Modelos
pastorais em tempos de pastoral "líquida"?
Pelo Pe. Nicolau João
Bakker, svd*
Diadema SP
Síntese:
O autor observa que parece um pouco temerário falar em "modelos"
pastorais para tempos hoje
caracterizados como "líquidos" (Bauman). Tempos líquidos, porém, não impedem propostas pastorais
firmes e claramente delineadas. Antes de apresentar um modelo adequado para os tempos atuais, o autor descreve
os fundamentos que devem embasar um
bom modelo, como também os pilares que devem dar-lhe sustentabilidade. Em seguida, após passar por uma breve
análise dos diferentes modelos históricos
ainda presentes, propõe o modelo das CEBs como o mais adequado aos tempos atuais. Confronta o modelo com o
dos "movimentos", fortemente presente no atual panorama eclesial. Termina
demonstrando que também o modelo das CEBs necessita
de uma "revitalização", dentro da perspectiva mais ampla da
revitalização da paróquia,
assim como proposta pelo recente Doc. 100
da CNBB.
Palavras-chave:
Pastoral líquida. Fundamentos e pilares do modelo. Modelos da "desobriga",
da "pia sociedade" e dos "movimentos leigos de renovação". Revitalização do
modelo das CEBs.
Abstract: The author observes it is a
little temerarious to speak of pastoral "models" in our "liquid times" (Bauman). Liquid
times, however, don´t impede firm pastoral proposals
clearly caracterized. Before presenting an adequate model for modern times, the author describes the fundamentals
which sustain a good model, as also the columns
which offer the sustainability. Next, after passing through the different historical models still partially
present, proposes the CEB-model (basic church community-model)
as the most adequate for actual times. Confronts this model with the movements-model strongly present in pastoral
panorama of today. Finalizes demonstrating
that also the CEB-model has to be "revitalized" within the broader scope of the revitalizing of the parish, proposed by Doc. 100 of the National Bishop´s Conference
(CNBB).
Keywords: Liquid Pastoral. Fundamentals
and columns of the model. The "unbinding"- model, the "pious-society"-model and the
"lay movements of renewal"-model. Revitalizing
of the CEB-model.
Introdução
Na
nossa modernidade avançada, Sigmund Bauman que o diga, nada é estável,
permanente ou firme. Desmoronaram-se muitas das antigas certezas científicas, caíram
em desuso velhos hábitos, tradições ou convenções sociais, e tecnologias ontem
admiradas ou cobiçadas hoje são atiradas na lixeira. Ao que parece o planeta resolveu
girar mais depressa. Nada escapa à volatilidade do tempo. A própria religiosidade, antes fator de
grande estabilidade social, hoje parece ter perdida sua âncora. Tudo "à la
carte" costuma-se dizer. O supermercado religioso oferece de tudo. É só
escolher o que está mais na moda.
Pode-se ainda sonhar com um "modelo"
pastoral num mundo desses? Olhando para trás, prendendo-nos à história da Igreja,
podemos encontrar, sem dúvida, alguns modelos bastante nítidos. Perduraram por
séculos. Para um observador atento, diversos traços destes modelos ainda são
visíveis no panorama pastoral dos nossos dias. A "liquidez" que marca
o nosso tempo tem exatamente este efeito: todos os modelos estão disponíveis e
cada um/a escolhe o que for de sua conveniência. Atitude certa ou errada? Oh,
perguntinha mais antiquada! Uma das grandes conquistas da modernidade é
exatamente a "certeza" de que, agora, tudo é relativo. O papa Bento,
porém, reclamou muito dizendo que não é bem assim, que Deus revelou verdades
incontestáveis, e que, sem Deus, não é nem possível conhecer corretamente a
realidade (Cf. DAp). Os modelos
firmes, portanto, ficam?
Não se pode negar que as principais vertentes
filosóficas da modernidade puseram fim às certezas metafísicas. Tornou-se
evidente que o conhecer humano, do começo ao fim, é marcado pela historicidade
(do contexto cultural, da linguagem, horizonte de sentido, etc.). Também a ciência
descobriu seus próprios limites existenciais. Ela sempre responde a perguntas
(hipóteses) levantadas e estas, invariavelmente, têm a marca da parcialidade e
da provisoriedade. Ela está em busca da
verdade sem jamais alcançá-la por inteiro. E a Igreja, a Religião, a Revelação
divina? Elas nos trazem a verdade plena? Se Deus fala não são descabidas as
nossas dúvidas? Para o grande teólogo da Reforma, Karl Barth (†1968), não há
dúvida quanto a isso. Nos 26 volumes de sua magistral Christliche Dogmatik insiste incansavelmente na total
impossibilidade de o sempre frágil conhecimento humano alcançar as verdades
divinas. Neste sentido não há uma única ponte sequer entre Deus e o ser humano.
Justamente por isso, diz Barth, o próprio Deus tomou a iniciativa de revelar-se
ao ser humano. A certeza do ser humano não é fruto de conhecimento humano. É
pura doação divina. Deus a oferece gratuitamente, na Escritura e na Igreja
guiada por seu Espírito.
O papa Bento tem falado muito destas certezas
absolutas que somente Deus nos pode oferecer. Como harmonizar isso com o
consenso dos teólogos da modernidade que afirmam não existir nenhuma ponte
entre a física e a metafísica? Como crer em algo que vai além da física quando
nenhuma realidade transcendental é palpável, demonstrável, visível ou audível? Não
é de admirar que a Modernidade chegou a decretar a morte de Deus e o fim das
religiões. Mas a vida sempre surpreende. Quando menos se espera, o imponderável
acontece. Agora que a chamada pós-modernidade começa a tomar conta dos corações
e das mentes, liquidificando o que parecia sólido, eis que um grande cientista
da religião, Peter Berger, diz ouvir novamente "o rumor de anjos" por
toda parte (A rumor of angels, Penguin
Book, Harmondsworth, Inglaterra, 1971). A religião está de volta e a fé
novamente move as montanhas. Sim, dizem nossos teólogos, está de volta, mas não
da mesma forma. Trata-se de uma religiosidade secularizada, sem igrejas e sem
transcendentalismos. Ou então uma religiosidade apenas para consumo próprio. Este
novo quadro permite ainda algum "modelo" pastoral que seja
consistente?
Nós acreditamos que sim. Não em termos absolutos ou
definitivos. Tudo que vive sobre a face da terra possui a marca da
transitoriedade. Apenas onde há morte, a vida pode prosperar. Jesus o disse (Jo
12, 24) e o experimentou (Lc 24, 26). Mas onde há vida, a vida deve ser plena.
É sua vocação inerente. Religiões surgem na terra com esta finalidade, também o
cristianismo. Jesus viu a figueira secando (Mt 21, 18-22). Levantou então sua
voz de profeta e ofereceu um novo modelo de vida, mais abundante (Jo 10, 10). A
Igreja deve dar continuidade ao que Cristo iniciou. Modelos pastorais encontram
aí sua razão de ser. Devem oferecer vida, e vida em abundância. Isso, porém, só
acontece quando o modelo está adaptado aos tempos que correm. É um pouco
temerário querer oferecer um modelo para
tempos líquidos, mas não custa tentar.
1.
Os fundamentos do modelo
Um modelo pastoral que seja minimamente consistente deve
oferecer uma série de critérios razoavelmente seguros para possibilitar uma
ação pastoral concreta, adequada às necessidades. Para o que segue vamos imaginar-nos
na posição de um padre recém-indicado para sua nova paróquia, ou então na
posição de uma liderança leiga indicada pela comunidade para, junto com o(s)
padre(s) e/ou outros/as religiosos/as, animar a Comunidade ou alguma atividade
pastoral específica. Qual o modelo que vai orientar a ação? Em primeiro lugar é
preciso ter consciência que sempre existirá algum modelo, ainda quando ninguém
se dê conta. Pode até ser, como vamos ver mais adiante, que diversos modelos
estejam presentes ao mesmo tempo. O Documento
de Aparecida não os identificou, por isso acabou abrindo espaço para todos
eles. Quanto mais claro o modelo que se quer perseguir, melhor. Evita correr
muito e não alcançar o prêmio, como disse São Paulo. Comecemos pelos fundamentos
que, necessariamente, devem embasar o modelo.
1.1
A Palavra de Deus como inspiração permanente
Um
modelo pastoral adequado ao nosso tempo tem a Palavra de Deus como inspiração
permanente. Era preciso dizer o que é óbvio? Sim, porque nem sempre o que é
óbvio faz parte da nossa prática. Na Idade Média, a Igreja (Católica) passou
séculos sem dar a devida atenção à Palavra de Deus, com conseqüências graves
que perduram até hoje. Ainda falta muito
para recuperar o terreno perdido. O povo católico em geral, majoritariamente,
ainda se inspira nas suas tradições religiosas e não na Palavra de Deus.
Fizemos alguns avanços significativos. Muitos padres, religiosos, religiosas,
leigos e leigas participam, com freqüência, de boas formações bíblicas. Muitos
grupos bíblicos se encontram regularmente e, depois do Vaticano II, a Bíblia
está muito mais presente no cotidiano pastoral. Mas, perdura um problema: é
preciso superar a verdadeira obsessão com a "doutrinação" que engessa
a Igreja desde o Concílio de Trento (1545/63). Tanto a Igreja Católica quanto a
Protestante, especialmente na Europa, agiram como se o ser humano fosse apenas
cérebro. Deu no que deu: esvaziaram-se as igrejas (católicas). Hoje uma nova
antropologia se faz presente. Somos seres "vivos". Qualquer ser vivo
depende inteiramente do seu meio ambiente bioquímico cuja influência capta por
meio de mecanismos extremamente complexos. No ser humano, esta mesma dinâmica
se complexifica ainda mais, englobando o contexto sociocultural. Mais do que o
cérebro, e antes dele, é nossa emoção que capta este contexto. Agimos mais pela
emoção do que pela razão. Isso é muito relevante sob ponto de vista espiritual.
Se o Espírito Santo não toca o coração, de nada adianta o discurso, por mais
bem assimilado que seja. Os pentecostais, - para Comblin "o maior fenômeno
religioso desde a Reforma do Séc. XVI" -, são mestres nesta dinâmica. Suas igrejas (dirigidas
por leigos) vivem lotadas por isso. Não sugerimos simplesmente copiá-los, mas
que é bom ficar de olho, isto é. A Palavra de Deus sem o Espírito nada produz.
1.2
Fidelidade à Tradição da Igreja
Esta
é outra obviedade que merece ser colocada. Modelos pastorais são modelos de
Igreja. Não podem ser fruto de algum eclesiástico iluminado. Quanto mais o
modelo estiver alicerçado na autêntica Tradição da Igreja, melhor. Mas quem
garante esta autenticidade? Tradicionalmente o Magistério oficial do papa e da
Cúria Romana tem atribuído exclusivamente a si este privilégio, mas o Concílio
Vaticano II se opôs a esta visão limitada, dando ênfase ao "sensus
fidelium" (LG 12 e 30), atribuindo ao conjunto dos fiéis com seus pastores
o dom da infalibilidade nas questões de fé. A evolução teológica posterior ao
Vat. II aprofundou ainda mais esta concepção. Quase todos os teólogos
reconhecem hoje a presença do Espírito em todas as religiões, mesmo nas
não-cristãs. E não faltam teólogos que acusam a presença do Espírito na boa
vontade de todo ser humano, mesmo quando se declara sem fé alguma. Será que não
foi esta a intuição mais profunda de São Tomás de Aquino (†1274) quando dizia
que em cada ser humano podemos encontrar uma "lei natural", reflexo
da lei divina que rege o universo, e que o leva a sempre buscar não apenas seu
bem pessoal, mas também o bem coletivo? O papa Bento fala de uma
"gramática" inscrita na natureza humana (Cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 01/01/2007). Entre tantas teologias
que andam por aí, quais as que mais segurança oferecem para embasar um modelo
pastoral? Pessoalmente optamos pelo que é mais consensual entre os teólogos que
têm os olhos voltados para o presente. Muitos teólogos se sentem mais seguros
alicerçando-se nas tranqüilas teorias do passado, mas o Concílio Vat. II nos
lembrou que a compreensão da Palavra de Deus avança com o passar do tempo (DV 8)
e que cada tempo suscita novos "sinais" a serem corretamente
interpretados (GS 4, 11, 44). É mais seguro, portanto, confiar nos teólogos que
sabem harmonizar o velho e o novo. Do meio das muitas tradições teológicas e
espirituais, antigas e novas, surgirá a "Grande Tradição" que deve
alicerçar o nosso modelo. Colocado este fundamento, podemos agora perguntar-nos:
quais os grandes critérios ou "pilares" que sustentam o modelo?
Vejamos alguns dos principais.
2.
Os pilares do modelo
Ainda não tratamos do modelo em si. Já dissemos que o
modelo é fruto de uma determinada configuração de Igreja. Em especial o
contexto teológico (eclesiológico) e espiritual lhe dão uma visibilidade própria.
Qual o contexto teológico-espiritual que marca o dia a dia da Igreja hoje?
2.1
O protagonismo dos leigos (e das leigas)
O
protagonismo dos leigos ainda não é a nossa realidade, mas é a proposta. Não
são poucas as críticas à excessiva clericalização da Igreja. Jesus não era da
tribo de Levi, nem de Aarão. Para os judeus Jesus era um leigo, e ainda por cima
um leigo em geral mal-visto pelos "clérigos" do seu tempo. As
primeiríssimas comunidades cristãs se agruparam em torno dos apóstolos, em
geral também "leigos" (não provenientes da instituição clerical
judaica). A rigorosa separação entre ministérios ordenados e não ordenados
(leigos) é posterior à primeira fase eclesial. A forte hierarquização da Igreja
e o excessivo papel dirigente dado ao padre que "toma posse" de uma
determinada área, tem tudo a ver com a multifacetada herança recebida do
Império Romano e com a forte "romanização", surgida no Séc. XIX em
resposta aos avanços do protestantismo. No Brasil em particular, a romanização
se tornou pastoralmente mais visível com a introdução das "pias
sociedades" e a implantação da "ação católica". Trata-se da
imposição de um "catolicismo romanizado" mediante um protagonismo
leigo atrelado ao clero. O Vat. II, porém, após longa discussão, introduziu um
novo conceito ao antecipar o capítulo do Povo de Deus (LG cap. 2) ao capítulo
sobre a hierarquia (LG cap. 3). Jesus não colocou sua Igreja sob a direção de
uma hierarquia, mas sob a ação do Espírito Santo. No entanto, qualquer carisma
ou proposta, para concretizar-se, necessita de alguma forma de
institucionalização, já dizia o grande eclesiólogo do Concílio, Yves Congar
(†1995). É a história que se encarrega de dar à Igreja um rosto próprio. Modelos
pastorais são espelhos do rosto da Igreja.
Não apenas os documentos conciliares, mas todos os
principais documentos da Igreja insistem no protagonismo leigo, também na América
Latina. Medellin (Cap. 10), Puebla (777-849), Santo Domingo (94-103) e
Aparecida (209-215) dão destaque especial ao ponto. As Diretrizes Gerais 2011/15
também (63, 71, 104, 115). No recente Documento
100, nossos bispos pedem "maior espaço de decisão" para os leigos
(32). A realidade, porém, anda muito longe destes sonhos. A causa, seguramente,
não está na falta de boa vontade. O que falta é uma autêntica "conversão
institucional a partir de Roma". Tratamos disso, de forma mais extensa, em
outro lugar.1 Neste momento nos cabe dizer apenas o seguinte:
qualquer modelo pastoral que não tenha embutido dentro de si uma abertura maior
à autonomia leiga, não é um modelo adequado para o nosso tempo.
2.2 Uma
espiritualidade aberta ao mundo
Sempre
nos surpreendeu a atitude tempestuosa de Jesus quando derrubou as mesas do
Templo (Jo 2, 13-17). Também surpreende sua ira freqüente contra os fariseus e
os mestres da Lei (Mt 23, 13-32). Ainda assim, Jesus não quer tirar uma vírgula
sequer da Lei original, a da Aliança (Mt 5, 17-18). O grande critério do
Reinado de Deus é a atenção dada aos machucados, abandonados à beira da estrada
(Lc 10, 37). Sendo 100% judeu, Jesus não se rebela contra a religião judaica,
mas contra sua interpretação equivocada. Toda a história do cristianismo merece
ser analisada sob esta mesma perspectiva. Não se trata de uma batalha dos bem
intencionados contra os mal intencionados. Trata-se de uma bem intencionada
institucionalização da fé que, com o passar do tempo, se equivoca, prendendo as
asas do Espírito. Aí surgem os Pacômios (†348), os Bentos (†547), os Damascenos
(†749), os Franciscos (†1226), as Luisas (†1660) e Vicentes (†1660), como
também as Terezas (†1897), os Foucaulds (†1916), os Mertons (†1968) e as Teresas
de Calcutá (†1997).2 Não há institucionalização que possa com o
Espírito. Este sempre deixará irrequieto o coração humano, como já disse S.
Agostinho (†430). A espiritualidade é a força propulsora do ser humano, das
sociedades e da Igreja.
Sem abertura ao mundo, em especial ao pobre, não
existe espiritualidade cristã. A aprovação da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, na última sessão do
Vat. II, representa para muitos teólogos, até hoje, a mais profunda inversão
teológica, espiritual e pastoral da Igreja desde o tempo da cristandade. Ao
afirmar a autonomia das realidades terrestres e a leitura atenta aos sinais do
tempo, o Concílio absorveu uma longa evolução eclesial cujo início freqüentemente
é atribuído ao catolicismo social de Lamennais (†1854), Montalembert (†1870),
Ozanam (†1853) e outros, e que - além de passar pela Rerum Novarum de Leão XIII (1891) - desabrocha depois na Escola de
Saulchoir do dominicano Marie-Dominique Chenu (†1990) que ajudou muito a
elaborar o documento. Uma Igreja antes mais voltada para o céu agora se volta
para a terra, ou melhor, um dualismo, mais grego que semita, de quase dois mil
anos vai sendo superado. O céu e a terra se encontram novamente na proposta
jesuânica do Reinado de Deus. A espiritualidade se abre ao mundo. Não precisa
acrescentar aqui que Medellin (1968) reelaborou tudo isso na perspectiva
latino-americana dos (estruturalmente) empobrecidos e injustiçados. Modelos
pastorais adequados sempre terão a cor e a linguagem da cultura local. O que é
importante ressaltar neste momento é que o motor que move o povo não é a
teologia, mas a mística, ponto muito importante e muitas vezes esquecido. A
própria Gaudium et Spes foi fruto de
uma nova espiritualidade que, nas décadas anteriores ao Concílio, se
reencontrou com a Bíblia e com a tradição patrística muito voltada ao pobre. A
"Nova Teologia" dos franceses e dos europeus em geral se alimentava de
uma profunda mística, então chamada, carinhosamente, de "mística do engajamento".
Voltaremos a este ponto depois. Um modelo pastoral que priorize apenas ideias,
passando por cima da mística popular, facilmente dará com os burros n´água. O
padre recém-nomeado para sua paróquia que se cuide.
2.3
Retomada da preocupação cósmica
Vemos
surgir um novo consenso teológico que vem ao encontro de uma sensibilidade que
perpassa toda a tradição judaico-cristã, mas que, infelizmente, foi abafada na
Igreja do Ocidente desde as grandes discussões cristológicas e trinitárias dos
primeiros séculos: a preocupação cósmica (cf. Rom 8, 18-25; Cl 1, 15-20). Hoje,
nenhum modelo pastoral pode desconhecer esta preocupação se quer adequar-se ao
entendimento e à linguagem do nosso tempo. A Bíblia de Jerusalém inicia assim o
livro de Gênesis: "... as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus
pairava sobre as águas" (Gn 1,1). Um certo prurido doutrinário faz o
comentarista dizer que a presença do vento não significa a presença do
Espírito, pois a criação é obra da "Palavra" de Deus. Mas é difícil
não assimilar o vento ao sopro divino que também contemplou o primeiro ser
humano com o "hálito da vida" (Gn 2,7), ou ao "impetuoso
vendaval" que derramou o Espírito sobre a primeira comunidade cristã de
Jerusalém (At 2,2). Cada vez que algum abismo é preenchido e alguma treva
iluminada, a tradição bíblica vê a presença do Espírito de Deus Criador. Os Salmos não deixam dúvida: todo o cosmos
canta o seu louvor (Sl 148).
O paleontólogo e teólogo jesuíta, Teilhard de Chardin
(†1955), intuía uma evolução cósmica que vai da simples matéria até uma espécie
de "cristificação" do ser humano. Hoje existe um sólido consenso
científico sobre a complexa estrutura interna da matéria, toda ela
interrelacionada e interdependente, que abriga dentro de si o próprio germe da
vida. Bilhões de anos fizeram a vida evoluir, complexificando-se cada vez mais,
até arquitetar o atual cérebro humano que fez com que o ser humano "se descobrisse
a si mesmo". O eminente filósofo alemão Hans Jonas tenta descrever o
processo no "Princípio Vida"
(Vozes, Petrópolis, 2004), destacando o "horizonte de
transcendência" já presente nas mais primitivas manifestações da vida. A
grande bioquímica Lynn Margulis fez o mesmo (Microcosmos, São Paulo, Cultrix, 2002, e Simbiotic Planet: a new view of evolution, New York, Basic Books, 1988).
Temos escrito mais detalhadamente sobre este tema em outros lugares.3
Uma nova antropologia da vida se impõe. Querer adotar um modelo pastoral que vê
o ser humano desligado de sua origem cósmica e do seu meio ambiente (físico e
sociocultural) seria inteiramente sem sentido para os nossos dias.
2.4
O diálogo interreligioso
A
teologia que, nas últimas décadas, trouxe os avanços mais significativos e mais
promissores é a teologia do diálogo interreligioso. Mas é também a teologia que
mais desconfiança despertou na Cúria Romana. O Concílio Vaticano II realizou-se
em meio a uma grande expectativa com relação ao ecumenismo. O papa João XXIII,
embalado pelo forte movimento ecumênico da época, mostrou-se esperançoso em
diversos momentos. Falava de um vento renovador a entrar pelas portas e janelas
da Igreja. Estes ventos, porém, continuaram a soprar fortemente também após o
Concílio, tanto na teologia quanto na espiritualidade e na ação pastoral. Para
a Cúria Romana passou da conta. O papa João Paulo II tratou de fechar portas e
janelas, e particularmente Bento XVI se convenceu que o mundo cristão estava
perdendo suas âncoras em meio a uma relativização desenfreada. Uma de suas
preocupações era exatamente o diálogo interreligioso. O documento Dominus Iesus (2000) afirma com rude
violência que as outras religiões se encontram "numa situação gravemente
deficitária" (DI 22) e insiste em apresentar Jesus como o único Salvador
de todos os povos por meio da Igreja Católica.
O consenso teológico das últimas décadas, porém, vai
em outra direção. Assim como no início, o Espírito de Deus continua pairando
sobre todas as águas e todos os abismos. Ele está presente e age não apenas nas
pessoas batizadas, mas em cada ser humano e em cada cultura. Jesus lembrou que
Deus faz chover sobre justos e injustos, ama todos os seus filhos e filhas por
igual e não cai um único fio de cabelo da cabeça sem Ele perceber (Lc 12, 7). Ainda
que enviado aos filhos de Israel, não deixa de curar também os estrangeiros (Mc
7, 24-30). Pentecostes inverte a torre de Babel e, no seguimento dos passos de
Jesus, o Espírito é derramado sobre todas as línguas. A atual sensibilidade
humana detesta levantar novas barreiras. Ela anseia pelos Direitos Humanos,
pelas metas do milênio, pela paz entre os povos. A mensagem de Jesus é única e universal
exatamente porque, na opinião de Jesus, "na casa de Deus há muitas
moradas" (Jo 14, 2). São enjoadas e inúteis as intermináveis disputas
doutrinárias. O monge beneditino, Marcelo de Barros Souza, vê no (macro)
ecumenismo um "caminho espiritual" (REB 263/2006) e afirma: "Uma transformação profunda do mundo
não virá de mudanças sociais e técnicas, mas de uma nova e profunda
espiritualidade pós-religiosa ou transreligosa". Ele sonha com um
"Fórum mundial pela mística da Vida, pela paz, justiça e defesa da Criação"
para, assim, celebrar o cinqüentenário do Concílio, em 2015. O papa Francisco
com certeza vai querer, mas, e a Cúria? Também o saudoso Pe. Libânio opina que
a pastoral concreta da Igreja poderia inspirar-se no Fórum Social Mundial:
"um diálogo aberto, sem imposições, tendo como única causa 'um outro mundo
possível'" (Vida Pastoral 249/2006).
Adotar um modelo pastoral sem diálogo interreligioso é uma aposta sem
perspectiva de futuro.
2.5 Um modelo com rumo definido
A
"liquidez" no pensar pós-moderno não pode ser confundida com a
impossibilidade de propostas firmes e claramente delineadas. Não há
escapatória, qualquer proposta pastoral será marcada pela transitoriedade e
pela abertura a novos pontos de vista. A incontornável finitude do ser humano
leva a isto. Mas exatamente pela
liquidez das ideias e a instabilidade das instituições, o mundo anseia
por um rumo que lhe dê segurança. Surgem fundamentalismos por toda parte, e
também na Igreja constatamos que muitos preferem a segurança da volta ao ninho.
Mas a vida tem no seu próprio cerne o imperativo da auto-superação. Sempre
seremos "povo a caminho", carente de algum Moisés para indicar o
rumo. As religiões surgem desta forma. Nós, cristãos, sabemos que o próprio
Deus nos "revela" o caminho se soubermos ler os sinais do nosso
tempo. Novamente dependemos aí do bom senso e do consenso dos nossos teólogos e
mestres espirituais. Confrontando o novo com a riquíssima Tradição cristã do
passado, a bruma se desfaz e a estrada recupera sua visibilidade. O modelo
pastoral que buscamos não deve oferecer certezas absolutas, mas rumos
claramente definidos, com razoável segurança.
Quais estes rumos consensuais que o modelo pastoral
deveria, por assim dizer, "potencializar"? Citemos apenas dois
exemplos. O modelo deve expressar um claro "não" às sociedades
radicalmente laicas que põem todas as religiões de escanteio. Laicas, sim, mas
fecundadas e permanentemente inspiradas pelo consenso
"interreligioso" da sociedade em questão. Hoje, as democracias modernas
se tornam cada vez menos sustentáveis por um distanciamento crescente entre as
elites tecnocráticas e uma impotente base popular que se orienta
"espiritualmente" (justiça social, direitos, o "bem viver"
em geral), mesmo nas sociedades secularizadas. O modelo deve expressar também
um claro "sim" ao Jesus histórico da Galileia, profeta poderoso, mas
trajado nas humildes vestes do Servo Sofredor. Corresponde a este Jesus uma
Igreja radicalmente "kenótica", mas, já ressuscitada, sem medo do
futuro. Uma Igreja não centrada no Templo, pois o Deus de Jesus (e dos
primeiros cristãos) dispensa templos e imagens (pelos quais os romanos davam
credibilidade e presença aos seus deuses), mas uma Igreja centrada no próprio
ser humano. Uma "Igreja da Esperança" que leva o ser humano para além
das meras utopias humanas, ao encontro do céu e da terra escatológicos.
3.
Os modelos que estão presentes
Até agora não tratamos do modelo em si, mas apenas
dos seus fundamentos e dos pilares que o sustentam. Precisamos agora falar do
modelo na sua concretude, sua configuração ou fisionomia real. Um primeiro
ponto a ressaltar é que, tendo a Igreja uma história milenar, não será difícil
encontrar uma diversidade de modelos. Mais acima dissemos que, no atual
panorama pastoral, diversos modelos pastorais ainda marcam presença. Dependendo
do lugar onde o recém-empossado padre inicia seu pastoreio, ou dependendo do
tipo de movimento ou pastoral em que atuam nossos leigos ou leigas, os
diferentes modelos terão maior ou menor presença. Como todos os modelos
surgiram num determinado tempo histórico vamos descrevê-los, sucintamente, de
forma histórica. Não visamos uma abordagem "acadêmica", mas, muito mais,
uma abordagem descritiva, vivenciada e refletida pessoalmente. Trataremos deles
brevemente para, em seguida, pôr em destaque o modelo que, no nosso entender,
melhor se adequa aos tempos atuais.
a)
O modelo da "desobriga"
Tivemos
o privilégio de trabalhar durante onze anos junto ao Santuário (Basílica) do
Senhor Bom Jesus de Iguape SP, uma das primeiras paróquias do Brasil. Encontramos
ali, ainda em plena atividade, a Irmandade de São Benedito, muito forte entre
os pobres, e a Irmandade do Santíssimo, mais forte entre as famílias
influentes. Enquanto muitos padres, nos primeiros anos pós-conciliares,
trataram de "substituir" logo o que parecia demasiadamente
tradicional, nós, mais positivos com relação à religiosidade popular, estudamos
em profundidade os muitos livros históricos (especialmente atas de reuniões e
livros de tombo) existentes na paróquia. A cidade ainda teve outras Irmandades:
das almas, do Senhor Bom Jesus (encontramos um documento antigo onde a Irmandade
vende escravos com o seguinte aval do bispo: "desde que por um bom
preço"!), de Nossa Senhora do Rosário, etc. Nada acontecia na cidade sem
alguma relação com este mundo religioso: procissões, festas, enterros,
beneficência, além de, também, prestígio popular ou desprezo popular.
Dificilmente alguém seria candidato a Prefeito se não tivesse passagem pela
Diretoria da Irmandade (atenção: do Santíssimo!).
O que colhemos desta experiência? Em primeiro lugar a
convicção de que a "alma popular" é, por assim dizer, religiosa por
natureza (a secularização apenas aparentemente a elimina), e que as tentativas
eclesiásticas de mudá-la ou renová-la rapidamente não passam de uma ilusão
eclesial.4 No contexto religioso das Irmandades, o clero é quase
dispensável. Em Iguape, por décadas e mais décadas, não havia padre na cidade.
Ocasionalmente vinha de longe, a convite da Irmandade, para administrar os
sacramentos e rezar missa pelos falecidos, recebendo então pagamento. Contam os
livros que o padre recebia conforme o número de genuflexões, maior nas missas
solenes do que nas missas simples. Pelo jeito os padres achavam que recebiam
pouco, pois logo inventaram missas simples com muitas genuflexões! Quem não
acreditar pode ainda consultar os livros. Esta, sim, era realmente uma Igreja
de leigos/as. O padre estava a seu serviço e não o contrário! Mas, aprendemos
também que este era um modelo pastoral próprio da cristandade. A tradição
imperava. Os atos religiosos possuíam um caráter festivo, mas também tinham o
caráter de obrigatoriedade para qualquer família católica. Especialmente com
relação aos sacramentos, apenas o padre podia "desobrigá-las", dando
a todos a sensação do dever cumprido. Existem outros nomes para o modelo.
Preferimos o da "desobriga".
b)
O modelo da "pia sociedade"
Quando
chegamos a Iguape, a pertença à Irmandade estava em declínio, mas a pertença a
alguma "sociedade pia" (Congregados Marianos, Filhas de Maria,
Cruzadinhos, Apostolado da Oração, Legião de Maria) ainda era muito
significativa. Em qualquer procissão, missa solene, ou evento religioso, elas
ocupavam lugar de destaque. Importadas da Europa, sempre puderam contar com
grande apoio dos papas e dos bispados locais. Possuindo forte estrutura
organizativa (internacional, nacional e diocesana), com direção obrigatória do
clero, as pias sociedades se encaixavam perfeitamente no modelo pastoral
proposto pela Igreja Católica, especialmente a partir da segunda metade do Séc.
XIX. A reação ao protestantismo e ao "galicanismo" (postura
independente das Igrejas do norte europeu, sob forte influência das soberanias nacionalistas
e laicas), reforçada pela infalibilidade papal do Conc. Vat. I (1869/70), deu
origem à teologia e pastoral "ultramontanas" com suas três
características principais: centralização, clericalização e espiritualização
(cf. Riolando Azzi, REB 262/06). Com
este novo modelo, imposto por Roma, o domínio pastoral passou dos leigos para o
clero, nem sempre sem rivalidades ásperas. Em Iguape, sob instigação das
leituras que vínhamos fazendo (e que falavam destas desavenças), acabamos
encontrando um valiosíssimo tesouro (peças de arte sacra, todas em prata pura)
escondido nas grossas paredes da Basílica sem que uma única alma viva da cidade
desconfiasse do caso!
Chegando a Diadema SP, em 2009, encontramos algumas
destas mesmas pias sociedades ainda em plena atividade, embora sem o brilho de
outrora. Sua existência ocorre um pouco "à margem" das demais
atividades paroquiais. O pároco ainda assina os documentos prescritos, mas a
coordenação é, na verdade, mais diocesana que paroquial, seguindo a orientação
hierárquica dos estatutos. Em algumas, algum tipo de apostolado ainda é
visível, em outras o predomínio é quase exclusivamente devocional. Como as
Irmandades, também as pias sociedades revelam as raízes profundas das tradições
religiosas populares, sem deixar de ostentar, claramente, as marcas da época. Seus
hinos são reveladores. Os membros das sociedades são os "soldados de
Cristo". Sua marca original é a "militância católica": o
exército leigo, sob o comando do clero e a proteção do manto de Maria, combatendo
a infidelidade, a laicidade e a imoralidade, em fim, todos os desmandos da
"modernidade".
c)
O modelo dos "movimentos leigos de renovação"
A
fortíssima onda renovadora que, a partir do Vat. II e da Conferência de
Medellin (1968), tomou conta do panorama pastoral brasileiro, deu origem a inúmeras
novas organizações pastorais, freqüentemente em substituição às anteriores. Primeiramente
no interior e depois na periferia das cidades, foram surgindo dezenas de
milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Com sua forte priorização das
pastorais sócio-transformadoras, nem todos se sentiram à vontade com a nova proposta.
Entre os que mantiveram as tradições, e especialmente entre os católicos mais
alinhados com a classe média, foram surgindo diversos "movimentos leigos de
renovação". Poucas as dioceses onde não se notava a presença, entre
outros, dos Cursilhos, ou dos Encontros de Casais, crescendo depois com maior
força o Movimento Carismático com suas diversas vertentes. Os diferentes grupos
de jovens mais ligados às CEBs se articularam, majoritariamente, em torno da
Pastoral de Juventude (PJ), enquanto os outros grupos jovens encontraram abrigo,
também, nos diferentes movimentos, cada um com sua própria organização.
Hoje, o padre,
ou irmã, indicado/a para uma nova Paróquia, provavelmente, encontrará a
presença dos três modelos mencionados. Talvez não mais a visibilidades das
Irmandades, mas sua mentalidade, sim. Para ter uma ação pastoral adequada
deverá ter consciência dos três modelos e deverá saber distinguir entre o que
ainda vale e o que não vale mais. Da mesma forma, o leigo ou a leiga que se
dispõe a fazer um trabalho sério na Comunidade, deverá saber colocar na balança
o que merece ser incentivado e o que não vale mais a pena. Da nossa parte aprendemos
o quanto é verdadeiro o que dizia o grande educador brasileiro Paulo Freire:
"a prática de refletir a prática, a partir da prática, é sempre a melhor
prática". Hoje, a partir da nossa prática pessoal, concluímos que quem
conduz a Igreja não é o clero, mas o Espírito Santo. Somos servidores do
Espírito. Em todas as religiões, o Espírito se manifesta. E sempre haverá quem
se disponha a conduzir. Nossa fé em Jesus Cristo e nossa longa e riquíssima
Tradição judaico-cristã nos autorizam a indicar o rumo, com muita humildade,
mas com firmeza. Porém, qual o rumo a apontar hoje quando todas as certezas se
tornaram "líquidas" e quando tantos modelos estão presentes ao mesmo
tempo?
4.
O surgimento do "modelo das CEBs"
O clima geral na Igreja hoje é muito diferente das
décadas pós-conciliares. Os padres formados a partir da década de 1980 já não
se formaram no entusiasmo da renovação conciliar, muito menos no de Medellin. A
quase totalidade dos bispos nomeados desde então apresenta uma fisionomia muito
mais institucional do que profética. Não há mais dúvida sobre o forte movimento
restauracionista da Cúria Romana, já visível poucos anos depois do Vat. II. Os
papas J. Paulo II e Bento XVI não se opuseram. Não se trata de uma rejeição ao
Concílio em si, mas à sua interpretação (teológica e pastoral) mundo afora. Ao
aposentar-se, contudo, Bento XVI manifestou publicamente o desejo que seu
sucessor assumisse o legado conciliar. O que está havendo, na verdade, é uma
desconfiança quase visceral diante de uma Modernidade que, aparentemente, não
pára de afrontar todos os limites do sagrado. A generalizada "volta à
grande disciplina" mostra, mais uma vez, que não são as novas teorias
teológicas que vão mudar a Igreja, mas uma nova espiritualidade ou mística,
desde que acolhida pelo coração do povo. E esta acolhida é lenta, muito mais
lenta do que alguma teoria possa sugerir.
No Brasil especificamente, o quadro eclesial a partir
de Medellin se complicou um bocado. Somos o país que mais e melhor se
aproveitou do aporte das ciências sociais, integrando-as à sua teologia e à
prática pastoral. A Octogesima Adveniens (par.
4) de Paulo VI (1971) já insistia nisso. O Vat. II ainda não se deu conta da
profunda relação (estrutural) de "dependência" (econômica, política e
cultural) entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento. Nossos
intelectuais a detectaram, deixando claro que a mesma relação de dependência
existia, igualmente, entre as elites e as classes "oprimidas" do
nosso próprio país. Com esta nova consciência política, o país deu uma guinada
de 180 graus: muitíssimos intelectuais e os antigos e novos agrupamentos
políticos "de esquerda", em parceria com um novo sindicalismo e uma
nova postura nos movimentos populares, decidiram enfrentar, em conjunto, a ditadura
militar, em busca de um governo alternativo, democraticamente eleito. A
democracia veio com a eleição do Presidente Collor (1990), mas o objetivo das
forças populares foi alcançado apenas em 2002 quando o líder sindical, Luiz
Inácio Lula da Silva, ganhou as eleições, sob a bandeira e liderança do Partido
dos Trabalhadores, criado em 1980.
Toda esta evolução política mexeu com a postura
tradicional da catolicismo brasileiro. O Conc. Vat. II assumiu a autonomia
(política, econômica e cultural) das realidades "terrestres", desde
que respeitada também a autonomia das realidades, digamos, "celestes"
(os princípios cristãos do bem comum, justiça social, liberdade de consciência,
etc.). O Magistério oficial, desde a Encíclica Rerum Novarum, sempre propôs uma espécie de "terceira via":
nem capitalismo (selvagem), nem marxismo. No Brasil, a CNBB e boa parte dos
bispos, durante um longo período, acabaram dando apoio às forças populares em
oposição à ditadura militar. Da mesma forma grande parte do clero e das
lideranças leigas da Igreja, animadas pela nova teologia da libertação. Roma
entendeu que se tratava de uma mistura infeliz de teologia latino-americana com
doutrinas marxistas, o que, com exceção do que é comum nas ciências sociais, nunca
foi o caso. Apenas no Documento Libertatis
Conscientia, de 1986, após forte manifestação da CNBB, Roma reconheceu que
esta teologia era "não somente útil e conveniente, mas também oportuna e
necessária".
A origem mais remota das Comunidades de Base, na sua
configuração inicial, é anterior a Medellin, mas não há dúvida que o Documento de Medellin (1968), a teologia
da libertação e o clima eclesial das décadas de 1960 e 1970, lhes deram forte
crescimento e dinamismo. Diferentemente do modelo pastoral dos movimentos, o
modelo pastoral das CEBs sempre se caracterizou por um forte dinamismo sócio-transformador.
As pastorais sociais foram sua marca registrada, sendo elas assumidas e até
priorizadas em diversas Diretrizes Gerais até meados da década de 1980. Hoje é
evidente que elas sofreram, de lá para cá, uma diluição crescente devido à nova
mentalidade dos bispos e do clero em geral.
5.
O modelo das CEBs e sua "revitalização"
Nós, por uma série de motivos históricos e atuais,
consideramos que o modelo das CEBs é, entre todos, o mais adequado para os
nossos dias. O motivo principal é porque este modelo repousa mais firmemente
sobre os dois fundamentos acima indicados, além de adequar-se perfeitamente aos
cinco pilares que retratamos.
O modelo da "desobriga" vem ao encontro de
apenas um dos critérios: o protagonismo dos leigos. Trata-se de um protagonismo
que, inclusive, oferece um escudo de proteção à religiosidade popular. Isso,
para nós, é muito importante. Em muitos sentidos nosso povo tem
"direito" à sua mística própria. Devemos ver nela a presença do
Espírito. Mas também sabemos que o Espírito somente age dentro e não acima de
determinados contextos históricos e culturais. O modelo da desobriga está
inteiramente fechado na sua tradição popular, sem qualquer abertura à renovação
bíblica, teológica ou pastoral. Como somos povo e Igreja a caminho, num mundo
em acelerado processo de transformação, é o modelo que menos se adapta aos
novos tempos.
O modelo das "pias sociedades" já tem a
vantagem de um melhor acompanhamento do clero. Também alimenta a
espiritualidade popular e possui algum ímpeto missionário, mas trata-se de uma
espiritualidade fortemente antimodernista e uma militância leiga muito
subserviente e dependente do clero, com uma estrutura hierárquica de
funcionamento que "amarra" a ação pastoral aos tempos passados. Sua
tradição é fortemente devocional, desligada da Palavra de Deus. Sua teologia
passa longe da renovação conciliar. O modelo ainda pode ajudar quando
pastoralmente bem conduzido, mas dificilmente se adapta às necessidade do tempo
atual.
Já o modelo dos "movimentos" requer uma
análise mais cuidadosa. Temos aqui também um protagonismo leigo bastante forte
e bastante autônomo, com lideranças freqüentemente bem formadas. O movimento
carismático ainda tem a vantagem de, permanentemente, buscar inspiração na
Palavra de Deus e alimentar uma espiritualidade centralizada na ação do
Espírito. Todos os movimentos apelam fortemente ao lado emocional do ser humano,
o que consideramos legítimo e válido. Como assinalamos acima, o ser humano é
guiado mais pela emoção do que pela razão. Ponto fraco dos movimentos, porém, é
sua auto-centração. Tudo gira em torno do próximo encontro, da próxima reunião,
do próximo momento forte de oração. Não de princípio, mas de fato, o movimento
tem dificuldade de se inserir no dia a dia das demais atividades da vida
comunitária ou paroquial. Seu principal ponto fraco, contudo, talvez seja a sua
rejeição (conscientemente ou não) a qualquer pastoral sócio-transformadora. A própria
estrutura de funcionamento dos movimentos abre pouco espaço para aprofundamento
bíblico-teológico o que, aliado a uma maior presença de pessoas provenientes da
classe média/alta, leva a uma forte conformidade social. Todos os movimentos,
por isso, tendem a um tradicionalismo cristão que passa ao largo do que para
Jesus era essencial: a vinda do Reinado de Deus. E esta vinda passa,
necessariamente, por profundas mudanças na sociedade que temos.
Por tudo o que
vimos, o modelo das CEBs parece ser o mais adequado para os tempos atuais, sob
todos os pontos de vista. Não que o modelo, da forma como surgiu em décadas
passadas, seja perfeito, sem necessidade de aperfeiçoamento. Também o modelo
das CEBs precisa ser "revitalizado" (na perspectiva mais ampla da
"revitalização" da paróquia). Uma das melhores qualidades de um
modelo pastoral hoje é justamente sua adaptabilidade às transformações rápidas em
curso. Alguns pontos fracos das CEBs do passado parecem ter colaborado para sua
rejeição por parte de grandes faixas da população e boa parte dos nossos bispos
(além da Cúria Romana): uma prioridade exagerada, às vezes quase exclusiva,
dada às pastorais sociais, sem uma integração melhor com as demais dimensões da
ação pastoral; uma atenção mais voltada à razão (formação e conscientização) do
que à emoção (oração e meditação); uma ação pastoral planejada mais a partir da
cabeça de uma minoria leiga (teologica e também politicamente) mais bem formada
do que a partir do conjunto da Comunidade; a falta de uma dinâmica grupal mais
própria para pessoas com escolaridade mais elevada e vida profissional mais
exigente.
Muito recentemente, a CNBB publicou o Documento 100, com o título: "Comunidade de comunidades: uma Nova
Paróquia". Parece haver consenso entre os bispos que o sistema
paroquial atual necessita de conserto. A "conversão pastoral"
proposta pela Conferência Episcopal de Aparecida (2007) parece não estar
surtindo os resultados desejados. A "Nova Paróquia" que os bispos
propõem, requer, além de uma nova consciência comunitária e uma espiritualidade
mais missionária (a tal "revitalização"), uma eficaz
"setorização", criando autênticas comunidades, transformando a
Paróquia na grande "Comunidade de Comunidades". Tratamos desta
proposta, em detalhes, na Vida Pastoral,
março/abril 2015. Não vamos aprofundá-la aqui. O equívoco que vemos na
proposta é que as CEBs são colocadas em pé de igualdade com os demais
movimentos, grupos e "novas" comunidades que hoje fazem parte do nosso
panorama eclesial. Nós, diferentemente de outros, entendemos que novas e
antigas formas de espiritualidade, como também articulações grupais diversas,
podem (e até devem) estar presentes em qualquer Comunidade, mas nenhuma
espiritualidade, por si só, e nenhum grupo particular, por si só, possui a
"eclesialidade plena". Esta só encontramos na CEB, porção da Igreja
maior, a Diocese.
O atual Direito Canônico, corretamente, vê a plena
eclesialidade presente na Diocese, unida a Pedro, como também na Paróquia desde
que unida à orientação diocesana. Nada impede, porém, de estender esta plena
eclesialidade a outras Comunidades menores dentro da Paróquia, desde que elas
mantenham a união com o bispo diocesano. A proposta se encaixa perfeitamente na
"Grande Tradição" eclesial, além de exprimir fielmente o espírito
conciliar. Lembramos até hoje a bela expressão do bispo auxiliar de B.
Horizonte ao voltar, entusiasmado, do Vat. II: "A pequena Comunidade
cristã é a Igreja toda em miniatura".
Mas, esta plena eclesialidade exige a presença das "cinco C´s",
diz Sérgio Ricardo Coutinho, assessor das CEBs da Comissão Episcopal Pastoral
para o Laicato da CNBB (Cf. CEBs e os desafios
do mundo contemporâneo, Paulus, São Paulo, 2012). As cinco C´s, em seu conjunto,
encontramos apenas nas CEBs: 1) Celebração: da Comunidade toda (ainda que com
espiritualidades e articulações diversas), centrada na Eucaristia; 2) Círculo
Bíblico: a Palavra de Deus, ouvida, meditada e praticada por todos os membros e
grupos de uma mesma Comunidade; 3) Conselho: os serviços de animação da
Comunidade, em conformidade com a orientação diocesana; 4) Catequese: o
aprofundamento da fé nas famílias da Comunidade, atingindo todas as idades; 5)
Compromisso sócio-transformador (assistência social e ação transformadora): a
prática da fé na sociedade, tendo em vista o Reinado de Deus.
Os dois fundamentos e os cinco pilares de um bom
modelo pastoral, assim como acima indicados, podemos encontrar na Paróquia, mas
de forma muito mais viva, concreta e fraterna nas Comunidades Eclesiais de Base.
Não nos grupos ou movimentos isolados, nem na CEB quando isolada da Diocese. Os
diferentes grupos atuantes das CEBs, quando fieis à sua origem, costumam
reunir-se regularmente em torno da Palavra de Deus, unindo "fé e
vida", geralmente com subsídios os mais diversos. A prática favorece uma
atualização teológica e pastoral permanente. Com isto, o enfoque mais
fortemente sócio-político dos primeiros anos da teologia da libertação se amplia,
integrando novos aspectos da missão libertadora: os diferentes "rostos"
da exclusão (Puebla), a interculturalidade (S. Domingo), a missionariedade
(Aparecida), a urgência ecológica (DGAE
2011/15), etc. Infelizmente, o Documento
100 (2014) da CNBB não dá continuidade ao Documento 92 (2010) que, na introdução, coerentemente, seguindo Medellin 15, define as CEBs como "o
primeiro e fundamental núcleo eclesial" e "célula inicial da
estrutura eclesial". Para o atual Direito Canônico, lamentavelmente, apenas
a paróquia é "célula inicial" (cf. c. 515). A configuração eclesial dos
dias atuais requer, sem dúvida, muito espaço para diversidade, mas seria bom
não perder de vista que o ser humano (qualquer que seja) necessita de uma
comunidade para viver mais plenamente. Vivemos hoje, diz o teólogo José Maria
Vigil, "um verdadeiro colapso do catolicismo no continente". Sinal a
ser interpretado. Para nós, o melhor caminho (o melhor "modelo") é o
das CEBs.
Endereço
do Autor:
R. Juruá, 798 - Jd.
Paineiras
09932-220 Diadema
SP/Brasil
Email:
nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
1. Ver em: REB 291/2013 e Vida Pastoral, janeiro/fevereiro
2015.
2. Retratamos a
história destas correntes espirituais em: Grande
Sinal, Maio 2012, Julho 2012, Setembro 2012, e Novembro 2012.
3. Ver em: Vida Pastoral, maio/junho 2011, novembro/dezembro
2011 e novembro/dezembro 2014.
4. Ainda em 2015 sairá,
na Vida Pastoral, um artigo nosso que
aborda esta questão em maior profundidade.
* Missionário do Verbo
Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou
sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou também como
educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular, de Campo Limpo
(CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de
combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de
Teologia / SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no
município de Holambra SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a
Testemunhas (Provita / SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema,
SP. Além de cartilhas populares publicou artigos pastorais diversos em REB, Vida Pastoral, Verbum, Convergência e
Grande Sinal.
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