A
Pastoral dos Direitos Humanos: seu fundamento e os necessários cuidados com a
ideia de “lei natural”
Pe.
Nicolau João Bakker, svd*
Introdução:
O papa Bento XVI, no discurso inaugural à V Conferência
Episcopal de Aparecida (2007), ciente das polêmicas internas na Igreja do
continente, fez questão de dizer que “a evangelização esteve sempre unida à
autêntica libertação cristã”. Surpreendeu a todos também sua enfática defesa da
opção preferencial pelos pobres. Em sua recente Encíclica “Caritas in Veritate”
(2009) insiste em dizer que não bastam meras obras de caridade. Afirma que deve
ser evitado o “assistencialismo paternalista” (no 57), que a justiça
é anterior à exigência da caridade (no 6), e que existem laços
profundos entre evangelização e libertação (no 15). Nas últimas
décadas, todo o esforço sócio-transformador da Igreja - e da sociedade em geral
- tem sido fundamentado, entre outros, no conceito de “direitos humanos”. No
Brasil, a partir da década de 1970, no contexto da ditadura militar, foram
criadas diversas comissões diocesanas - ou pastorais - de direitos humanos. Não
apenas na Igreja, mas também na mídia em geral, nas universidades e nas mais
diversas ONG´s e associações da sociedade civil organizada, os direitos humanos
continuam no topo da lista das grandes causas humanitárias.
Sob ponto de vista pastoral, hoje, a causa dos direitos
humanos deve ser analisada de forma muito mais matizada do que em décadas
passadas para não propor soluções simplistas ou equivocadas. Na Encíclica acima
mencionada, Bento XVI aborda a questão do desenvolvimento na perspectiva dos
direitos humanos e observa: “........ direitos individuais, desvinculados de um
quadro de deveres que lhes confira um sentido completo, enlouquecem e alimentam
uma espiral de exigências praticamente ilimitada e sem critérios” (no
43). Existe um fundamento que “indica” quais os direitos possíveis e quais os
limites. Este fundamento, diz o papa, está gravado como uma espécie de
“gramática” dentro da própria realidade criada, e dentro da natureza humana
feita à imagem de Deus (no 48). O papa aqui faz referência a uma das
mais tradicionais doutrinas da Igreja: a doutrina da “lei natural”. O objetivo
deste artigo é traçar o longo itinerário deste conceito, sua grande importância
na elaboração da proposta dos Direitos Humanos, e o grande cuidado que devemos
ter hoje na aplicação deste princípio para não incorrer em equívocos pastorais.
I
A longa controvérsia em torno da “lei natural”
Uma certa concepção de igualdade e mútua pertença é comum
a todos os povos desde sempre. Do nascer ao morrer seres humanos são
interdependentes de tal forma e sobrevivem por mecanismos tão idênticos que a
vaga idéia de uma “natureza humana” comum surge espontaneamente. É comum também
aos povos pré-modernos crer num Deus Criador, ou em divindades que definem e controlam
a existência humana desde o início. Divindades às quais convém obedecer.
Artefatos da mais antiga Mesopotâmia já falam das “leis dos deuses”. Na
tradição religiosa dos judeus, esta natural religiosidade humana encontra uma
expressão muito particular no Código da Aliança: Javé tem uma predileção
especial pelos que sofrem injustiças. Deus vem ao encontro dos oprimidos e sua
Lei deve permanecer gravada no coração do povo todo.... e até dos outros povos
da terra. Em seu tempo, Jesus não adota o exagerado legalismo do Código de
Pureza do Templo e retoma a inspiração original do Código da Aliança. Para
Jesus, Deus é como um Pai que ama todos os seus filhos e filhas por igual, mas
com um cuidado especial pelos que se encontram à beira do caminho. Amar o
próximo, a começar pelo injustamente marginalizado, seja quem for, esta é a Lei
que realiza o Reino de Deus na terra.
Até aqui ninguém fala em “lei natural”, mas seu esboço já
está presente. Os gregos “pagãos” falam de um “Logos”, uma espécie de Sabedoria
Divina que está na origem de tudo e permeia tudo. Os primeiros cristãos já
discutem acaloradamente com os “gnósticos”, os primeiros “iluminados” da
história que se consideravam superiores aos demais por possuírem a “gnose”, uma
centelha desta Sabedoria Divina. O grande escritor e político romano, Cícero
(†43 AC), amante da filosofia grega, popularizou entre os romanos o estoicismo:
viver a vida natural bem vivida é viver de acordo com o Logos. As leis públicas
e as normas éticas encontram aí seu fundamento, diz Cícero. Na ânsia de
encontrar uma explicação para o mal num mundo governado pelos deuses, as idéias
gnósticas, no terceiro século do cristianismo, levam a uma nova e poderosa vertente,
a maniqueísta: o mundo é governado por um princípio do Bem (superior, divino,
espiritual) e um princípio do Mal (inferior, diabólico, material). Santo
Agostinho (†430), mesmo rejeitando esta vertente, não deixou de sofrer fortemente
sua influência. A mente humana é simplesmente incapaz de pensar independentemente
do seu tempo e do contexto local. A natureza humana, diz este grande místico,
ainda que perfeita, criada à imagem de Deus, foi corrompida pelo pecado, e
apenas uma força superior, uma graça divina, pode levar o ser humano - e a
“Cidade dos Homens” – ao seu destino final, a “Cidade de Deus”.
É São Tomás de Aquino (†1274), o mais influente teólogo
do passado, que fará do conceito de “lei natural” um dos alicerces tradicionais
do pensamento cristão. Para entender São Tomás não podemos imputar nele as
idéias da nossa assim denominada “modernidade”. O que Tomás tem às mãos é a
herança filosófica e teológica do seu tempo. Usa, de preferência, Aristóteles,
inclusive a tese deste sobre a hierarquia das espécies. Deus, opina Tomás, é
sempre o mesmo, eterno, imutável, muito acima de qualquer razão humana. Ao
criar o universo e o mundo tal qual os conhecemos, Deus os criou para existirem
sempre da mesma forma. Todas as criaturas mantêm sua existência de acordo com
uma “lei natural” que nunca muda. Tomás percebia muito bem que seres humanos
mudam sempre de opinião e de comportamento. Ainda assim, afirma que a “natureza
humana” é sempre a mesma. O ser humano está no topo das espécies. Dotado de
razão pode descobrir nas coisas e em si próprio esta lei natural e, assim,
conhecer a vontade do Criador. Faz parte da natureza humana, diz Tomás, tanto a
busca permanente do interesse próprio quanto também a busca do bem comum. Fazendo
bom uso da razão é possível distinguir entre o bem e o mal, tanto o individual
quanto o coletivo. Trata-se de uma capacidade “inata”. A base de todos os
preceitos da lei natural é fazer o bem e evitar o mal. Sendo uma criatura,
sujeita a falhas, o ser humano deve exercitar-se para adquirir uma vida
virtuosa e cabe ao poder público garantir o bem comum.
Familiarizados com este conceito de “lei natural”, os
teólogos e juristas da Idade Média logo irão falar em “direitos naturais”. O
dominicano português Francisco de Vitória (†1536) se torna o “pai do direito
internacional” por defender o direito natural à liberdade dos povos indígenas
frente ao colonizador. Com base neste mesmo direito, outro dominicano,
Bartolomeu de las Casas (†1566), fala até em guerra “justa” dos índios contra
os invasores. Os grandes divulgadores dos direitos naturais no Séc. XVI serão
os muito influentes teólogos e juristas da universidade de Salamanca. Maior
ainda será a influência do advogado, teólogo e jurista Hugo de Groot (†1645),
apelidado pelo rei da França como o “milagre holandês”. Opondo-se à tentativa
de estabelecer na Holanda uma espécie de teocracia calvinista, Grócio defende que
as coisas são boas ou más por sua própria natureza e não apenas por uma ordem
divina. Com base em São Tomás afirma que todas as pessoas que partilham a mesma
natureza humana possuirão também os mesmos direitos naturais.
Com o fortalecimento do pensamento laico nos séculos
seguintes, passar da defesa dos direitos naturais para a defesa dos direitos
humanos foi apenas um passo. Imediatamente após a deflagração da Revolução
Francesa (1789), a Assembléia Nacional Constituinte da França proclama os 16
artigos da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Os bispos franceses
não gostaram nem um pouco. Saudaram os artigos como “um amontoado de posições
estúpidas”. A interpretação da Lei Natural, na opinião deles, cabia somente à
Igreja – de acordo com a já firmemente implantada teologia escolástica – e não
às ovelhas desgarradas do único rebanho de J. Cristo.
A conquista de direitos humanos ainda não fazia parte do
ideário teológico de São Tomás de Aquino, mas ela surgirá como conseqüência lógica
de sua lei natural. Por mais que as novas sociedades “secularizadas” do mundo
ocidental propaguem sua neutralidade frente a qualquer influência religiosa,
sua apaixonada defesa das liberdades e dos direitos humanos tem clara origem na
Revelação e Tradição Cristãs. Ouve-se nela o eco da voz de Javé que exige a
liberdade dos escravos, dos profetas que clamam contra todas as formas de
opressão, e de Jesus que vem anunciar aos pobres o ano das graças do Senhor e
que toma partido a favor dos cegos, surdos e paralíticos, e até da mulher
adúltera, do samaritano, e de todos os demais excluídos do Templo e da
Sociedade de seu tempo.
II
Direitos Humanos na ótica da Igreja e na ótica da Ciência
Quando São Tomás
de Aquino estabeleceu a razão humana como um mecanismo indispensável para
melhor conhecer a vontade de Deus expressa na lei natural, sem querer colocou
fogo na palheira. Tivesse tido ciência das conseqüências, talvez teria
preferido manter-se como “boi mudo”, seu apelido nos tempos de faculdade por
nunca abrir a boca. Jamais pensou em criar oposição radical entre fé e razão. Para
Tomás, primeiro a fé, depois a razão. De fato, em seu tempo, o clima reinante
na Igreja ainda era o de uma quase ditadura eclesiástica. As verdades divinas
reveladas estavam sob controle único e rigoroso do magistério eclesiástico,
considerado pelos teólogos escolásticos o exclusivo guardião do depósito da fé.
Quando, a partir do Séc. XVI, a modernidade abre uma primeira grande brecha na
autoridade eclesiástica, declarando a independência e autonomia das ciências, a
Igreja responde com a Inquisição. Nos séculos posteriores, passada a fase do
casamento de conveniência entre a Igreja e os “reis iluminados”, a Igreja terá
pela frente como seu maior inimigo o modernismo”.1
Tanto
nos países de economia de mercado quanto nos países de economia planejada, os
direitos democráticos e os direitos humanos vão sendo conquistados lentamente,
com muita freqüência, porém, com oposição aberta do magistério da Igreja. São
as correntes espiritualistas internas à Igreja, tanto no protestantismo quanto
no catolicismo, como também a voz profética sempre presente, que sustentam o
anseio popular por um novo céu e a nova terra. É muito lembrado o “catolicismo
social” da França, dos tempos de Lamennais (†1854), Lacordaire (†1861),
Frederico Ozanam (†1853) e outros, como também o esforço de pensadores
humanistas como Jacques Maritain (†1973), abrindo as portas da Igreja para
maiores liberdades democráticas e um poder público independente das instituições
eclesiásticas. Algo muito parecido, porém, ocorre em quase todos os países do
mundo ocidental. Muito lembrado também é a grande renovação teológica, bíblica,
litúrgica e ecumênica dos anos pré-conciliares. Apenas no Concílio Vaticano II,
porém, a Igreja consagra, oficialmente, a liberdade de consciência (Dignitatis
Humanae, 2) e a autonomia das realidades terrestres (Gaudium et Spes, 36).
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela ONU em 1948 teve a
pretensão de ser inteiramente laica. Da mesma forma as “Metas do Milênio”
proclamadas em 2000. Nada mais enganador e ilusório, porém, do que querer
estabelecer uma separação radical entre propostas laicas e propostas, digamos, “religiosas”.
Uma determinada proposta pode ser profundamente religiosa ainda quando
proclamada por uma entidade laica ou mesmo ateísta. Da mesma forma ela pode ser
contrária aos valores religiosos, ainda quando proclamada por uma entidade
religiosa. O que determina o valor religioso de uma determinada proposta?
Existe algum critério objetivo, livre das incertezas de uma opinião meramente
pessoal ou subjetiva? Foi exatamente esta a questão que São Tomás de Aquino se
colocou quando lançou sua tese da lei natural. Quem nos diz o que é religioso
ou não é a própria natureza das coisas. Para Tomás que, além de muito
inteligente, era também um monge dominicano muito místico, já que todas as
coisas foram criadas por Deus, sempre que uma criatura age de acordo com sua
natureza age de acordo com a vontade de seu Criador, e sua ação é, portanto,
moralmente ou eticamente correta. É uma ação “religiosa”. Agir contra a
natureza é agir contra a intenção do Criador e a ação não expressa, portanto,
um valor religioso.
Temos aí uma “chave de leitura” fantástica, muito válida
ainda hoje. Mas logo surge uma pergunta: a natureza de estrelas, pedras,
plantas ou animais, tudo bem, mas quem define o que é “natureza humana”? E quem
define, a partir da natureza humana, os direitos (e deveres) humanos? Para São
Tomás a resposta era evidente: em primeiro lugar Deus, como já observamos, e,
em segundo lugar, a razão. Vivendo numa época pré-moderna era muito natural para
Tomás acreditar na Revelação. Deus falou pelas Sagradas Escrituras e pela
Igreja fundada por Ele, com poder para interpretar corretamente as
Escrituras. A razão vem apenas em apoio
à fé. O bom uso da razão nunca se opõe à fé, pois também a razão foi criada por
Deus. É de sua natureza estar sempre em busca das coisas de Deus. Ainda assim,
Tomás, inspirado por Aristóteles, desenvolve uma espécie de “teoria de
conhecimento” muito interessante: tudo que chega à razão passa antes pelos
“sentidos”. Não é possível conhecer a realidade racionalmente sem antes
observá-la. É preciso antes ver, cheirar, ouvir, apalpar. Conhecer, portanto, é
interpretar!
Na Modernidade os papéis foram invertidos: em primeiro
lugar a razão e depois, para quem quiser, a fé. O novo caminho escolhido, e
isto hoje ficou mais claro, não foi feliz. Os cientistas “apalparam” a
realidade de todas as formas. Ficaram tão entusiasmados com suas descobertas
que, na maioria dos casos, Deus ficou inteiramente de lado. A atitude arrogante
da Igreja também não ajudou. O clima de hostilidade ficou mais do que evidente
quando o primeiro cosmonauta russo, Yuri Gagarin, foi lançado ao espaço em 1961.
Ao voltar para a terra disse que vasculhou todos os cantos do céu e não
encontrou Deus em lugar nenhum. Com a
ciência veio a tecnologia, cada vez mais avançada. Em grandes áreas, o ser
humano, obcecado pela crença na total liberdade da “natureza humana”, se
transformou no predador mais voraz do planeta. Agora, na pós-modernidade, feito
o balanço, e vendo que a felicidade em muitos lugares andou para trás, o mundo todo
se pergunta: o que deu errado? Onde erramos?
Bem, o erro foi não dar a devida atenção à tese fundamental
de São Tomás: descobrir a vontade de Deus na própria natureza das coisas. E ter
humildade, pois interpretar a realidade não é fácil. É uma tarefa coletiva. Por
falta de humildade, a Igreja sempre atribuiu a si mesma o monopólio da verdade.
Agiu como se o Antigo e o Novo Testamento tivessem caído diretamente do céu. Ou
como se fosse possível conhecer Deus sem a realidade da “encarnação”. Jesus não
nos mostra Deus, justamente por meio de sua humanidade? Também à ciência faltou
humildade. Fez sua própria leitura da realidade, sem Deus, sem o apoio da fé, e
deu tudo errado. Pensava gerar uma humanidade feliz, mas gerou uma humanidade
frustrada. Os filósofos do nosso tempo falam de uma “modernidade arrependida”, do
“paradigma perdido”, de um mundo que desprezou a “alteridade” e ficou “órfão de
Deus”. Faltou humildade para reconhecer a imensa sabedoria acumulada nas
grandes e pequenas religiões deste mundo. Faltou dialogar com a Igreja que é,
como disse o papa Paulo VI, “perita em humanidade”. São Tomás, como filho do
seu tempo, ainda podia pensar que a fé vem antes da razão, mas hoje, após
séculos de “interpretação” da realidade, surge um novo e grande consenso: não
existe um antes e um depois. Fé e razão são irmãs gêmeas. Nascem juntas, e uma
não vive sem a outra.
Percorridos os atalhos inevitáveis estamos de volta à
nossa estrada principal, a dos direitos humanos. Sua defesa constitui uma das diretrizes
mais importantes da ação pastoral. O 3o Programa Nacional de
Direitos Humanos (2009), no eixo orientador III, - bordão comum nos documentos
- os declara “universais, indivisíveis e interdependentes”. Para bem enfocá-los
hoje devemos voltar à intuição fundamental que inspirou a teologia de São Tomás,
inspiração que guiou os defensores dos direitos naturais e que também está por
trás dos nobres enunciados das instâncias e sociedades laicas: somente a
“natureza humana” (para nós, cristãos, criada por Deus) pode nos dizer quais
são os “direitos” e os “deveres” humanos. Vejamos isto no concreto da ação
pastoral.
III
A Pastoral dos Direitos Humanos hoje
1. Direitos Humanos são universais “em
princípio”
Tendo
trabalhado, por muitos anos, numa ONG de Direitos Humanos, na cidade de S.
Paulo, no caso o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo
(CDHEP/CL), pudemos sentir de perto duas posturas básicas na população
brasileira. Uma parcela menor, basicamente feita de intelectuais ou militantes
dos movimentos sociais, defende, com grande ênfase, a “universalidade” dos
direitos. Quer dizer, todas as pessoas do mundo, independentemente de qualquer
atributo, têm os mesmos direitos (e deveres). Outra parcela da população
percebe que as pessoas são muito diferentes umas das outras. Existem as
virtuosas e as criminosas. Os direitos, portanto, não podem ser iguais. Chega
de “defender bandido” costumam logo afirmar. O debate mais acalorado na II
Conferência Internacional de Direitos Humanos da ONU, realizada em Viena
(1993), foi exatamente sobre este “universalismo” dos direitos humanos.
A Modernidade
constatou um problema de linguagem. Nossa linguagem foi codificada pelos
gregos. Os filósofos gregos tinham uma verdadeira mania: encontrar a “essência”
de todas as coisas. Esta vai aparecer, afirmam, quando desnudamos as coisas de
todos os atributos e aparências. O que acontece quando eliminamos do ser humano
sua idade, sua cor, seu sexo, e todas as particularidades de seu tempo e seu
contexto? Bem, sobra “a humanidade”, ou a “natureza humana”. Mas qual o
problema? O problema é que “a humanidade” ou a “natureza humana” só existem na
nossa cabeça. Na terra mesmo só existem João, Pedro e Dona Maria. Há uma
diferença enorme entre o João que veio do Ceará e o John que nasceu em Nova
York. Entre Pedro que nasceu branco, em berço esplêndido, e o Pedro, de cor
negra, nascido num morro carioca. E Dona Maria não pensa da mesma forma se vive
na Ásia, na África ou na América do Sul. Os gregos, dizem os entendidos, tinham
a mania de “ontologizar” tudo. Ontologizar é uma palavra que indica a tendência
de falar sempre da essência das coisas. Para não ficar falando de coisas que na
realidade não existem devemos então “de-ontologizar” a nossa linguagem.
Não adianta, portanto, como bom militante de uma Igreja
comprometida, empunhar a bandeira dos direitos humanos da mesma forma em todos
os tempos e em todos os lugares. Os direitos humanos são universais “em
princípio”, mas sua concretização depende do tempo e do lugar. A consciência e
a viabilidade dos direitos humanos evoluem com o tempo. Alguns afirmam que, no
Brasil, já estamos na “quarta geração” de direitos. Primeiramente vieram os
direitos civis e políticos (direito de ir e vir, liberdade de consciência,
liberdades democráticas, etc.), depois vieram os direitos sociais e econômicos
(direito à saúde, educação, transporte, etc.). Pouco depois surgiram os
direitos culturais (de raça, gênero, opção sexual, etc.). E hoje estamos em
plena conquista dos direitos ambientais (da terra, da água, da biodiversidade,
etc.). Tudo tem a ver também com as “viabilidades locais”. Da “natureza humana”
– foi esta a inspiração original de São Tomás – surgem apenas os “princípios
orientadores” que não mudam, mas sua concretização depende das circunstâncias.
Todos/as, em princípio, temos direito à vida digna, a um transporte decente por
exemplo. O que não significa que temos direito a um metrô moderno em todos os
bairros da nossa cidade quando no orçamento municipal não há dinheiro nem para condições
mínimas de saúde da coletividade.
2.
Direitos humanos surgem do conflito ou de parcerias?
Nossas pastorais sociais, nas décadas passadas, se
alimentaram fortemente de uma assim denominada “pastoral do conflito”. Falou-se
também de uma “espiritualidade do conflito”. Na mesma linha, Dom Pedro
Casaldaliga, poeticamente, chegou a falar de uma “espiritualidade do ódio”. Também
o trem das CEB´s alimentou-se, por muitos anos, de uma espécie de “mística
guerreira”. Pessoalmente vivenciamos esta espiritualidade por longos anos e, no
mar manso do nosso tempo, chegamos a sentir saudade dela. Mas há problemas. A
fonte desta concepção e vivência tem muito a ver com a tradicional filosofia
binária, herança da lógica grega, que vê uma contradição irreconciliável em
todas as oposições. Preto é preto, branco é branco. Ou é verdade ou é mentira.
Patrão é patrão, trabalhador é trabalhador, e assim por diante.
Na ciência tradicional, de fato, as coisas eram assim. Estrelas
brilham, planetas não. Não se deve confundir alhos com bugalhos. Mas desde que
se estudou “o lado de dentro” da matéria, as relações quânticas no interior dos
átomos, e principalmente desde que se estudou em maior profundidade a
complexidade dos seres vivos e da mente humana, o modo de ver as coisas mudou
radicalmente.2 Seres vivos estão “conectados” com seu meio ambiente
mediante órgãos supersensíveis que captam as mais incríveis – e invisíveis - influências.
O cérebro humano é o maior gênio do planeta. Sua carga genética guarda toda a
experiência de sua bilionária evolução biológica, e sua memória – inconsciente,
mas não inconseqüente! -, não perde nada. Usa tudo para projetar-se no futuro,
para viver, progredir e sobreviver melhor. Descobriu-se agora que a mente humana absorve
a verdade por partes. A verdade é como mãe: sempre cabe mais uma. Minha verdade
precisa da sua para se fortalecer. Verdade e mentira não se opõem. Muitas
verdades escondem mentiras e a verdadeira verdade surge na medida em que todas
as verdades “se sobrepõem”.
Nós, da Igreja, sempre tivemos uma particular relação com
a verdade. Nada nos impede de considerarmos nossa riquíssima tradição cristã a
melhor de todas. Ainda assim, nada ofende mais profundamente o mundo moderno do
que nossa pretensão de monopólio. A Teologia da Libertação nos habituou a ver o
mundo dividido entre oprimidos e opressores, entre os certos e os errados. A
Pastoral do conflito nos preparou para a “jihad”, a guerra santa. Sem dúvida
convém deixar a ingenuidade de lado e perceber com muita clareza as profundas
oposições existentes na sociedade, especialmente entre a economia radical de
mercado e outras economias de cunho mais solidário. Contudo, Jesus, no momento de
seu maior conflito, pediu para pôr a espada na bainha. Quem puxa pela espada,
morre pela espada (Mt 26,52).
No momento, em Diadema, estamos envolvidos na construção
de uma rede de entidades, de forma supra-partidária e supra-religiosa, tendo em
vista a conquista de maiores direitos humanos para a população. Após meses de
diálogo com bons especialistas está marcado um grande seminário de segurança
pública. Os órgãos decisórios das polícias civil e militar, sem dúvida, estarão
presentes. O Fórum indicará alguém para apresentar suas propostas mais sensíveis.
A pressão não será pequena. As comunidades virão dar apoio aos seus
representantes no Fórum. O bispo local
acaba de confirmar a sua presença para falar em nome das comunidades católicas.
O Presidente do Conselho de Pastores - são mais de cem só na nossa área! -
falará em nome das Igrejas Evangélicas. E algum fruto surgirá. Aonde a gente
andar, o que protege a vida é uma rede de relações. A “luta” pelos direitos
humanos é uma área conflituosa, mas é pela construção de boas parcerias que
colheremos os melhores resultados.
3. A “lei natural”
ainda vale como fundamento?
Quando o eminente filósofo Friedrich Nietzsche (†1900) anunciou
a “morte de Deus” e, muito depois, para a surpresa geral, alguns teólogos
seguiram seu caminho, na verdade estava-se anunciando o fim da possibilidade de
uma comunicação direta entre o mundo sobrenatural – a “meta-física” / o
“transcendente” – e o mundo natural. Contudo, Deus sempre falou e continua
falando conosco através de “sinais” muito concretos no nosso caminho, na nossa
história. Aí voltamos ao desafio acima
já mencionado: se Deus se comunica conosco apenas indiretamente, através da
realidade criada e a ser interpretada, como fundamentar nossa preocupação com os
direitos humanos? Se não existe um fundamento inquestionável e absoluto, não
fica tudo muito relativo e o papa não tem razão em falar de uma “ditadura do
relativismo”? De fato, concordam os teólogos, hoje não existe mais a tranqüila
segurança do passado, mas existe um fundamento seguro, sim. Basta recuperar
para o nosso tempo uma antiga sabedoria: a da “lei natural”.
É preciso desfazer a antiga teoria de São Tomás de sua
roupagem temporal (espiritualista, hierarquizadora, etc.) e captar a mensagem
permanente: para saber qual o direito (e o dever) do ser humano basta olhar com
atenção para o que o ser humano é, para a sua “natureza”. A pastoral dos
direitos humanos não se fundamenta em primeiro lugar numa concepção teológica,
mas, antes de tudo, numa concepção “antropológica”. O chamado “mundo ocidental
cristão” sempre levou bem alto a bandeira dos direitos humanos, mas, ainda
poucos anos atrás, um líder indígena devolveu ao papa a Bíblia, pois foi o
mundo cristão que exterminou povos inteiros afirmando que “índio não tem alma”.
Defender os direitos humanos apenas com “idéias religiosas”, supostamente “não
relativas”, às vezes faz rir (ou chorar). Na década de 1970 trabalhávamos na
cidade histórica de Iguape SP. Em um velho casarão, doado à Igreja, encontramos
um baú cheio de documentos carcomidos. Numa carta do Séc. XVIII, o bispo de Rio
de Janeiro, responsável pela igreja, autoriza a Irmandade do Senhor Bom Jesus a
“vender tanto o escravo como também sua filha”, com o seguinte acréscimo:
“desde que por um bom preço”. E, muito recentemente, ao ser transferido de uma
Paróquia a outra, o novo padre, recém-ordenado, na primeira missa que celebrou,
exatamente no Dia Internacional da Mulher, avisou solenemente ao povo: “de hoje
em diante nenhuma mulher mais pode ficar aqui neste altar, porque altar é lugar
de padre”.
Não são relativas as idéias tidas como seguras? O que não
é relativo no ser humano é o seu corpo. A natureza leva milhões de anos para mínimas
mudanças. É sempre igual, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Precisa de
água, comida e carinho em qualquer lugar do planeta. Se não tem, chora. Se é
bem tratado, ri. Seu cérebro lhe permite adaptar-se ao meio ambiente de mil
formas, individual e coletivamente. E, diante dos inevitáveis fracassos e
contingências de sua condição humana, a natureza – lembre-se: para São Tomás e
para nós, crentes, é Deus – lhe deu, sem distinção, uma força extraordinária:
uma espiritualidade, uma religião, alguma forma de “igreja”. Está sempre
presente também a força propulsora do sexo – de diversas modalidades, sabemos
hoje -, do aconchego e da vida familiar.
É deste corpo humano, universal, que brotam os direitos
humanos universais. Basta observar sua “natureza”, diz Tomás. Existem os
“universais antropológicos” diria o eminente antropólogo francês Edgar Morin. Se
assim Deus o fez, assim há de ser. Essa é sua “lei natural”. Com base na
arrogância de suas “idéias”, o mundo ocidental proclamou como universal o
direito a liberdades que, na verdade, eram leviandades (com a coletividade e
com a Terra). O teólogo asiático, Diretor da Revista Concilium, Felix Wilfred,
em Concilium 322/07, nos lembra que o
pensador francês, Alexis de Tocqueville (†1859), já em 1835 constatou que as
liberdades democráticas francesas resultaram apenas em terror por não levar em
conta “o fundamento religioso da igualdade humana”. Na histórica Conferência de
Bandung (1955), 29 países asiáticos e africanos (não-alinhados) acusaram o
mundo ocidental de ter mantido um altivo discurso de direitos humanos em meio a
uma prática de agressiva colonização. Ainda hoje, a “mente” humana põe sua fé
no “mercado livre”. O “corpo” humano não. Este só acreditará no dia em que
oferecer emprego e pão para todos/as.
Uma boa teologia – e uma boa pastoral – não existe sem uma
boa antropologia. Como defende Edgar Morin, não a tradicional “antropologia cultural”
que separou a mente do corpo, privilegiando a mente, mas a “antropologia
natural”, ou “ecológica”, que vê o ser humano como corpo pensante, em comunhão
com a natureza da qual surgiu. A pastoral da Igreja, particularmente com
relação às questões ligadas à bioética e ao impulso sexual, ainda reluta em
passar da postura doutrinal para posturas mais respeitosas desta antropologia
humana. São Tomás, o boi mudo das aulas de Santo Alberto Magno (†1280), ainda
tem muito a nos ensinar sobre um Deus onipresente na natureza humana, a qual,
da mesma forma como os céus e o firmamento, “é obra de suas mãos” (Sl 19,2).
*Missionário do Verbo
Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais.
Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Por muitos anos atuou no
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), São
Paulo, coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de
combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Itesp (Instituto de
Teologia / SP). Durante 8 anos foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no
município de Holambra SP. Representa a CRB no Programa Estadual de Proteção a
Testemunhas (Provita/SP). Publicou cartilhas populares e artigos diversos na
área pastoral.
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
1. Para maiores
informações, ler Vida Pastoral, no
282, 2012, artigo A Pastoral em Novas
Perspectivas (IV): Perspectiva política de futuro na cosmovisão ecológica.
2. Um esboço
aprofundado desta nova “cosmovisão” pode ser encontrado em Vida Pastoral, no 278, 2011, artigo A Pastoral em Novas Perspectivas (I): Introdução ao Tema.
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