo Barros), no exercício da “cortesia
espiritual” (o “adab” corânico), na busca da “empatia”, etc.. Se o mesmo Deus
de Israel se revela em todas as religiões, esta pedagogia, evidentemente, faz
sentido. Mas qual a nossa
contribuição, a “nossa missão”
específica? Há um consenso: a teologia e a mística do mundo cristão, ontem e
hoje, exigem a construção do Reino, já aqui na terra, mas em direção ao “novo
céu e à nova terra”.
O terceiro
mundo lembra ao primeiro que isto não é possível sem opção pelos pobres, pelos
injustiçados, pelo rosto desfigurado dos “sem lugar” que nos revelam Deus
(Ulrich Engel). É preciso retomar a coragem profética e apontar para a “raiz de
todos os males”, a ganância que virou sistema mundial, a mãe de todas as
corrupções. O velho teólogo protestante, Paul Tillich (†1965), já defendia o “princípio socialista”, isto é, permitir
que os de baixo definam os critérios e os caminhos de sua própria superação.
Uma Congregação Missionária, tão internacional como a nossa, deve mostrar de
que forma “um outro mundo é possível”. O saudoso Paulo VI já o disse, com
coragem: “Só o Reino é absoluto, tudo o mais é relativo” (Evangelii Nuntiandi,
8). Depois da II Guerra Mundial, de forma generalizada, a Vida Religiosa
Apostólica – também nas “missões” – adotou um “estilo de vida classe média”,
bem ao gosto do capitalismo liberal. Nossas casas de praia não ficam devendo
nada a ninguém, nem nossas viagens internacionais de três em três anos. Nosso
“footprint” desafia o planeta. Mas, testemunhar o Reino não é discurso. É uma
prática, um modo de vida. Nossas Províncias SVD, neste sentido, têm a coragem de
traçar um plano bem delineado nesta direção?
C) Uma boa missão
requer espiritualidade
A modernidade arranhou profundamente a espiritualidade tradicional.
Impressionam-nos as biografias dos nossos fundadores ou fundadoras. Também de
Santo Arnaldo admiramos: o tempo dedicado à oração, a familiaridade com Deus, a
fidelidade à causa assumida, a disciplina no cumprimento do dever, e muito
mais. Por que tudo isso é mais difícil para nós? Nunca devemos esquecer que religiosidade
é muito anterior a Moisés e Jesus Cristo. Ela já nasceu com a própria consciência
humana e, desde tempos imemoráveis, teve um caráter fortemente mágico. O Deus
inominável, muito além de qualquer sim ou não, como dizia o Pseudo-Dionísio,
era apenas imaginado, nunca racionalizado. A inteira vida humana e cósmica era
sentida como totalmente dependente das forças divinas, onipresentes e
onipotentes. É na tradição profética de Israel, e na filosofia grega, que surge
por primeiro um processo crescente de racionalização. O Deus libertador, o Código
da Aliança em oposição ao Código da Pureza, o Reino de Deus “no meio de vós”,
tudo implica em um novo modo de pensar e de viver. A Modernidade fez da razão
seu critério único. Também dentro da Igreja, a autonomia da razão criou uma
explosão de teologias. Mas, onde a razão entra, a magia acaba. Foi-se o “ab
extrínseco inmissa” de São Tomás. Foi-se o milagre. Surge o “desencantamento”
já dizia Max Weber (†1920). Inúmeras expressões religiosas
“perderam a graça”. O processo ainda está em andamento, por mais que se diga
que já estamos na pós-modernidade. A nível mais popular, em especial nos povos
não-ocidentalizados, muitos elementos mágicos continuam presentes na
espiritualidade. Mas cuidado! No “fundo da alma” de todos nós, religiosos e
religiosas, banhados em teologia e ciências, uma misteriosa varinha mágica
continua nos movendo. É de berço.
Nossa missão,
porém, não pode mais ser pautada por uma religiosidade mágica. O tempo dos
nossos avós, ou de Arnold Janssen, não volta mais. A missão, hoje, deve ser
mística! Os racionais Rahner e Schillebeeckx não se cansavam de dizer: o
cristianismo do futuro será místico, ou não haverá cristianismo! O tema é
complexo, mas, simplificando, poderíamos dizer que, ambas, magia e mística, creem
no que está além da razão, porém, na magia, o conteúdo se apresenta, digamos,
contaminado, na mística não. Comparando as biografias dos grandes místicos e
místicas da pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade descobrimos que sua
espiritualidade apresenta características bastante diferentes. O que sobressai
em todos/as, no entanto - e o mesmo ocorre com os místicos das outras grandes
religiões tradicionais - é: 1) Deus, o Transcendente, o “além de tudo” (com os
mais diversos nomes) é a fonte absoluta do sentido da vida; 2) É desta fonte,
pura, que brota o caminho a seguir no dia a dia, a ética do viver; 3) A ética
do viver tem um caráter coletivo e cósmico. A razão secularizou o mundo
ocidental, privando-o da espontaneidade mágica da fé no transcendental que nós,
missionários/as, ainda encontramos nos povos chamados “periféricos”. Dizemos
“ainda” porque também aí as coisas vão mudando. Qual a missão que sobra quando
a sensibilidade pelo transcendental desaparece e tudo na terra é assumido por
forças laicas, imanentes, secularizadas? Questão difícil. Quem, a nosso ver,
oferece a melhor pista é o mais Schillebeeckxiano dos teólogos, o dominicano
leigo Eric Borgman, que, recentemente, escreveu um belo livro: Metamorfosen: Over Religie en moderne
Cultuur (2006). Tese central: não muda no ser humano sua busca pelo sentido
da vida, por vida plena; o que muda – de forma sempre surpreendente e imprevista
- é o “modo” de viver esta religiosidade. Na pós-modernidade, em especial o
lado institucional das religiões sofre forte resistência. Não oferecendo
“sentido”, estará desacreditado. Mas, também o mundo secular continua em busca
de um sentido para se viver. Nossas verdades “absolutas” foram enterradas. Hoje,
apenas os místicos (inseridos na realidade) têm respostas convincentes. As
Províncias SVD incluem este dado em sua “pedagogia espiritual” e em seu projeto
de futuro?
CONCLUSÃO
Missionários/as sempre “sonham” sobre o que será do seu povo. Afinal,
para isto foram enviados/as em missão. Nós, certa vez, sonhamos que estávamos
em retiro. Todos os padres e irmãos estavam reunidos numa sala, ampla e
agradável. O clima era de grande expectativa: ninguém menos do que o próprio
Jesus iria fazer a primeira colocação. Com o atraso de sua vinda, o murmúrio na
sala aumentava. O que será que aconteceu? De repente, do meio da sala, um
confrade se levantou, colocou-se na frente da plateia e contou a seguinte
parábola:
Dois missionários religiosos subiram à Capela
para rezar. - O primeiro, como era seu costume, sentou-se no banco da frente.
Diante do sacrário, uma grande calma invadiu-lhe a alma. Estava em paz com
Deus. Dificilmente faltava com seus deveres. Na Paróquia priorizava a pastoral
bíblica e, celebrando a Eucaristia, respeitava as orientações da Igreja e os
desejos do povo. Nas reuniões do Distrito, rezando os salmos do Ofício Divino,
sentia-se feliz e realizado. Era muito bom ter uma Comunidade e ter uma vida
espiritual. Após um tempo recolhido em silêncio, rezou novamente os Salmos.
Depois agradeceu a Deus por tantas graças recebidas. – O segundo entrou na
Capela um pouco sem jeito. Não sabia bem o que fazer. Contentou-se com o último
banco. O sacrário não lhe inspirava nada. Sua cabeça estava a mil. Tanto suor
derramado e o resultado....ó! Cuidar das pastorais comuns já pesava um bocado,
mais tantas lutas para mudar a sociedade na esperança de o Reino de Deus um dia
chegar..., uma doideira! Às vezes pensava que lhe faltava espiritualidade. Por
outro lado lia, refletia e meditava sempre. Parecia-lhe que compreendia o
sentido de sua vida, e da vida do povo, cada vez um pouco melhor. O silêncio da
Capela, por fim, o tranquilizou. Imaginava que Deus haveria de entender.....
Após contar
a parábola, Jesus perguntou à plateia: “na opinião de vocês, qual dos dois
missionários fez a melhor oração?” Durante algum tempo houve um estranho
silêncio. Depois, alguém respondeu: “na minha opinião foi o segundo”. Jesus
então respondeu: “tu não estás longe do Reino de Deus; faça isto, e viverás”.
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
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