A
PASTORAL EM NOVAS PERSPECTIVAS I
INTRODUÇÃO
AO TEMA1
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Pe. Nicolau João
Bakker, svd*
O
alerta de Aparecida
O Documento
de Aparecida2 apela a uma autêntica “conversão pastoral” (No
366) e insiste em “reformas espirituais,
pastorais e também institucionais” (No 367). Com certeza os bispos
da Am. Latina e do Caribe não pensaram apenas em mudanças cosméticas. Intuíram
a necessidade de mudanças mais profundas. Em amplos setores da Igreja, e
especialmente entre os teólogos e teólogas do continente, existe um sentimento
generalizado de que “algo não vai bem” na práxis pastoral da Igreja, e isto não
apenas pela “perda” – no Brasil somente! - de um milhão de católicos por ano.
As estatísticas oficiais indicam que isto ocorreu em cada um dos últimos dez
anos e tudo leva a crer que continuará sendo assim também nos próximos dez
anos. Existe um problema de fundo. Muitos afirmam que a Igreja Católica está
perdendo o trem da história. Outros que falta uma bússola para indicar o rumo.
Todos nos perguntamos: o que está acontecendo?
É
hora de repensar a pastoral
Precisamos repensar nossa pastoral não
apenas porque nosso mundo mudou e, querendo ou não, devemos nos adaptar a ele. É
que a modernidade, ou pós-modernidade como muitos preferem dizer, trouxe
consigo também uma nova “cosmovisão” e é esta que põe tudo de pernas para o ar.
Poderíamos definir cosmovisão como “um determinado modo de conceber Deus, o
mundo e a própria existência individual e coletiva”. Ela é a geradora de sentido e todas as
pessoas, consciente ou inconscientemente, se deixam guiar por ela. A cosmovisão
é o chão do qual se alimentam nossas raízes mais profundas. Por isso, quando
uma cosmovisão vai sendo substituída por outra, as pessoas entram em crise.
Freqüentemente ouvimos dizer então: “perdi meu eixo”, “estamos sem rumo”, ou “o
chão fugiu debaixo dos nossos pés”. Vivemos atualmente um momento desses.
Momento que pode levar décadas. Após milênios de cosmovisão teológica e séculos
de cosmovisão antropológica – já já explicitaremos os termos – estamos hoje
acordando para uma nova cosmovisão: a ecológica.
Pastoral
e centralidade da cosmovisão
Não há nada que mais diretamente afeta a
ação pastoral da Igreja do que a cosmovisão da época, e isto porque cada
cosmovisão tem sua própria lógica. Analisando a história da humanidade – em
particular a história do mundo ocidental que definiu o modo de ser da Igreja –
podemos observar que ela se guiou, sucessivamente, por três lógicas distintas:
a teo-lógica, a antropo-lógica e a eco-lógica. Não que a lógica de uma
determinada fase esteja inteiramente excluída das outras. Elas se mesclam, mas
o foco central da cosmovisão na primeira fase é Deus ou as divindades, na
segunda é o próprio ser humano, em especial a razão humana, e na terceira é “o
todo da criação”.
As
três fontes da ação pastoral
A Pastoral, como ação concreta da Igreja,
não surge do nada. Ela se alimenta, basicamente, de três fontes, todas elas
interligadas. Uma primeira fonte é a cosmovisão da época, e esta é básica como
já assinalamos.
Uma segunda fonte é a espiritualidade.
Nenhuma pessoa deixa de tê-la, ainda que seja a mais convicta dos ateus. Toda
cosmovisão desperta, no mais íntimo das pessoas, algumas convicções
fundamentais tidas como sagradas e inegociáveis. Ninguém deixa de ter seu
pequeno “sacrário pessoal” a partir do qual constrói seus valores e seus
julgamentos acerca do bem e do mal. Julgar e valorizar adequadamente esta
espiritualidade nos parece da maior importância para reorientar nossa ação
pastoral.
Uma terceira fonte que influi fortemente
sobre a ação da Igreja é a perspectiva política. Tanto a cosmovisão que as
pessoas têm quanto a espiritualidade que elas adotam definem em boa medida a
sua visão de futuro. É inerente ao próprio ser humano buscar um futuro melhor.
Ainda neste artigo veremos que esta busca por uma melhor qualidade de vida não
é nem sequer monopólio do ser humano, pois trata-se de uma qualidade intrínseca
à própria vida. Especialmente nas religiões monoteístas, a profunda crença
humana num futuro melhor a ser conquistado desenvolveu um poderoso profetismo,
sempre pronto a superar barreiras históricas e apontar para novos horizontes.
Jesus, a seu modo, e numa linguagem adaptada à sua época, falou do Reino de
Deus sempre presente e sempre a conquistar. A Teologia da Libertação, do lado
de cá dos grandes oceanos, e a Teologia Política do lado de lá, gastaram rios
de tinta para ressaltar, numa linguagem mais adaptada ao mundo secularizado, o
compromisso político de cada cristão e cada cristã. É simplesmente impossível
readequar a ação pastoral da Igreja sem levar em conta esta perspectiva
política tão essencial ao próprio cristianismo.
Sobre
pastoral e caixa de marimbondo
Falar de pastoral é um empreendimento
arriscado. Na verdade significa colocar a mão numa caixa de marimbondo. As
pessoas aceitam mais facilmente mudar de idéia do que mudar de prática,
especialmente quando esta prática tem a ver com o sacrário pessoal acima já
lembrado. Não é raro encontrarmos pessoas com idéias novas e práticas antigas.
Não é impossível a teologia renovar-se durante décadas e a prática pastoral,
assim mesmo, temporariamente, dar marcha à ré. Não que seja possível impedir o
avanço da história, mas é preciso compreender que a ação pastoral concreta tem
a ver com raízes culturais profundas que – exatamente por causa de sua
preciosidade – custam a mudar. Algumas mudanças podem levar décadas, outras
levarão séculos ou até milênios. Mais adiante veremos um pouco melhor por quê
isto acontece.
Neste primeiro artigo, por falta de
espaço, não vamos poder entrar muito no campo prático da ação pastoral.
Esperamos fazê-lo com muito carinho em possíveis artigos posteriores. Antes
disto é indispensável termos uma imagem mais nítida da cosmovisão ecológica que
hoje vem se impondo com força crescente. Isto, por sua vez, não é possível sem
confrontá-la com as cosmovisões teológica e antropológica que, em parte, ainda
nos dominam e que, em certo sentido, estão sendo atropeladas por ela. Vejamos
isto mais de perto.
I
A COSMOVISÃO TEOLÓGICA
1.1
Como entendê-la?
Podemos definir a cosmovisão teológica
como “a concepção onde Deus, ou o mundo das divindades, é a explicação de todas
as coisas e de todos os eventos”. Deus não está apenas na origem da matéria,
mas permeia a matéria e, de uma maneira ou de outra, é este mundo do sagrado
que determina a sorte e o destino do ser humano. Como nada escapa a este modo
de pensar podemos dizer que, dentro desta cosmovisão, a única lógica que existe
é a lógica teológica.
1.2
A longa fase da teo-lógica
A cosmovisão teológica é comum a quase
todas as culturas humanas não ou pouco escolarizadas. Ela acompanha o homo sapiens desde a sua origem há mais
de cem mil anos. Vemo-la claramente presente quando se desenvolve, no nosso
mundo ocidental, a tradição filosófica grega, seis séculos antes de Cristo.
Especialmente na assim chamada “fase pré-Socrática”, o mundo material é visto
como que impregnado de forças espirituais.
Com os filósofos gregos pós-Socráticos,
esta mesma concepção teológica adquire uma feição inteiramente nova e surge uma
separação radical entre o mundo do sagrado e o mundo do profano. O mundo do
sagrado não é material, mas espiritual. É o mundo da perfeição, indivisível,
eterno, indeterminado. O mundo do profano é o mundo material, imperfeito,
corruptível, divisível, passageiro e determinado. O ser humano passa a ser
definido como um “ser racional” com a razão fazendo parte do mundo espiritual.
Assim como as esferas celestes governam sobre as esferas terrestres, assim
também uma alma imortal governa agora sobre um corpo mortal. Por sua condição
divina, a razão humana será idolatrada pelos gregos e apenas uma minoria com
suficiente liberdade para cultivá-la fará parte da tão propalada, mas
falsamente denominada, democracia dos “cidadãos de Atenas”.
Esta teo-lógica criará raízes imensamente
profundas no cristianismo, particularmente no cristianismo ocidental. Jesus,
provavelmente, não teve contato com a filosofia grega, mas nem por isso sua
proposta é menos teo-lógica. Em oposição à interpretação legalista, sacrificial
/ sacerdotal, muito forte no judaísmo de sua época, Jesus reassume a experiência
religiosa original dos judeus, a linha profética onde reina, efetivamente, o
Deus da libertação e da justiça, o Deus-Javé dos pobres que “vê a opressão de
seu povo” (Ex 3,7). Um Reino apenas
realizável através da prática incondicional de um “amor samaritano” que supera
qualquer barreira religiosa, institucional, étnica ou de classes.
As primeiras comunidades cristãs –
especialmente depois de sua expulsão das sinagogas – codificam a mensagem e o
movimento de Jesus numa linguagem neotestamentária que, forçosamente, mistura a
herança judaica com o ideário greco-romano. À grande pergunta de sempre: “Quem
era este Jesus?”, os Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451) respondem
dando destaque à divindade em Éfeso, e à humanidade, em Calcedônia. A linguagem
típica da filosofia grega – abstrata, essencialista, universalista e dogmática
– aí se impõe claramente e o Jesus real da história fica na penumbra. Surgem
duas naturezas numa única pessoa, uma divina e outra humana, uma dualidade
estranha que a teologia, por mais importante que tenha sido na época, levará
quase dois mil anos para superar.
Na segunda fase do cristianismo, a
prática cristã é profundamente marcada por Santo Agostinho (†430). Unindo a
teo-lógica grega com a proposta jesuânica do Reino de Deus enxerga a “Cidade de
Deus” governando sobre a “Cidade dos Homens”. Na Cidade dos Homens vive um ser
humano “decaído”, uma vez que o pecado de Adão é transmitido hereditariamente
de geração em geração. Esta idéia de um pecado original hereditário e de um ser
humano decaído, material e corruptível, recuperável apenas pela graça do
batismo que lhe devolve uma alma redimida, não-material, destinada à Cidade de
Deus, irá impregnar amplamente a linguagem, a espiritualidade e o imaginário
cristão até os nossos dias. Jesus, sem dúvida, partilhava a esperança
messiânica na vinda do Reino, mas jamais o viu ou definiu nesta forma
radicalmente dualista da filosofia grega.
A invasão bárbara pôs fim a um império
romano já em fase de decomposição. No tumulto generalizado, as glórias do
império se reduzem a ruínas e apagam-se também as luzes da filosofia grega. Não
sobram nem sequer os poucos textos escritos. Sobrevive, como instituição mais
forte, a Igreja. Do império – após séculos de apoio público – herda sua
estrutura organizativa e legislativa, dos gregos seu amor à doutrina e ao
dogma. Não ganha a batalha política. Apesar das tentativas de fazer valer uma
certa “teologia das duas espadas” e conquistar territórios para Deus,
politicamente são os príncipes e reis que acabam dominando sobre a Igreja. Mas,
em oposição, a Igreja ganha a batalha espiritual: a força da espiritualidade
cristã consegue absorver e seduzir as tradições religiosas dos povos bárbaros e
surgirá a irresistível síntese da cristandade medieval. Com ela a teo-lógica
chega a seu auge. Na cosmovisão medieval apenas Deus tem importância. A vida na
terra, profana e corruptível, é uma mera passagem para o que realmente
interessa: a vida após a morte. Com base nesta profunda e onipresente
religiosidade popular com sua valorização extrema do transcendente, a
Igreja-Instituição consegue, politicamente, dar a volta por cima. A Idade Média
termina com os papas dando as cartas no mundo ocidental.
II
A COSMOVISÃO ANTROPOLÓGICA
2.1
Como entendê-la?
A antropo-lógica toma o lugar da
teo-lógica quando o próprio ser humano, em especial a razão humana, se
transforma no argumento central do crer e do agir. Deus, regra geral, não é
negado nem descartado. É simplesmente posto de lado. Não é mais a causa
explicativa de todas as coisas e de todos os eventos. A partir desta nova
lógica, o ser humano com sua racionalidade será sempre ponto de partida e ponto
de chegada.
2.2
A antropo-lógica da modernidade
Apesar do apagão filosófico no Ocidente,
a civilização grega deixou uma herança significativa. O culto grego à razão
funcionou de fato como uma espécie de bomba de efeito retardado. Quando,
lentamente, se fortalece a nova economia dos artesãos, com um forte empurrão a
partir dos mosteiros, e o ainda esfacelado continente europeu se cobre de
pequenas cidades, com relações comerciais se estendendo cada vez mais, os
escritos gregos são redescobertos e avidamente digeridos. São os monges que os
copiam, inicialmente, aproveitando um rico legado árabe. Não levará muito tempo
e Santo Tomás de Aquino (†1274) dará à luz sua Suma Teológica, uma síntese
entre a fé cristã e a razão Aristotélica. Para Santo Tomás – e sua fides et ratio, ou “crer com a razão” –
a ciência não substitui a fé, mas apenas a justifica e a torna mais crível.
Dentro dos limites eclesiásticos esta “Teologia Escolástica” será, por séculos,
a norma básica para todos os ministros da Igreja. Fora destes limites, porém, a
razão toma outro rumo. Com o estabelecimento dos estados soberanos, suas
recém-criadas universidades adquirem autonomia crescente. Lenta mas
inexoravelmente, para a ciência, a fé deixará de ser argumento de validação.
O que caracteriza a modernidade é a
antropo-lógica. A teologia atual costuma lembrar a grande “virada Copernicana”.
Quando Copérnico (†1543) e depois Galilei (†1642) demonstraram que a Terra não
era o centro do cosmos – como se defendia desde o grego Ptolemeu -, mas apenas
um humilde planeta girando em torno de um magnífico sol, a cosmovisão da época,
de fato, começou a mudar. A incipiente ciência ocidental abriu uma primeira
grande brecha nas verdades da Igreja, tidas como absolutas, não apenas por
causa da fé inquestionável num Deus Criador do céu e da terra, mas também por
causa da fé inconteste no Deus da Revelação, uma vez que a Bíblia atestava com
todas as letras que Josué “fez o sol parar sobre Gabaon” (Js 10,13).
O que caracteriza a modernidade, desde
seu início no Séc. XVI, é a fé na ciência. Galileu Galilei não renegou a fé
cristã, mas, duramente perseguido pela Igreja, morreu acreditando que o ser
humano erra, a matemática não. Francis Bacon (†1626) acreditava que o ser
humano, através do método indutivo, da experimentação, podia alcançar uma
compreensão generalizada da natureza. A grandeza humana estaria completa com a
total escravização da mesma. René Descartes (†1650) viu a realidade como o
grande império das causalidades, governadas por leis matemáticas perfeitas. De
acordo com seu “dualismo metafísico radical” apenas a razão humana – por seu
caráter imaterial – poderia compreender, objetivamente, toda realidade,
principalmente dividindo e subdividindo-a em partes para assim, pelo método
analítico-dedutivo, chegar à compreensão da totalidade. Desde o Renascimento
até o pleno desabrochar do Iluminismo, a ciência fará, em todos os campos do
saber, avanços considerados inimagináveis. Isaac Newton (†1727) fará a grande
síntese, tornando-se um semi-deus nos grandes centros da intelectualidade
ocidental, e esta vai tomando de roldão também outros continentes, culturas e
corações.
Newton “comprovará” que o espaço é
absoluto e imóvel e que também o tempo é absoluto, fluindo infinita e
autonomamente. “Mostrará” que toda a matéria, em última análise, é feita de pequenos
átomos que interagem pela lei da gravidade. Dirá, em fim, que todo o universo é
como uma máquina ou um relógio cujas peças se encaixam perfeitamente, governado
por leis causais determinadas e inteligíveis. Tudo o que segue é conseqüência.
Auguste Comte (†1857) cria uma “sociologia científica” dando luz ao
positivismo. Darwin (†1882) temendo a reação da Igreja, titubeou muito antes de
publicar sua teoria da evolução, mas seu amor à ciência venceu. Karl Marx
(†1883) se debruça sobre os modos de produção, a economia humana, propondo um
“materialismo científico”. Freud (†1939) tentará submeter também a psicologia
aos novos parâmetros científicos, e assim por diante. Em todos os campos do
saber a verdade ou é científica ou não é. Quem quiser crer, que creia. Quem
quiser conhecer a realidade, que pesquise. Na antropo-lógica da modernidade, a
razão humana é o critério último do saber e do agir.
III
A COSMOVISÃO ECOLÓGICA
3.1
Como entendê-la?
Na cosmovisão ecológica, o critério
último do saber e do agir não é Deus, como na cosmovisão teológica, nem é a
razão humana, como na cosmovisão antropológica. Simplificando ao máximo
poderíamos dizer que, na cosmovisão ecológica, o critério último do saber e do
agir é “o todo” da criação ou – deixando a fé de lado – “o todo” da realidade. Na
realidade reina uma espécie de “lei da coerência”. No mundo que nos envolve, da
mais distante estrela ao que está mais próximo de nós, tudo está interligado e
tudo depende de tudo. Não é a soma das partes que explica o todo da realidade,
mas é o todo da realidade que explica ou dá significado às partes.
3.2
A eco-lógica de uma nova cosmovisão
O Séc. XX representou o lento desmonte da
cosmovisão antropológica e a montagem concomitante de uma nova cosmovisão ainda
em ascensão, a ecológica. Exatamente no ano 1900, o físico Max Planck (†1947),
estudando o comportamento dos elétrons em volta do núcleo do átomo, constatou
os “saltos quânticos”: recebendo ou cedendo energia, os elétrons, com total
desprezo pelos níveis intermediários, invariavelmente, “pulam” de uma órbita a
outra seguindo um determinado “quantum”. Nasceu assim a física quântica que
jogaria por terra inúmeras das tradicionais certezas científicas. Esperamos
poder demonstrar, em outra oportunidade, o quanto a física quântica é
importante para a abertura de novas perspectivas pastorais.
Igualmente importantes, no sentido de
exigir uma reorganização pastoral, foram os enormes avanços do século passado
na área da biologia evolutiva, molecular e genética. Na metade do século, os
Prêmios Nobel de 1962 James Watson e Francis Crick (†2004) espantaram o mundo
com o que afirmavam ser o “Dogma Central” da Vida, a lindíssima dupla hélice de
ácido ribonucléico (DNA), composta de genes que contêm o segredo da vida: os
genes produzem as enzimas, as quais, por sua vez, produzem as proteínas que,
por sua vez, garantem o funcionamento da vida celular de todo e qualquer
organismo vivo. Brincavam os biólogos entre si, dizendo: “o DNA faz o RNA, o
RNA faz as proteínas e as proteínas fazem a gente”. Posteriormente se veria que
esta visão determinista de uma cadeia causal linear, própria da época, haveria
de ser revista, mas o grande susto estava dado. Os dados do laboratório eram
suficientemente robustos para definitivamente banir um dos mais arraigados
dogmas religiosos. Para as pessoas bem informadas, manter a fé num Deus que, a
cada momento, cria a vida humana com alma imortal tornou-se cada vez mais
difícil.
Um terceiro avanço científico que veio
desafiar profundamente nossa ação pastoral é o da consciência humana. Veremos
logo mais o quanto ela tem a ver com a lógica da cosmovisão ecológica que,
sorrateiramente, vem se impondo. São estas, a nosso ver, as três áreas das
ciências naturais que mais nos obrigam a repensar a ação pastoral. A teologia
atual faz uso crescente destes fundamentos mais “antropológicos”, mas quase
sempre o faz para melhor equacionar o nosso modo de pensar e não o nosso modo
de agir. Abrir perspectivas pastorais é o nosso objetivo. Finalizada esta
introdução ao tema, é delas que iremos falar mais. Olhemos, por ora, mais
atentamente para cada uma destas três áreas.
A) A mensagem surpreendente da física
quântica
Quem nunca se debruçou seriamente sobre a
profunda mudança que ocorreu no campo da física, passando da concepção mecânico-clássica
para a nova concepção quântica, seguramente terá dificuldade em compreender e
aceitar o processo evolutivo que ocorre tanto no pensar filosófico-teológico
quanto nas ciências naturais.3 Uma primeira surpresa que a física
quântica nos traz é que algo pode ser e não ser ao mesmo tempo. Para a
concepção mecânica de Isaac Newton, solidamente ancorada na tradição grega,
todas as coisas, na sua essência, são sempre iguais. A concepção é
“ontológica”, quer dizer, uma pedra, planta ou ser humano serão sempre pedra,
planta ou ser humano. Podem variar muito as aparências, mas é só abstrair-se
delas e aparecerá, universalmente, a mesma essência. Já dissemos acima que a
linguagem da filosofia grega é abstrata, essencialista, universalista e
dogmática. Mas o físico dinamarquês Niels Bohr (†1962), ganhador do Prêmio
Nobel da Física, em 1922, por seus esclarecimentos sobre a estrutura do átomo,
afirmará que, no nível subatômico, reina o “princípio da complementaridade”,
quer dizer, a matéria, em última instância, é, ao mesmo tempo, onda e
partícula, mas apenas a junção destas duas formas de ser definirá o que a
matéria realmente é. Werner Heisenbreg (†1976), ganhador do Prêmio Nobel da
Física, em 1923, explicitará que, além do princípio da complementaridade,
existe também o “princípio da incerteza”, isto é, a impossibilidade de observar
a onda e a partícula ao mesmo tempo. Ou se observará a exata posição da
partícula ou o exato “momentum” da onda, mas nunca os dois simultaneamente.
Observar a dualidade escapa a qualquer medição ou observação. Talvez mais
desafiador ainda para nossas arraigadas concepções mecânicas é o “princípio da
não-localidade” ressaltado por David Bohm (†1992): as partículas atômicas –
particularmente no seu estado-onda – relacionam-se mutuamente sem obedecer a
critérios de espaço e de tempo. Como ficou comprovado muitas vezes, um par
correlato de fótons – fótons são partículas de luz -, executa,
instantaneamente, uma autêntica “dança sincronizada”, independentemente de sua
distância espacial, seja esta de poucos centímetros ou de diversas galáxias.
A mecânica do mundo físico, dizia Newton,
é “determinada”. Tudo está relacionado à lei de causa e efeito. Na mecânica do
mundo microfísico, dizem os físicos quânticos, nada é determinado. Tudo é apenas
“probabilidade”. O elétron, antes de mudar de órbita, por assim dizer sonda ou “visita”,
ao mesmo tempo, uma infinidade de possibilidades – as chamadas “transições
virtuais” -, sendo sua transição real apenas uma probabilidade. Embora uma
probabilidade seja maior que a outra, não há nada que determine a transição
real. Mudando de posição, o elétron também não desliza pelo espaço, como
imaginamos. Não é um movimento mecânico. É como se espaço e tempo não existissem.
Nem sequer podemos atribuir ao elétron uma espécie de individualidade desligada
de seu contexto. Os “indivíduos” quânticos se comportam sempre como
relacionados a um todo maior e suas existências “individuais” ganham definição
e sentido apenas através de sua relação com este todo.
Não basta “tomar conhecimento” da física
quântica. É preciso interiorizá-la na nossa mente, ou melhor, “meditá-la” no
nosso coração. Sem isto é inútil pensar em novas perspectivas pastorais. Se a
lógica da cosmovisão ecológica consiste basicamente na percepção das
interrelações dentro do todo e da coerência interna do sistema, não há nada
mais eco-lógico do que as realidades quânticas. Infelizmente nosso olhar não
capta a dimensão microfísica da matéria. Mas ela é maravilhosa e, em certo
sentido, está cheia de vida. Veremos em outra oportunidade o quanto o caminho
concreto da nossa espiritualidade cristã nos despreparou para perceber os
sinais do tempo escondidos na natureza. A matéria, muito além de “coisa morta”,
é fonte da própria vida, como iremos ver logo mais, e isto levantará pistas
pastorais ainda mais promissoras.
B) A Teia da Vida
O mais fervoroso militante do ateísmo, na
atualidade, é Richard Dawkins.4 Neste momento ele se ocupa colocando
cartazes nos metrôs e ônibus de Londres, afirmando: “Deus, provavelmente, não
existe”. Sendo um dos mais destacados especialistas mundiais em teoria da
evolução considera um absurdo e um desserviço à ciência continuar acreditando
num Deus Criador.5 Critica asperamente as verdades absolutas da
Igreja e coloca no lugar as verdades absolutas da ciência. A inclusão nos
cartazes da palavra “provavelmente” se deve ao fato de ele reconhecer que a
inexistência de Deus, na verdade, também não pode ser provada. O papa João
Paulo II, em 1996, deu aval à teoria Darwiniana da seleção natural, mas isso
não significa que, para Roma, a questão é tranqüila. Existe um debate mundial.
Muitas escolas americanas – especialmente do lado evangélico - fazem questão de
introduzir nos livros didáticos o “criacionismo”, muito próximo de uma interpretação
literal da Bíblia. Em geral, porém, as lideranças das Igrejas Cristãs
absorveram o evolucionismo, ainda que o povo cristão fique com certo “pé
atrás”.
Hoje, falar de evolucionismo é algo
muito mais abrangente – e muito mais profundo – do que no tempo de Charles
Darwin. O que Darwin expôs em seu livro Sobre
a origem das espécies (1859) é que a vida na Terra evoluiu lentamente por
“mutações ao acaso” ou, como se dirá depois, por “mutações aleatórias”,
sobrevivendo aquelas espécies que são mais adaptadas ao meio ambiente,
portanto, através de “seleção natural”. Posteriormente, com a descoberta da
estabilidade das “unidades de hereditariedade”, pelo monge botânico Gregor
Mendel (†1884), e o nascimento da ciência “genética”, palavra cunhada pelo
biólogo William Bateson (†1926) no início do Séc. XX, o mecanismo da
transmissão genética de pais para filhos foi melhor elucidado e é este
“neodarwinismo” que ainda predomina nas escolas e nas mentes da população em
geral. Infelizmente o imaginário popular – e o de muitos agentes de pastoral –
ficou muito preso à idéia tradicional que “o homem não foi criado por Deus, mas
veio do macaco”. A nova concepção ecológica supera em muito a estreiteza desta
visão.
Da mesma forma como a microfísica revelou
o lado quântico da matéria, inteiramente surpreendente para quem apenas contava
com as leis da macrofísica dedutíveis da observação comum, também a
microbiologia das últimas décadas revelou surpresas inimagináveis sobre o que é
“Vida”, com conseqüências importantíssimas para a ação pastoral da Igreja. Por
sua vital importância gostaríamos de dar a este ponto um destaque maior. Em
primeiro lugar consolidou-se um consenso: a vida não é fruto de um “momento
sobrenatural”, de intervenção divina, mas de um “processo natural” onde, como
na microfísica da qual nasceu, tudo é interrelacionado e interdependente . A
natureza da nossa casa comum, a “oikos-Terra” é radicalmente comunitária.
Impõe-se a eco-lógica. Tudo que tem vida sobre a Terra tem a mesma origem, a mesma
“alma” e o mesmo destino: cooperar para maior plenitude. Talvez não na direção
“crística” imaginada por Teilhard de Chardin (†1955). A maioria dos cientistas
parece colocar-se contra esta posição teleológica que vê a evolução da vida
obedecendo a um determinado “propósito”, possivelmente divino. Mas a vida
manifesta a inegável tendência para uma complexidade crescente, com
criatividade espantosa.
Quem hoje se preocupa com a pastoral não
deveria deixar de meditar freqüentemente sobre o imponente “metabolismo da
célula”, seja ela do reino animal seja do reino das plantas, dos fungos, dos
protistas ou das bactérias.6 É preciso colocar a célula debaixo do
microscópio eletrônico e, simplesmente,
contemplar. Ainda em 2009 os cientistas Ada Yonath, Venkatraman Ramakrishnan e
Thomaz Steitz ganharam o Prêmio Nobel da Bioquímica por esclarecer melhor a estrutura
e o funcionamento dos ribossomos que são as “fábricas de proteínas” das
células. O código genético do DNA constitui o grande “livro de instruções” que
diz quais as proteínas que os ribossomos – são aproximadamente 500.000 em cada
célula! – devem fabricar. Em cada cordão da escadinha enrolada do DNA há um
encadeamento alternado de moléculas de fosfato e de açúcar. As barras
transversais ligam as moléculas de açúcar de um lado a outro. Cada lado das
barras transversais é feito de uma substância específica: se um lado é de uma
molécula de timina, o outro é de adenina, ou então, se um lado é de guanina, o
outro é de citosina. São como as quatro “letras” do livro de instruções ou do
alfabeto genético.
O segredo do cofre está na combinação das
milhares de barras que têm seqüências tão variadas quanto os indivíduos. O DNA
produz a molécula do “RNA-Mensageiro”, que é chamado assim porque leva as instruções
do livro até os ribossomos. Um tipo de RNA, chamado o “RNA-Transportador” –
esta a contribuição dos cientistas acima mencionados – capta os aminoácidos
presentes no citoplasma ou líquido da célula e, dentro do ribossomo, se encaixa
ao RNA-Mensageiro liberando o aminoácido que carregava. Um repertório de apenas
cerca de vinte aminoácidos, ligados em cadeias que variam de algumas dezenas a
várias centenas, compõem, desta forma, as proteínas de todos os organismos
conhecidos na Terra. Determinada seqüência nucleotídica do código genético vai
traduzir-se na mesma seqüência de aminoácidos. A seqüência de aminoácidos vai
determinar a forma da proteína, e a forma da proteína determina a sua função.
As diversas funções, em seu conjunto, formarão o órgão e os órgãos,
interconectados, constituirão, finalmente, o organismo vivo.
O metabolismo da célula não se limita, no
entanto, à inter-relação entre o código genético e os ribossomos. Dentro do
próprio núcleo existe um outro “mini-núcleo” onde os ribossomos são fabricados,
e dentro do fluido celular existem outras organelas, todas elas interligadas e
igualmente indispensáveis à manutenção da vida. Uma delas é a “mitocôndria” ou
“casa de força”. Ela realiza a respiração celular, usando a energia proveniente
do oxigênio para quebrar as moléculas de açúcar e, desta forma, produzir as
importantíssimas moléculas de adenosinatrifosfato (ATP), os “transportadores de
energia” que possibilitam todas as funções do metabolismo celular. As
indispensáveis moléculas de açúcar são produzidas em mais outra organela, o
“cloroplasto”, também conhecido como “usina solar” por captar a energia da luz
solar para, com ajuda do dióxido de carbono do ar e a água da terra, formar
açúcares, devolvendo para o ar o precioso oxigênio. Trata-se do conhecido
processo da “fotossíntese” onde energia solar é transformada em energia
química, algo vital para praticamente todas as formas de vida no planeta Terra.
Pelo fato de os cloroplastos – de cor verde – existirem apenas nas células
vegetais e não nas do nosso reino animal temos aí o elo de ligação que nos une
ao mundo verde. Ou o protegemos, ou são nulas as nossas chances de sobrevivência.
Por fim encontramos no citoplasma ainda as organelas dos “complexos de Golgi”
ou “bolsas de armazenamento” onde os diversos produtos celulares são
armazenados e acondicionados antes de serem enviados aos seus destinatários, e
ainda, vejam só, as “usinas de reciclagem” onde enzimas especializadas tratam
dos componentes celulares danificados ou não-usados, reciclando-os para novas
utilidades.
Os importantes avanços na área da
bioquímica demonstraram que, da mesma forma como no microscosmos da matéria, no
átomo, tudo é interdependente e interrelacionado, também na célula, no
microcosmos da vida, tudo está interligado. O padrão de rede é onipresente. A
conseqüência pastoral é incontornável. Descartes nos desculpe, mas para
conhecer a totalidade não basta conhecer as partes. Mais importante do que
observar a parte é perceber o todo da “teia da vida”. Separando uma parte, ela
morre.
Por muito tempo as pessoas de boa fé se
perguntaram: se a vida é fruto de evolução, como explicar o início da vida se a
mais simples bactéria mostra uma complexidade celular tão impressionante? Se a
evolução existe, não é Deus, assim mesmo, em última instância, o autor da vida?
Pergunta mais do que justa. Mas com razão a teologia atual desconfia do “Deus
das lacunas”. Deus é uma questão de fé, não de ciência. Na concepção teo-lógica
Deus intervém a cada momento no curso da história e na vida das pessoas. Na
concepção antropo-lógica Deus é posto de lado. Na concepção eco-lógica Deus
pode voltar – muitos assim pensam, com boas doses de razão -, mas não para
preencher as lacunas da ciência. Gostaríamos de voltar a este assunto numa próxima
oportunidade quando analisaremos a íntima ligação entre pastoral e
espiritualidade.
As etapas da evolução são, ao mesmo
tempo, simples e maravilhosamente complexas. O mais complexo sempre surge do
mais simples. A etapa mais conhecida, mas menos instrutiva, é a última, a do
reino animal ao qual pertencemos. Somos – dizemos com orgulho, mas não sem uma
pitada de arrogância – da “espécie” sapiens que surgiu recentissimamente, há
pouco mais de 100.000 anos, ramo descendente do “gênero” homo que surgiu há
500.000 anos e que, por sua vez, se originou da “família” dos hominídeos, os
macacos-homens ou homens-macacos que habitavam a Terra há mais de 4.000.000 de
anos. Estes, porém, seguramente, foram descendentes da “ordem” dos primatas que
surgiu 60.000.000 de anos atrás, após a extinção dos dinossauros, e que, por
sua vez, evoluiu da “classe” dos mamíferos, 200.000.000 de anos atrás. Em cada
etapa os seres vivos apresentam suas características próprias, mas mantendo a
estrutura básica herdada dos antepassados. A classe dos mamíferos nasceu do
“filo” dos cordados, que surgiu há 450.000.000 de anos, já apresentando um tubo
nervoso central com cérebro inicial, e este, finalmente, evoluiu do “reino”
animal que se iniciou, no fundo dos oceanos, há 750.000.000 de anos a partir de
uma pequena “blástula”, o primeiro conjunto multicelular engenhosamente
interconectado. Para conhecê-lo melhor basta olhar o nosso próprio corpo.
A belíssima aventura da vida, no entanto,
tem etapas muito mais brilhantes. Em primeiro lugar o próprio nascimento da
mesma. Colocando qualquer célula viva debaixo da lupa de Copérnico, hoje
aperfeiçoada ao extremo, veremos que ela é, em 99% do nosso corpo seco, uma
composição imensamente variada de apenas seis humildes átomos: carbono, hidrogênio,
nitrogênio, oxigênio, fósforo e enxofre. Já foi dito por alguns que existe um “caso
de amor” na própria matéria e na origem da vida. As quatro grandes forças
cósmicas conhecidas, a nuclear forte e a fraca, a eletromagnética e a
gravitacional, são forças que se equilibram através da dinâmica fundamental de
atração e rejeição. Os átomos, especialmente pela força eletromagnética, se
atraem mutuamente, mas não de forma aleatória. Há preferências, pois as cargas
elétricas são diferentes. Uma molécula é um “casamento” entre átomos que se dão
bem. Lendo, ou melhor, meditando o livro Beginnings
of cellular life, de Harold Morowitz, talvez o maior especialista mundial
na bioquímica da vida, podemos perceber como as abundantes e variadas moléculas
da assim chamada “sopa química” dos primeiros oceanos, quatro bilhões de anos
atrás, deram início à aventura da vida.7
Na década setenta do século passado, o
Prêmio Nobel de Química, Ilya Prigogine (†2003), já demonstrou com seus famosos
experimentos dos “relógios químicos” que, na química da vida, existe uma lei
contrária à lei da entropia que caracteriza o mundo material inorgânico. Em seu
inesquecível livro Order out of chaos
demonstrou que os sistemas vivos são sistemas abertos, de “estrutura
dissipativa”, quer dizer, na medida em que o meio ambiente lhes garante um
fluxo permanente de energia, o sistema não tende para a desordem, mas para o
seu contrário, uma ordem crescente.8 Num determinado momento de
acúmulo de energia pode surgir – como nos relógios químicos – um “ponto de
bifurcação” onde a vida “pula” para um nível de maior complexidade.
Na mesma década, outro Prêmio Nobel de
Química, em 1967, o biofísico Manfred Eigen, do Instituto Max Planck, de
Göttingen, demonstrou que, na fase pré-biológica da vida, devem ter surgido
inúmeros “ciclos catalíticos”, por sua vez dando origem a “hiperciclos”, uma
vez que esta é uma reação natural das substâncias químicas presentes na
natureza – e facilmente observáveis em laboratório. Algumas destas substâncias “catalisam” ou aceleram determinadas reações
químicas e, na presença de um fluxo constante de energia, as sustentam. Sabemos
hoje que são exatamente as enzimas produzidas pelos ribossomos que aceleram a
formação das proteínas e assim sustentam todo o metabolismo da célula. Harold
Morowitz ainda insiste na importância das onipresentes membranas das células,
formadas, desde o início da vida pré-biótica, a partir das moléculas de
lipídio, algo parecido com o que ocorre quando jogamos uma gota de óleo na água.
A membrana, sempre permeável, possibilita a dinâmica entre o campo interno e
externo da célula, com um fluxo de energia entrando e saindo, como visualizado
nas estruturas dissipativas de Prigogine.
As forças amorosas da natureza, formando
ciclos químicos crescentemente complexos, em algum momento, ou mais
provavelmente em muitos momentos diversos, deram origem ao primeiro esboço de
uma célula auto-replicativa, carregando dentro de si o filete inicial de um
código genético muito simples. Aí a sinfonia da vida começou. Não há nenhuma
dúvida sobre isso na ciência. Até hoje todas as células vivas do planeta Terra
têm como característica principal sua capacidade de “auto-organização”. Pode-se
dizer que a vida “é”
auto-organização. A célula, desde que recebendo energia do ambiente,
simplesmente se produz e se organiza a si mesma, inclusive com capacidade de
tirar cópia de si mesma com extrema fidelidade. Sendo um processo natural – e
não sobrenatural – supõe-se que a vida surgirá onde houver condições ambientais
adequadas. Se no planeta Terra, há quatro bilhões de anos, as condições
ambientais ainda não permitiam o surgimento da vida, existe um consenso
científico crescente que, há 3.8 bilhões de anos atrás, a vida já estava
presente dando então início ao “reino das bactérias”.
Fomos educados com grande desprezo pelas
bactérias, mas, novamente, é preciso meditar, por exemplo, os livros da
mundialmente reconhecida microbióloga Lynn Margulis para nos convencer do
equívoco. Elas formaram – e ainda formam – a base da atual atmosfera e biota
terrestres e nenhum ser vivo sobrevive sem elas. Em seu livro Microcosmos nos apresenta um
impressionante panorama dos quatro bilhões de anos de evolução microbiana9
e em Symbiotic Planet expõe os
surpreendentes avanços na concepção de evolução.10 Desde muito cedo
as bactérias aprenderam a conviver com um meio ambiente em constante
transformação. Algumas espécies se auto-copiam – por simples processo de
divisão chamado “mitose” - a cada vinte minutos, podendo, em princípio,
conforme o cálculo geométrico, cobrir a face da terra em 48 horas. No processo
de adaptação e diversificação desenvolveram quase todas as “tecnologias” que,
até hoje, sustentam a nossa sobrevivência biológica: a fermentação, que
converte açúcares ou carboidratos em energia, a fotossíntese, que transforma
luz e ar em alimento, a respiração de oxigênio, principal fonte de energia do
mundo biológico, a fixação do nitrogênio, indispensável a qualquer organismo, e
ainda a motilidade que ajuda a vida a fugir do “mal” e buscar o “bem”.
Com grande facilidade as bactérias podem
simplesmente “transferir” parte do seu material genético, partilhando um “pool
genético” de grande capacidade evolutiva. A seleção natural não é, portanto, o
único processo evolutivo. Além desta “transferência genética” mencionada, outro
importante mecanismo de evolução melhor elucidado por Lynn Margulis é a chamada
“simbiogênese”. Foi um processo de simbiose – uma fusão não nuclear, mas
biológica – que uniu, talvez forçadas pela fome, bactérias fermentadoras com
bactérias fotossintetizantes, aeróbias e “flageladas”. Ainda hoje os
espermatozóides mostram a fantástica utilidade destes antigos flagelos ou
chicotes. Há um bilhão e meio de anos, meio de repente, após longo processo de
evolução nas bactérias, aparecem – como que num “salto evolutivo” – os
“eucariontes”, as células com núcleo, já, simbioticamente, dotadas também de
mitocôndrias e cloroplastos, as antigas bactérias, dando início ao novo e até
hoje existente “reino dos protistas”, os eucariontes unicelulares. Aprendendo
desde cedo que a cooperação rende mais que a competição, os eucariontes
unicelulares evoluem para eucariontes multicelulares, dando origem, há um
bilhão de anos apenas, às algas e ao plâncton do mar. São estas algas, as
verdes, que, há 460.000.000 de anos, conquistaram a terra e deram origem ao
“reino das plantas”, muito provavelmente em união simbiótica com os fungos, uma
vez que 95% das plantas terrestres abrigam em suas raízes fungos simbióticos.
Trinta e cinco milhões de anos após a conquista da terra pelas plantas, os
primeiros animais anfíbios surgirão do mar e seguiram o caminho das plantas. O
prato estava feito. Já vimos como, na eco-lógica, tudo depende de tudo e tudo
coopera com tudo.
C) A eco-lógica do cérebro
Não queremos olhar para o cérebro com a
preocupação clássica dos anatomistas, estudando parte por parte. Sem dúvida a
ciência não pode deixar de observar os detalhes, mas observar apenas os
detalhes é como olhar para uma árvore sem perceber a beleza da floresta. Já
vimos que a vida só persiste quando inserida numa teia ou rede. Anatomicamente,
o que mais chamou a atenção foi a divisão do cérebro em dois hemisférios. Um
lado, o da direita, mais intuitivo, mais imaginativo e mais sensível à música, à
poesia e à mística, e o outro lado, o da esquerda, mais lógico, mais analítico
e mais aberto ao cálculo, à abstração e à linguagem. Na ânsia de “localizar”
cada parte, porém, descobriu-se logo que os dois hemisférios são, na verdade,
como as duas asas do pássaro. Faltando uma, o todo é severamente prejudicado. A
abordagem neurofisiológica revelou também a presença de “camadas cerebrais”. As
grandes fases evolutivas do passado, de alguma forma, continuam presentes e
atuantes. Debaixo do nosso superdesenvolvido córtex cerebral encontramos o
telencéfalo que se desenvolveu na época dos primeiros mamíferos e onde vemos
surgir, no reino animal, os sinais iniciais da emoção.
Não podemos imaginar o cérebro desligado
do restante do sistema nervoso. De fato evoluiu a partir do sistema nervoso, concentrando-se cada vez mais na
extremidade. Quando, instintivamente, afastamos nossa mão de uma panela quente,
fazemos a mesma coisa que a primitiva minhoca já sabia fazer. No momento em que
o ansioso pescador a desenterra do chão, ela busca fugir imediatamente da luz e
do calor do sol enterrando-se novamente. Sem cérebro, mas dotado de um simples
cordão espinhal, já “sabe” o que lhe faz bem e o que lhe faz mal.
O que, especialmente sob ponto de vista
da pastoral, é mais relevante é nos perguntar: como, afinal, conseguimos pensar
e ter consciência do nosso eu? Aí somos obrigados a fazer referência à muito
respeitada “teoria de Santiago”. Já na década de setenta do século passado, os
neurobiológicos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (†2001) – com
Gregory Bateson (†1980) do lado inglês - elaboraram uma teoria da cognição que
trouxe avanços significativos.11 Um dos seus livros, A árvore do conhecimento, é árduo para
ler, mas vale a pena. Qualquer ser vivo, por mais simples que seja, está
conectado ao seu meio ambiente, mas tem apenas o seu sistema nervoso como órgão
de alerta para dizer-lhe quais as conexões benéficas ou maléficas. A nossa
conhecida água-viva das praias – sobrevivente dos mais antigos animais do
período cambriano – possui apenas algumas fibras nervosas, mas está aí
sobrevivendo, confirmando a tese. A lógica antropocêntrica de Descartes,
admitindo uma racionalidade superior com capacidade para conhecer
“objetivamente” a realidade, caiu por terra quando se comprovou que o sistema
nervoso age como um circuito circular fechado. Não há meio de conhecer o mundo
que nos envolve a não ser, e exclusivamente, por meio dos sentidos do sistema
nervoso, envolvendo raciocínio, emoção, percepção ou qualquer outra
sensibilidade. Por isso todo conhecimento é subjetivo e próprio da espécie.
Maturana e Varela irão dizer que cada ser vivo “cria o seu mundo”. O mundo dos
morcegos é feito de sons inaudíveis para nós. Com certeza a águia não vê o
mundo como nós o vemos, nem temos o faro que faz o mundo do cão.
No processo de evolução de cada espécie,
os componentes da “estrutura biológica” vão mudando lentamente, pois existe,
dizem os autores, um “acoplamento estrutural” permanente e recorrente com o
meio ambiente. O “padrão de organização” de cada ser vivo, no entanto, - no
sentido da auto-organização acima mencionada – permanece sempre o mesmo. Nosso
corpo substitui todas as suas células com uma velocidade impressionante – nossa
pele substitui 100.000 células por minuto! -, mas nossa individualidade
biológica continua a mesma. O ser vivo, afirmam, é um ser “estruturalmente
aberto, mas organizacionalmente fechado”. A mesma cognição que nos permite
“captar” e “conhecer” o mundo externo também nos permite viver. Por isso
“conhecer é viver”. Até a bactéria tem conhecimento, é um ser pensante e
vivente como nós.
Numa oportunidade futura, ao falar da
espiritualidade como importante fonte para a ação pastoral, veremos que o homem
denominado “sapiens sapiens” – alguns preferem sapiens demens! -, com ajuda de
sua nova capacidade auto-reflexiva e sua linguagem correspondente, corre sério
perigo de “iludir-se”, imaginando um mundo fictício. É preciso ler, por
exemplo, o livro New world, new mind
dos cientistas americanos Robert Ornstein e Paul Ehrlich para perceber o grande
abismo entre o que o nosso sistema nervoso nos permite conhecer e o mundo que a
nossa mente francamente libertária – “the mismatched mind” – é capaz de
fantasiar.12 Nosso sistema nervoso levou milhões de anos para
evoluir e está adaptado basicamente às necessidades do momento: onde comer,
como fugir de ameaças, como lidar com desafios grupais, etc. Não capta
facilmente os desafios de longo prazo da nossa cultura moderna: como evitar a
superpopulação, a corrida armamentista, a ameaça de uma economia globalizada ou
da poluição ambiental, etc. Por ora, porém, basta abordar um último ponto que,
mais uma vez, mostrará porque hoje vem se impondo a cosmovisão ecológica.
Em seu livro O ser quântico, a psicóloga e filósofa Danah Zohar faz uma
descrição – na direção do que talvez seja o mais consensual nesta área ainda
muito polêmica – de como o cérebro atua para formar o que chamamos de
“consciência humana”.13 De onde vem nossa clara consciência do
“eu” se são trilhões de neurônios que formam nosso pensamento? A autora compara
a “unidade” que a consciência traz com as chamadas “fases de Bose-Einstein”, as
fases condensadas que podem ser observadas em algumas matérias, principalmente
quando em temperaturas muito baixas. A água existe em três “fases”, a gasosa
(vapor), a líquida (água) e a sólida (gelo), apresentando uma “ordem” molecular
muito maior no cristal de gelo, assim como ocorre nos cristais de sal ou de
açúcar. Quando em fase condensada, os átomos e moléculas, em geral
imprecisamente estruturados, subitamente ou gradualmente se alinham e assumem
um estado mais coerente, comportando-se como um. Os sistemas físicos apresentam
muitos tipos de fases condensadas mais estruturadas como, por exemplo, nos raios
laser, nas correntes elétricas dos metais ou nas ondas sonoras dos cristais. O
físico Herbert Fröhlich (†1991), trinta anos atrás, já demonstrou que existe
algo parecido nas células vivas dos sistemas biológicos. Nas membranas das
nossas células existem “dipolos”, moléculas eletricamente carregadas, tendo
carga positiva num polo e carga negativa em outro. Os dipolos emitem vibrações
eletromagnéticas que, na verdade, são emissões de fótons. Já na metade do
século passado os biofísicos demonstraram que os neurônios são suficientemente
sensíveis para registrar a emissão de um único fóton. O chamado “sistema
bombado” de Fröhlich demonstrou que, além de certo limite, qualquer energia a
mais introduzida num sistema vivo faz com que as moléculas comecem a vibrar em
uníssono. No cérebro humano elas o fazem em amplitude crescente, até os
neurônios chegarem à forma mais ordenada possível de fase condensada, surgindo
então a assim denominada “fase condensada de Bose-Einstein”. Nesta situação as
inúmeras partes do sistema cognitivo se “sobrepõem” de tal forma que perdem
completamente a própria individualidade e se tornam, de fato, uma unidade só,
como o som de um instrumento de muitas cordas. O lado quântico que vimos na
matéria inorgânica aqui se repete claramente na matéria orgânica, a base física
da vida.
IV
CONSEQÜÊNCIAS PASTORAIS
4.1
Repensar a partir de uma nova lógica
Com a irrupção de uma nova cosmovisão
muda, em profundidade, o modo de pensar sobre Deus, o mundo e o sentido da
existência humana. Tudo é pensado a partir de uma nova lógica. Atritos serão
inevitáveis. Aqueles ou aquelas que buscam encontrar uma nova linguagem
adaptada à época, entram em choque com a tradição da Igreja-Instituição. Na
atualidade, a barreira conservadora levantada pela Cúria Romana transformou-se
no grande “muro de lamentações” dos nossos teólogos e teólogas. A lógica da
cosmovisão ecológica, no entanto, não se dá bem com teologias “fortes”, de
oposição e exclusão, como veremos. A preferência é por teologias “fracas” onde
muitas verdades parciais convivem pacificamente, aguardando o tempo do
nascimento de uma verdade maior. É esta a lógica da vida.
4.2
Em busca de novas práticas.
Esperamos, nas próximas oportunidades,
poder falar das novas perspectivas pastorais práticas que surgem da
fundamentação teórica aqui apresentada. Perspectivas que surgem das três fontes
que alimentam a ação concreta da Igreja: a cosmovisão da época, a
espiritualidade que lhe é própria e a perspectiva de futuro que nasce da
cosmovisão e sua espiritualidade correspondente.
- Missionário
do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências
sociais. Atuou sempre na pastoral prática: de 1965 a 1982 na pastoral
rural do Vale do Ribeira/SP, e, de 1982 a 1993 na pastoral urbana das
Zonas Leste e Sul de São Paulo. Entre 1994 e 2000 atuou como educador no
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, São Paulo
(CDHEP/SP), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o
de combate à violência urbana. Entre 1983 e 1988 lecionou Teologia
Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar
na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra/SP. Representa a
CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente
atua na pastoral paroquial de Diadema/SP. Além de cartilhas populares
publicou artigos na REB em 1974, 1987, 1997 e 2011.
- Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Notas:
- O
presente artigo introduz uma reflexão sobre a nova cosmovisão ecológica,
baseada nas ciências naturais. A
partir desta cosmovisão, novas perspectivas se abrem para a ação pastoral
da Igreja.
- CELAM,
Ed. Paulus, 2007, São Paulo.
- Embora
alguns defensores das “ciências duras” o acusem de exagerar nas
inter-relações, aconselhamos ler O
Tao da Física de Fritjof Capra, Ed. Cultrix, 1983, S. Paulo.
- Deus, um delírio,
Richard Dawkins, Ed. Schwarcz ltda, 2006, S. Paulo.
- O Relojoeiro Cego,
Richard Dawkins, Ed. Schwarcz ltda, 1991, S. Paulo.
- A Teia da Vida,
Fritjof Capra, Ed. Cultrix, 1996, S. Paulo.
- Beginnings of Cellular Life, Harold J. Morowitz, Yale University Press,
1992, New Haven/London.
- Order out of chaos, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Bantam Books, 1984, New York.
- Microcosmos,
Lynn Margulis/Dorion Sagan, Ed. Cultrix, 2002, S. Paulo.
- Symbiotic Planet: a new view of evolution, Lynn Margulis, Ed. Basic Books, 1988, New York.
- A Árvore do
Conhecimento, Humberto Maturana e Francisco
Varela, Ed. Psy II, 1995, S. Paulo.
- New World, New Mind, Robert Ornstein e Paul Ehrlich, Ed. ISHK, 1989, Cambridge.
- O Ser Quântico:
uma visão revolucionária da natureza humana,
Danah Zohar, Ed. Nova Cultural ltda, 2000, S. Paulo.
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