Convite papal à Vida
Consagrada: passar da autorreferencialidade para a "cultura do encontro"
Pe. Nicolau
João Bakker, svd*
Introdução:
Ao entrar, recentemente, numa casa paroquial, surpreendi-me com dois
quadros na parede, um do papa Bento XVI e outro do papa Francisco. O papa Bento
meio carrancudo, sério, visivelmente contrariado com tanta relativização das
verdades eternas, às quais, como professor de teologia, dedicou a sua vida e o seu
pontificado. O papa Francisco, ao contrário, muito sorridente, jovial e alegre,
encarando tudo de uma forma mais esperançosa. Dois símbolos de uma Igreja ora
mais preocupada com o mal que lhe cerca, ora mais confiante na presença do
Espírito que tudo renova.
O papa
Francisco fez do ano 2015 o "Ano da Vida Consagrada". Não me surpreende
que, em sua Carta Apostólica às Pessoas
Consagradas (2014), diz esperar que seja sempre verdade o que já afirmou em
outra ocasião (a seminaristas e noviças): "onde há religiosos, há alegria"
(2.1). Alegria é também a nota característica de sua primeira Exortação
Apostólica, Evangelii Gaudium (2013), que inicia dizendo: "A alegria do
Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com
Jesus". Pelo mesmo motivo, a Congregação para os Institutos de Vida
Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica dá à sua Carta Circular aos consagrados e consagradas (2014), o título de
"Alegrai-vos". Toda a Carta da Congregação aprofunda, biblicamente, o
convite papal à alegria. Especialmente
em Isaías e nos Salmos, a palavra 'alegria' evoca a presença de Deus na
história de Israel. Da mesma forma, no Novo Testamento, o sentimento de alegria
antecede o nascimento do Salvador e acompanha a boa notícia da difusão do
Reino. Para Paulo, a alegria é fruto do Espírito (Gl 5,22). Tristeza só para os
que não têm esperança (1Ts 4,13). Alegria é também o dom messiânico por
excelência. Como ter tristeza quando estão para se realizar "as núpcias do
cordeiro. Felizes os convidados!" (Apoc 19,9).
No
presente artigo gostaria de ressaltar a íntima relação entre espiritualidade da
Vida Consagrada e ação pastoral. É através do fortalecimento desta relação que o
papa Francisco quer dar um novo rosto à Igreja.
I A espiritualidade
como berço da pastoral
A Pastoral, na sua forma mais simples, pode ser definida como "a
ação concreta da Igreja". Por isso, em si mesma, esta ação não é boa nem
má, ela simplesmente é o que é. Historicamente, a ação da Igreja passou por
fases muito distintas. Na sua feição externa, uma é a Igreja da era patrística,
outra a da cristandade, e mais outra a da modernidade. Há uma
"cosmovisão" de fundo que, com o passar do tempo, faz ver tudo em
nova perspectiva, inclusive e especialmente nosso modo de pensar sobre Deus e o
Sagrado. Escrevi mais detalhadamente sobre isso em Vida Pastoral Nos 278, 279, 281 (2011) e 282 (2012). O
tempo e o lugar dão à Igreja - e à Pastoral - um rosto próprio. Poderíamos
dizer também: uma "riqueza" própria. Entendemos isso melhor quando
percebemos que o berço da pastoral é a própria espiritualidade.
Em
perspectiva antropológica podemos dizer: a espiritualidade nasce com o próprio
ser humano. O cérebro humano evoluiu lentamente, e as fases de sua evolução
ainda podem ser detectadas facilmente na "fisionomia" cerebral. Tão
logo criou consciência de si mesma, a humanidade voltou-se para Deus, ou para o
mundo do Sagrado, numa diversidade cultural impressionante. Em sua existência
individual e coletiva, em busca de uma vivência, convivência e sobrevivência
feliz, o ser humano se percebe radicalmente dependente, insuficiente e falho.
Percebe também que pode "superar-se a si mesmo" e encontrar uma
felicidade maior por meio de esforços mais intensos e uma inserção social mais colaborativa. As
grandes religiões humanitárias - como também as "pequenas" -, são as
expressões mais evidentes desta busca humana por uma existência bem sucedida.
Por isso, alguma forma de espiritualidade marca todas as sociedades e todas as
pessoas. A longa e riquíssima tradição cristã nos deu a impressão de sermos os
únicos e os melhores, mas a moderna "consciência interreligiosa" nos
pede grande cuidado. Temos muito a aprender uns com os outros.
Vale a
pena prestar atenção aqui a uma discussão acadêmica atualmente em destaque. A
revista Veja (17/12/2014)) trouxe uma
reportagem sobre o neurocientista americano Sam Harris, autor do livro A morte da fé (Companhia das Letras,
2009). Esse cientista faz parte do grupo de cientistas do tal "novo
ateísmo". "Após ler centenas de livros sobre religião", Harris diz
ter chegado à conclusão que as religiões institucionalizadas, ao invés de
estimular a espiritualidade, acabam com ela. Assim como Marx, 150 anos atrás,
viu na religião um "ópio", assim estes cientistas vêem nas religiões uma
"ilusão da mente". Estimam a espiritualidade, mas não a pretensão das
Igrejas de monopolizá-la ou mesmo orientá-la. As Instituições Religiosas, para
eles, não representam o trigo, mas o próprio joio a ser arrancado. A ciência,
de fato, embora ainda de forma rudimentar, descobriu que a "experiência
mística" não é privilégio ou exclusividade da Vida Consagrada ou dos
mosteiros. Ela é universal e traz uma carga elevada de positividade em termos
de compreensão do contexto individual e coletivo - uma mente
"iluminada" -, e também em termos de disponibilidade para o bem
comum. A muito afamada física (quântica) americana, Danah Zohar, observa que, nos
nossos momentos mais ricos em espiritualidade, os neurônios de uma determinada
área do nosso cérebro - o "ponto Deus", dizem alguns - vibram em
total harmonia, em torno de 40 Hz/ciclos por segundo (cf. Inteligência Espiritual, Viva Livros, Rio de Janeiro, 2012). E isso de forma inteiramente
independente de qualquer instituição religiosa. Para estes cientistas basta a
força dinamizadora desta espiritualidade puramente humana para criar uma nova ética
e moralidade, o "humanismo secular".
Será? Voltarei ao assunto. Por
enquanto basta perceber que a Modernidade olha para a Vida Consagrada de forma
bastante cética e desconfiada. Se ela não der testemunho de algo que realmente
traz alegria, felicidade e proveito ao ser humano, ela provavelmente não terá
êxito no século XXI. O papa Francisco não é apenas o papa de rosto sorridente,
ele é também um papa de grande inteligência e convicções espirituais profundas.
Inicia sua Carta, dizendo: "Escrevo-vos como sucessor de Pedro..., e
escrevo-vos como vosso irmão, consagrado a Deus como vós". Ele tem plena
consciência da íntima relação entre ação pastoral e espiritualidade. A pastoral,
em todas as suas ricas e variadas manifestações, ou se alimenta de
espiritualidade, ou ela não passa de uma etiqueta mentirosa que nada diz sobre
o conteúdo da garrafa.
II Vida Consagrada:
convite a algo mais
O Cardeal João Braz de Aviz, atual Prefeito da mencionada Congregação,
observa na sua Carta Circular que não vê a Vida Consagrada como um "modelo
de perfeição", segundo concepções do passado (1). Todos os cristãos (e
cristãs) são chamados à perfeição. Nem como vivência "radical" do
Evangelho. Todos/as devem vivê-lo radicalmente (1). No entanto, deve existir
"algo especial", na linha do profetismo (1). Algo que vai além das
"argumentações institucionais e justificações pessoais" (1). Na
realidade, não é fácil definir em que existe exatamente aquele "algo
mais" da Vida Consagrada. O Decreto Conciliar (Vaticano II) Perfectae Caritatis praticamente se
limitou à exigência de "renovação". O Cap. VI da Lumen Gentium, dedicado aos religiosos, vê os conselhos evangélicos
como um aprofundamento da consagração batismal, um "sinal" que indica
que o povo de Deus não tem na terra a sua cidade permanente (LG 44). O estado
religioso torna seus seguidores mais livres das preocupações terrenas e os
consagra mais intimamente ao serviço divino.
É
especialmente na Exortação Apostólica pós-sinodal Vita Consecrata (1996) que o algo especial da Vida Consagrada é
aprofundado. O Sínodo fora convocado exatamente "para aprofundar seu
significado e as suas perspectivas em ordem ao novo milênio" (2). Ela vê a
Vida Consagrada como um "dom do Espírito Santo" que vai além da
consagração batismal. Os conselhos evangélicos representam um seguimento
radical de Jesus Cristo pobre, casto e obediente, "sendo o vínculo sagrado
da castidade pelo Reino o primeiro e mais essencial deles" (nos
14 e 32). O documento alerta para um possível equívoco: "O desejo louvável
de solidarizar-se com os homens e mulheres do nosso tempo ... pode levar a um
estilo de vida secularizado, ou a uma promoção de valores humanos em sentido
puramente horizontal" (38). Os religiosos, porém, devem ser "peritos
em comunhão" e "espiritualidade de comunhão", sendo que, desta
forma, "a comunhão abre-se para a missão e converte-se ela mesma em
missão" (46). "A missão é essencial para cada Instituto, não só nos
de Vida Apostólica, mas também nos de Vida Contemplativa" (72). Diz o
documento ainda que "a Vida Consagrada não se limitará a ler os sinais dos
tempos, mas há de contribuir também para elaborar e atuar novos projetos de
evangelização para as situações atuais" (73). E ainda lembra: "O
caráter profético da Vida Consagrada foi posto em grande relevo pelos Padres Sinodais"
(84).
Há um
dado que, em todos os documentos, sempre volta à tona. Diz Perfectae Caritatis (2e): "As melhores adaptações às necessidades
do nosso tempo não surtirão efeito se não forem animadas da renovação espiritual que sempre... deve
ter a parte principal". A Vita
Consecrata vê na espiritualidade dos conselhos evangélicos um
"significado antropológico profundo" (87). Que nossos irmãos - e
irmãs - ateístas nos perdoem, mas não basta um humanismo meramente "secular".
Este, em princípio, é bem vindo, pois representa o "berço" a partir
do qual todo ser humano inicia sua caminhada espiritual nesta terra sempre
cheia de ambiguidades e imperfeições. Mas é exatamente sobre esta base que as
grandes e pequenas tradições religiosas constroem suas espiritualidades
específicas, tendo em vista sua resistência, aprofundamento e dinamização.1
Seja o budismo, hinduísmo, taoísmo, ou o cristianismo, encontraremos a presença
constante de centros de espiritualidade - mosteiros, ashrams (Índia), guans ou ans (China), Zenderas (Japão), etc. -
nos quais as sociedades encontram sua fonte de inspiração e orientação. Quando
estes centros deixam de inspirar a população, porém, quem deve se adaptar e
renovar-se em primeiro lugar são os "mosteiros", ou "os
religiosos", e não a população. São os consagrados e as consagradas que devem
ser os "sinais" do algo mais. "Sua luz deve brilhar diante dos
homens" (Mt 5,16). O "Ano da Vida Consagrada" é uma oportunidade
para ela renovar-se, voltando à fonte da qual surgiu.
III Da
autorreferencialidade para a "cultura do encontro"
Dizem que há um certo desânimo no ar. Se tanto o papa Francisco quanto o
Prefeito da Congregação da Vida Consagrada insistem em "alegria", é
porque alguma nuvem de tristeza nos atingiu. Talvez a tristeza que surge quando
não há clareza sobre o caminho a seguir, ou então a que se abate sobre nós
quando perdemos de 7 a 1 em alguma competição. De fato, há muitos motivos para
preocupação, e não somente na Vida Consagrada. A Igreja toda está como que na
berlinda. Basta lembrar alguns exemplos. O impressionante avanço do pentecostalismo
é um deles. O abandono de um milhão de católicos por ano é mais do que preocupante.
Ainda não temos uma estratégia pastoral adequada para "segurar" o
nosso rebanho. Existe um sentimento generalizado entre os teólogos e as
teólogas de que é preciso mexer na doutrina do ministério ordenado, mas qual o
caminho? Predomina a falta de coragem. Um dos problemas de fundo é a falta de
sintonia entre a Cúria Romana e o senso comum dos cristãos nas questões de fé,
o sensus fidelium dos fiéis declarado
"infalível" em LG 12. O papa Francisco foi encarregado de implementar
a reforma da Cúria, mas tudo leva a crer que, mais uma vez, nada substancioso
irá ocorrer. O Concílio Vaticano II abriu portas e janelas, mas elas foram cuidadosamente
fechadas novamente. Temos dificuldade de lidar com o vento impetuoso do
Espírito que deu origem à Igreja.
A Vida
Consagrada enfrenta dificuldades parecidas. Foram-se os bons tempos quando
milhares de mosteiros europeus puderam
dar sustentação a uma cristandade em geral ávida para acolhê-los. As inúmeras
obras de caridade - asilos, escolas, hospitais, orfanatos, etc. - que deram
visibilidade às novas fraternidades e irmandades religiosas surgidas na
Modernidade foram, em geral, assumidas por governos laicos. Como ser "sinal"
sem obras? E as numerosas novas Congregações missionárias que encontraram
espaços de atuação quando se romperam os estreitos limites geográficos do
passado? Qual a missão que resta quando o medo do inferno se desfaz e a teologia
do pluralismo religioso ressalta a presença benevolente de Deus em todas as
religiões? Isso sem falar da enorme onda de secularização nos países
desenvolvidos que pôs fim às vocações. Aliás, uma secularização em fase de
globalização, na medida em que o mundo todo se escolarizar e se sujeitar à cultura urbana ocidental.
Preocupações não faltam. Há muito mais perguntas do que respostas. É neste
clima eclesial um tanto quanto desanimado ou estressado que o papa Francisco
foi eleito. Mas o papa não parece estar desanimado, ou então percebe o "desânimo
pastoral" (EG 82) e está em busca de uma reversão. Sua primeira Exortação,
Evangelii Gaudium, é um grito forte
de alegria e esperança (1 a 13). Quem realmente crê que a Igreja é guiada pelo
Espírito só tem motivo para "estremecer de alegria" (Lc 10,21). Nunca
cabe "cara de funeral" (EG 10).
Qual é o
ponto central ao qual o atual sucessor de Pedro dedica toda a sua atenção? Para
quem analisa com cuidado o que tem escrito e falado nestes primeiros anos de
seu pontificado não pode haver dúvida: a
Igreja deve superar a sua "autorreferencialidade" e, com confiança no
Espírito, adotar, decididamente, a "cultura do encontro". O papa quer
uma Igreja decididamente missionária, uma Igreja em atitude de
"saída", isto é, na rua, na sociedade, nas "periferias
existenciais" (Carta Apostólica
2.4) do povo, em especial do povo pobre. Na sua Exortação EG faz desta
ideia-chave o fio condutor do documento, até certo ponto dando sequência ao Documento de Aparecida, em parte obra de
suas mãos. Fazendo suas as palavras de J. Paulo II, observa que a atividade
missionária ainda hoje representa "o máximo desafio" da Igreja e
"a primeira de todas as causas" (Redemptoris
Missio 40 e 86). É "o paradigma de toda a obra da Igreja",
complementa (15). Já no primeiro capítulo fala da Igreja em saída (20). A
comunidade missionária deve "ir ao encontro, procurar os afastados e...convidar
os excluídos" (24). Ela deve constituir-se "em estado permanente de
missão" (25; cf. DAp 201). O
papa diz "sonhar" com uma Igreja dedicada "mais à evangelização
do mundo atual do que à autopreservação", uma Igreja livre de qualquer "introversão
eclesial" (27). "Um coração missionário ... nunca se refugia nas
próprias seguranças, ... ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da
estrada" (45). "Mas a quem a Igreja deveria privilegiar?... Sobretudo
aos pobres e aos doentes, ... àqueles que não têm com que te retribuir"
(48; cf. Lc 14,14). Encerra o primeiro capítulo da seguinte forma: "Mais
do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas
estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em
juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá
fora há uma multidão faminta e Jesus nos repete sem cessar: 'Dai-lhes vós
mesmos de comer'" (49; cf. Mc 6,37).
Especialmente
no segundo capítulo, o papa pede uma Igreja que - em oposição à
"globalização da indiferença" e à "espiritualidade sem
Deus" - vai "ao encontro". São muitas as passagens: 54; 63; 70;
74; 78; 87-92. Particularmente os/as agentes pastorais são convidados/as a
abandonar os "espaços pessoais de autonomia" (78), o
"pragmatismo cinzento da vida cotidiana" (83), o "veneno amargo
da imanência" (87), como também o "neopelagianismo
autorreferencial" (94), o "mundanismo espiritual" e o
"funcionalismo empresarial" (95). O papa percebe uma certa
"falta de cuidado pastoral com os mais pobres" e a "inexistência
de um acolhimento cordial nas nossas instituições" (70). É preciso
redescobrir a "mística" de viver juntos (87), "abraçar o risco
do encontro com o rosto do outro" e praticar "a revolução da
ternura" (88). Longe qualquer "autocomplacência egocêntrica"
(95). "Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou
pastorais!" (97).
IV Vida Consagrada: não deixar morrer a
profecia!
Gostaria de voltar, antes de
tudo, à perspectiva antropológica. Ela está recuperando espaço na teologia, mas
ainda de forma muito tímida. Se nos limitarmos às grandes tradições religiosas
vejo que todas elas ressaltam três dimensões fundamentais: 1) vivenciar e testemunhar o que é mais essencial
na tradição religiosa; 2) estar a serviço das necessidades religiosas da
população; 3) levar a riqueza da tradição religiosa a quem dela sinta falta. Em
cada tradição religiosa, as três dimensões estão presentes numa variedade
imensa e sempre sujeitas às transformações culturais do tempo. Não é difícil
perceber que a primeira dimensão corresponde ao que, dentro do cristianismo,
conhecemos como "Vida Contemplativa", a segunda como "Vida
Ministerial", e a terceira como "Vida Religiosa Apostólica ou
Missionária.
Não
sou especialista na área, mas creio que as três dimensões mencionadas estejam
presentes também nas "pequenas" tradições religiosas em qualquer
lugar do mundo, hoje e sempre. Por quê? Porque as três são indispensáveis à
felicidade humana, tanto a individual quanto a coletiva. Dentro da tradição
judaico-cristã (e islâmica), tem-se dado prioridade, por séculos e mais
séculos, à doutrina, à "ortodoxia". Esta nunca foi desligada, porém,
do objetivo maior da "vida plena" (Jo 10,10), almejada por Jesus.
Hoje, especialmente nas questões de moral e ética, é importante ressaltar que o
objetivo maior da vida cristã não é a fidelidade a uma doutrina, mas a
fidelidade à felicidade humana. Formulações doutrinárias estão presas às
linguagens e compreensões das épocas, a felicidade humana não. Esta tem sua "permanência
antropológica". Ora, cabe à Vida Consagrada - nas suas três dimensões - demonstrar que a completa
felicidade humana não se encontra nesta terra. A pregação de Santo Agostinho
continua válida: somente em Deus o coração humano encontra repouso. Não basta o
humanismo secular. Bem que Bento XVI dizia: "O humanismo que exclui Deus é
um humanismo desumano" (CV 78).
Há algo
que a nossa pastoral latino-americana costuma esquecer: a lição fundamental da
"secularização". Num país secularizado, especialmente no seu viés
ocidental, as vocações à Vida Consagrada quase que desaparecem por completo. O
Brasil já deu uma forte arrancada neste processo de secularização. No mundo
ocidental, hoje fortemente laicizado, em grande medida, apenas os bens
materiais são valorizados, disponibilizados e propagados. Neste mundo, os
mosteiros dedicados a Mamon, os sacerdotes do Mercado e os missionários da espiritualidade
secular, estão onipresentes. E quais os/as agentes pastorais capacitados/as
para "reverter" a situação? Creio firmemente que não serão os poucos
religiosos ou religiosas que "sobram". Será, em primeiro lugar, a
própria "insatisfação antropológica" que possibilitará a reversão. A vida exclusivamente materialista
não satisfaz. Ao contrário, apesar de sua atratividade passageira, repugna. Na
nossa modernidade avançada, os primeiros sinais da reversão já estão presentes.
Hoje, até os ateístas mais militantes já reconhecem que alguma forma de
espiritualidade se faz necessária.
Qual a
mensagem do papa Francisco à Vida Consagrada? Na sua Carta Apostólica às
pessoas consagradas diz: "Vós não tendes apenas uma história gloriosa para
recordar e narrar, mas uma grande história a construir!" (introd.; cf. Vita Consecrata 110). E o Prefeito atual da Congregação para os
Institutos da Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica acrescenta, na
Carta Circular: No Ano da Vida Consagrada são esperadas "ousadas decisões
evangélicas" (1). É preciso "sair do ninho" (10) e
"perguntar-nos: como está a minha fecundidade espiritual e a minha
fecundidade pastoral (12)?" Aí entra o que parece ser uma das ideias-chave
do pontificado e da Carta do papa Francisco: o que mata a Igreja em geral, e a
Vida Consagrada em especial, é a "doença da autorreferencialidade"
(2.3). A Igreja não foi feita para si mesma, muito menos a Vida Consagrada, seja
qual for a sua dimensão. A luz que deve brilhar diante dos homens não pode ser
colocada "debaixo do alqueire" (Mt 5,15). Não adianta "fazer
arqueologia", diz o papa, ou "cultivar inúteis nostalgias" (1.1).
É preciso retornar sempre de novo à "centelha inspiradora" dos/as
fundadores/as (1.1) e, mais ainda, à do próprio Jesus Cristo.
O papa
não se limita a criticar a autorreferencialidade, mas também aprofunda o seu
oposto: viver a "mística do encontro" (1.2). "Tal como
Jesus...comunicou a sua palavra, curou os doentes, deu o pão para comer,
ofereceu a sua própria vida, assim também os fundadores se puseram ao serviço
da humanidade, à qual eram enviados pelo Espírito, servindo-a dos mais diversos
modos... A inventiva da caridade não conheceu limites" (1.2). Uma Igreja
"em saída" exige "viver com paixão (alegria!) o presente".
Há necessidade de "procurar juntos o caminho, o método" (1.2). Para
"fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão" (2.3; cf. Novo Millennio Ineunte 43), ... "os
diferentes institutos ... devem sair das fronteiras do próprio instituto para
elaborar em conjunto, a nível local e global, projetos comuns de formação, de
evangelização e de intervenções sociais" (2.3).
Ocasionalmente
parece que o papa Francisco interpreta a opção preferencial pelos pobres numa linha
puramente assistencial. Sem dúvida não concebe a Igreja cristã sem
"sinais" claros de presença junto àqueles e àquelas que se encontram
"à margem". Não deixa de ver, porém, a limitação inerente à esta
opção. O quarto capítulo de Evangelii
Gaudium é inteiramente dedicado a esta questão. Diz o papa com todas as
letras: "Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências,
deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem
radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e,
em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais"
(202). E segue: "Qualquer comunidade da Igreja ... sem se ocupar
criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com
dignidade ... facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado
em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios" (207).
Tudo
isso é válido para leigos/as, ministros ordenados, ou qualquer outro/a agente
pastoral, mas, em especial, para a Vida Consagrada. Lembro, mais uma vez, a
posição do Prefeito da já citada Congregação: o "algo especial" da
Vida Consagrada está intimamente ligado à "linha profética". E o papa
diz: "... a nota característica da vida consagrada é a profecia", e
"um religioso deve jamais renunciar à profecia" (2.2). Dom Helder
Câmara, em suas últimas palavras, confidenciou a um amigo: "não deixem morrer
a profecia". Parece-me este o grande desafio que o papa coloca para a vida
contemplativa, ministerial e apostólica: superar a autorreferencialidade e ir,
com alegria e esperança, ao encontro da sociedade, do mundo. Essa pastoral, tão
essencial, não é possível sem uma profunda "espiritualidade samaritana".
Que o Ano da Vida Consagrada nos inspire a beber mais copiosamente desta fonte
da nossa própria tradição religiosa, e enriquecer-nos também com outras
tradições religiosas para ir, em conjunto, e mais decididamente, ao encontro das
pessoas deitadas à beira da estrada.
1) Aprofundo esta espiritualidade em Convergência nos 468 e 470 (2014).
* Missionário do Verbo Divino, formado em filosofia, teologia
e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Foi
Educador Popular no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de S. Paulo
(CDHEP/CL), onde coordenou o programa de formação de lideranças comunitárias e
o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Instituto de
Teologia de São Paulo (ITESP/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na Paróquia e
vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Representa a CRB no Conselho
Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral
paroquial em Diadema SP. Além de cartilhas populares publicou diversos artigos
em Vida Pastoral, REB, Convergência e
Grande Sinal. E-mail: nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
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