quarta-feira, 8 de junho de 2016

Verbum, 53/2012: Ir para as missões: ainda vale a pena?

“IR PARA AS MISSÕES”: AINDA VALE A PENA?
INTRODUÇÃO
            Quando o padre secular Arnold Janssen (1909), na década de 1870, tomou a decisão de fundar uma Congregação Missionária, não fez nada de extraordinariamente original. “Ir para as missões” era o pensamento corrente da Igreja do seu tempo. Diversas outras Congregações Missionárias já haviam sido criadas, e, não muito longe de sua Capelania junto às Irmãs Ursulinas de Kempen, nascia Teresa de Lisieux (†1897) que, sem pisar em terras estranhas, se tornaria a “Padroeira das Missões” (1927) por ser esta a mais profunda de suas aspirações religiosas. Desde a descoberta do Novo Mundo, em 1492, esta era a grande proposta da Igreja, manifestada com muita frequência nos documentos e pronunciamentos eclesiásticos. Ir para as missões havia se tornado, desde a corajosa jornada de Inácio de Loyola (1556) e seu pequeno grupo inicial de companheiros, um apelo particularmente desafiador também para a Vida Religiosa.
I MISSÃO: UM CONCEITO EM EVOLUÇÃO
            Desde a segunda metade do século passado olhamos para o conceito de “missão” a partir de uma nova perspectiva, passando de um conceito de cunho preponderantemente geográfico para outro de cunho mais teológico. O Concílio Vat. II, como todos/as sabemos, refletiu o forte espírito pré-conciliar da “Nouvelle Théologie”. Novas ideias brotavam por toda parte, nem sempre em plena concordância com a inspiração proveniente dos venerados túmulos dos fundadores. Ainda assim, o Decreto Conciliar Ad gentes usa, com naturalidade, o tradicional conceito de “terra de missão” (26; 38). A linguagem corrente é a da “implantação da Igreja” entre os povos ainda não cristianizados: “o fim próprio desta atividade missionária é a evangelização e a implantação da Igreja nos povos ou grupos em que ainda não está radicada” (6).
            Sem dúvida, especialmente no imaginário popular, a ideia geográfica de “ir para...” (“ad” gentes) constituía o pensamento dominante ainda no tempo do Concílio. Qualquer jovem de índole religiosa e tradição familiar, católica ou protestante, poderia facilmente ser despertado pela figura heroica de um missionário ou missionária que, voltando das missões, contava suas proezas nos respeitados púlpitos paroquiais. Ainda hoje, nós, missionários idosos, assinalados pelas marcas do tempo, sentimos aquele forte tremor de corpo e as lágrimas rolando, quando um festejado missionário vinha das missões para mostrar aos seminaristas aquelas impressionantes séries de slides, um mais belo que outro. Juntávamos selos e “papel prateado” para presentear o missionário com nossa preciosa coleta de poucas dezenas de dólares.
            Porém, será que esta conotação geográfica era tão significativa quanto se costumava afirmar? Acreditamos que não. Ainda que possa ter sido dominante enquanto apelo popular, ou enquanto linguajar cultural da época, a motivação mais profunda sempre foi genuinamente religiosa. A empreitada missionária dos últimos 500 anos – passando por cima de tempos mais distantes – custou a vida a milhares de homens e mulheres. Nenhum apelo geográfico explica tal fato, nem foi essa a proposta teológica do documento conciliar Ad Gentes. A motivação mais profunda dos muitos missionários/as que davam aquele toque alegre e colorido às longas viagens de navio em direção às “terras de missão”, sempre foi uma só: salvar gente! O que estava em jogo era o Evangelho e nada mais. Salvar gente, porém, é um conceito teológico, e qualquer concepção teológica, sabemos hoje, vem sempre vestida na roupagem própria de seu tempo e lugar. O documento Ad Gentes, no Prefácio, inicia dizendo que a Igreja, devido a sua própria catolicidade, foi “divinamente enviada para as nações do mundo para ser-lhes sacramento universal da salvação” (1). Baseando-se em 1Tm 2, 4-6 e em At 4, 12, afirma que só em Cristo se encontra a salvação, e “não há salvação em nenhum outro”. Portanto, “é preciso que todos se convertam a Cristo...e que sejam incorporados, pelo Batismo, a Ele, e à Igreja, seu corpo” (7). Estão aí lembrados os dois conceitos teológicos que, por séculos, orientaram todos os esforços missionários: a universalidade do destino e a unicidade do Salvador. Crer nestas verdades absolutas constituía, de fato, a pedra angular de toda arquitetura cristã-ocidental.
II MISSÃO NA VIDA RELIGIOSA APOSTÓLICA
A) Nas origens:
                 E quanto esforço! O documento lembra que foram especialmente os religiosos e as religiosas que se dedicaram à desafiante tarefa (n. 40). Não havia apenas as dificuldades externas à vida da Igreja, mas também as internas. Era preciso inventar uma nova forma de Vida Religiosa. O Vaticano, não é de surpreender, era contra. Vida Religiosa é vida contemplativa e ponto final. Que despautério querer ser religioso/a e estar metido/a, dia a dia, numa ação missionária lá nos cafundós da China ou entre os povos indígenas da América do Sul? Hoje rimos destes episódios, mas nunca devemos julgar o passado com os olhos do presente. Inácio de Loyola (†1556) não se rendeu facilmente. Como militar a serviço do vice-rei de Navarra já havia estraçalhado sua perna, defendendo, sem chance, a cidade de Pamplona. Além do mais era impelido por uma experiência religiosa única, aprofundada durante onze meses no mosteiro do povoado de Manresa. Ali, sentado à beira do rio Cardona, como diz seu biógrafo, “abriram-se-lhe os olhos do entendimento com uma iluminação tão grande que todas as coisas lhe pareciam novas”. Era preciso retomar, de uma forma nova, a antiga inspiração de seu grande ídolo, São Francisco de Assis (1226). Voltar às origens e criar missionários itinerantes, como Jesus e o apóstolo Paulo, agora, de verdade, “até os confins do mundo”.
            Roma estava com medo. O modelo consagrado era o de São Bento de Núrsia (547). Este sim tinha ideias firmes e seguras. Quando, no alto do Monte Cassino, elaborou sua “Regra”, Bento levou em conta a já longa experiência do monaquismo oriental. Guardou de Santo Antão (356) sua “mística do deserto”; de Pacômio (348) a fraternidade comunitária; e de Basílio de Cesareia (379) a abertura ao pobre. Dizia Basílio: “pertence àquele que passa fome o pão que tu guardas; àquele que está nu a capa que tu conservas nos teus guarda-vestidos; àquele que está descalço os sapatos que apodrecem em tua casa; ao pobre o dinheiro que tu tens guardado; assim, tu cometes tantas injustiças quantas as pessoas às quais poderias dar”. Cumprir a missão do Mestre, para São Bento, era, antes de tudo, dar testemunho desta fé. Contemplação e ação, “ora” (Ofício Divino) et “labora” (auto-sustento e partilha com os necessitados). Sonhava com mosteiros que fossem centros de irradiação mediante o testemunho. Do outro lado do Monte Cassino, em Roma, seu amigo e admirador, o papa Gregório Magno (604), o ex-prefeito de Roma apelidado de “pai dos pobres”, em meio ao caos da queda do império romano, fazia a sua parte. Surgem nestes tempos os alicerces da Idade Média. Durante esta, como afirmam os historiadores, somente a famosa Ordem de Cluny, fiel à Regra de São Bento, chegou a ter 17.000 mosteiros subordinados a ela. Os inúmeros missionários/as vindos da Europa, anos atrás, são todos/as o longínquo fruto deste imenso esforço evangelizador.
            Mas como salvar o Novo Mundo, pensa Inácio, sem mudar o estilo monástico? Como garantir a indispensável mobilidade apostólica? No século VI o próprio papa Gregório, ele mesmo monge beneditino, não havia enviado 40 colegas monges em missão para dar um basta à idolatria dos ingleses?  E não foram monges irlandeses que, no século VIII, cumpriram a difícil missão no norte da Europa? Além do mais, a salvação da alma, de acordo com a mais legítima espiritualidade medieval, não estava acima de tudo? Era esta, de fato, a grande preocupação. São Tomás de Aquino (†1274) tinha tirado as últimas dúvidas: em cada ser humano existe – “ab extrinseco inmissa” – uma alma imortal. Salvar esta alma do fogo do inferno era a primeira das caridades. O papado da época não estava sem a segunda intenção de estabelecer um rigoroso controle sobre o comportamento cristão, de preferência no mundo inteiro. Inácio, por própria experiência, viu a Inquisição por toda parte, sempre à caça dos “alumbrados espirituais” que pipocavam por todos os lados. O novo espírito renascentista despertava novos anseios humanos. O papa, contudo, precisava urgentemente de pregadores anti-protestantes e evangelizadores para o Novo Mundo. Com dispensa da obrigatoriedade do Ofício Divino, Inácio e seus companheiros conseguem, em 1540, a aprovação do papa Paulo III para sua “Companhia de Jesus”. Um novo projeto missionário se iniciou “ad maiorem Dei gloriam”. A juventude da época entendeu. Na morte de Inácio, os jesuítas já são mil.
B) Em épocas mais recentes:
            Quando, nos séculos XIX e XX, nossas Congregações Missionárias enviam centenas de missionários/as “para as” missões, elas ainda bebem desta fonte. A Vida Consagrada Apostólica passou por modelos e fases diferentes, mas a preocupação de fundo permaneceu a mesma: salvar gente! Se no século XII São Bernardo de Claraval (†1153) ainda podia aconselhar aos muitos noviços que entravam que deixassem seus corpos do lado de fora, uma vez que “a carne não vale para nada”, a partir do século XVII surge uma impressionante leva de “santos da caridade”: São Francisco de Sales (†1622), São Vicente de Paulo (†1660), Santa Luisa de Marillac (†1660), o beato Frederico Ozanam (†1853), São João Bosco (†1888), e muitos outros. Estes, sem esquecer a alma, cuidaram antes de tudo do corpo. Não foi apenas a teologia escolástica, muito simpática ao uso da razão, mas especialmente a nova espiritualidade que, a partir da famosa “Escola de Deventer” de Geert Groote (†1384), introduziu um novo clima. Geert Groote, por sua vez, foi muito influenciado pela “mística renana”, ou flamenga, do Mestre Eckhart (†1328). João de Ruysbroeck (†1381), Nicolau de Cusa (†1464) e Thomas à Kempis (†1471) se inspiraram claramente nela. O dominicano Eckhart, não muito ligado à Escolástica, afirmava que, “no fundo da alma”, o ser humano poderia fundir-se com a “abissalidade” (abgründigkeit) de Deus, mas, ainda assim, “é melhor dar de comer a quem tem fome do que entregar-se a uma prolongada contemplação interior”. Thomas à Kempis confessou que “cada vez que ia ao mundo voltava pior”, mas, mesmo assim, fiel à “devoção moderna” do seu tempo, afirma, na sua “Imitação de Cristo”, que o caminho da salvação passa pelo caminho concreto do amor ao próximo. Por isso, limitar a piedade aos conventos é uma heresia, dizia Francisco de Sales. A Revolução Industrial já estava mostrando sua cruel fisionomia. As ruas das cidades viviam apinhadas de pobres e doentes, sem qualquer atenção. O novo contexto histórico não trouxe apenas uma nova espiritualidade e novos carismas apostólicos. Trouxe também uma nova visão teológica. Querer salvar a alma sem cuidar do corpo tornou-se problemático. O avanço da modernidade iria demonstrar sua inteira impossibilidade.
III A TEOLOGIA DA MISSÃO NO TEMPO DE SANTO ARNALDO
            Quando ainda criança, Arnold Janssen reza, de joelhos, todas as noites, o terço em família. Tradição firme em todas as casas católicas. Nós, padres idosos de origem europeia, vivenciamos quase todos a fase final desta tradicional religiosidade popular. A imagem do Sagrado Coração de Jesus costumava estar aí por perto, irradiando uma tranquila confiança no futuro. Geralmente cabia às mães puxar o terço e indicar a intenção. Como as intenções eram muitas – a “vida paroquial” era intensa -, acrescentavam-se pai-nossos e ave-marias no final do terço, por esta e mais aquela intenção. Uma das mais comuns era pela conversão dos “povos pagãos” ou “pelas missões”. Toda a vida de Arnold Janssen é um claro reflexo desta infância e deste contexto cultural. Na sua vida sacerdotal, sob ponto de vista teológico, nenhuma novidade. Predominam em seu tempo as águas tranquilas da teologia escolástica, sem contestação. Sua profunda espiritualidade o leva a ter algumas devoções preferenciais, no mais também comuns à época: a SS. Trindade, o E. Santo, a Divina Providência e, em especial, o Sagrado Coração de Jesus. O que o distingue fortemente dos seus demais colegas no sacerdócio é seu extraordinário carisma missionário. É a partir deste carisma que Santo Arnaldo desenvolve sua visão teológica e sua espiritualidade: o destaque dado ao Verbo Divino e à indispensável presença do Espírito Santo para fecundar a obra missionária. Seu conceito de missão e salvação é próprio do seu tempo. O “Concílio Plenário da Am. Latina”, por exemplo, realizado em Roma no ano de 1899, define a meta da missão como “a civilização das tribos que ainda permanecem na infidelidade”. A trilogia missionária comum é: pagãos / infidelidade / missão. O conceito teológico de fundo é o mesmo do tempo de São Francisco Xavier (1552), ex-colega de pensionato e companheiro de Santo Inácio.  Quando os aflitos japoneses lhe perguntavam sobre o destino dos seus venerados antepassados, lhes respondia tranquilamente que, com certeza, por falta de conversão e batismo, estavam todos no inferno. Ainda em 1960, um Congresso Protestante sobre as Missões constatou que “depois da II Guerra Mundial mais de um bilhão de pessoas passaram desta para a vida eterna e mais da metade foi para o fogo do inferno sem ter sequer ouvido o nome de Jesus Cristo”. Para nós, que vivemos a pós-modernidade, é difícil avaliar corretamente a certeza absoluta desta convicção na época. É dela que brotava o ardor missionário do padre Arnold, e por causa dela afirmava que a própria pregação do Evangelho era a prova mais sublime do amor ao próximo.
IV MISSÃO NO TEMPO DO VATICANO II
            O documento Ad Gentes é de outra época, bem diferente. Antes do Concílio já havia um forte movimento ecumênico e a postura conservadora do Vaticano vivia sob constantes ataques. Fatalmente os documentos conciliares iriam refletir as duas tendências. Em geral, contudo, na opinião de boa maioria dos atuais teólogos, no Vat. II “uma minoria lúcida prevaleceu sobre uma maioria sem proposta”. Como o documento Ad Gentes relaciona o enfoque central “missão e salvação”? Abordando a questão das outras religiões, afirma: “os esforços humanos para encontrar Deus precisam ser purificados, mas podem às vezes ser considerados uma preparação evangélica para o Deus verdadeiro” (3). Não há dúvida de que o Espírito Santo atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado” (4). Os padres conciliares concebem um certo “gradualismo”: “a Igreja, embora de si possua a totalidade ou a plenitude dos meios de salvação,.... quanto aos indivíduos e povos, só gradualmente os atinge...e os traz à plenitude católica” (6). Há mais: “Tudo o que de verdade e de graça se encontrava já entre os gentios como uma secreta presença de Deus, Cristo, o autor da salvação expurga-o de contaminações malignas” (9). E, um dos destaques mais lembrados: “(os fiéis cristãos) façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo neles (os povos) adormecidas” (11).
            Especialmente esta última palavra, inspirada, das “sementes do Verbo”, acolhidas com alegria e respeito, iriam produzir inúmeros frutos pós-conciliares. Não sem fortes resistências. O próprio papa Paulo VI, logo após o Concílio, teve a coragem de dizer que “a fumaça de Satanás” ainda não havia se afastado do Vaticano. O cardeal Sirí opinava que a Igreja levaria cinquenta anos para corrigir o que João XXIII estragou em cinco. Em especial depois do Sínodo de 1985 houve uma clara tendência de reverter os avanços conciliares. O teólogo jesuíta José González Faus chegou mesmo a falar em um autêntico “golpe do Vaticano”. Na conjuntura atual, a cada ano que passa, fica mais claro – fazendo uma leitura, digamos, um tanto “funcionalista” da Instituição Igreja – que a razão de ser da Cúria Romana não é mesmo a de abrir estradas para o futuro, mas muito mais a de confrontar as novas estradas que vão se abrindo com as riquezas do passado. Seja como for, foi com enorme alívio que o mundo cristão recebeu as palavras de João XXIII na sessão inaugural do Concílio: “uma coisa é o depósito da fé, outra a sua formulação!” O papa, Bento XVI, que, sem dúvida, não pode ser acusado de relativizar demasiadamente as coisas, em diversos pronunciamentos confirmou este novo olhar sobre o passado eclesial. Ganhou espaço crescente a tese do grande mestre francês Marie-Dominique Chenu, tardio intérprete do catolicismo social da “École de théologie: Le Saulchoir”. Embora, como disse, o Concílio “batizou com água benta” o texto que preparou, a “teologia das realidades terrestres” foi assumida, como também seu destaque dado à leitura dos “sinais dos tempos” (Gaudium et Spes). No final do Concílio observou: “a expressão (sinais dos tempos) tende hoje em dia, de maneira bastante sensacional, a converter-se numa das categorias fundamentais da teologia emergente para definir particularmente as relações da Igreja com o mundo”.
V MISSÃO DEPOIS DO CONCÍLIO
            A proposta de ir para as missões e salvar gente receberia novos enfoques teológicos em tempos de globalização. A teologia deixou de ser europeia e a Europa deixou de ser centro. A América Latina trouxe seu enfoque libertador. Missão, numa concepção latino-americana, é dar testemunho de um Deus que não fez opção pelos pobres por motivos de caridade (“charity”), mas por ter-se revelado um Deus comprometido, essencialmente, com os injustiçados. A Ásia colocou em pauta a indispensável exigência do diálogo. Um diálogo não feito a partir de um centro privilegiado, mas a partir da certeza de que Deus, “kenoticamente”, veio habitar o coração da humanidade inteira. E na África amadureceu a ideia da inculturação. Não apenas a inserção de costumes cristãos nas culturas locais, mas, muito além disto, também uma abertura teológica ao modo de pensar e sentir dos povos africanos. Uma autêntica “inculturação doutrinal” com “des-helenização e des-ocidentalização dos conteúdos de fé”, observa o teólogo africano Leonard Santedi Kinkupu. No Sínodo de 1974, os bispos africanos declararam ultrapassada a “teologia da implantação”, optando pela “teologia da inculturação”. Na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Africa, o papa J. Paulo II afirmou que a inculturação era “um dos maiores desafios do continente”. Os primeiros avanços pós-conciliares, contudo, se fizeram ouvir na Europa. O teólogo Karl Rahner (1984) falava em “cristãos anônimos”. Hans Küng rebatia dizendo que este “inclusivismo” era, na verdade, um “exclusivismo”, pois negava a salvação a quem não fosse cristão. Timidamente começaram a surgir vozes defendendo caminhos pluralistas de salvação, e o debate “exclusivismo - inclusivismo – pluralismo” ocupou por um bom tempo o palco eclesial.
VI MISSÃO NO CONTEXTO DO PLURALISMO RELIGIOSO
            O mais destacado teólogo do pluralismo religioso, nos EUA, é Paul F. Knitter. Em seu muito aclamado livro No other Name? (1992) observa: “os cristãos estão aprendendo que para uma coisa ser verdadeira não se exige que seja absoluta”. Já em 1987, em Um diálogo necessário: entre a teologia da libertação e a teologia do pluralismo Knitter havia dito que “a libertação integral (política, econômica, ecológica, etc.) é uma tarefa grande demais para que seja assumida por uma única nação, cultura ou religião, uma vez que cada uma traz a sua própria contribuição para a superação do modelo da globalização neoliberal que ameaça de morte a humanidade e o planeta, sendo imprescindível manter em tensão dialética e mutuamente fecundante a polaridade dinâmica dos pobres e das religiões”. Em diversas ocasiões o teólogo belga Schillebeeckx (2009) se manifestou no mesmo sentido. Em 1995, em One earth, many religions: multifaith dialogue and global responsability, Knitter apela a um esforço inter-religioso com o horizonte comum do “eco-bem-estar” e, em 2009, escreve Without Buddha I could not be a Christian. Passa-se de um pluralismo religioso de fato para um pluralismo religioso de princípio.
Na Europa, outro destacado mestre do pluralismo religioso é o jesuíta Jacques Dupuis (2004). Deu sequência ao grande esforço ecumênico do teólogo conciliar Yves Congar (1995). Este já havia destacado que “a vontade salvífica de Deus é universal”, que “a graça vive fora das fronteiras da Igreja” e que as religiões são “mediações de salvação”. Em Homme de Dieu, Dieu des Hommes (1995) Dupuis critica os “dogmatismos fechados”, insistindo numa espécie de “de-centração”, e explicitando que cada Igreja local (a intérprete), necessariamente, recebe determinada doutrina (o texto), devendo traduzi-la para sua própria realidade cultural (o contexto), ocorrendo desta forma uma recepção criativa da fé. Em seu último livro Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso (2001) mais uma vez lembra “a distinta percepção da mesma fé em contextos diversos”. A Igreja, hoje, opina Dupuis, precisa de uma metanoia teológica que propicie “um tríplice mecanismo de purificação: da memória, da linguagem e do entendimento teológico”. Deus se revela em cada cultura contra suas próprias forças destrutivas internas. Por isso, na opinião de Dupuis e muitos outros, a teologia da inculturação é sempre uma teologia libertadora. Nesta mesma linha, o africano A. Ngindu Mushete propõe, em Les thèmes majeurs de La théologie africaine (1989): “a Igreja da África...deve sair dos caminhos batidos de uma práxis que a encerra numa espécie de sono dogmático”. Muitíssimos outros teólogos e pensadores poderiam ser citados, mas o foco é sempre o mesmo. Na Am. Latina, um grupo de teólogos, José M. Vigil, Luiza E. Tomita e Marcelo Barros, todos da Comissão Teológica da “Associação Ecumênica de teólogos e teólogas do Terceiro Mundo na Am. Latina” (ASETT) está editando um conjunto de cinco livros sobre a íntima relação entre teologia da libertação e pluralismo religioso. Com destaque para uma nova forma de espiritualidade missionária, cientes de que não são as doutrinas, mas as místicas que propulsionam os povos.
Vemos, portanto, que as adormecidas “sementes do Verbo”, semeadas nos mais variados contextos, quando acordadas, produzem as mais variadas flores. Mas, e Roma? Bem, Roma não deixa de observar esta metanoia teológica sobre missão e salvação com grande preocupação. A Cúria Romana e o teólogo Ratzinger, além de “notificarem” alguns dos nossos mais renomados mestres, reagiram, em 2000, com a Declaração da Congregação da Doutrina da Fé “Dominus Iesus”.  O documento reafirma solenemente a universalidade do destino salvífico e a unicidade do Salvador e da Igreja. Afirma, com rude violência, que as outras religiões se encontram “numa situação gravemente deficitária” (DI 22). Não é de admirar que muitos, entre os quais Paul Knitter e o teólogo de Sri Lanka, Tissa Balasuriya, acusam a Igreja de propagar o “mito da superioridade religiosa”. Dominus Iesus tornou-se um dos documentos mais mal recebidos no mundo cristão. A nosso ver sem necessidade. Para quem tem os olhos voltados apenas para o futuro, o documento é uma porta fechada. Mas, no nosso entender, não é esta a função da Cúria... o que não diminui em nada a necessidade urgente de sua reforma institucional. Cabe, não à Cúria, mas aos teólogos e teólogas abrir estradas para o futuro, com a indispensável liberdade de pesquisa e opinião. A Igreja, porém, não é um mero projeto de futuro, por mais que se oriente para a consolidação do Reino de Deus na terra. A Igreja deve fidelidade ao Espírito e às enormes riquezas humanitárias acumuladas em seu passado. Há necessidade de uma instância que faz o balanço entre passado e futuro, sendo o presente, fatalmente, uma busca, um caminho em meio a muitas incertezas.
Não há nada no pluralismo religioso que não possa ser harmonizado com a Igreja “sacramento universal da salvação”. Como sacramento a Igreja é apenas um humilde “sinal”, uma mediação, um instrumento. Quem, gratuitamente, quer salvar a todos é Deus, e não cabe à Igreja definir de qual forma Deus deve exercer sua “catolicidade”. O grande teólogo asiático, Felix Wilfred, atual Diretor da Revista Concilium, tem dito que o excessivo dogmatismo eclesial corre perigo de transformar a Igreja, chamada a ser kat-ólica, em uma Igreja kat-áutica, isto é, fechada sobre si mesma. Diante das outras religiões propõe um “pluralismo contemplativo”, de linha apofática, sem disputa teórica. Não há nada mais idolátrico do que o próprio ser humano colocar-se no lugar de Deus. Moisés, no deserto, descobriu estar diante de um Deus cujo nome é impronunciável. Elias sentiu sua presença apenas numa brisa imperceptível. E o Jesus histórico, tão ressaltado pelas atuais “cristologias de baixo”, submeteu sua vontade à vontade do Pai, o Pai querido em cujas mãos entregou seu espírito. Deus, na mais legítima mística cristã, foi sempre um Mistério insondável. Em sua Teologia Mística, o Pseudo-Dionísio (500 aprox.), após séculos de construção doutrinal contra as heresias, define Deus como o “além de tudo” ou “a escuridão atrás da luz”, e “Deus é tudo e não é nada”; para alcançá-lo, é preciso “deixar para trás os sentidos e as operações do intelecto”. A Internet afirma que São Tomás de Aquino o cita mais de 1700 vezes! Ficou, de fato, famosa a frase de Tomás: “de Deus não podemos saber o que é, mas apenas o que não é”. Todas as correntes místicas do cristianismo tiveram uma forte ligação com a espiritualidade “apofática” de Dionísio, desde, como já assinalamos, o Mestre Eckhart e seus seguidores, passando por Santo Alberto Magno (1280) e São Boaventura (1274), até a mística espanhola de Santa Tereza d´Ávila (1582) e São João da Cruz (1591), desembocando, finalmente, na nova espiritualidade missionária do pluralismo religioso. O teólogo chileno Diego Irarrázaval diz que – quando silenciada a disputa – ouvimos a “polifonia espiritual” dos povos.
Falando de Jesus, Ad gentes diz que “não há salvação em nenhum outro”, e Dominus Iesus retoma o antigo adágio “fora da Igreja (Católica) não há salvação”. Mas, de qual salvação e de qual Igreja os documentos, de fato, falam? A ciência linguística tem lembrado que a linguagem, em qualquer contexto cultural, funciona como uma “quase-prisão”. Nas últimas décadas, o trato hermenêutico se tornou comum na teologia exatamente porque as palavras tendem a ser mal-entendidas sem uma elucidação precisa do contexto histórico e cultural-religioso em que surgiram. As palavras “salvação” e “Igreja”, mais do que ser conceitos e doutrinas, falam de modos concretos de viver e conviver. Os modos que “identificam” a plena vida proposta por Jesus e sua Igreja, facilmente, podem estar mais presentes entre “povos pagãos” do que no assim denominado “mundo cristão ocidental”. Qualquer missionário/a passa por esta sensação inúmeras vezes. O excessivo dogmatismo da Igreja gerou, no decorrer da recente história eclesiástica, inúmeros movimentos de resistência. Não apenas gerou os movimentos protestantes, mas levou ao extremo também os movimentos laicos e anti-clericais da modernidade. No século passado deu origem ainda ao maior movimento missionário de todos os tempos, ainda em franca expansão: o pentecostalismo. No Brasil, festejado como “o maior país católico do mundo”, um milhão de católicos abandonam a Igreja, anualmente. Quase sempre partem para alguma Igreja Pentecostal. O Espírito de Deus é indomável. É também implacável com qualquer instituição. Os bispos da Am. Latina e do Caribe realizaram em 2007 (Aparecida) sua 5ª Conferência Episcopal, tendo como tema central: “a missão”. Apelam os bispos a uma generalizada “conversão pastoral”, tendo em vista uma grande “Missão Continental”. Entre os “sinais” do nosso tempo não vemos nenhum que nos indica tal possibilidade. No mundo inteiro, a credibilidade da Igreja está em baixa. Como sinal do tempo verdadeiramente gritante – e há, parece-nos, um quase-consenso sobre isto entre teólogos e teólogas, sem falar do sempre importante “sensus fidelium” – vemos apenas um: a imperiosa necessidade e urgência de uma reforma institucional nas estruturas e ministérios da nossa própria Igreja. Esta “conversão institucional” é conditio sine qua non para a missão no mundo de hoje. Santo Arnaldo, em seu tempo, foi obstinado na perseguição de seus sonhos. Trata-se de “um santo ou um louco” dizia o bispo de Roermond (Holanda), em 1874, após autorizar ao estranho padre alemão abrir uma casa missionária às margens do rio Mosa.  Na missão cristã, o Espírito é tudo. É Ele que nos impele à luta corajosa para superar nossas próprias estruturas inadequadas. A Congregação Missionária do Verbo Divino está inserida neste indispensável esforço internacional? Uma das demandas da Igreja é a de-centralização, com maior autonomia continental. A SVD, como instituição, aplica isto a si mesma? Carisma e instituição exigem um diálogo permanente.
VII SIM, AINDA VALE A PENA, DESDE QUE.....
            Todas as Congregações Missionárias, de tempos em tempos, fazem seus Capítulos Gerais para re-avaliar sua caminhada institucional, partindo do carisma original que a inspirou. Uma grande tentação se apresenta de imediato: confundir o carisma do momento da fundação com o carisma primeiro que lhe deu “origem”. Querer retomar a teologia, ou mesmo a espiritualidade, do tempo de Arnold Janssen é colocar-nos, fatalmente, numa estrada sem futuro. Não que esta teologia e esta espiritualidade tirem uma única vírgula da grandeza espiritual e autenticidade virtuosa do fundador ou fundadora. Esta grandeza e virtuosidade, porém, não residem na sua expressão local e temporal, mas exatamente na fidelidade ao Evangelho e na espiritualidade cristã original em que elas se fundamentam. Bem como intuía João XXIII: uma coisa é a fé, outra a sua expressão local e temporal. Pelo que vimos na reflexão feita, os modos de pensar e vivenciar a proposta de Jesus e seu Reino – sua “missão” – mudaram substancialmente no decorrer dos tempos. Especialmente neste nosso tempo globalizado, quando esta missão universal, iniciada pelo Galileu de Nazaré, é pela primeira vez ouvida, vivenciada e interpretada teologicamente na perspectiva de todos os continentes, nos damos conta da “abissalidade” das riquezas de Deus, não apenas “adormecidas” ou “secretas”, mas plenamente presentes nas mais diversas culturas locais. Esta descoberta, própria do nosso tempo, gera consequências significativas para a missão:
A) Uma boa missão requer uma boa antropologia
            Santo Arnaldo Janssen e seus primeiros companheiros entenderam muito bem que “ir para as missões” requeria um bom entendimento das “culturas pagãs”. Predominava no século passado a chamada “antropologia cultural”. Ela privilegiava os aspectos mentais ou racionais do ser humano: seu modo de pensar, suas crenças, seus ritos, seus comportamentos, em fim, sua cultura. Grandes equívocos foram cometidos esquecendo que o ser humano não é apenas mente, mas também corpo. A cultura europeia, cristã, considerava-se superior a qualquer outra, não-cristã. Para muitos, o objetivo da missão era “extirpar as idolatrias”. Hoje, as teologias do terceiro mundo clamam por uma “descolonização da mente”, com inclusão da teologia. Nas últimas décadas do século XX surgiu com força a “antropologia natural”, mais ligada ao corpo ou à biologia humana. Esta não exclui a mente, mas a vê como parte do corpo. Recentemente um pensador africano, Eboussi Boulaga, plagiou a famosa frase de Descartes “penso, logo existo” e, para exprimir uma visão de mundo inteiramente diferente, disse “danço, logo existo”. A antropologia natural deve muito às ciências naturais da modernidade. A biologia evolutiva nos fez admirar a grande “sinfonia da vida” sobre o planeta Terra. Bilhões de anos de vida unicelular, bacterial, diversificando-se, até oxigenar a atmosfera e criar um meio ambiente favorável à vida multicelular, depois às plantas e florestas, e finalmente aos animais. Muito recentemente surgiu um animal com um córtex cerebral avantajado que se autodenomina “homo sapiens”. Vendo os resultados, porém...., bem, pulemos esta parte. Os neurocientistas demonstraram que o grande cérebro não nos elevou acima da natureza, nem nos fez capaz de olhar, objetivamente, para o mundo à nossa volta. Apenas nos dotou de um novo e sofisticado mecanismo para sobreviver melhor. Desde que Ilya Prigogine (2003), em seu maravilhoso livro Ordem a partir do Caos, demonstrou que a essência da vida é contrariar a segunda lei da termodinâmica e, em vez de degenerar para o caos crescente pelo efeito da entropia, criar novas e sempre surpreendentes formas de vida cada vez mais complexas, sabemos que todos os caminhos estão abertos ao ser humano, inclusive o de viver e conviver melhor. Quando Jesus falou do “Reino” e os primeiros cristãos de “O Caminho” – como o Tao dos antigos chineses -, sem esquecer Arnold Janssen quando falava do Verbo de Deus, é disto que estão falando. O pensamento humano não vai parar de evoluir. Por isso uma boa antropologia (e as demais ciências ligadas ao “sentido” da vida humana) será sempre fundamental. Cada Província SVD tem isto em mente ao planejar (formação permanente, especializações, etc.) seu futuro?
B) Uma boa missão exige a construção do Reino
            Jesus não pregou a si próprio, nem priorizou o fator Igreja. Não veio para fundar uma nova religião. “Jesus nem foi cristão”, disse, com ousadia, o arcebispo anglicano Desmond Tutu, assustando meio mundo. Jesus iniciou um movimento, um modo de viver. “O Reino de Deus está próximo”. “Que venha a nós o Vosso Reino”. “Não basta dizer Senhor, Senhor”. É preciso olhar para as pessoas à beira da estrada. Reparem, esta é a essência de todas as religiões, o sonho da humanidade. A busca por melhor qualidade de “vida” (“plena vida”) é também o cerne da própria natureza viva. A atual ecoteologia acrescenta a redenção cósmica. Diante das atuais evidências não resta dúvida: ou fazemos do planeta Terra nossa casa comum, digna de se viver, ou iremos todos precipício abaixo. Será que o velho Tomás de Aquino tinha razão, afinal, dizendo que Deus deixou sua ordem gravada no universo, e basta a razão humana adequar-se a esta “lei natural”? A “missão” à nossa frente promete uma colheita maravilhosa e promissora se soubermos harmonizar o melhor do pluralismo religioso com o melhor das teologias de libertação. A diversidade religiosa não é problema, é solução. Dupuis a chamava de “providencial”. O jesuita Aloysius Pieris (Sri Lanka) – para quem “fora da aliança de Deus com os pobres não há salvação” - falou de uma “religiosidade simbiótica”. Assim como a diversidade biológica torna a natureza mais “resiliente”, assim também a diversidade cultural-religiosa permite ao ser humano crescer em consciência. Uma consciência mais “crística”, diria Teilhard de Chardin (1955).
            O primeiro mundo, faz tempo, está em busca de uma espécie de “ética global” (Küng). Surgiram críticas: não basta uma espécie de mínimo humano, aceitável ao mundo secular. A teologia política de J. B. Metz colocou no centro o “princípio misericórdia” (“mitgleid”), mais próximo da tradição e “memória” cristãs. No terceiro mundo também surgiram vozes dizendo que “mais valem os máximos particulares do que os mínimos comuns” (J. Sobrino). Raimon Panikkar (2010) insiste em dizer que o diálogo inter-religioso exige não deixar a própria riqueza “na soleira da porta”. A teologia pós-moderna aposta facilmente numa etérea “espiritualidade pós-religiosa”, mas isto parece muito pouco para quem crê em Alguém que morreu numa cruz para fazer valer sua proposta. Os teólogos do diálogo inter-religioso, mais recentemente, têm insistido na “pedagogia da escuta” (Marcelo Barros), no exercício da “cortesia espiritual” (o “adab” corânico), na busca da “empatia”, etc.. Se o mesmo Deus de Israel se revela em todas as religiões, esta pedagogia, evidentemente, faz sentido. Mas qual a nossa contribuição, a “nossa missão” específica? Há um consenso: a teologia e a mística do mundo cristão, ontem e hoje, exigem a construção do Reino, já aqui na terra, mas em direção ao “novo céu e à nova terra”.
            O terceiro mundo lembra ao primeiro que isto não é possível sem opção pelos pobres, pelos injustiçados, pelo rosto desfigurado dos “sem lugar” que nos revelam Deus (Ulrich Engel). É preciso retomar a coragem profética e apontar para a “raiz de todos os males”, a ganância que virou sistema mundial, a mãe de todas as corrupções. O velho teólogo protestante, Paul Tillich (1965), já defendia o “princípio socialista”, isto é, permitir que os de baixo definam os critérios e os caminhos de sua própria superação. Uma Congregação Missionária, tão internacional como a nossa, deve mostrar de que forma “um outro mundo é possível”. O saudoso Paulo VI já o disse, com coragem: “Só o Reino é absoluto, tudo o mais é relativo” (Evangelii Nuntiandi, 8). Depois da II Guerra Mundial, de forma generalizada, a Vida Religiosa Apostólica – também nas “missões” – adotou um “estilo de vida classe média”, bem ao gosto do capitalismo liberal. Nossas casas de praia não ficam devendo nada a ninguém, nem nossas viagens internacionais de três em três anos. Nosso “footprint” desafia o planeta. Mas, testemunhar o Reino não é discurso. É uma prática, um modo de vida. Nossas Províncias SVD, neste sentido, têm a coragem de traçar um plano bem delineado nesta direção?
C) Uma boa missão requer espiritualidade
            A modernidade arranhou profundamente a espiritualidade tradicional. Impressionam-nos as biografias dos nossos fundadores ou fundadoras. Também de Santo Arnaldo admiramos: o tempo dedicado à oração, a familiaridade com Deus, a fidelidade à causa assumida, a disciplina no cumprimento do dever, e muito mais. Por que tudo isso é mais difícil para nós? Nunca devemos esquecer que religiosidade é muito anterior a Moisés e Jesus Cristo. Ela já nasceu com a própria consciência humana e, desde tempos imemoráveis, teve um caráter fortemente mágico. O Deus inominável, muito além de qualquer sim ou não, como dizia o Pseudo-Dionísio, era apenas imaginado, nunca racionalizado. A inteira vida humana e cósmica era sentida como totalmente dependente das forças divinas, onipresentes e onipotentes. É na tradição profética de Israel, e na filosofia grega, que surge por primeiro um processo crescente de racionalização. O Deus libertador, o Código da Aliança em oposição ao Código da Pureza, o Reino de Deus “no meio de vós”, tudo implica em um novo modo de pensar e de viver. A Modernidade fez da razão seu critério único. Também dentro da Igreja, a autonomia da razão criou uma explosão de teologias. Mas, onde a razão entra, a magia acaba. Foi-se o “ab extrínseco inmissa” de São Tomás. Foi-se o milagre. Surge o “desencantamento” já dizia Max Weber (1920). Inúmeras expressões religiosas “perderam a graça”. O processo ainda está em andamento, por mais que se diga que já estamos na pós-modernidade. A nível mais popular, em especial nos povos não-ocidentalizados, muitos elementos mágicos continuam presentes na espiritualidade. Mas cuidado! No “fundo da alma” de todos nós, religiosos e religiosas, banhados em teologia e ciências, uma misteriosa varinha mágica continua nos movendo. É de berço.
            Nossa missão, porém, não pode mais ser pautada por uma religiosidade mágica. O tempo dos nossos avós, ou de Arnold Janssen, não volta mais. A missão, hoje, deve ser mística! Os racionais Rahner e Schillebeeckx não se cansavam de dizer: o cristianismo do futuro será místico, ou não haverá cristianismo! O tema é complexo, mas, simplificando, poderíamos dizer que, ambas, magia e mística, creem no que está além da razão, porém, na magia, o conteúdo se apresenta, digamos, contaminado, na mística não. Comparando as biografias dos grandes místicos e místicas da pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade descobrimos que sua espiritualidade apresenta características bastante diferentes. O que sobressai em todos/as, no entanto - e o mesmo ocorre com os místicos das outras grandes religiões tradicionais - é: 1) Deus, o Transcendente, o “além de tudo” (com os mais diversos nomes) é a fonte absoluta do sentido da vida; 2) É desta fonte, pura, que brota o caminho a seguir no dia a dia, a ética do viver; 3) A ética do viver tem um caráter coletivo e cósmico. A razão secularizou o mundo ocidental, privando-o da espontaneidade mágica da fé no transcendental que nós, missionários/as, ainda encontramos nos povos chamados “periféricos”. Dizemos “ainda” porque também aí as coisas vão mudando. Qual a missão que sobra quando a sensibilidade pelo transcendental desaparece e tudo na terra é assumido por forças laicas, imanentes, secularizadas? Questão difícil. Quem, a nosso ver, oferece a melhor pista é o mais Schillebeeckxiano dos teólogos, o dominicano leigo Eric Borgman, que, recentemente, escreveu um belo livro: Metamorfosen: Over Religie en moderne Cultuur (2006). Tese central: não muda no ser humano sua busca pelo sentido da vida, por vida plena; o que muda – de forma sempre surpreendente e imprevista - é o “modo” de viver esta religiosidade. Na pós-modernidade, em especial o lado institucional das religiões sofre forte resistência. Não oferecendo “sentido”, estará desacreditado. Mas, também o mundo secular continua em busca de um sentido para se viver. Nossas verdades “absolutas” foram enterradas. Hoje, apenas os místicos (inseridos na realidade) têm respostas convincentes. As Províncias SVD incluem este dado em sua “pedagogia espiritual” e em seu projeto de futuro?
CONCLUSÃO
            Missionários/as sempre “sonham” sobre o que será do seu povo. Afinal, para isto foram enviados/as em missão. Nós, certa vez, sonhamos que estávamos em retiro. Todos os padres e irmãos estavam reunidos numa sala, ampla e agradável. O clima era de grande expectativa: ninguém menos do que o próprio Jesus iria fazer a primeira colocação. Com o atraso de sua vinda, o murmúrio na sala aumentava. O que será que aconteceu? De repente, do meio da sala, um confrade se levantou, colocou-se na frente da plateia e contou a seguinte parábola:
            Dois missionários religiosos subiram à Capela para rezar. - O primeiro, como era seu costume, sentou-se no banco da frente. Diante do sacrário, uma grande calma invadiu-lhe a alma. Estava em paz com Deus. Dificilmente faltava com seus deveres. Na Paróquia priorizava a pastoral bíblica e, celebrando a Eucaristia, respeitava as orientações da Igreja e os desejos do povo. Nas reuniões do Distrito, rezando os salmos do Ofício Divino, sentia-se feliz e realizado. Era muito bom ter uma Comunidade e ter uma vida espiritual. Após um tempo recolhido em silêncio, rezou novamente os Salmos. Depois agradeceu a Deus por tantas graças recebidas. – O segundo entrou na Capela um pouco sem jeito. Não sabia bem o que fazer. Contentou-se com o último banco. O sacrário não lhe inspirava nada. Sua cabeça estava a mil. Tanto suor derramado e o resultado....ó! Cuidar das pastorais comuns já pesava um bocado, mais tantas lutas para mudar a sociedade na esperança de o Reino de Deus um dia chegar..., uma doideira! Às vezes pensava que lhe faltava espiritualidade. Por outro lado lia, refletia e meditava sempre. Parecia-lhe que compreendia o sentido de sua vida, e da vida do povo, cada vez um pouco melhor. O silêncio da Capela, por fim, o tranquilizou. Imaginava que Deus haveria de entender.....
            Após contar a parábola, Jesus perguntou à plateia: “na opinião de vocês, qual dos dois missionários fez a melhor oração?” Durante algum tempo houve um estranho silêncio. Depois, alguém respondeu: “na minha opinião foi o segundo”. Jesus então respondeu: “tu não estás longe do Reino de Deus; faça isto, e viverás”.
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