sexta-feira, 3 de junho de 2016

REB, abril de 2015: Modelos pastorais em tempos de pastoral "líquida"?

Modelos pastorais em tempos de pastoral "líquida"?
Pelo Pe. Nicolau João Bakker, svd*
Diadema SP

                Síntese: O autor observa que parece um pouco temerário falar em "modelos" pastorais                para tempos hoje caracterizados como "líquidos" (Bauman). Tempos líquidos, porém,              não impedem propostas pastorais firmes e claramente delineadas. Antes de apresentar            um modelo adequado para os tempos atuais, o autor descreve os fundamentos que      devem embasar um bom modelo, como também os pilares que devem dar-lhe               sustentabilidade. Em seguida, após passar por uma breve análise dos diferentes modelos                históricos ainda presentes, propõe o modelo das CEBs como o mais adequado aos        tempos atuais. Confronta o modelo com o dos "movimentos", fortemente presente no atual panorama eclesial. Termina demonstrando que também o modelo das CEBs     necessita de uma "revitalização", dentro da perspectiva mais ampla da revitalização da               paróquia, assim como proposta pelo recente Doc. 100 da CNBB.
                Palavras-chave: Pastoral líquida. Fundamentos e pilares do modelo. Modelos da "desobriga", da "pia sociedade" e dos "movimentos leigos de renovação". Revitalização    do modelo das CEBs.
                Abstract: The author observes it is a little temerarious to speak of pastoral "models" in our "liquid times" (Bauman). Liquid times, however, don´t impede firm pastoral             proposals clearly caracterized. Before presenting an adequate model for modern            times, the author describes the fundamentals which sustain a good model, as also the                columns which offer the sustainability. Next, after passing through the different           historical models still partially present, proposes the CEB-model (basic church community-model) as the most adequate for actual times. Confronts this model with the       movements-model strongly present in pastoral panorama of today. Finalizes                demonstrating that also the CEB-model has to be "revitalized" within  the broader scope              of the revitalizing of the parish, proposed by Doc. 100 of the National Bishop´s            Conference (CNBB).                                                 
                Keywords: Liquid Pastoral. Fundamentals and columns of the model. The "unbinding"-               model, the "pious-society"-model and the "lay movements of renewal"-model.              Revitalizing of the CEB-model.

Introdução
                Na nossa modernidade avançada, Sigmund Bauman que o diga, nada é estável, permanente ou firme. Desmoronaram-se muitas das antigas certezas científicas, caíram em desuso velhos hábitos, tradições ou convenções sociais, e tecnologias ontem admiradas ou cobiçadas hoje são atiradas na lixeira. Ao que parece o planeta resolveu girar mais depressa. Nada escapa à volatilidade do  tempo. A própria religiosidade, antes fator de grande estabilidade social, hoje parece ter perdida sua âncora. Tudo "à la carte" costuma-se dizer. O supermercado religioso oferece de tudo. É só escolher o que está mais na moda.
                Pode-se ainda sonhar com um "modelo" pastoral num mundo desses? Olhando para trás, prendendo-nos à história da Igreja, podemos encontrar, sem dúvida, alguns modelos bastante nítidos. Perduraram por séculos. Para um observador atento, diversos traços destes modelos ainda são visíveis no panorama pastoral dos nossos dias. A "liquidez" que marca o nosso tempo tem exatamente este efeito: todos os modelos estão disponíveis e cada um/a escolhe o que for de sua conveniência. Atitude certa ou errada? Oh, perguntinha mais antiquada! Uma das grandes conquistas da modernidade é exatamente a "certeza" de que, agora, tudo é relativo. O papa Bento, porém, reclamou muito dizendo que não é bem assim, que Deus revelou verdades incontestáveis, e que, sem Deus, não é nem possível conhecer corretamente a realidade (Cf. DAp). Os modelos firmes, portanto, ficam?
                Não se pode negar que as principais vertentes filosóficas da modernidade puseram fim às certezas metafísicas. Tornou-se evidente que o conhecer humano, do começo ao fim, é marcado pela historicidade (do contexto cultural, da linguagem, horizonte de sentido, etc.). Também a ciência descobriu seus próprios limites existenciais. Ela sempre responde a perguntas (hipóteses) levantadas e estas, invariavelmente, têm a marca da parcialidade e da provisoriedade. Ela está em busca da verdade sem jamais alcançá-la por inteiro. E a Igreja, a Religião, a Revelação divina? Elas nos trazem a verdade plena? Se Deus fala não são descabidas as nossas dúvidas? Para o grande teólogo da Reforma, Karl Barth (†1968), não há dúvida quanto a isso. Nos 26 volumes de sua magistral Christliche Dogmatik insiste incansavelmente na total impossibilidade de o sempre frágil conhecimento humano alcançar as verdades divinas. Neste sentido não há uma única ponte sequer entre Deus e o ser humano. Justamente por isso, diz Barth, o próprio Deus tomou a iniciativa de revelar-se ao ser humano. A certeza do ser humano não é fruto de conhecimento humano. É pura doação divina. Deus a oferece gratuitamente, na Escritura e na Igreja guiada por seu Espírito.
                O papa Bento tem falado muito destas certezas absolutas que somente Deus nos pode oferecer. Como harmonizar isso com o consenso dos teólogos da modernidade que afirmam não existir nenhuma ponte entre a física e a metafísica? Como crer em algo que vai além da física quando nenhuma realidade transcendental é palpável, demonstrável, visível ou audível? Não é de admirar que a Modernidade chegou a decretar a morte de Deus e o fim das religiões. Mas a vida sempre surpreende. Quando menos se espera, o imponderável acontece. Agora que a chamada pós-modernidade começa a tomar conta dos corações e das mentes, liquidificando o que parecia sólido, eis que um grande cientista da religião, Peter Berger, diz ouvir novamente "o rumor de anjos" por toda parte (A rumor of angels, Penguin Book, Harmondsworth, Inglaterra, 1971). A religião está de volta e a fé novamente move as montanhas. Sim, dizem nossos teólogos, está de volta, mas não da mesma forma. Trata-se de uma religiosidade secularizada, sem igrejas e sem transcendentalismos. Ou então uma religiosidade apenas para consumo próprio. Este novo quadro permite ainda algum "modelo" pastoral que seja consistente?
                Nós acreditamos que sim. Não em termos absolutos ou definitivos. Tudo que vive sobre a face da terra possui a marca da transitoriedade. Apenas onde há morte, a vida pode prosperar. Jesus o disse (Jo 12, 24) e o experimentou (Lc 24, 26). Mas onde há vida, a vida deve ser plena. É sua vocação inerente. Religiões surgem na terra com esta finalidade, também o cristianismo. Jesus viu a figueira secando (Mt 21, 18-22). Levantou então sua voz de profeta e ofereceu um novo modelo de vida, mais abundante (Jo 10, 10). A Igreja deve dar continuidade ao que Cristo iniciou. Modelos pastorais encontram aí sua razão de ser. Devem oferecer vida, e vida em abundância. Isso, porém, só acontece quando o modelo está adaptado aos tempos que correm. É um pouco temerário querer oferecer um modelo  para tempos líquidos, mas não custa tentar.
1. Os fundamentos do modelo
                Um modelo pastoral que seja minimamente consistente deve oferecer uma série de critérios razoavelmente seguros para possibilitar uma ação pastoral concreta, adequada às necessidades. Para o que segue vamos imaginar-nos na posição de um padre recém-indicado para sua nova paróquia, ou então na posição de uma liderança leiga indicada pela comunidade para, junto com o(s) padre(s) e/ou outros/as religiosos/as, animar a Comunidade ou alguma atividade pastoral específica. Qual o modelo que vai orientar a ação? Em primeiro lugar é preciso ter consciência que sempre existirá algum modelo, ainda quando ninguém se dê conta. Pode até ser, como vamos ver mais adiante, que diversos modelos estejam presentes ao mesmo tempo. O Documento de Aparecida não os identificou, por isso acabou abrindo espaço para todos eles. Quanto mais claro o modelo que se quer perseguir, melhor. Evita correr muito e não alcançar o prêmio, como disse São Paulo. Comecemos pelos fundamentos que, necessariamente, devem embasar o modelo.
1.1 A Palavra de Deus como inspiração permanente
                Um modelo pastoral adequado ao nosso tempo tem a Palavra de Deus como inspiração permanente. Era preciso dizer o que é óbvio? Sim, porque nem sempre o que é óbvio faz parte da nossa prática. Na Idade Média, a Igreja (Católica) passou séculos sem dar a devida atenção à Palavra de Deus, com conseqüências graves que perduram até hoje.  Ainda falta muito para recuperar o terreno perdido. O povo católico em geral, majoritariamente, ainda se inspira nas suas tradições religiosas e não na Palavra de Deus. Fizemos alguns avanços significativos. Muitos padres, religiosos, religiosas, leigos e leigas participam, com freqüência, de boas formações bíblicas. Muitos grupos bíblicos se encontram regularmente e, depois do Vaticano II, a Bíblia está muito mais presente no cotidiano pastoral. Mas, perdura um problema: é preciso superar a verdadeira obsessão com a "doutrinação" que engessa a Igreja desde o Concílio de Trento (1545/63). Tanto a Igreja Católica quanto a Protestante, especialmente na Europa, agiram como se o ser humano fosse apenas cérebro. Deu no que deu: esvaziaram-se as igrejas (católicas). Hoje uma nova antropologia se faz presente. Somos seres "vivos". Qualquer ser vivo depende inteiramente do seu meio ambiente bioquímico cuja influência capta por meio de mecanismos extremamente complexos. No ser humano, esta mesma dinâmica se complexifica ainda mais, englobando o contexto sociocultural. Mais do que o cérebro, e antes dele, é nossa emoção que capta este contexto. Agimos mais pela emoção do que pela razão. Isso é muito relevante sob ponto de vista espiritual. Se o Espírito Santo não toca o coração, de nada adianta o discurso, por mais bem assimilado que seja. Os pentecostais, - para Comblin "o maior fenômeno religioso desde a Reforma do Séc. XVI" -,  são mestres nesta dinâmica. Suas igrejas (dirigidas por leigos) vivem lotadas por isso. Não sugerimos simplesmente copiá-los, mas que é bom ficar de olho, isto é. A Palavra de Deus sem o Espírito nada produz.
1.2 Fidelidade à Tradição da Igreja
                Esta é outra obviedade que merece ser colocada. Modelos pastorais são modelos de Igreja. Não podem ser fruto de algum eclesiástico iluminado. Quanto mais o modelo estiver alicerçado na autêntica Tradição da Igreja, melhor. Mas quem garante esta autenticidade? Tradicionalmente o Magistério oficial do papa e da Cúria Romana tem atribuído exclusivamente a si este privilégio, mas o Concílio Vaticano II se opôs a esta visão limitada, dando ênfase ao "sensus fidelium" (LG 12 e 30), atribuindo ao conjunto dos fiéis com seus pastores o dom da infalibilidade nas questões de fé. A evolução teológica posterior ao Vat. II aprofundou ainda mais esta concepção. Quase todos os teólogos reconhecem hoje a presença do Espírito em todas as religiões, mesmo nas não-cristãs. E não faltam teólogos que acusam a presença do Espírito na boa vontade de todo ser humano, mesmo quando se declara sem fé alguma. Será que não foi esta a intuição mais profunda de São Tomás de Aquino (†1274) quando dizia que em cada ser humano podemos encontrar uma "lei natural", reflexo da lei divina que rege o universo, e que o leva a sempre buscar não apenas seu bem pessoal, mas também o bem coletivo? O papa Bento fala de uma "gramática" inscrita na natureza humana (Cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 01/01/2007). Entre tantas teologias que andam por aí, quais as que mais segurança oferecem para embasar um modelo pastoral? Pessoalmente optamos pelo que é mais consensual entre os teólogos que têm os olhos voltados para o presente. Muitos teólogos se sentem mais seguros alicerçando-se nas tranqüilas teorias do passado, mas o Concílio Vat. II nos lembrou que a compreensão da Palavra de Deus avança com o passar do tempo (DV 8) e que cada tempo suscita novos "sinais" a serem corretamente interpretados (GS 4, 11, 44). É mais seguro, portanto, confiar nos teólogos que sabem harmonizar o velho e o novo. Do meio das muitas tradições teológicas e espirituais, antigas e novas, surgirá a "Grande Tradição" que deve alicerçar o nosso modelo. Colocado este fundamento, podemos agora perguntar-nos: quais os grandes critérios ou "pilares" que sustentam o modelo? Vejamos alguns dos principais.
2. Os pilares do modelo
                Ainda não tratamos do modelo em si. Já dissemos que o modelo é fruto de uma determinada configuração de Igreja. Em especial o contexto teológico (eclesiológico) e espiritual lhe dão uma visibilidade própria. Qual o contexto teológico-espiritual que marca o dia a dia da Igreja hoje?
2.1 O protagonismo dos leigos (e das leigas)
                O protagonismo dos leigos ainda não é a nossa realidade, mas é a proposta. Não são poucas as críticas à excessiva clericalização da Igreja. Jesus não era da tribo de Levi, nem de Aarão. Para os judeus Jesus era um leigo, e ainda por cima um leigo em geral mal-visto pelos "clérigos" do seu tempo. As primeiríssimas comunidades cristãs se agruparam em torno dos apóstolos, em geral também "leigos" (não provenientes da instituição clerical judaica). A rigorosa separação entre ministérios ordenados e não ordenados (leigos) é posterior à primeira fase eclesial. A forte hierarquização da Igreja e o excessivo papel dirigente dado ao padre que "toma posse" de uma determinada área, tem tudo a ver com a multifacetada herança recebida do Império Romano e com a forte "romanização", surgida no Séc. XIX em resposta aos avanços do protestantismo. No Brasil em particular, a romanização se tornou pastoralmente mais visível com a introdução das "pias sociedades" e a implantação da "ação católica". Trata-se da imposição de um "catolicismo romanizado" mediante um protagonismo leigo atrelado ao clero. O Vat. II, porém, após longa discussão, introduziu um novo conceito ao antecipar o capítulo do Povo de Deus (LG cap. 2) ao capítulo sobre a hierarquia (LG cap. 3). Jesus não colocou sua Igreja sob a direção de uma hierarquia, mas sob a ação do Espírito Santo. No entanto, qualquer carisma ou proposta, para concretizar-se, necessita de alguma forma de institucionalização, já dizia o grande eclesiólogo do Concílio, Yves Congar (†1995). É a história que se encarrega de dar à Igreja um rosto próprio. Modelos pastorais são espelhos do rosto da Igreja.
                Não apenas os documentos conciliares, mas todos os principais documentos da Igreja insistem no protagonismo leigo, também na América Latina. Medellin (Cap. 10), Puebla (777-849), Santo Domingo (94-103) e Aparecida (209-215) dão destaque especial ao ponto. As Diretrizes Gerais 2011/15 também (63, 71, 104, 115). No recente Documento 100, nossos bispos pedem "maior espaço de decisão" para os leigos (32). A realidade, porém, anda muito longe destes sonhos. A causa, seguramente, não está na falta de boa vontade. O que falta é uma autêntica "conversão institucional a partir de Roma". Tratamos disso, de forma mais extensa, em outro lugar.1 Neste momento nos cabe dizer apenas o seguinte: qualquer modelo pastoral que não tenha embutido dentro de si uma abertura maior à autonomia leiga, não é um modelo adequado para o nosso tempo.
 2.2 Uma espiritualidade aberta ao mundo
                Sempre nos surpreendeu a atitude tempestuosa de Jesus quando derrubou as mesas do Templo (Jo 2, 13-17). Também surpreende sua ira freqüente contra os fariseus e os mestres da Lei (Mt 23, 13-32). Ainda assim, Jesus não quer tirar uma vírgula sequer da Lei original, a da Aliança (Mt 5, 17-18). O grande critério do Reinado de Deus é a atenção dada aos machucados, abandonados à beira da estrada (Lc 10, 37). Sendo 100% judeu, Jesus não se rebela contra a religião judaica, mas contra sua interpretação equivocada. Toda a história do cristianismo merece ser analisada sob esta mesma perspectiva. Não se trata de uma batalha dos bem intencionados contra os mal intencionados. Trata-se de uma bem intencionada institucionalização da fé que, com o passar do tempo, se equivoca, prendendo as asas do Espírito. Aí surgem os Pacômios (†348), os Bentos (†547), os Damascenos (†749), os Franciscos (†1226), as Luisas (†1660) e Vicentes (†1660), como também as Terezas (†1897), os Foucaulds (†1916), os Mertons (†1968) e as Teresas de Calcutá (†1997).2 Não há institucionalização que possa com o Espírito. Este sempre deixará irrequieto o coração humano, como já disse S. Agostinho (†430). A espiritualidade é a força propulsora do ser humano, das sociedades e da Igreja.
                Sem abertura ao mundo, em especial ao pobre, não existe espiritualidade cristã. A aprovação da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, na última sessão do Vat. II, representa para muitos teólogos, até hoje, a mais profunda inversão teológica, espiritual e pastoral da Igreja desde o tempo da cristandade. Ao afirmar a autonomia das realidades terrestres e a leitura atenta aos sinais do tempo, o Concílio absorveu uma longa evolução eclesial cujo início freqüentemente é atribuído ao catolicismo social de Lamennais (†1854), Montalembert (†1870), Ozanam (†1853) e outros, e que - além de passar pela Rerum Novarum de Leão XIII (1891) - desabrocha depois na Escola de Saulchoir do dominicano Marie-Dominique Chenu (†1990) que ajudou muito a elaborar o documento. Uma Igreja antes mais voltada para o céu agora se volta para a terra, ou melhor, um dualismo, mais grego que semita, de quase dois mil anos vai sendo superado. O céu e a terra se encontram novamente na proposta jesuânica do Reinado de Deus. A espiritualidade se abre ao mundo. Não precisa acrescentar aqui que Medellin (1968) reelaborou tudo isso na perspectiva latino-americana dos (estruturalmente) empobrecidos e injustiçados. Modelos pastorais adequados sempre terão a cor e a linguagem da cultura local. O que é importante ressaltar neste momento é que o motor que move o povo não é a teologia, mas a mística, ponto muito importante e muitas vezes esquecido. A própria Gaudium et Spes foi fruto de uma nova espiritualidade que, nas décadas anteriores ao Concílio, se reencontrou com a Bíblia e com a tradição patrística muito voltada ao pobre. A "Nova Teologia" dos franceses e dos europeus em geral se alimentava de uma profunda mística, então chamada, carinhosamente, de "mística do engajamento". Voltaremos a este ponto depois. Um modelo pastoral que priorize apenas ideias, passando por cima da mística popular, facilmente dará com os burros n´água. O padre recém-nomeado para sua paróquia que se cuide.
2.3 Retomada da preocupação cósmica
                Vemos surgir um novo consenso teológico que vem ao encontro de uma sensibilidade que perpassa toda a tradição judaico-cristã, mas que, infelizmente, foi abafada na Igreja do Ocidente desde as grandes discussões cristológicas e trinitárias dos primeiros séculos: a preocupação cósmica (cf. Rom 8, 18-25; Cl 1, 15-20). Hoje, nenhum modelo pastoral pode desconhecer esta preocupação se quer adequar-se ao entendimento e à linguagem do nosso tempo. A Bíblia de Jerusalém inicia assim o livro de Gênesis: "... as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus pairava sobre as águas" (Gn 1,1). Um certo prurido doutrinário faz o comentarista dizer que a presença do vento não significa a presença do Espírito, pois a criação é obra da "Palavra" de Deus. Mas é difícil não assimilar o vento ao sopro divino que também contemplou o primeiro ser humano com o "hálito da vida" (Gn 2,7), ou ao "impetuoso vendaval" que derramou o Espírito sobre a primeira comunidade cristã de Jerusalém (At 2,2). Cada vez que algum abismo é preenchido e alguma treva iluminada, a tradição bíblica vê a presença do Espírito de Deus Criador.  Os Salmos não deixam dúvida: todo o cosmos canta o seu louvor (Sl 148).
                O paleontólogo e teólogo jesuíta, Teilhard de Chardin (†1955), intuía uma evolução cósmica que vai da simples matéria até uma espécie de "cristificação" do ser humano. Hoje existe um sólido consenso científico sobre a complexa estrutura interna da matéria, toda ela interrelacionada e interdependente, que abriga dentro de si o próprio germe da vida. Bilhões de anos fizeram a vida evoluir, complexificando-se cada vez mais, até arquitetar o atual cérebro humano que fez com que o ser humano "se descobrisse a si mesmo". O eminente filósofo alemão Hans Jonas tenta descrever o processo no "Princípio Vida" (Vozes, Petrópolis, 2004), destacando o "horizonte de transcendência" já presente nas mais primitivas manifestações da vida. A grande bioquímica Lynn Margulis fez o mesmo (Microcosmos, São Paulo, Cultrix, 2002, e Simbiotic Planet: a new view of evolution, New York, Basic Books, 1988). Temos escrito mais detalhadamente sobre este tema em outros lugares.3 Uma nova antropologia da vida se impõe. Querer adotar um modelo pastoral que vê o ser humano desligado de sua origem cósmica e do seu meio ambiente (físico e sociocultural) seria inteiramente sem sentido para os nossos dias.
2.4 O diálogo interreligioso
                A teologia que, nas últimas décadas, trouxe os avanços mais significativos e mais promissores é a teologia do diálogo interreligioso. Mas é também a teologia que mais desconfiança despertou na Cúria Romana. O Concílio Vaticano II realizou-se em meio a uma grande expectativa com relação ao ecumenismo. O papa João XXIII, embalado pelo forte movimento ecumênico da época, mostrou-se esperançoso em diversos momentos. Falava de um vento renovador a entrar pelas portas e janelas da Igreja. Estes ventos, porém, continuaram a soprar fortemente também após o Concílio, tanto na teologia quanto na espiritualidade e na ação pastoral. Para a Cúria Romana passou da conta. O papa João Paulo II tratou de fechar portas e janelas, e particularmente Bento XVI se convenceu que o mundo cristão estava perdendo suas âncoras em meio a uma relativização desenfreada. Uma de suas preocupações era exatamente o diálogo interreligioso. O documento Dominus Iesus (2000) afirma com rude violência que as outras religiões se encontram "numa situação gravemente deficitária" (DI 22) e insiste em apresentar Jesus como o único Salvador de todos os povos por meio da Igreja Católica.
                O consenso teológico das últimas décadas, porém, vai em outra direção. Assim como no início, o Espírito de Deus continua pairando sobre todas as águas e todos os abismos. Ele está presente e age não apenas nas pessoas batizadas, mas em cada ser humano e em cada cultura. Jesus lembrou que Deus faz chover sobre justos e injustos, ama todos os seus filhos e filhas por igual e não cai um único fio de cabelo da cabeça sem Ele perceber (Lc 12, 7). Ainda que enviado aos filhos de Israel, não deixa de curar também os estrangeiros (Mc 7, 24-30). Pentecostes inverte a torre de Babel e, no seguimento dos passos de Jesus, o Espírito é derramado sobre todas as línguas. A atual sensibilidade humana detesta levantar novas barreiras. Ela anseia pelos Direitos Humanos, pelas metas do milênio, pela paz entre os povos. A mensagem de Jesus é única e universal exatamente porque, na opinião de Jesus, "na casa de Deus há muitas moradas" (Jo 14, 2). São enjoadas e inúteis as intermináveis disputas doutrinárias. O monge beneditino, Marcelo de Barros Souza, vê no (macro) ecumenismo um "caminho espiritual" (REB 263/2006) e afirma: "Uma transformação profunda do mundo não virá de mudanças sociais e técnicas, mas de uma nova e profunda espiritualidade pós-religiosa ou transreligosa". Ele sonha com um "Fórum mundial pela mística da Vida, pela paz, justiça e defesa da Criação" para, assim, celebrar o cinqüentenário do Concílio, em 2015. O papa Francisco com certeza vai querer, mas, e a Cúria? Também o saudoso Pe. Libânio opina que a pastoral concreta da Igreja poderia inspirar-se no Fórum Social Mundial: "um diálogo aberto, sem imposições, tendo como única causa 'um outro mundo possível'" (Vida Pastoral 249/2006). Adotar um modelo pastoral sem diálogo interreligioso é uma aposta sem perspectiva de futuro.
2.5  Um modelo com rumo definido
                A "liquidez" no pensar pós-moderno não pode ser confundida com a impossibilidade de propostas firmes e claramente delineadas. Não há escapatória, qualquer proposta pastoral será marcada pela transitoriedade e pela abertura a novos pontos de vista. A incontornável finitude do ser humano leva a isto. Mas exatamente pela  liquidez das ideias e a instabilidade das instituições, o mundo anseia por um rumo que lhe dê segurança. Surgem fundamentalismos por toda parte, e também na Igreja constatamos que muitos preferem a segurança da volta ao ninho. Mas a vida tem no seu próprio cerne o imperativo da auto-superação. Sempre seremos "povo a caminho", carente de algum Moisés para indicar o rumo. As religiões surgem desta forma. Nós, cristãos, sabemos que o próprio Deus nos "revela" o caminho se soubermos ler os sinais do nosso tempo. Novamente dependemos aí do bom senso e do consenso dos nossos teólogos e mestres espirituais. Confrontando o novo com a riquíssima Tradição cristã do passado, a bruma se desfaz e a estrada recupera sua visibilidade. O modelo pastoral que buscamos não deve oferecer certezas absolutas, mas rumos claramente definidos, com razoável segurança.
                Quais estes rumos consensuais que o modelo pastoral deveria, por assim dizer, "potencializar"? Citemos apenas dois exemplos. O modelo deve expressar um claro "não" às sociedades radicalmente laicas que põem todas as religiões de escanteio. Laicas, sim, mas fecundadas e permanentemente inspiradas pelo consenso "interreligioso" da sociedade em questão. Hoje, as democracias modernas se tornam cada vez menos sustentáveis por um distanciamento crescente entre as elites tecnocráticas e uma impotente base popular que se orienta "espiritualmente" (justiça social, direitos, o "bem viver" em geral), mesmo nas sociedades secularizadas. O modelo deve expressar também um claro "sim" ao Jesus histórico da Galileia, profeta poderoso, mas trajado nas humildes vestes do Servo Sofredor. Corresponde a este Jesus uma Igreja radicalmente "kenótica", mas, já ressuscitada, sem medo do futuro. Uma Igreja não centrada no Templo, pois o Deus de Jesus (e dos primeiros cristãos) dispensa templos e imagens (pelos quais os romanos davam credibilidade e presença aos seus deuses), mas uma Igreja centrada no próprio ser humano. Uma "Igreja da Esperança" que leva o ser humano para além das meras utopias humanas, ao encontro do céu e da terra escatológicos.
3. Os modelos que estão presentes
                Até agora não tratamos do modelo em si, mas apenas dos seus fundamentos e dos pilares que o sustentam. Precisamos agora falar do modelo na sua concretude, sua configuração ou fisionomia real. Um primeiro ponto a ressaltar é que, tendo a Igreja uma história milenar, não será difícil encontrar uma diversidade de modelos. Mais acima dissemos que, no atual panorama pastoral, diversos modelos pastorais ainda marcam presença. Dependendo do lugar onde o recém-empossado padre inicia seu pastoreio, ou dependendo do tipo de movimento ou pastoral em que atuam nossos leigos ou leigas, os diferentes modelos terão maior ou menor presença. Como todos os modelos surgiram num determinado tempo histórico vamos descrevê-los, sucintamente, de forma histórica. Não visamos uma abordagem "acadêmica", mas, muito mais, uma abordagem descritiva, vivenciada e refletida pessoalmente. Trataremos deles brevemente para, em seguida, pôr em destaque o modelo que, no nosso entender, melhor se adequa aos tempos atuais.
a) O modelo da "desobriga"
                Tivemos o privilégio de trabalhar durante onze anos junto ao Santuário (Basílica) do Senhor Bom Jesus de Iguape SP, uma das primeiras paróquias do Brasil. Encontramos ali, ainda em plena atividade, a Irmandade de São Benedito, muito forte entre os pobres, e a Irmandade do Santíssimo, mais forte entre as famílias influentes. Enquanto muitos padres, nos primeiros anos pós-conciliares, trataram de "substituir" logo o que parecia demasiadamente tradicional, nós, mais positivos com relação à religiosidade popular, estudamos em profundidade os muitos livros históricos (especialmente atas de reuniões e livros de tombo) existentes na paróquia. A cidade ainda teve outras Irmandades: das almas, do Senhor Bom Jesus (encontramos um documento antigo onde a Irmandade vende escravos com o seguinte aval do bispo: "desde que por um bom preço"!), de Nossa Senhora do Rosário, etc. Nada acontecia na cidade sem alguma relação com este mundo religioso: procissões, festas, enterros, beneficência, além de, também, prestígio popular ou desprezo popular. Dificilmente alguém seria candidato a Prefeito se não tivesse passagem pela Diretoria da Irmandade (atenção: do Santíssimo!).
                O que colhemos desta experiência? Em primeiro lugar a convicção de que a "alma popular" é, por assim dizer, religiosa por natureza (a secularização apenas aparentemente a elimina), e que as tentativas eclesiásticas de mudá-la ou renová-la rapidamente não passam de uma ilusão eclesial.4 No contexto religioso das Irmandades, o clero é quase dispensável. Em Iguape, por décadas e mais décadas, não havia padre na cidade. Ocasionalmente vinha de longe, a convite da Irmandade, para administrar os sacramentos e rezar missa pelos falecidos, recebendo então pagamento. Contam os livros que o padre recebia conforme o número de genuflexões, maior nas missas solenes do que nas missas simples. Pelo jeito os padres achavam que recebiam pouco, pois logo inventaram missas simples com muitas genuflexões! Quem não acreditar pode ainda consultar os livros. Esta, sim, era realmente uma Igreja de leigos/as. O padre estava a seu serviço e não o contrário! Mas, aprendemos também que este era um modelo pastoral próprio da cristandade. A tradição imperava. Os atos religiosos possuíam um caráter festivo, mas também tinham o caráter de obrigatoriedade para qualquer família católica. Especialmente com relação aos sacramentos, apenas o padre podia "desobrigá-las", dando a todos a sensação do dever cumprido. Existem outros nomes para o modelo. Preferimos o da "desobriga".
b) O modelo da "pia sociedade"
                Quando chegamos a Iguape, a pertença à Irmandade estava em declínio, mas a pertença a alguma "sociedade pia" (Congregados Marianos, Filhas de Maria, Cruzadinhos, Apostolado da Oração, Legião de Maria) ainda era muito significativa. Em qualquer procissão, missa solene, ou evento religioso, elas ocupavam lugar de destaque. Importadas da Europa, sempre puderam contar com grande apoio dos papas e dos bispados locais. Possuindo forte estrutura organizativa (internacional, nacional e diocesana), com direção obrigatória do clero, as pias sociedades se encaixavam perfeitamente no modelo pastoral proposto pela Igreja Católica, especialmente a partir da segunda metade do Séc. XIX. A reação ao protestantismo e ao "galicanismo" (postura independente das Igrejas do norte europeu, sob forte influência das soberanias nacionalistas e laicas), reforçada pela infalibilidade papal do Conc. Vat. I (1869/70), deu origem à teologia e pastoral "ultramontanas" com suas três características principais: centralização, clericalização e espiritualização (cf. Riolando Azzi, REB 262/06). Com este novo modelo, imposto por Roma, o domínio pastoral passou dos leigos para o clero, nem sempre sem rivalidades ásperas. Em Iguape, sob instigação das leituras que vínhamos fazendo (e que falavam destas desavenças), acabamos encontrando um valiosíssimo tesouro (peças de arte sacra, todas em prata pura) escondido nas grossas paredes da Basílica sem que uma única alma viva da cidade desconfiasse do caso!
                Chegando a Diadema SP, em 2009, encontramos algumas destas mesmas pias sociedades ainda em plena atividade, embora sem o brilho de outrora. Sua existência ocorre um pouco "à margem" das demais atividades paroquiais. O pároco ainda assina os documentos prescritos, mas a coordenação é, na verdade, mais diocesana que paroquial, seguindo a orientação hierárquica dos estatutos. Em algumas, algum tipo de apostolado ainda é visível, em outras o predomínio é quase exclusivamente devocional. Como as Irmandades, também as pias sociedades revelam as raízes profundas das tradições religiosas populares, sem deixar de ostentar, claramente, as marcas da época. Seus hinos são reveladores. Os membros das sociedades são os "soldados de Cristo". Sua marca original é a "militância católica": o exército leigo, sob o comando do clero e a proteção do manto de Maria, combatendo a infidelidade, a laicidade e a imoralidade, em fim, todos os desmandos da "modernidade".
c) O modelo dos "movimentos leigos de renovação"
                A fortíssima onda renovadora que, a partir do Vat. II e da Conferência de Medellin (1968), tomou conta do panorama pastoral brasileiro, deu origem a inúmeras novas organizações pastorais, freqüentemente em substituição às anteriores. Primeiramente no interior e depois na periferia das cidades, foram surgindo dezenas de milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Com sua forte priorização das pastorais sócio-transformadoras, nem todos se sentiram à vontade com a nova proposta. Entre os que mantiveram as tradições, e especialmente entre os católicos mais alinhados com a classe média, foram surgindo diversos "movimentos leigos de renovação". Poucas as dioceses onde não se notava a presença, entre outros, dos Cursilhos, ou dos Encontros de Casais, crescendo depois com maior força o Movimento Carismático com suas diversas vertentes. Os diferentes grupos de jovens mais ligados às CEBs se articularam, majoritariamente, em torno da Pastoral de Juventude (PJ), enquanto os outros grupos jovens encontraram abrigo, também, nos diferentes movimentos, cada um com sua própria organização.
                 Hoje, o padre, ou irmã, indicado/a para uma nova Paróquia, provavelmente, encontrará a presença dos três modelos mencionados. Talvez não mais a visibilidades das Irmandades, mas sua mentalidade, sim. Para ter uma ação pastoral adequada deverá ter consciência dos três modelos e deverá saber distinguir entre o que ainda vale e o que não vale mais. Da mesma forma, o leigo ou a leiga que se dispõe a fazer um trabalho sério na Comunidade, deverá saber colocar na balança o que merece ser incentivado e o que não vale mais a pena. Da nossa parte aprendemos o quanto é verdadeiro o que dizia o grande educador brasileiro Paulo Freire: "a prática de refletir a prática, a partir da prática, é sempre a melhor prática". Hoje, a partir da nossa prática pessoal, concluímos que quem conduz a Igreja não é o clero, mas o Espírito Santo. Somos servidores do Espírito. Em todas as religiões, o Espírito se manifesta. E sempre haverá quem se disponha a conduzir. Nossa fé em Jesus Cristo e nossa longa e riquíssima Tradição judaico-cristã nos autorizam a indicar o rumo, com muita humildade, mas com firmeza. Porém, qual o rumo a apontar hoje quando todas as certezas se tornaram "líquidas" e quando tantos modelos estão presentes ao mesmo tempo?
4. O surgimento do "modelo das CEBs"
                O clima geral na Igreja hoje é muito diferente das décadas pós-conciliares. Os padres formados a partir da década de 1980 já não se formaram no entusiasmo da renovação conciliar, muito menos no de Medellin. A quase totalidade dos bispos nomeados desde então apresenta uma fisionomia muito mais institucional do que profética. Não há mais dúvida sobre o forte movimento restauracionista da Cúria Romana, já visível poucos anos depois do Vat. II. Os papas J. Paulo II e Bento XVI não se opuseram. Não se trata de uma rejeição ao Concílio em si, mas à sua interpretação (teológica e pastoral) mundo afora. Ao aposentar-se, contudo, Bento XVI manifestou publicamente o desejo que seu sucessor assumisse o legado conciliar. O que está havendo, na verdade, é uma desconfiança quase visceral diante de uma Modernidade que, aparentemente, não pára de afrontar todos os limites do sagrado. A generalizada "volta à grande disciplina" mostra, mais uma vez, que não são as novas teorias teológicas que vão mudar a Igreja, mas uma nova espiritualidade ou mística, desde que acolhida pelo coração do povo. E esta acolhida é lenta, muito mais lenta do que alguma teoria possa sugerir.
                No Brasil especificamente, o quadro eclesial a partir de Medellin se complicou um bocado. Somos o país que mais e melhor se aproveitou do aporte das ciências sociais, integrando-as à sua teologia e à prática pastoral. A Octogesima Adveniens (par. 4) de Paulo VI (1971) já insistia nisso. O Vat. II ainda não se deu conta da profunda relação (estrutural) de "dependência" (econômica, política e cultural) entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento. Nossos intelectuais a detectaram, deixando claro que a mesma relação de dependência existia, igualmente, entre as elites e as classes "oprimidas" do nosso próprio país. Com esta nova consciência política, o país deu uma guinada de 180 graus: muitíssimos intelectuais e os antigos e novos agrupamentos políticos "de esquerda", em parceria com um novo sindicalismo e uma nova postura nos movimentos populares, decidiram enfrentar, em conjunto, a ditadura militar, em busca de um governo alternativo, democraticamente eleito. A democracia veio com a eleição do Presidente Collor (1990), mas o objetivo das forças populares foi alcançado apenas em 2002 quando o líder sindical, Luiz Inácio Lula da Silva, ganhou as eleições, sob a bandeira e liderança do Partido dos Trabalhadores, criado em 1980.
                Toda esta evolução política mexeu com a postura tradicional da catolicismo brasileiro. O Conc. Vat. II assumiu a autonomia (política, econômica e cultural) das realidades "terrestres", desde que respeitada também a autonomia das realidades, digamos, "celestes" (os princípios cristãos do bem comum, justiça social, liberdade de consciência, etc.). O Magistério oficial, desde a Encíclica Rerum Novarum, sempre propôs uma espécie de "terceira via": nem capitalismo (selvagem), nem marxismo. No Brasil, a CNBB e boa parte dos bispos, durante um longo período, acabaram dando apoio às forças populares em oposição à ditadura militar. Da mesma forma grande parte do clero e das lideranças leigas da Igreja, animadas pela nova teologia da libertação. Roma entendeu que se tratava de uma mistura infeliz de teologia latino-americana com doutrinas marxistas, o que, com exceção do que é comum nas ciências sociais, nunca foi o caso. Apenas no Documento Libertatis Conscientia, de 1986, após forte manifestação da CNBB, Roma reconheceu que esta teologia era "não somente útil e conveniente, mas também oportuna e necessária".
                A origem mais remota das Comunidades de Base, na sua configuração inicial, é anterior a Medellin, mas não há dúvida que o Documento de Medellin (1968), a teologia da libertação e o clima eclesial das décadas de 1960 e 1970, lhes deram forte crescimento e dinamismo. Diferentemente do modelo pastoral dos movimentos, o modelo pastoral das CEBs sempre se caracterizou por um forte dinamismo sócio-transformador. As pastorais sociais foram sua marca registrada, sendo elas assumidas e até priorizadas em diversas Diretrizes Gerais até meados da década de 1980. Hoje é evidente que elas sofreram, de lá para cá, uma diluição crescente devido à nova mentalidade dos bispos e do clero em geral.
5. O modelo das CEBs e sua "revitalização"
                Nós, por uma série de motivos históricos e atuais, consideramos que o modelo das CEBs é, entre todos, o mais adequado para os nossos dias. O motivo principal é porque este modelo repousa mais firmemente sobre os dois fundamentos acima indicados, além de adequar-se perfeitamente aos cinco pilares que retratamos.
                O modelo da "desobriga" vem ao encontro de apenas um dos critérios: o protagonismo dos leigos. Trata-se de um protagonismo que, inclusive, oferece um escudo de proteção à religiosidade popular. Isso, para nós, é muito importante. Em muitos sentidos nosso povo tem "direito" à sua mística própria. Devemos ver nela a presença do Espírito. Mas também sabemos que o Espírito somente age dentro e não acima de determinados contextos históricos e culturais. O modelo da desobriga está inteiramente fechado na sua tradição popular, sem qualquer abertura à renovação bíblica, teológica ou pastoral. Como somos povo e Igreja a caminho, num mundo em acelerado processo de transformação, é o modelo que menos se adapta aos novos tempos.
                O modelo das "pias sociedades" já tem a vantagem de um melhor acompanhamento do clero. Também alimenta a espiritualidade popular e possui algum ímpeto missionário, mas trata-se de uma espiritualidade fortemente antimodernista e uma militância leiga muito subserviente e dependente do clero, com uma estrutura hierárquica de funcionamento que "amarra" a ação pastoral aos tempos passados. Sua tradição é fortemente devocional, desligada da Palavra de Deus. Sua teologia passa longe da renovação conciliar. O modelo ainda pode ajudar quando pastoralmente bem conduzido, mas dificilmente se adapta às necessidade do tempo atual.
                Já o modelo dos "movimentos" requer uma análise mais cuidadosa. Temos aqui também um protagonismo leigo bastante forte e bastante autônomo, com lideranças freqüentemente bem formadas. O movimento carismático ainda tem a vantagem de, permanentemente, buscar inspiração na Palavra de Deus e alimentar uma espiritualidade centralizada na ação do Espírito. Todos os movimentos apelam fortemente ao lado emocional do ser humano, o que consideramos legítimo e válido. Como assinalamos acima, o ser humano é guiado mais pela emoção do que pela razão. Ponto fraco dos movimentos, porém, é sua auto-centração. Tudo gira em torno do próximo encontro, da próxima reunião, do próximo momento forte de oração. Não de princípio, mas de fato, o movimento tem dificuldade de se inserir no dia a dia das demais atividades da vida comunitária ou paroquial. Seu principal ponto fraco, contudo, talvez seja a sua rejeição (conscientemente ou não) a qualquer pastoral sócio-transformadora. A própria estrutura de funcionamento dos movimentos abre pouco espaço para aprofundamento bíblico-teológico o que, aliado a uma maior presença de pessoas provenientes da classe média/alta, leva a uma forte conformidade social. Todos os movimentos, por isso, tendem a um tradicionalismo cristão que passa ao largo do que para Jesus era essencial: a vinda do Reinado de Deus. E esta vinda passa, necessariamente, por profundas mudanças na sociedade que temos.
                 Por tudo o que vimos, o modelo das CEBs parece ser o mais adequado para os tempos atuais, sob todos os pontos de vista. Não que o modelo, da forma como surgiu em décadas passadas, seja perfeito, sem necessidade de aperfeiçoamento. Também o modelo das CEBs precisa ser "revitalizado" (na perspectiva mais ampla da "revitalização" da paróquia). Uma das melhores qualidades de um modelo pastoral hoje é justamente sua adaptabilidade às transformações rápidas em curso. Alguns pontos fracos das CEBs do passado parecem ter colaborado para sua rejeição por parte de grandes faixas da população e boa parte dos nossos bispos (além da Cúria Romana): uma prioridade exagerada, às vezes quase exclusiva, dada às pastorais sociais, sem uma integração melhor com as demais dimensões da ação pastoral; uma atenção mais voltada à razão (formação e conscientização) do que à emoção (oração e meditação); uma ação pastoral planejada mais a partir da cabeça de uma minoria leiga (teologica e também politicamente) mais bem formada do que a partir do conjunto da Comunidade; a falta de uma dinâmica grupal mais própria para pessoas com escolaridade mais elevada e vida profissional mais exigente.
                Muito recentemente, a CNBB publicou o Documento 100, com o título: "Comunidade de comunidades: uma Nova Paróquia". Parece haver consenso entre os bispos que o sistema paroquial atual necessita de conserto. A "conversão pastoral" proposta pela Conferência Episcopal de Aparecida (2007) parece não estar surtindo os resultados desejados. A "Nova Paróquia" que os bispos propõem, requer, além de uma nova consciência comunitária e uma espiritualidade mais missionária (a tal "revitalização"), uma eficaz "setorização", criando autênticas comunidades, transformando a Paróquia na grande "Comunidade de Comunidades". Tratamos desta proposta, em detalhes, na Vida Pastoral, março/abril 2015. Não vamos aprofundá-la aqui. O equívoco que vemos na proposta é que as CEBs são colocadas em pé de igualdade com os demais movimentos, grupos e "novas" comunidades que hoje fazem parte do nosso panorama eclesial. Nós, diferentemente de outros, entendemos que novas e antigas formas de espiritualidade, como também articulações grupais diversas, podem (e até devem) estar presentes em qualquer Comunidade, mas nenhuma espiritualidade, por si só, e nenhum grupo particular, por si só, possui a "eclesialidade plena". Esta só encontramos na CEB, porção da Igreja maior, a Diocese.
                O atual Direito Canônico, corretamente, vê a plena eclesialidade presente na Diocese, unida a Pedro, como também na Paróquia desde que unida à orientação diocesana. Nada impede, porém, de estender esta plena eclesialidade a outras Comunidades menores dentro da Paróquia, desde que elas mantenham a união com o bispo diocesano. A proposta se encaixa perfeitamente na "Grande Tradição" eclesial, além de exprimir fielmente o espírito conciliar. Lembramos até hoje a bela expressão do bispo auxiliar de B. Horizonte ao voltar, entusiasmado, do Vat. II: "A pequena Comunidade cristã é a Igreja toda em miniatura".  Mas, esta plena eclesialidade exige a presença das "cinco C´s", diz Sérgio Ricardo Coutinho, assessor das CEBs da Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato da CNBB (Cf. CEBs e os desafios do mundo contemporâneo, Paulus, São Paulo, 2012). As cinco C´s, em seu conjunto, encontramos apenas nas CEBs: 1) Celebração: da Comunidade toda (ainda que com espiritualidades e articulações diversas), centrada na Eucaristia; 2) Círculo Bíblico: a Palavra de Deus, ouvida, meditada e praticada por todos os membros e grupos de uma mesma Comunidade; 3) Conselho: os serviços de animação da Comunidade, em conformidade com a orientação diocesana; 4) Catequese: o aprofundamento da fé nas famílias da Comunidade, atingindo todas as idades; 5) Compromisso sócio-transformador (assistência social e ação transformadora): a prática da fé na sociedade, tendo em vista o Reinado de Deus.
                Os dois fundamentos e os cinco pilares de um bom modelo pastoral, assim como acima indicados, podemos encontrar na Paróquia, mas de forma muito mais viva, concreta e fraterna nas Comunidades Eclesiais de Base. Não nos grupos ou movimentos isolados, nem na CEB quando isolada da Diocese. Os diferentes grupos atuantes das CEBs, quando fieis à sua origem, costumam reunir-se regularmente em torno da Palavra de Deus, unindo "fé e vida", geralmente com subsídios os mais diversos. A prática favorece uma atualização teológica e pastoral permanente. Com isto, o enfoque mais fortemente sócio-político dos primeiros anos da teologia da libertação se amplia, integrando novos aspectos da missão libertadora: os diferentes "rostos" da exclusão (Puebla), a interculturalidade (S. Domingo), a missionariedade (Aparecida), a urgência ecológica (DGAE 2011/15), etc. Infelizmente, o Documento 100 (2014) da CNBB não dá continuidade ao Documento 92 (2010) que, na introdução, coerentemente, seguindo Medellin 15, define as CEBs como "o primeiro e fundamental núcleo eclesial" e "célula inicial da estrutura eclesial". Para o atual Direito Canônico, lamentavelmente, apenas a paróquia é "célula inicial" (cf. c. 515). A configuração eclesial dos dias atuais requer, sem dúvida, muito espaço para diversidade, mas seria bom não perder de vista que o ser humano (qualquer que seja) necessita de uma comunidade para viver mais plenamente. Vivemos hoje, diz o teólogo José Maria Vigil, "um verdadeiro colapso do catolicismo no continente". Sinal a ser interpretado. Para nós, o melhor caminho (o melhor "modelo") é o das CEBs.

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Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>

1. Ver em: REB 291/2013 e Vida Pastoral,  janeiro/fevereiro 2015.
2. Retratamos a história destas correntes espirituais em: Grande Sinal, Maio 2012, Julho 2012, Setembro 2012, e Novembro 2012.
3. Ver em: Vida Pastoral, maio/junho 2011, novembro/dezembro 2011 e novembro/dezembro 2014.
4. Ainda em 2015 sairá, na Vida Pastoral, um artigo nosso que aborda esta questão em maior profundidade.

* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular, de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia / SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita / SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema, SP. Além de cartilhas populares publicou artigos pastorais diversos em REB, Vida Pastoral, Verbum, Convergência e Grande Sinal.
                                                                                                                                                                                   


  

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