O DESAFIO DO SOCIALISMO RELIGIOSO NA PASTORAL (I)
Pelo Pe. Nicolau
João Bakker, svd *
Síntese:
Falar de socialismo religioso tem
algo de ambíguo. Existem muitos socialismos na história e na atualidade. O
objetivo deste artigo é demonstrar que, tanto na Revelação bíblica quanto na
Tradição Cristã, alguma forma de socialismo está claramente presente. Javé se
revela um Deus que se coloca do lado dos escravos, em oposição ao Faraó, e se
compromete com eles. Jesus rejeita o legalismo do Templo e retoma o profetismo
que exige fidelidade à Aliança, expressão de justiça social e amor aos
desvalidos. O Reino de Deus se refere a uma “nova” sociedade a ser estabelecida
na terra, mas cuja concretização final está no porvir. Este mesmo socialismo
religioso está presente na Tradição Cristã e na história da humanidade. Hoje,
perigosamente, o pêndulo da Igreja pende novamente para o lado do Templo. Manter
o socialismo religioso, a busca pela “nova” sociedade, continua um dos grandes
desafios da pastoral dos nossos dias.
Abstract: To speak about religious socialism is somewhat
ambiguous. There are a lot of socialisms in history and at present. The scope
of this article is to demonstrate that, in biblical Revelation and in Christian
Tradition, some kind of socialism is visibly present. Yaweh reveals himself as
a God who remains on the side of slaves, in opposite of Pharaoh, and commits
himself to them. Jesus rejects the legalism of the Temple and renews the prophetic
promise that requires fidelity to the Covenant, symbol of justice and love for
the helpless. The Kingdom of God refers to a “new” social order to be
established on this earth, but whose full realization lies always in the
future. This same religious socialism is to be found in Christian Tradition and
mankind´s history. At present, the pendulum of the church, dangerously, tends
once more to the side of the Temple. Maintain the religious socialism and the
search for a “new” social order, continues to be one of the greatest challenges
of pastoral ministry in our day.
Introdução:
Falar de socialismo religioso,
hoje, é uma temeridade. Pessoas das mais diferentes tendências políticas ou
religiosas poderiam, honestamente, dizer-se socialistas. Cientistas sociais, no
decorrer da história, têm usado o termo com significados bastante
diversificados. Chamar alguém de “socialista”, para alguns representa um
elogio, para outros uma ofensa. Definir o que entendemos por socialismo parece
uma necessidade lógica, mas não o faremos. Palavras são sempre abstrações da
realidade. Não exprimem sua complexidade. Em vez de definir preferimos
retratar. Faremos uma aproximação descritiva, colocando em destaque os
conteúdos específicos que a palavra adquiriu nos diferentes contextos
históricos e culturais. E nos limitaremos ao que possa ser chamado de
“socialismo religioso”, no fundo no fundo o grande pomo de discórdia da atual
caminhada pastoral da Igreja na América Latina.
Nosso
foco principal é a pastoral, não a teologia. Evidentemente não faz sentido
propor uma ação pastoral sem uma fundamentação teológica. É como querer andar
de bicicleta deixando as rodas em casa. Mas vida cristã é antes de tudo uma
prática. Os debates teológicos que surgem na Igreja, geralmente, têm sua origem
numa prática pastoral. Pretendem iluminá-la, às vezes criticá-la. Quase sempre
pretendem tornar mais claros os novos rumos da Igreja. No presente artigo queremos apresentar o
socialismo religioso como um importante item da ação pastoral da Igreja. Porém,
um item cercado de muitas incertezas. A Teologia da Libertação que, desde a
década de 1960, esteve em grande evidência na Igreja latino-americana, com forte
repercussão também na teologia mundial, hoje está na berlinda. O documento de
Aparecida não teve a coragem de falar dela explicitamente. Dificilmente um
silêncio pode falar mais alto. No nosso entender, o medo que os bispos
manifestam com relação ao tema tem tudo a ver com o que nós chamamos de
“socialismo religioso”, uma inspiração-chave da teologia da libertação, ainda
que expressa em outra terminologia.
O tema do
socialismo religioso tem tudo a ver com as CEB´s. Do último 12o
Encontro Intereclesial das CEB´s, em Rondônia (2009), participaram 56 bispos,
um número que vem crescendo lentamente desde o 10o Encontro de
Ilhéus, em 2000, quando apenas 40 bispos participaram. Antes os bispos
costumavam participar em número muito maior. Também estavam presentes, no
último Encontro, o Presidente e o Vice-Presidente da CNBB, mais o Secretário
Geral, não tivesse sido impedido de última hora. Interpretou-se a nova
tendência como uma “reversão” na credibilidade pastoral das CEB´s. Não
partilhamos da mesma opinião. Não foi a hierarquia que mudou de postura. Foram
as CEB´s que adquiriram um novo rosto e os bispos, em geral, se sentem mais à
vontade com este. Recentemente, num encontro regional de CEB´s, na Diocese de
S. André SP, recebemos das lideranças comunitárias uma ampla lista de práticas
pastorais consideradas características da caminhada das CEB´s. Com exceção de
alguns pequenos pontos não vimos na lista o que, de fato, é característico das
CEB´s. Vimos uma fotografia de comunidades cristãs envolvidas, exemplarmente,
com a prática diversificada do amor ao próximo. Longe de nós qualquer crítica a
isso. É desnecessário dizer que se trata de algo essencial ao cristianismo em
qualquer lugar do mundo. As CEB´s não seriam “o novo modo de ser Igreja”, como
se costumava dizer, se não tivessem o amor ao próximo como sua prática por
excelência. O que distingue, porém, uma CEB de uma boa comunidade cristã não é
o amor ao próximo, mas a maneira de praticá-lo.
As CEB´s surgiram na Am. Latina, juntamente com a teologia da
libertação, tendo como objetivo promover transformações estruturais na sociedade.
Transformações estas, políticas, econômicas, sociais, culturais ou ambientais,
que possibilitem “vida plena” aos cidadãos. Sem estas transformações, a
caridade individual perde sua eficácia para o conjunto da sociedade, impedindo,
em última instância, a fraternidade universal.
Quando falamos
de socialismo religioso falamos da busca destas transformações. Não apenas da
busca de melhorias sociais, individuais ou coletivas, dentro da sociedade que
temos, mas principalmente da busca por uma “nova” sociedade que ainda não existe,
e, como veremos mais adiante, talvez nunca venha a existir. Desistir deste
projeto, perder a coragem de encará-lo, ou não ter consciência clara da
urgência de sua implementação, é, provavelmente, a maior tentação da pastoral
hoje. Nosso momento histórico é de desalento. Depois de décadas de
efervescência pastoral e teológica sentamos na beira da estrada para descansar.
É hora de levantar de novo e continuar a caminhada. Neste artigo queremos falar
de socialismo religioso na perspectiva histórica da Revelação e da Tradição Cristã.
Se é tão importante assim, como imaginamos, o Deus da Revelação em que acreditamos
deve estar falando de socialismo religioso há muito tempo.
I. As sementes do socialismo religioso na Bíblia
Em nenhum momento a Bíblia fala
de socialismo. No entanto, ela respira o sonho de uma “nova” sociedade do
começo ao fim. Desde o Concílio Vat. II, a teologia atual absorveu a idéia de
que Deus se revela em todas as tradições religiosas dos povos. E Deus faz isto
através dos inúmeros sinais de sua presença e atuação que os povos captam por
meio das dores e alegrias em seu caminhar histórico. Nossa Tradição Cristã – e
é importante nós nos darmos conta disto – iniciou-se com a experiência terrível
de uma escravidão.
1. A escravidão e a descoberta de um
Deus diferente
Os biblistas discutem
acaloradamente sobre a origem do povo de Israel, em especial sobre as
experiências fundantes de sua fé. Mitologia e história real se mesclam. Os
relatos bíblicos não foram escritos para nos livrar das dúvidas. Foram escritos
para nos relatar uma experiência religiosa que calou muito fundo no coração de
um povo. E aí encontramos um consenso bíblico: a origem da fé judaica tem tudo
a ver com a experiência da “escravidão do Egito”. Relendo os primeiros
capítulos do Êxodo nos impressiona o esforço de Moisés para entender quem é
este Deus que lhe diz: “Vá! Eu envio você ao Faraó, para tirar do Egito o meu
povo, os filhos de Israel” (Êx 3, 10). No caldo de cultura do tempo de Moisés,
os deuses são muitos, e são deuses que, invariavelmente, estão aliados aos
interesses dos reis. Mas agora Moisés descobre que está diante de um Deus
diferente que defende os interesses dos escravos! “Não vão acreditar em mim”,
observa Moisés com muita razão quando Deus lhe manda anunciar a libertação do
povo (Êx 4,1).
Diante dos
textos que tratam da origem da fé do povo hebreu não há necessidade de adotarmos
a fúria demitizadora iniciada por Rudolf Bultmann (†1976) quando este, já em 1941,
lançou seu “Manifesto da Demitização”. Entendemos hoje melhor o valor dos mitos
religiosos. Nem por isso estamos dispensados de fazer uma distinção clara entre
mito e realidade. Os exegetas já nos advertiram que não podemos ver em Moisés o
grande fundador da fé monoteísta. Pode até ser que sua fé tenha sido
influenciada pelo monoteísmo rigoroso introduzido pelo Faraó Amenófis IV, por
volta de 1350 A.C., mas o culto obrigatório e irrestrito ao deus solar Aton
visava apenas unir todos os segmentos do reino em torno dos interesses da
dinastia imperial. Uma dinastia que dependia, visceralmente, do trabalho
escravo. No caso de Moisés, Deus se coloca contra
o Faraó e a favor dos escravos. Esta
é uma fé inteiramente original e única. O que distingue Javé, “o Deus dos
hebreus”, dos outros deuses não é tanto o fato de ser único – o monoteísmo puro
parece ter-se desenvolvido apenas mais tarde na pregação dos profetas e, de
modo particular, no período do pós-exílio -, mas o fato de ter-se comprometido
com a sorte dos oprimidos.
Esta é a
primeira vez que vemos com muita clareza que o Deus da Revelação Cristã tem
“lado político”. Não que Deus falasse a viva voz. Em meio às agruras da
escravidão, o povo hebreu adquiriu a consciência profunda de um Deus que
“conhecia seus sofrimentos” e que estava decidido a “libertá-los do poder dos
egípcios e para fazê-los subir desta terra para uma terra fértil e espaçosa, terra
onde corre leite e mel” (Êx 3, 7-8). Esta profunda experiência religiosa
representou uma ruptura radical com a sociedade do Egito e a busca por uma
sociedade inteiramente nova. Falamos de “socialismo religioso” cada vez que um
povo, motivado por sua inspiração religiosa, vai em busca de uma “nova”
sociedade sem opressão. Seguramente não se trata de uma disposição interior
apenas, uma nova postura de bons sentimentos para com os opressores. Aqui se
rompe de forma radical com um sistema de dominação política e econômica,
justificado por uma ideologia religiosa perversa que o sustenta. Deus,
efetivamente, leva o povo a libertar-se e o conduz a uma nova terra.
2. A decepção histórica dos reinados e
os sonhos dos profetas
Por mais forte que tenha sido a
experiência religiosa da liberdade conquistada, a fé que dela resultou – como
sempre – continuou sujeita às contingências históricas. Nunca existe em estado
puro. Os estudiosos nos alertam lembrando que a “versão” dos fatos bíblicos nem
sempre corresponde à realidade dos fatos. O passado costuma ser idealizado. Tudo
leva a crer, no entanto, que “as doze tribos de Jacó” puderam vivenciar um
período de certa euforia na Terra Prometida. As escaramuças com os vizinhos
foram constantes, mas isso não impediu um sentimento generalizado de alívio. A
terra, partilhada razoavelmente entre as tribos-irmãs, era boa, e cada tribo
gozava de certa independência. O que unia as tribos era a memória dos seus
antepassados comuns e as leis deixadas por Moisés como herança. Javé havia
cumprido sua promessa, e jamais haveria de falhar. De forma familiar e caseira,
as tribos se inspiravam na lembrança da Páscoa da Libertação. Sua fé era especial:
nada de opressão como na terra do Egito. A terra dos hebreus era terra de
partilha e justiça. Para os pobres haveria de ter amparo, como também para os
órfãos, as viúvas e os forasteiros. Tudo continuaria dando certo desde que não
se abandonasse a fé em Javé para adorar outros deuses.
Os
historiadores nos falam, com detalhes cada vez mais ricos, do processo
civilizatório em volta do Mediterrâneo nos últimos milênios antes de Cristo.
Muito com base em novas descobertas tecnológicas – a agricultura, a linguagem
iconográfica e depois escrita, a atividade mineradora e a “arte” da guerra,
etc. – os pequenos reinados locais evoluem para sucessivas civilizações, quase
sempre de caráter bastante guerreiro. Costumamos olhar para o passado com os
esquemas mentais do presente. A relativa estabilidade fronteiriça das nações
modernas nos equivoca quando imaginamos o mesmo com relação aos reinos do
passado. A maior parte dos relatos bíblicos se refere a um tempo em que o
contexto histórico era: fortalecer-se, ou desaparecer. Os pilares econômicos
das sociedades antigas eram: a conquista e a escravidão. Israel não será
exceção.
Davi
e Salomão estabelecem o Reino de Israel bem à moda tradicional. O Templo de Jerusalém é erguido como símbolo
da força do reino. Faz parte do conjunto da Casa Real e expressa, como de
costume, a “ideologia religiosa” do reino. Até aí nada de novo. A diferença e a
unicidade da “casa de Davi” não está no fato de Javé ser considerado o
verdadeiro Rei de Israel, mas no fato de este Rei ter uma preocupação
privilegiada com os mais humildes da terra. Por mais que os livros históricos
da bíblia respirem a ideologia expansionista do reino, não deixam de anotar
que, na memória dos Israelitas, “Davi reinou sobre todo o Israel, exercendo o
direito e a justiça para com todo o seu povo” (2Sam 8, 15). Contrariamente aos
reis dos povos vizinhos, e com grande freqüência também dos seus próprios
sucessores, o rei Davi foi considerado fiel à Aliança. Não nos cabe aqui fazer
uma demonstração exegética – citações bíblicas poderiam ser feitas às centenas
-, mas em todo o período histórico dos reis judaicos, até o exílio babilônico,
uma poderosa voz profética lembra aos reis que é esta sua função primordial:
manter a fidelidade à Aliança e governar o povo com justiça. O conteúdo desta
“justiça” é multicolorido e varia de acordo com as circunstâncias históricas,
mas, invariavelmente, confronta uma situação atual com o legado mosaico. Israel
não pode ser como as outras nações. A tentação de voltar para as “cebolas do
Egito” está sempre presente, mas, a cada decepção dos profetas com o
comportamento dos reis, o sonho profético da “nova” sociedade se aprofunda. A
espiritualidade que alimenta a alma do povo é a mesma da mãe de Samuel: Javé “ergue
da poeira o fraco e tira do lixo o indigente” (1Sam 2, 8). Socialismo religioso
por excelência.
3. A hierocracia legalista e a oposição
irada de Jesus
O
exílio babilônico obrigou os judeus a repensar sua história. Os inimigos de
Israel venceram e entregaram o país às traças. A nação se viu sem Rei, sem
Templo, e sem Lei. Sobrou um povo disperso, sem identidade. O que aconteceu? A
história, com muita freqüência, atropela todas as certezas. Onde houver vida estará
sempre também a ameaça fatal da morte. Vida sem renovação é contradictio in terminis, diriam os
filósofos do passado. Também em Israel a vida renascerá. Para Ciro, rei dos Persas, não era bom
negócio manter os judeus chorando à beira dos rios da Babilônia. Quando eles voltam,
o país é outro. Como já dissemos, a fé de um povo não vem pronta. Sempre guarda
a fisionomia das circunstâncias históricas em que nasce e se desenvolve, pois é
através delas que Deus se revela. As grandes tradições religiosas da humanidade
demonstram que as raízes da fé resistem a séculos e até milênios de
transformações. No pós-exílio os judeus se lançam à árdua tarefa de adaptar a
fé dos seus antepassados às novas circunstâncias. Com grande esforço, o Templo
é reconstruído. A nação chora quando a Lei é novamente proclamada (Ne 8). O
culto é reorganizado. Preceitos rigorosos são estabelecidos para dar um basta
aos casamentos com estrangeiros. O momento é de recuperação da identidade
nacional.
Uma
nova tradição se estabelece então em Israel. Sem independência nacional e sob
controle rigoroso e sucessivo dos impérios persa, greco e romano, o modelo
religioso que vai se impondo com força crescente é o do judaísmo. Forçados
pelas circunstâncias, os judeus lutam para não perder sua identidade em meio a
uma poderosa influência estrangeira. Toda a atenção se volta para o que é
considerado o seu tesouro mais precioso e próprio: o Templo, a Lei, o Culto e
os ritos prescritos. Com muita saudade ficaram para trás os bons tempos quando havia
um rei que, guiado por Javé, cuidava do povo como um pastor cuida de suas
ovelhas. Internamente, a direção religiosa de Israel se esforça para segurar as
rédeas e, cada vez mais, se transforma numa típica “hierocracia” da época. As
características teocráticas, onde Deus é entendido como o governante direto,
dão lugar às características hierocráticas onde uma elite religiosa governa “em
nome de” Deus. Sua tônica geral é quase sempre a mesma: emudece a voz profética
e impõem-se o legalismo e o ritualismo.
Quando
Jesus inicia sua vida pública é este o contexto histórico. Fomos todos
profundamente influenciados por uma educação religiosa onde Jesus aparece muito
divinizado, desde o nascimento dotado de toda a sabedoria divina. Os atuais
exegetas, porém, descascando, camada por camada, o verniz grego dos relatos
bíblicos, apresentam um Jesus histórico que se confronta com um turbilhão de
grupos religiosos que rivalizam entre si. Jesus, ao que parece, só toma posição
quando já adulto. Há os governistas, como os herodianos, sacerdotes e saduceus,
e os anti-governistas, como fariseus, essênios, batistas e zelotas. Cada grupo mantém
também sua própria postura teológica. Onde está a esperança de Israel? Na Lei?
Nos Profetas? Na vinda de um Messias? Ao falar do movimento de Jesus, o
historiador Eduardo Hoornaert, em REB
265/07, comenta o livro “As várias faces de Jesus”, do judeu
Geza Vermes, um dos maiores especialistas na área. Para ele é possível que
Jesus tenha tido influência também do grupo dos “hassidim”. Por ocasião da
revolta dos Macabeus, entre 168 e 142 A.C., os hassides haviam apoiado o
movimento nacionalista contra a imposição do helenismo. Ainda no tempo de Jesus
esperavam por um rei-messias e eram muito populares, conhecidos como
milagreiros, santos e muito delicados com seus semelhantes. O povo os comparava
a Abraão, Moisés, Elias, Davi e Jeremias, como fizeram com Jesus. Para Vermes,
Jesus era o maior dos hassides.
Seja
como for, Jesus opta por um caminho próprio. Opõe-se fortemente ao legalismo e ao
ritualismo do Templo de Jerusalém. Irado, derruba as mesas, o que constitui um
ato profundamente simbólico. Declara querer a volta do cumprimento autêntico da
Lei e dos Profetas (Mt 5, 18 e Lc 16, 17). Uma vez batizado no Espírito, retoma
a raiz religiosa da Aliança e, nos passos do Batista, faz ressoar nas terras de
Israel novamente a voz estridente dos profetas. Quem deve reinar sobre Israel é
ninguém menos do que o próprio Deus. Para Jesus, Javé, na verdade, nunca
abandonou seu povo. Seu Reino, no entanto, não é como os reinos deste mundo,
nem se limita às fronteiras de Israel. Com a simplicidade de um Galileu, Jesus
dirá: o Reino já está no meio de nós, ainda que seja do tamanho de uma semente
de mostarda. Mas pode e deve crescer com força. Um dia virá em plenitude,
embora ninguém saiba o dia. Só uma coisa é certa: promessa de Javé não falha!
O
Reino que Jesus prega é o Reino da prática do amor, conceito-chave da Aliança.
Antes de tudo amor a Javé, mas, por igual, também aos irmãos e irmãs, em
especial aos mais sofridos, porque Javé é um Deus que demonstrou sua predileção
pelos escravos. Se o Templo não for a encarnação deste Deus é melhor que seja
destruído. Javé olhou para os prostrados à beira do caminho. Ninguém pode
deixar de fazer o mesmo. A vontade dele deve ser feita, tanto no céu quanto na
terra. O sonho profético de Jesus vislumbra a superação de todos os males na
terra. Onde Deus reina verdadeiramente, o mal não existe, e nem mesmo dor,
doença ou morte. Apenas Vida em abundância. Poderíamos citar dezenas e dezenas
de passagens bíblicas para demonstrar a centralidade da vinda desta “nova”
sociedade na mensagem de Jesus, mas entendemos que nossos leitores as conhecem
muito bem. Em seu conjunto representam o que hoje poderíamos chamar de
socialismo religioso. A expressão soa um pouco artificial, porque falar de
socialismo não é habitual na linguagem religiosa. Mas sob ponto de vista da
pastoral hoje é importante denominá-lo desta forma. Existem muitas propostas de
socialismo entre nós. A que Jesus nos propõe supera a todas e, quanto à sua
concretização final, ninguém sabe o dia nem a hora.
4. O socialismo religioso das primeiras
comunidades cristãs
Se não estivesse escrito, não
acreditaríamos. As primeiras comunidades cristãs viviam como diz o canto: “e
não havia necessitados entre eles” (At 2, 44-45). A passagem representa algum
tipo de gênero literário? Uma utopia? Alguma descrição tardia do “mito da
origem”? Não é provável. A concretude do
texto, a existência de espiritualidades parecidas dentro do judaísmo, e a
provável esperança dos primeiros cristãos na vinda iminente do “Reino” sugerem que
o socialismo religioso das primeiras comunidades tenha tido um caráter bastante
radical. O apóstolo Paulo lembra muitos fatos que vão na mesma direção. A
primeira evidência que salta aos olhos é, pastoralmente, da maior importância:
o socialismo religioso praticado pelos primeiros cristãos é conseqüência direta
da mensagem deixada por Jesus. Cabe aos discípulos seguir fielmente o Mestre. E
Jesus havia dito: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Nem travesseiro
ele tinha para reclinar sua cabeça! Na espiritualidade do Reino não importam as
sobras dos ricos, mas o gesto da pobre viúva que deu “tudo o que possuía” (Mc
12, 44). Seguramente estamos aí diante
de uma primeira forma de espiritualidade cristã. Muitas outras haveriam de
seguir.
Dissemos
mais acima que, para poder falar em socialismo religioso, não bastam os bons
sentimentos e a boa prática da fraternidade cristã dentro da sociedade que se
tem. É preciso empenhar-se, efetivamente, na vinda de uma “nova” sociedade,
aquela que Jesus anunciava quando falava do Reino de Deus: “O tempo já se
cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa
Notícia” (Mc 1, 15). Conversão é uma pré-condição fundamental. Requer uma mudança
radical no modo de pensar e de viver. A fisionomia do cristianismo atual e o
rosto moderno das nossas comunidades cristãs têm tudo a ver com a história da
teologia e a história da espiritualidade cristã dos últimos séculos. Somos
sempre sobreviventes, náufragos do nosso tempo. Uma das características mais
profundas da teologia e da espiritualidade que herdamos do passado é a da
“desencarnação”. A separação radical entre espírito e corpo tem tudo a ver com
a filosofia helênica que já fazia parte do caldo de cultura dos tempos
novo-testamentários, mas que, se devemos acreditar nos nossos biblistas, não
era o modo de pensar habitual do galileu de Nazaré. Quando Jesus fala de um
Reino que se aproxima não pensa em algo exclusivamente “sobre-natural”, mas em
algo muito concreto. O mesmo Javé que fez Aliança com os escravos, e que Jesus
vê e sente como Pai e Bom Pastor, vem para finalizar sua obra, e esta se
concretizará apenas mediante um novo modo de viver, feito de amor e de justiça.
As
primeiras comunidades cristãs têm uma feição fortemente missionária porque
Jesus, de forma às vezes chocante para os judeus, havia deixado muito claro que
a “nova” sociedade a ser estabelecida não se limitava aos filhos de Israel.
Nada resistirá à ação salvadora de Javé. Se este veste até os lírios do campo,
como não haveria de preocupar-se com o mais humilde dos filhos e filhas da
terra? Uma fraternidade universal sem dúvida fazia parte dos sonhos de Jesus. Como,
porém, criar esta “nova” sociedade do reinado de Javé em meio às pesadas
limitações do império romano e tão próximo dos olhares suspeitos do Sinédrio?
Fortalecidos pelo Espírito de Jesus ressuscitado, os primeiros cristãos
simplesmente seguem os passos do crucificado: formam comunidades de discípulos
e discípulas praticando entre si uma fraternidade radical, à espera da
consumação final do Reino. Quando este novo estilo de vida entra em choque com
as autoridades do Templo – e logo logo também com o poder do Império – não
cedem nem um pouco. Javé reina, ninguém mais. Preferem morrer, como Jesus.
Também
a morte de Jesus foi desencarnada pela história. Ela é central em qualquer
espiritualidade cristã, mas na maior parte do tempo sua compreensão sofreu uma
influência mais filosófica do que bíblica, e a espiritualidade cristã se
baseou, freqüentemente, mais no sentimento do que na realidade do Jesus
histórico. A profundidade e a amplitude dos estudos bíblicos e teológicos hoje
superam em muito a de qualquer outra época. O Jesus da história real, hoje,
aparece com nitidez muito maior. Lugar absolutamente central no panorama
teológico atual é dado ao caráter “kenótico” da salvação, expresso mais
claramente pelo prisioneiro Paulo na sua carta aos filipenses (Fl 2, 7-11). A
divindade de Jesus só pode transparecer “através” de sua humanidade. Tudo leva
a crer que a vinda do Reino de Deus era de tal forma real para Jesus que,
humanamente, não podia entender ser derrotado daquela forma. O grito do “Eli,
Eli, lemá sabachtáni” representa o sentimento de todo ser humano que se sente
“abandonado” por Deus na hora em que mais necessita de sua presença. Deus não
interrompe o curso da história. Esta é implacável e sua força, com muita
freqüência, para qualquer ser humano, esmagadora. Nem Jesus escapou da
dificuldade de entender e aceitar que o Evangelho a ser anunciado é sempre o
“Evangelho da Cruz”. O grande destaque dado hoje à ressurreição não pode
esconder este fato. Para iniciar a “nova” sociedade, os primeiros cristãos
praticaram, heroicamente, seu socialismo religioso. Logo se dariam conta que
Javé demora para intervir e que, na esperança utópica da vinda do Reino, muitas
cruzes estão plantadas no caminho.
II. O socialismo religioso na Tradição Cristã
Impressiona a rapidez com que o
cristianismo se tornou a alternativa mais viável quando ocorre o ocaso do
império romano. É uma pena que poucos relatos realmente históricos sobre o dia
a dia dos cristãos nos primeiros séculos ficaram guardados. O lendário “veja
como eles se amam” de um historiador romano talvez expresse algo muito próximo
da realidade. Uma fé forte, vivida no Espírito de Jesus ressuscitado, regada
com o testemunho de sangue de muitos mártires, e praticada numa fraternidade
real em meio a um mundo preponderantemente hostil, deve ter funcionado como ímã
de grande atração para um povo majoritariamente muito simples. Se devemos
acreditar em pesquisas atuais, algo parecido está ocorrendo com o rápido
crescimento do cristianismo evangélico. O fator maior de atração não está na
qualidade do preparo de seus pastores, nem na solidez de sua doutrina, mas na
grande força de atração de pequenas comunidades de irmãos e irmãs que se apóiam
mutuamente, num contexto de relativa hostilidade frente ao materialismo e
racionalismo impingidos pela modernidade. Com o passar do tempo, o socialismo
religioso dos primeiros cristãos, como tudo que se refere à vivência da fé, irá
adquirir rostos próprios, rostos sempre profundamente marcados pelas
contingências históricas.
1. Santo Agostinho e os imperativos da
Cidade de Deus
Pouquíssimas
pessoas tiveram tanta influência sobre o pensamento cristão, até hoje, quanto
teve Santo Agostinho (†430). Escreve sua obra prima “A Cidade de Deus” entre
416 e 427. O rei dos Visigodos, Alarico, já havia saqueado Roma, sinal evidente
da decadência do império romano. Para situar o socialismo religioso no
pensamento agostiniano é de vital importância atentar para a visão
antropológica que fundamenta sua teologia. Como filósofo, Agostinho passou pelo
maniqueísmo para depois ter forte influência do neoplatonismo. O ser humano,
para ele, é “uma alma racional que se serve de um corpo mortal e terrestre”.
Este modo de pensar e de expressar-se é típico da filosofia grega que impera na
sua época. Esta visão antropológica que faz uma separação radical entre corpo e
alma, não é própria da cultura semítica de Jesus e perdeu totalmente seu
sentido na cultura moderna, mas é a única que Santo Agostinho tinha às mãos
para se fazer entender.
Os
cristãos, nesta época, já não vivem mais a espiritualidade da iminência do
Reino. Sentem, porém, fortemente a dicotomia entre o mundo espiritual a ser
almejado e o mundo material a ser desprezado. A religião cristã, desde o
imperador Constantino (†337), é a religião oficial do império. Perseguidos
durante séculos, e imbuídos da necessidade de o Reino de Deus se estender até
os confins do mundo, como os cristãos não haveriam de se alegrar com os apoios
oferecidos pelo Estado? Ainda assim, o sonho de uma “nova” sociedade não acabou.
Agostinho, fiel ao clima cultural da época, dirá: aqui na terra, duas sociedades,
opostas entre si, convivem. Pela sua razão “inferior” o homem pode conhecer as
coisas que são da terra, mas pela razão “superior” ele pode conhecer o que é de
Deus. Os que praticam o amor a Deus e ao próximo pertencem à “Cidade de Deus”,
os que se amam a si mesmos e desprezam a Deus pertencem à “Cidade dos Homens”.
Apenas no Juizo Final a cidade espiritual será definitivamente separada da
cidade terrena que é a cidade do demônio.
Na opinião do bispo de Hipona, o Estado tem
sua razão de ser. É até bom que tenha bastante força para, entre outros, punir
os hereges, os defensores de “pestíferas e mortíferas doutrinas”, os quais
devem ser excluídos da comunhão eclesial. Mas o Estado faz parte da Cidade dos
Homens e, por isso, é incapaz de praticar uma autêntica justiça. O Estado
deveria guiar-se pelos princípios morais do cristianismo para poder
transformar-se cada vez mais na Cidade de Deus, o que, no entanto, apenas irá
ocorrer por ocasião do Juizo Final. Por trás do raciocínio de Agostinho está novamente
uma concepção antropológica, a do pecado original, baseada numa interpretação
literalista e infeliz do Gênesis e no dualismo da filosofia grega da época. O
homem, criado à semelhança de Deus, pelo pecado de Adão, transmitido de geração
em geração, vive num estado “decaído”. O Batismo o recoloca no caminho da
salvação, mas não o livra de uma espécie de obscurecimento permanente. Santo
Agostinho vê a Igreja como a Comunidade dos que se libertaram do mundo material
para já viver num mundo espiritual, a Cidade de Deus, porém, ainda de forma
imperfeita. Apenas no Juizo Final a Cidade de Deus brilhará em toda a sua
glória. Nesta perspectiva agostiniana a Igreja merece uma grande primazia sobre
o Estado.
O que ficou do socialismo religioso nesta
época? Nada em termos de linguagem, mas tudo em termos de conceito. A Tradição
Cristã sempre se parece com uma sinfonia que executa grandes variações musicais
sobre um mesmo tema. Agostinho vê a “nova” sociedade, a Cidade de Deus, como
que “em andamento”. Ela acontece na medida em que a fraternidade e a justiça se
tornam visíveis. O Reino de Deus já está presente, mas seu pleno
desenvolvimento está no porvir. Ninguém sabe o dia nem a hora.
2. A face totalitária da cristandade
medieval
A teologia agostiniana ocupa um
lugar de destaque no clima eclesial dos séculos posteriores. As várias
teologias e espiritualidades presentes mantêm como tema central o combate ao
mundo material e a primazia do mundo espiritual. Uma vertente teológica de
clara inspiração agostiniana começa a falar em “duas espadas”, a do Estado e a
da Igreja. Uma política preponderantemente cesaropapista, com forte domínio do
Estado sobre a Igreja, aos poucos, com a generalização do espírito cristão,
cede lugar a uma política hierocrática, exercida pela hierarquia eclesial. A
partir do segundo milênio, o pêndulo do poder começa a pender perigosamente
para o lado da Igreja. Perigosamente no sentido da advertência jesuânica: “entre
vós não será assim” (Mt 20, 26). O papa Bonifácio VIII (†1303) dirá com todas
as letras que uma espada é exercida “pela Igreja” e a outra, a do Estado, deve
ser exercida “para a Igreja”. E seguem as cruzadas, as fogueiras da Inquisição
e a naturalidade dos estados pontifícios. Para muitos o Reino de Deus não
estava mais próximo. Já chegou.
Julgando
a Igreja da cristandade com os óculos do presente, muita maldade costuma ser
atribuída aos papas e à hierarquia eclesial daquele tempo. Engano lastimável.
Com raras exceções houve apenas boa vontade. Ou melhor, excesso de boa vontade.
Vemos com clareza os equívocos do passado e não nos damos conta dos nossos. Mas
o pensar humano é um eterno equívoco, e só avança graças aos equívocos! Devemos
voltar aqui a um ponto essencial já apontado acima: a visão antropológica que
fundamenta a teologia. Ainda que a mensagem de Jesus provenha do mundo cultural
semita, e não grega, desde os primeiros séculos do cristianismo a teologia da
Igreja foi formulada numa conceituação e linguagem gregas. E a filosofia grega
tem como característica o pensamento abstrato, essencialista e universal. Abstrai
das diversidades humanas e fala “do”
ser humano; desconsiderando as qualidades individuais ressalta o que todo ser
humano “é” na sua essência; sobra um
ser humano sempre igual aos outros, um ser universal. E este ser universal é um
ser dual: corpo e alma. A alma reflete o mundo espiritual, superior, divino; o
corpo o mundo material, inferior, mundano. Quando Santo Agostinho define o ser
humano como “uma alma racional que se serve de um corpo mortal e terrestre”,
não faz nada mais do que exprimir um pensamento corrente que surge do caldo de
cultura de sua época. É este substrato filosófico e teológico que “vestiu” a mensagem
de Jesus por tão longo tempo que, até hoje, temos dificuldade em distinguir
entre a mensagem em si e sua roupagem cultural. Apenas a Modernidade veio
afrouxar os espartilhos ao apresentar uma visão antropológica inteiramente
renovada. Na verdade deveríamos dizer “pós-modernidade”, mas deste detalhe
importante não podemos tratar neste artigo.
Dois fatores influíram poderosamente para a
Igreja, por assim dizer, “cair” numa espécie de tentação totalitária, por longo
tempo. Um fator é de ordem teológica. Especialmente no pós-exílio, os filhos de
Israel desenvolveram a profunda convicção que Javé não é apenas um Deus único e
diferente, mas é também o único Deus. Este monoteísmo estrito se desenvolve
juntamente com a auto-consciência de “povo eleito”, embora com abertura
crescente para outros povos, desde que aceitem Javé. Os discípulos de Jesus se
espalharam pelo mundo de então com esta herança: Deus é único, é Pai e Pastor
de todos os povos; a Lei de Deus é única, é a Lei da Aliança que se resume no
amor e na justiça; o Reino de Deus é único, e se destina ao mundo inteiro. Um
dia, em breve, o Reino de Deus estará completo na grande fraternidade
universal, quando todas as lágrimas serão enxugadas e não haverá mais morte nem
dor. O outro fator é de ordem filosófica, como vimos acima. O mundo espiritual
é inteiramente diferente do mundo material. Mediante sua razão o ser humano
participa dos dois mundos, mas o mundo espiritual deve ter primazia sobre o
material. Juntando os dois fatores, a Igreja da Idade Média se auto-entende
como única e legítima representante do Reino de Deus na terra. Em nome do único
e verdadeiro Deus, a lei dos homens deve estar submissa à Lei Divina. Os reis
da terra devem obedecer ao Rei dos céus. A “nova” sociedade deve acontecer,
ainda que seja pela força do gládio. A cristandade medieval muitas vezes é
vista como fortemente espiritual, alienada das realidades deste mundo. Trata-se
de uma verdade apenas parcial. Na espiritualidade do povo simples, sim, mas a
hierarquia da Igreja chama para si boa dose do poder real sobre as coisas deste
mundo. Em nome de Deus quer a “nova” sociedade sob seu controle. Não deixou de
ser uma expressão muito particular de socialismo religioso.
Para
completar esta perspectiva histórica do socialismo religioso deveríamos tratar
agora de como este se configurou no decorrer dos tempos da Modernidade. De
certa forma é na modernidade, com sua cosmovisão antropológica específica, que
a “questão social” se torna, dentro e fora dos muros da Igreja, uma questão
prioritária. O limitado espaço deste artigo não nos permite traçar um esboço do
amplo e variado panorama do socialismo religioso nesta época. Devido a sua
importância para o atual cenário pastoral gostaríamos de fazer isso numa outra,
próxima, oportunidade. Feita esta ressalva cabe-nos agora apontar para alguns
importantes desafios pastorais na atualidade.
III. O socialismo religioso na pastoral hoje
Fizemos questão de percorrer o
longo percurso do socialismo religioso na Bíblia e na Tradição Cristã porque
não acreditamos que se possa dizer algo significativo sobre desafios pastorais
hoje sem demonstrar que suas justificativas já se encontram no que Deus veio
nos revelando no passado. Esse não é apenas um critério tradicional da
teologia. É também um critério do paradigma antropológico e da moderna
cosmovisão ecológica que vem suplantando cada vez mais as cosmovisões teológica
e antropológica das chamadas antiguidade e modernidade. Quanto ao socialismo
religioso em si, no último século pouca efetiva renovação doutrinária ocorreu,
seja dentro ou fora da Igreja. Evidentemente a Teologia da Libertação
representou algo novo e inédito. Acompanhando um avanço significativo nas
ciências sociais latino-americanas que revelou a dependência estrutural dos
países subdesenvolvidos dos países economicamente dominantes, a Teologia da
Libertação veio demonstrar que o socialismo religioso entre nós não pode
simplesmente imitar a “nova” sociedade que se busca “do lado de lá”. Nossos
óculos para analisar a realidade são diferentes. Ainda assim, o ponto onde
queremos chegar, como também o ponto primeiro da Revelação de onde partimos,
são os mesmos.
Algo curioso que podemos observar é que a
Teologia da Libertação, sob ponto de vista da prática pastoral, suscitou entre
nós o que a filosofia de Hegel suscitou na Alemanha do Séc. XIX: uma ala
esquerda e uma ala direita. A ala direita, mais institucional, se preocupa em
preservar e alimentar a espiritualidade que sempre sustentou a fé cristã. A ala
esquerda, mais profética, se preocupa em dinamizar e orientar a ação concreta da
vida cristã. Uma ala desconfia da outra. Nos encontros de Igreja é comum acontecer:
um bloco de um lado e outro bloco de outro lado. Para não faltar com a paz
fraterna, que cada um(a) fique na sua! Como lidar com este desafio?
1. Que fique claro: nosso socialismo é
um socialismo “religioso”
A
desconfiança mútua, normalmente, não é uma desconfiança de princípio. Todos
concordam que a fé cristã, para ser autêntica, requer uma ação transformadora
na sociedade. A questão é, qual transformação, e por qual método? Também existe
um acordo nunca questionado: uma espiritualidade é indispensável. Então qual o
problema? É que existem espiritualidades de todas as formas e não é tão simples
qualificar sua autenticidade cristã. Se a questão não é de princípio, então
provavelmente é uma questão de grau. Só para maior clareza, inventemos um nome
e chamemos uns de “espiritualistas” e outros de “pragmáticos”. Pra quê brigar?
Nós diríamos: para aprender uns com os outros.
Engraçado,
consideramos a diversidade das flores de maravilhosa e nossa diversidade de
idéias de odiosa. Mas somos todos filhos e filhas da mesma natureza. A
diversidade é condição e instrumento de sobrevivência! Não tivéssemos idéias
diferentes, jamais sairíamos do mesmo ponto. Entender isso é, pastoralmente,
muito importante. Nos ajuda muito a sentar na mesma roda da comunidade e
dialogar com tranqüilidade, respeito e mútua vontade de aprender. Por esta
razão é tão importante também buscar novas fontes para alimentar nossa mente.
Não bastam a bíblia e leituras teológicas. Estas, se não tomarmos cuidado,
podem até aprofundar em nós a idéia de que somos donos ou donas de todas as
verdades. Devemos ler (meditar!) mais sobre a vida: de onde ela vem, como se
sustenta, e o que significa possuir “plena vida” (Jo 10, 10). Aí, sim, vamos
realmente entender como é importante sentar na mesma roda e conversar.
Outro
ponto importante para a pastoral é entender que Jesus não assumiu a dicotomia
dos dois mundos. Foi espiritualista e pragmático ao mesmo tempo. Em muitas
dioceses, hoje, tanto por parte de bispos e padres, como também por parte de
pastorais diversas, existe uma forte tendência de simplesmente descartar do
planejamento pastoral qualquer evento ou ação que tenha a ver com o que nós,
neste artigo, chamamos de socialismo religioso. Pelo exposto deve ter ficado
claro que, agindo desta forma, seguramente não se faz uma pastoral cristã ou
que tenha a ver com o Reino de Deus. Glorifica-se a um deus que não se chama
Javé. É o que o diabo gosta. Manter a ação transformadora das pastorais sociais
na agenda é vital para a “nova” sociedade do Reino de Deus pela qual Jesus deu
a sua vida. Por outro lado, temos hoje (ainda) um grande número de cristãos
pragmáticos, muito envolvidos na política nacional e local, que se gabam de sua
origem nas CEB´s, da importância da Teologia da Libertação, etc., mas que
dificilmente entram numa igreja para participar da Eucaristia como qualquer
outro(a). Já “superaram” esta fase. Correm perigo de estar um dia entre os que
dirão: “mas, Senhor, nós....., e ouvirão então: tudo bem, porém, “eu não
conheço vocês” (Mt 7, 21-23). Não basta estar engajado(a) em algum socialismo.
Como cidadão, democraticamente, vamos ter que fazer nossa opção, mas, como
cristãos, queremos mais. A “nova” sociedade do cristão ou da cristã vai sempre
além e é, inclusive, como os primeiros cristãos demonstraram, mais
revolucionária. Quando ela virá, ninguém sabe o dia nem a hora.
2. Nosso socialismo religioso tem “lado
político”
Cremos
que, na maioria das dioceses, ainda encontramos alguma das pastorais sociais na
agenda. Afinal, as diretrizes da CNBB devem ser respeitadas. Se existe uma
organização bem articulada para implementar esta agenda já é algo mais
duvidoso. Há tanta coisa nas nossas agendas diocesanas! Ainda bem que existem
sempre alguns heróis que correm atrás do prejuízo. Colocar, porém, em pauta
algo que tenha clara conotação política, aí os ânimos gelam de vez. Melhor não
falar alto. O exemplo citado acima de uma região da Diocese de Santo André deve
ser algo comum. A tendência das nossas comunidades é voltar para uma prática
fraterna que pode até ser exemplar, mas que deixa de lado as transformações estruturais
que geram a “nova” sociedade. Aí entramos de novo em choque com o Deus da
Revelação e da Tradição Cristã. Javé assumiu a causa dos escravos contra o
Faraó. Os profetas se rebelavam contra os que compravam os necessitados por um
par de sandálias (Am 8, 6), e Jesus deixou claro que, no Juizo Final da “Nova”
sociedade, os que não deram de comer a ninguém ficarão do lado esquerdo e os
que deram de comer aos “seus” ficarão do lado direito (Mt 25, 31-46).
Tudo
que mantém a sociedade que se tem é política; tudo que colabora para gerar a
“nova” sociedade é política. Na pastoral, o lado político deve aparecer com
muita clareza. Quanto mais nítida a mensagem, melhor. Fica inteiramente sem
sentido a Igreja ficar do lado do Faraó. O chamado mundo ocidental, no decorrer
da Modernidade, ficou muito desfigurado pelo sistema capitalista, como pretendemos
mostrar em outro artigo. Os documentos oficiais de Roma e a Doutrina Social
oficial da Igreja, até este momento, nunca ofereceram uma condenação cabal do
capitalismo como “sistema”, mas uma boa teologia hermenêutica poderá demonstrar
com certa facilidade que, na análise do conteúdo destes documentos, sempre
encontraremos também uma forte crítica à face assassina do liberalismo
econômico. É verdade também que são
inúmeras as advertências contra qualquer simpatia pelo marxismo. Novamente a
boa hermenêutica vem mostrar que isto quase sempre se relaciona com a face
anti-religiosa do marxismo e não com a primazia dada ao social. Na verdade é
difícil tomar posição sobre realidades muito complexas. A Igreja, infelizmente,
ainda não se libertou da camisa-de-força grega que nos herdou com o binômio
exclusivista do “certo / errado”, cabendo o lado certo – e a certeza - sempre
aos defensores do mundo espiritual. As diversas experiências socialistas pelo
mundo afora não deixam dúvida sobre suas próprias limitações. Ressaltamos mais
uma vez: a “nova” sociedade está sempre no porvir. É para este lado “messiânico”
que a pastoral deve optar, sem deixar de fazer suas opções no presente.
3. O socialismo religioso é um processo mais
evolucionário do que revolucionário
Queremos encerrar este artigo com
uma última reflexão pastoral que tem tudo a ver com o momento político que
vivemos. A palavra “socialismo”, por mais elástica e sujeita a interpretações
diversas, evoca em nós, ao menos desde o início do Séc. XX, a idéia de
“revolução”, algo que assusta. Já nas revoluções burguesas da Inglaterra, EUA e
França, muito sangue foi derramado. Mas a revolução que espalhou um verdadeiro pavor
generalizado foi a revolução russa de 1917. Esta, além de derramar muito
sangue, tinha por objetivo, como se dizia, “exterminar a religião da face da
terra”. Lembramos com muita nitidez a pequena estante de livros ao lado da
lareira na casa onde nascemos, numa simples aldeia rural da Holanda. O livro
que se destacava de longe tinha uma capa em um profundo vermelho escarlate e um
título em grandes letras brancas salpicadas de gotas de sangue: “O Perigo Vermelho”.
Não creio que meus pais tenham lido o livro, nem que tenham me falado a
respeito, mas nunca toquei no livro. Exalava um terror dilacerante. Com certeza
estava ali, como estava em todas as casas católicas, porque esta era a
orientação da Igreja. Imagine querer acabar com a fé num lugar onde todas as
famílias freqüentavam, religiosamente, duas missas e a liturgia das vésperas,
todos os domingos. E mais. Uma revolução dessas podia acontecer da noite para o
dia. Pensamento apavorante! Algo deste pavor reinava por toda a Europa.
Entre
os que sonhavam com uma sociedade socialista, as vertentes ideológicas sempre
foram muito diversificadas. Daremos os detalhes, como dissemos, numa outra
oportunidade. Havia os anarquistas, os sindicalistas, os cooperativistas.
Alguns pensavam num socialismo sob controle do Estado, mais outros só
acreditavam num governo da elite intelectual ou moral. Karl Marx, o mais
articulado de todos, achava que primeiro o capitalismo havia de esgotar todas as
suas potencialidades para depois ocorrer a revolução proletária. Em meio a tudo
isso havia, porém, um consenso: a revolução não ia demorar muito! Os tempos
estavam maduros. Tratava-se, no entanto, do sonho de poucos contra muitos. Em
algum momento, da funda de Daví, haveria de ser lançada novamente a pedra para
derrubar o gigante Golias. Algum tipo de golpe de estado seria inevitável.
Havia “doktorclubs” assim em todos os cantos da Europa e, como veremos, até em
algumas sacristias das igrejas.
Este
clima generalizado de “revolução já”, de superar barreiras históricas e passar
da escravidão para a terra sem males, tem uma conotação profundamente
religiosa. É o eco longínquo da Terra Prometida e de todos os socialismos
religiosos apresentados neste artigo. Existe uma religiosidade profunda em todo
ser humano que independe das religiões institucionalizadas. Ninguém é
indiferente a uma “nova” sociedade. Mas existe também uma outra fonte da qual
beberam nossos apaixonados revolucionários, e a água desta fonte não era de boa
qualidade: o racionalismo reducionista da assim chamada Modernidade. Desde o
final da Idade Média, o grande culto da humanidade se tornou o culto da razão.
Com isto os filósofos gregos saíram novamente dos seus túmulos. Todos os
filósofos “iluminados”, por mais que discutissem entre si, chegaram a uma mesma
conclusão: o que não é racional deve ser descartado. Os cientistas embarcaram
no mesmo clima: deve-se acreditar somente naquilo que tem comprovação científica
e racional. Em relativamente pouco tempo os grandes nomes da modernidade
acabaram sendo venerados como deuses. Isaac Newton (†1727), por exemplo,
recebeu uma estátua em quase todas as universidades européias. Mas, o que
acontece quando o ser humano é reduzido ao tamanho do seu cérebro e se confia
quase cegamente no raciocínio humano? Os gregos já viam a razão como um reflexo
do divino. A Igreja também, por muito tempo, viu na razão uma espécie de
expressão da alma humana, vinda diretamente da mão de Deus. Algo superior à
matéria. Portanto, dizia Descartes (†1650), somente a razão tem a capacidade de
conhecer objetivamente a realidade. Quer dizer, - assim se pensava - apenas a
razão oferece “certeza”. Se antes a Igreja se considerava a única dona da
verdade, com base nesta mesma visão antropológica, agora a ciência descartou,
como dizia Hobbes, todos os “fantasmas” do mundo sobrenatural e declarou-se,
por sua vez, dona de todas as certezas. Um novo monopólio da verdade.
Baseados
neste novo paradigma da racionalidade, também os revolucionários do passado se
consideravam donos de uma certeza social: a revolução virá logo! Esta mesma
certeza estava presente nos grupos políticos brasileiros que viviam na
clandestinidade por ocasião da ditadura militar. Acompanhamos de perto sua
atuação no Vale do Ribeira SP, na década de 1970. O mesmo sonho habitava o
coração das CEB´s: a “nova” sociedade não irá tardar. Quando, em 2003, um
governo democrático-popular subiu a rampa do Palácio do Planalto, grande parte
da Igreja subiu junto. Hoje, poucos anos depois, uma parte da Igreja já
abandonou o barco. No nosso entender, cedo demais! Facilmente – além da
tentação do personalismo político - podem significar recaídas no velho hábito:
só nós temos a verdade. Sem dúvida, com o passar do tempo, a conjuntura
político-partidária será outra. Defender, porém, conjuntamente, o lado fraco da
sociedade, vale muito mais do que reforçar grupinhos isolados, por mais
iluminados que sejam. É preciso saber conviver, pastoralmente, com o
imperfeito, o longo prazo. O processo da “nova” sociedade é muito mais
evolucionário do que revolucionário. O novo paradigma da vida nos alerta: o isolamento
mata. Há tempo a nova cosmovisão ecológica nos pede para mudar nossos
paradigmas. Não somos somente cérebro. O cérebro é apenas uma pequena parte de
um sistema nervoso muito maior que levou quase um bilhão de anos para evoluir. E
não foi feito para nos dar certezas, mas para nos ajudar a sobreviver melhor. Nossa
raiz não está no mundo das idéias, como afirmava Platão; está no chão da vida.
Na vida real tudo é mais devagar. Há sempre uma pedra ou uma cruz no caminho.
Mas há também sempre uma esperança onde houver a partilha do pão. O desafio
pastoral da Igreja hoje é recuperar o ânimo e encarar novamente as mudanças
estruturais da sociedade. O Evangelho não é um manual de socialismo político.
Mas onde houver fé em Jesus Cristo, o socialismo religioso estará presente. A
“nova” sociedade virá. O Reino de Deus está próximo.
Endereço
do autor:
R. Juruá, 798 – Jd. Paineiras
09932-220 Diadema SP / BRASIL
Email: nijlbakker@hotmail
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
* Missionário Verbita, presbítero,
formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral
prática: de 1965 a 1982 na pastoral rural do Vale do Ribeira SP, e, de 1982 a
1993 na pastoral urbana das Zonas Leste e Sul de São Paulo. Entre 1994 e 2000 atuou
como educador popular no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo
Limpo, São Paulo (CDHEP/CL), coordenando os programas de formação de lideranças
eclesiais e o de combate à violência urbana. Entre 1983 e 1988 lecionou
Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia / SP). De 2000 a 2008 foi
auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, em Holambra SP. Representa a CRB no
Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na
pastoral paroquial de Diadema SP. Além de cartilhas populares publicou artigos
pastorais na REB: 34 (1974) 546-571;
47 (1987) 544-577; 57 (1997) 70-81.
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