ESPIRITUALIDADE DO “OUTRO MUNDO” NA
COSMOVISÃO ANTROPOLÓGICA - O “OUTRO
MUNDO” É POSSÍVEL? (II)
Pe.
Nicolau João Bakker *
Introdução:
O
presente artigo dá seqüência a outro, publicado em Grande
Sinal, 2012/3 e 4 onde falamos da
espiritualidade do outro mundo na cosmovisão teológica. Fizemos então
referência às 12 edições do Fórum Social Mundial que, todas elas, se colocaram
como pergunta: o “outro mundo” é possível? Argumentamos que o sonho de um
“outro mundo” é, na verdade, o sonho da humanidade. Podemos encontrá-lo em
todas as religiões e em todos os tempos.
A
cosmovisão teológica guiou o pensar e o agir da humanidade durante milênios. Quando,
a partir do Séc. XVI, ela é substituída pela cosmovisão antropológica, ela não
deixou de influir sobre nós. As duas cosmovisões se mesclam. Ora nos deixamos
guiar por uma, ora por outra, com sério perigo de incoerências pastorais. O
quadro fica mais confuso ainda quando surge, a partir do século passado, uma
terceira cosmovisão, a ecológica, que atropela as duas anteriores e põe tudo,
de novo, de pernas para o ar. Hoje, na nossa pastoral e na nossa
espiritualidade, lidamos com três cosmovisões que “fazem a nossa cabeça”. Está
aí uma fonte parcial das nossas divergências teológicas, da diversidade das
correntes espirituais que vemos na Igreja, e também dos “arranca-rabos
pastorais” às quais, ocasionalmente, assistimos.1
Para
uma compreensão mais adequada deste artigo, que aborda apenas a espiritualidade
do outro mundo dentro da cosmovisão antropológica, seria conveniente fazer uma
releitura do artigo anterior acima referido. No processo evolutivo da história,
uma reage à outra, ou melhor, “nasce” da outra. Filho de peixe peixinho é.
I
A “espiritualidade do outro mundo” no tempo da Renascença
Temos retratado a espiritualidade do outro mundo dentro
da cosmovisão teológica mediante a vida e inspiração dos principais “mestres
espirituais” da época. Faremos o mesmo agora. Afinal, espiritualidade não é
doutrina. Ainda que sempre tenha nela sua fundamentação, ela é, antes de tudo,
uma vivência.
Quando o frade dominicano Mestre Eckhart (†1328), em 1302, é proclamado “mestre em teologia”
pela universidade de Paris, já não se sente muito atraído pela forte tradição
racional da teologia escolástica. Especialmente desde São Tomás de Aquino
(†1274) – que, por sua vez, segue os passos do “pai da Escolástica” Santo
Anselmo (†1109) e, em especial, de seu professor Santo Alberto Magno (†1280) –
não existe oposição entre fé e razão. Para chegar a Deus, Tomás propõe suas
“cinco vias”: neste mundo criado nada se move sozinho, nada se causa sozinho,
nada é contingente sozinho, nada é perfeito sozinho, e nada possui ordem
sozinho. Portanto, deve existir um Deus não criado para dar sentido ao mundo
criado. A mística do Mestre Eckhart vai em outra direção. Alimenta-se mais do
neoplatonismo de Santo Agostinho (†430). Com certeza inspira-se, largamente, também
no Pseudo-Dionísio (†500). Aí encontramos a via direta do encontro com Deus, e
não a via indireta pavimentada pelo uso da razão. Em sua Consolação Divina, e mais ainda nos seus Sermões, o mestre Eckhart dirá sempre que no “fundo da alma” – sua
metáfora preferida -, quando o ser humano “nada mais deseja, nada mais sabe e
nada mais possui”, se dá o encontro místico com Deus. Somente quando a mente é
“livre de Deus e de todas as coisas”, Deus “estabelece sua morada entre nós”.
Deus é “nada” chega a dizer. Não se trata, no entanto, de um vazio alheio ao
mundo: “é melhor dar de comer a quem tem fome do que entregar-se a uma
prolongada contemplação interior”.
No final da Idade Média, o Mestre Eckhart
representa bem o que a “espiritualidade popular” tem de mais autêntico,
opondo-se em muito à “espiritualidade do poder” que predomina na
Igreja-Instituição. Em seu tempo são muitos os movimentos leigos de piedade
popular – para alguns um verdadeiro “panteísmo religioso” - que surgem em meio
a um povo em geral abandonado à sua própria sorte. Eckhart, eleito Superior
Geral da Ordem em 1312, é pai espiritual de 47 conventos masculinos e 9
femininos, espalhados pelo Norte da Europa. Viaja por toda parte e prega na
língua do povo, inclusive, parece, ao então suspeito movimento das beguinas e
dos begardos, pequeninas comunidades religiosas de leigos e leigas, sem regra,
sem votos e sem vínculos institucionais eclesiásticos. A espiritualidade do
Mestre Eckhart será uma base forte para a posterior “espiritualidade flamenga”
(ou “renana”, do rio Reno).
Apesar
de ícone espiritual, Eckhart, em 1326, é ouvido pela Inquisição. Falar na
língua do povo é a primeira acusação, e o papa João XXII (†1334) declara que
ele é “um inimigo que semeia abrolhos na seara do Senhor”, alguém que “quer
saber mais que o necessário”. Suas pregações são “mal sonantes, ousadas ou
suspeitas”. Eckhart morre antes de ouvir a sentença final. A espiritualidade do
poder tem como característica central a “fidelidade à doutrina”, própria da
cosmovisão teológica. A espiritualidade popular tem como característica a
“fidelidade ao Espírito”, menos racional, mais autônoma, e, freqüentemente, de
viés anti-institucional. Já encontramos aí a raiz do protestantismo. Trata-se
de uma cosmovisão antropológica em formação.
Místicos
que, sem dúvida, se inspiraram no Mestre Eckhart, e que também podem ser vistos
como iniciadores do movimento renascentista na ótica da espiritualidade, são o
flamengo João de Ruysbroeck (†1381) e
o holandês Geert Groote (†1384). João
é um típico flamengo: rústico, realista, jovial e alegre. Deixa 11 escritos,
saborosos e populares. Escreve em seu próprio dialeto, com grande profundidade,
mas sem recursos filosóficos ou teológicos. Rejeita o ranço racional. Ordenado
sacerdote em 1317 trabalha durante 25 anos como capelão da catedral de Santa
Gúdula, de Bruxelas. Em 1343 funda uma pequena comunidade no vale verde de
Groenendael, perto de Bruxelas. Alí, no seu cantinho secreto da floresta, João
vive seus encontros com Deus. Sentindo-se inundado pelos “raios da divina luz”,
elabora alí seus escritos.
A nova comunidade, na esteira do Mestre
Eckhart, se exercita no total “desprendimento”. João, em seus livros Pedra Faiscante, Os 7 graus do Amor
Espiritual, O Reino dos amantes de Deus, além de outros, aconselha uma
mente “na total nudez de imagens” para alcançar a “total liberdade espiritual”.
No topo da escada espiritual, em total união mística com Deus, a pessoa se
torna “sem caminho”, isto é, sem qualquer intenção. Muito realista, porém, João
não quer nenhuma “piedade das nuvens”: “se estiveres em êxtase tão alto quanto
S. Pedro e S. Paulo, e se ficares sabendo que um doente precisa de uma sopa
quente, aconselho a que deixes o êxtase e esquente a sopa para ele”.
A
liberdade espiritual que João almeja é a “vida no Espírito” que está acima das
regras institucionais da Igreja-Instituição. Porém, sem cair no que hoje
chamaríamos de “relativismo”. Critica asperamente os “Irmãos do Espírito Livre”
que se consideravam acima dos mortais comuns por já possuírem “o Espírito do
Senhor”. A exuberante religiosidade popular da época chega às raias da histeria
e da heresia. Com a Inquisição por perto – que desconfia do “politeísmo” de
Groenendael! – o grupo opta, em 1350, pela regra e o hábito dos “Cônegos
Regulares de Santo Agostinho”. No berço da Renascença, a nova cosmovisão
antropológica já se manifesta na busca por uma maior liberdade espiritual, mas
os muitos visitantes do “vale verde” recebem sempre a mesma mensagem: a
contemplação deve bater com a ação, e o critério da verdadeira santidade é a
vida normal do dia a dia, desde que bem vivido. O “outro mundo” continua
dependendo deste.
Nesta
mesma época, no mosteiro dos cartuchos de Monnikendam, vive o famoso pregador e
místico holandês Geert Groote, ordenado diácono em 1379. Grande admirador e
visitante ocasional de João de Ruysbroeck, prega por toda a Holanda. Com alguns
companheiros funda, na próspera cidade comercial de Deventer, “Os Irmãos e
Irmãs da Vida Comum”, sob inspiração das primeiras comunidades cristãs de
Antioquia e Jerusalém. O objetivo é viver radicalmente a vida comunitária, com
pobreza, castidade e obediência, mas sem votos religiosos. Cada um/a continua
vivendo em seu estado normal de vida e profissão, mas com caixa comum.
Religiosos e religiosas viveriam de preferência em casas religiosas. Todos/as
são aconselhados/as a seguir a mística de João de Ruysbroeck.
Geert
Groote prega que a vida cristã não pode ser privilégio exclusivo de conventos e
mosteiros. Deve estar aberta a todos/as. A Igreja-Instituição continua presa à
espiritualidade do poder. O clero da época não inspira. O popular Ruysbroeck, na
boca do povo dito “o admirável”, observa: “seus negócios progridem, o dinheiro
aflui para seus bolsos, mas as almas não são tocadas”. Groote também é observado
atentamente pela Inquisição do papa Urbano IV. Ela anda desconfiada desta
espiritualidade leiga. Ele morre quando se prepara para formar uma nova casa
dos Cônegos de S. Agostinho. Seu prudente sucessor Florentius Radewijn
encaminha as novas comunidades. Surgirão depois quase 100 casas dos Cônegos
Regulares de S. Agostinho que, no Séc. XV, terão forte influência sobre a reforma
das ordens religiosas, especialmente na Alemanha. A ligação entre os seguidores
de Groote e Ruysbroeck era tão forte que, como conta a história, na mesma hora
em que Ruysbroeck morreu no seu retiro de Groenendael, “os sinos de Deventer
tocaram sozinhos”.
O
primeiro filósofo, teólogo e místico que integra a mística clássica com as
novas idéias renascentistas é o alemão São
Nicolau de Cusa (†1464). Inicialmente recebe sua formação na famosa escola
dos “Irmãos da Vida Comum” de Deventer. O ideal da “Devoção Moderna” daquela
cidade nunca mais o abandona. O estudo das ciências naturais está na moda.
Nicolau as estuda, juntamente com a filosofia e a teologia, primeiro na
universidade de Colônia, depois na de Pádua, onde faz doutorado em Direito
Canônico. É ordenado sacerdote em 1430, bispo em 1452 e feito cardeal em 1460.
No Concílio de Basiléia, (1432), como secretário do delegado papal Orsini,
sente na pele a desunião da cristandade. Os turcos estão à porta de
Constantinopla. Como “pai do ecumenismo” escreve sua primeira obra De Concordantia Catholica, em 1433.
Argumenta a favor da união entre cristãos, judeus e muçulmanos.
Surge
em Basiléia sua filosofia básica: a da “união dos contrários”, de fato uma
autêntica teoria de conhecimento em quatro níveis: os sentidos fornecem imagens
confusas; a razão, ou inteligência discursiva, as abstrai e universaliza; a
inteligência especulativa, supra-racional, possibilita, quando iluminada pela
fé, perceber a união dos contrários; surge então a “contemplação intuitiva”
onde, em Deus, todos os opostos se unem.
Ele aprofunda sua teoria mística na Docta
Ignorantia (1440) e na Apologia
Doctae Ignorantiae (1449). Somente a mística une os contrários, pois a
razão só capta as realidades criadas. Na terra só existem parcialidades: “nada
neste mundo é tão exato que não possa ser concebido com maior exatidão; nada é
tão reto a ponto de não poder ser mais reto; nada é tão verdadeiro que não
possa ser ainda mais verdadeiro”. O conhecimento humano é limitado – docta
ignorantia - : “a ignorância é o caminho que trilharam todos os sábios, antes e
depois de Dionísio”. Apenas Deus é o “máximo absoluto”, o Uno do qual tudo se
origina. Nicolau apóia inteiramente a “via negativa” dos místicos, mas vê
também uma “via positiva”: pela negação de tudo, a realidade infinita de Deus
aparece.
No
artigo que dedicamos à cosmovisão teológica vimos que uma nova cosmovisão não
substitui totalmente a anterior. Em Nicolau de Cusa vemos um claro elo de
ligação entre a cosmovisão teológica e a antropológica. Na primeira, dissemos,
Deus, ou o mundo do sagrado, é sempre o grande critério do crer e do agir. Na
segunda é a racionalidade humana. O Cusa aceita a autonomia humana, civil e
religiosa, mas numa espécie de “unidade dialética”: a unidade requer a diversidade.
Chega a admitir a imanência do infinito no finito: “o homem é como Deus, mas
não de modo absoluto, porque é homem; é, portanto, um Deus humano”. Na confusão
de Basiléia, no entanto, Nicolau fica do lado do papa, exatamente por ver a
necessidade de uma instância unificadora diante da diversidade. Ressalta a
independência do pensar humano, mas aprova as fogueiras da Inquisição e morre
ao tomar, a pedido do papa, todas as medidas para uma nova cruzada.
A
maior expressão da nova corrente mística da assim denominada “Devoção Moderna”
é o alemão Thomas à Kempis (†1471).
Também fez seus primeiros estudos em Deventer, em constante contato com os
Irmãos e Irmãs da Vida Comum. Depois, em 1399, entra na Comunidade Agostiniana
(dos Cônegos) de Windesheim, onde seu irmão maior é prior. Prega regularmente
aos noviços e na igreja do priorado. Escreve diversas obras das quais a mais
famosa é “A Imitação de Cristo”,
publicada pela primeira vez em 1418. A “devoção doce” de Thomas é muito baseada
no Novo Testamento, em especial na Vida e Paixão de Cristo. Escreve também a Vita Gerardi Magni, a biografia de Geert
Groote. No centro de sua obra estão os mistérios da Encarnação e da Salvação.
Alguns definiram sua espiritualidade como “a volta do coração a Jesus Cristo”.
Trata-se,
sem dúvida, de uma espiritualidade, digamos, mais “terrena”. Desaparece do
imaginário religioso popular a ênfase dada às visões, revelações, levitações e
estigmas. A devoção se volta mais para as boas práticas morais neste mundo
presente. Diz Thomas: “no Juizo Final não seremos perguntados o que temos, mas
o que fizemos”; “nunca fique sem fazer nada, leia, escreva, reze ou medite, ou
procure fazer algo em favor do bem comum”; “a batalha mais árdua é a do
aperfeiçoamento próprio”. Com algum exagero poderíamos perceber na
espiritualidade da Renascença os primeiros sinais do que, depois, se
transformará no poderoso movimento da secularização. Nem por isso Thomas à
Kempis perde de vista o “outro mundo” que continua altamente prioritário.
Lembramos com nitidez o momento do nosso noviciado quando lemos a “Imitação de
Cristo” e topamos com a frase de Thomas: “cada vez que vou ao mundo volto
pior”. Nunca mais fomos capazes de tomar este belo livrinho nas nossas mãos. Apesar do seu caráter mais “encarnado”, a
“fuga do mundo”, ou o desprezo do mesmo, continua presente na espiritualidade.
II
A “espiritualidade do outro mundo” no tempo da Modernidade
Os mestres espirituais da Renascença vivem em companhia
de muitos outros pensadores renascentistas que demonstram claramente que o
monopólio doutrinário da Igreja está chegando ao fim. Todos buscam uma maior
autonomia laica. Na Itália, o mal falado Niccolo Machiavelli (†1527) propõe um
novo pensamento político que rejeita as idéias “utópicas” da Igreja em favor de
“idéias realistas”, sem obediência a uma imaginária lei divina. Importa salvar
o Estado, não as almas. Na Holanda, o teólogo crítico Erasmo de Rotterdam
(†1536) satiriza os abusos despóticos da Igreja Católica e propõe seu
“humanismo cristão”. Defende uma maior racionalidade e liberdade, reconhecendo
que “há muito tempo canta para os surdos”. Na Inglaterra, o humanista
profundamente religioso, Thomas More (†1535) – para Erasmo, a vida de More era
a prova cabal que “não existem cristãos somente nos mosteiros” – escreve sua
encantadora Utopia (1516). Sonha com
uma sociedade igualitária, conduzida por um governo da aristocracia intelectual
e moral, sem tirania. A base de suas propostas é o “direito natural” e não mais
os tradicionais “direitos divinos”.
Grandes místicos neste início da Modernidade são os
espanhóis Santa Tereza d´Ávila (†1582) e
São João da Cruz (†1591). Quando
ainda jovem, a menina de boa família, Tereza, sente certa rejeição à vida
religiosa devido às muitas críticas existentes, mas, aos 20 anos, foge de casa
para entrar nas Carmelitas. Lendo sempre a vida dos Santos e ocupando-se, como
diria depois, com as “futilidades do parlatório”, sente grande frustração com
sua vida monástica. Os mosteiros do seu tempo estão numa fase de grande
decadência. Em seus “parlatórios”, os filhos e filhas da nobreza - que ocupam
os mosteiros às centenas -, jogam conversa fora com os cavalheiros e as damas
da cidade. Tereza quer uma reforma radical. Também porque, certa vez, como
conta a história, ao contemplar o crucifixo e perguntando-se do “porquê” de
tanto sofrimento, ouve como resposta: “foram tuas conversas no parlatório, Tereza”.
Tereza se decide então por um novo começo, com pequenas comunidades de 13 a 20
pessoas, rigor ascético original, clausura, silêncio, e hábito rústico. E sem
sapatinhos da sociedade. Religiosas “descalças”! Tereza sofre forte oposição
por parte de colegas, dos Carmelitas “calçados”, do bispo e clero locais, mas
também recebe apoios importantes, entre outros de João de Yepes, futuro São
João da Cruz.
Tereza
consegue, em 1562, aprovação de Roma para sua primeira casa. Seguem, não sem grande
sofrimento, muitas outras, até a separação oficial entre calçadas e descalças,
em 1580. Seus escritos, entre os quais O
Caminho da Perfeição (autobiografia),
Castelo Interior e Livro da Vida,
revelam uma mística profunda. Descreve, com detalhes, os quatro passos da
oração: recolhimento, quietação, união espiritual e arrebatamento. No Sul da
Europa, o imaginário popular religioso medieval é mais persistente, mas Tereza
revela surpreendente bom senso e até bom humor: “Tereza, sem a graça de Deus, é
uma pobre mulher, com a graça de Deus uma fortaleza, com a graça de Deus e
muito dinheiro uma potência”. Sua persistência em buscar uma alternativa à
Igreja-Instituição e seu discernimento lúcido em busca de uma espiritualidade
descomprometida com os privilégios da nobreza, revelam claramente uma guinada
na espiritualidade da época. As reformas monásticas revelam a busca por uma
mística mais condizente com a nova racionalidade.
Enquanto
Tereza está envolvida com a reforma dos mosteiros femininos, seu grande amigo,
São João da Cruz, da mesma região de Ávila, entra na Ordem dos Carmelitas
Calçados em 1563, mas também não gostou nada do que viu. Depois, na
universidade de Salamanca, vê muita doutrinação e pouca contemplação. Insatisfeito,
cogita entrar nos mais ascéticos cartuchos, mas Tereza o aconselha a reformar o
próprio Carmelo. Basta retomar a Regra antiga de quando o cruzado Bertolo de
Calábria fundou, em 1185, seu eremitério nas encostas do Monte Carmelo. Daí
para frente, João e alguns companheiros andam, sem sandálias e sem um segundo
hábito, fundando novas comunidades e reformando outras. Enfrentam as mesmas
resistências de Tereza, principalmente da ala conservadora do Carmelo. Em 1577,
João é seqüestrado por “desconhecidos” e passa oito meses preso numa pequena
cela do mosteiro de Toledo. Vive a pão, água, sardinha, e nada mais. Até a
Inquisição Espanhola é colocada no seu encalço.
Aí
desabrocha de vez a veia poética de João da Cruz. Escreve, em seu estilo
poético-místico, A noite escura da Alma, a
Subida do Monte Carmelo, e a Chama viva do Amor. Respira a mesma
espiritualidade popular de Ruysbroeck e Groote, da escola de Deventer. Retoma-se
a fundamentação bíblica e a experiência do “deserto”. Para João, o caminho
espiritual passa por três estágios. Em primeiro lugar a “purificação”: a
passagem pela “noite escura dos sentidos”; “buscar o nada para encontrar o
tudo”; “a pessoa que está presa por algum afeto, mesmo quando pequeno, não
alcançará a união com Deus, mesmo que tenha muitas virtudes; pouco importa se o
passarinho está preso com um fio grosso ou fino, ficará sempre preso e não
poderá voar”. Em segundo lugar a “iluminação”: a “subida” ao encontro do Amado;
“o mais leve movimento de uma alma animada de puro amor é mais proveitoso à Igreja
do que todas as demais obras reunidas”. E em terceiro lugar a “contemplação”: a
união mística com Deus, o encontro com o Amado, em João muito identificado com
o Jesus da Cruz: “quem não procura a cruz de Cristo não procura a glória de
Cristo”.
Trata-se
de uma “contemplação ativa”: “esta vida só tem razão de ser se for para
imitá-lo” (o Cristo da Cruz). “Fomos feitos para o amor”, repete João. Tendo
sido empregado num hospital quando jovem, funda a “Ordem dos Hospitaleiros”,
uma das grandes lacunas sociais de sua época. Vemos uma nova cosmovisão
antropológica se firmando quando João insiste na eficácia da ação fraterna e manifesta
sua desconfiança das tradicionais “revelações”: “o demônio fica muito
satisfeito quando percebe que uma alma deseja receber revelações, visto que,
neste caso, lhe oferece muitas possibilidades de insinuar erros e assim
destruir a fé”. O patrono dos poetas espanhóis morre do jeito que sempre pediu
a Deus: sem ser superior e abandonado por muitos. Muito mais tarde, uma grande
mística atual, Simone Weil, fã de São João, dirá que João era um “amigo de
Deus”, para ela “a única coisa que sustenta a vida”.
João
e Tereza são símbolos da grande reforma da vida religiosa que ocorreu no Séc.
XVI. A cosmovisão antropológica trouxe uma maior “racionalidade” na fé. Não
havia como continuar da forma que estava.
Quando
São Francisco de Sales (†1622),
filho nobre da Província de Sabóia, se ordena sacerdote em 1593, já é Doutor em
Direito Canônico pela universidade de Pádua. Quando ainda estudava no colégio
dos jesuítas, em Paris, passou grande crise de fé, imaginando-se predestinado
ao inferno. As idéias calvinistas assombravam a Igreja por toda parte.
Recuperou uma grande paz quando aprendeu a confiar plenamente em Deus. Seu
primeiro destino é uma Paróquia suíça, em Chablais. O monopólio dos mosteiros
agora está definitivamente no fim e a Reforma Católica do Séc. XVI – em reação
ao protestantismo - está no auge. Francisco se destaca no apostolado leigo. A
reforma do clero é uma preocupação geral e os leigos começam a ser vistos como a
grande esperança. O Concílio de Trento (1543-1563) dá um novo rosto à Igreja. A
Inquisição é retomada, surge o índex dos livros proibidos, o celibato é
reafirmado, os seminários feitos obrigatórios, e a catequese é
generalizada.
Francisco
prega com esmero e divulga seus panfletos contra os calvinistas. Escreve Controvérsias e Defesa do Estandarte da Cruz
e reconquista milhares para a fé católica. Feito bispo de Genebra em 1602
torna-se um ídolo popular por sua espiritualidade profunda e ação eficaz. Sua
preocupação é o povo simples e os leigos, tomando diversas iniciativas na linha
da formação. Seu clero é exemplar. Com seu estilo humano agradável recebe a
denominação de “santo cavalheiro”. Pregando por toda parte torna-se o guia
espiritual de São Vicente de Paulo e amigo duradouro de Santa Joana de Chantal
com a qual funda a Ordem da Visitação. Dom Bosco o adota por patrono, daí seus
“salesianos” (1865). Best-sellers até hoje são sua Introdução à Vida Devota e o Tratado
do Amor de Deus, escrito a pedido de Chantal para as “filhas da visitação”.
Limitar
a piedade aos conventos é uma “heresia”, diz Francisco. Santidade é para todos
os estados de vida. Como? “De modo muito simples: cumprindo a vontade de Deus”.
Sua “vida devota” consiste nas coisas simples do dia a dia, desde que feitas
com amor: “não é a tranqüilidade que aproxima Deus dos nossos corações, antes é
a fidelidade do nosso amor”. Insiste na “espiritualidade do coração”: “tudo por
amor, nada à força”. Aos leigos muito ocupados aconselha a virtude da
confiança: “o mesmo Deus que cuida de nós hoje cuidará de nós amanhã e
sempre... onde não puder caminhar, Ele o carregará nos braços”. Seu lema é: “a
medida do amor de Deus é amá-lo sem medida”. Para o papa Paulo VI ninguém
melhor do que São Francisco de Sales preparou o Conc. Vat. II: “por sua visão
tão perspicaz e progressista... por abrir o caminho da perfeição cristã para
todos os estados e condições de vida”. O “outro mundo” requer, antes de tudo,
uma “vida devota” neste mundo.
Místico declaradamente voltado para “este mundo”, ainda
que em nome do “outro mundo” é São Vicente
de Paulo (†1660). Filho de família camponesa do Sul da França, cuida das
ovelhas e costuma dividir sua sacola de pão com os famintos que encontra no caminho.
Trabalha depois como professor, em Dax, para pagar sua faculdade em Toulouse.
Ordena-se sacerdote em 1600. Muito religioso e bom pregador lhe é oferecida a
herança de uma rica senhora, algo comum na época. Indo a Marselha para
buscá-la, seu navio é atacado por piratas muçulmanos e Vicente é vendido como
escravo. Convertendo seu patrão, Vicente volta depois do Norte da África e
acaba hospedado na casa do vice-legado papal em Avinhão. Este o leva a Roma
para estudar Direito Canônico. Confiando na inteligência e seriedade do jovem
sacerdote, o papa encarrega Vicente de levar uma carta ao rei da França,
Henrique IV, e este o faz membro do influente Conselho Real que cuida dos
assuntos eclesiásticos.
Começa
assim a vida deste “apóstolo da caridade” que terá grande influência sobre a
ação caritativa da Igreja no mundo todo. O Conselho Real cuida não apenas da
nomeação dos bispos, mas também da assistência aos pobres. É isso que interessa
a Vicente. Após o assassinato do Rei, em 1610, convidado pelo influente bispo
Bérulle, Vicente é nomeado para uma Paróquia na periferia de Paris.
Imediatamente – como bom discípulo de Francisco de Sales – começa a organizar
“fraternidades” de leigos/as para atendimento aos pobres e doentes. Em 1617 funda as “Damas da Caridade”, para
beneficência aos pobres, e, para os homens, as “Confrarias da Caridade”. Depois
não escapa do convite de Bérulle para assumir a educação religiosa da família
do conde de Gondi, o conhecido “general das galeras”. Ser condenado às galés,
na época, era ser condenado à morte. A Marinha Francesa floresce e não faltam
condenados. Diz a história que Vicente, certa vez, substituiu secretamente a um
deles para salvá-lo da morte.
A senhora Gondi tem muitas propriedades no interior da
França e Vicente a acompanha, pregando nas igrejas e formando mais e mais
fraternidades. Faz confissões em massa e prega missões populares, além de
retiros ao clero – a reforma do clero ainda está na agenda –, aos leigos e aos
encarcerados. Em 1625 funda, com apoio da senhora Gondi, a “Congregação da
Missão” para a missão “entre o povo pobre do interior”. Por iniciar num
leprosário surgem assim os “padres lazaristas”. Vicente não deixa escritos ou
teorias sobre mística. São Francisco de Sales, no entanto, o chamou de “o padre
mais santo do século”. Hoje, seus missionários, padres e leigos, estão no mundo
inteiro.
Fazemos menção aqui à Santa Luisa de Marillac (†1660), filha ilegítima da nobreza, mas
grande companheira de Vicente. Com muito boa formação, também religiosa, Luisa,
ainda jovem, faz seu voto pessoal de dedicar a vida a Deus e ao próximo, mas o
tio arranja um casamento e o sonho vai água abaixo. Quando perde o marido e seu
pequeno Miguel está num pensionato, Luisa sente que chegou a hora de
concretizar seu sonho. Em 1629 Vicente a convida para assessorar as “Damas de
Caridade”, uma classe meio sem jeito para cuidar de pobres. Em 1630, numa missa
de aniversário do seu casamento, na hora da comunhão, Luisa tem a forte
experiência religiosa do “matrimônio místico”: “parece que N. Senhor me fazia
pensar para recebê-lo como esposo de minha alma”.
Visitando
as Damas de Caridade por toda França, ao mesmo tempo tem a direção de algumas
moças pobres do interior, enviadas por S. Vicente, dedicadas igualmente às
obras de caridade. Ensina-lhes “honrar os pobres como honrariam ao próprio
Cristo”. Em 1642 faz com elas votos para servirem inteiramente aos pobres, o
que constitui o início da companhia das “Filhas da Caridade”. Luisa escreve
suas próprias “Regras para a vida no mundo”. Em diálogo com Vicente – que,
inicialmente, não quer votos, nem Ofício, nem hábito, mas “roupas como as
camponesas” – decidem por “Irmãs não enclausuradas... que têm por véu a
humildade, por mosteiro a casa dos doentes, por cela um quarto de aluguel, e
por claustro as ruas da cidade ou as salas dos hospitais”. O “outro mundo” se
aproxima cada vez mais deste.
Em
pouco tempo, as Filhas da Caridade têm 30 comunidades espalhadas pela França e
até na Polônia, dedicadas a todas as vítimas das mazelas sociais da época. O
êxodo rural é grande, as políticas públicas são deploráveis e a Reforma
Católica está no topo da agenda. Hoje, as Filhas da Caridade passam de 20.000. Em
1934 Luisa é canonizada por Pio XI e, em 1960, o papa João XXIII a declara
patrona das Obras Sociais.
Como
“mestra espiritual” ressaltamos ainda Santa
Teresa de Lisieux (†1897). De família muito religiosa, da pequena burguesia
de Lisieux, Teresa sonhava com o Carmelo desde pequena. Faz seus votos em 1888,
com o nome de Teresa do Menino Jesus. Acrescenta, depois, “da Sagrada Face”. Passando
apenas nove anos no convento das carmelitas descalças, onde chegou a
vice-mestra das noviças, morre aos 24 anos, de tuberculose. A pedido da
superiora – sua própria irmã mais velha – deixa sua autobiografia A História de uma Alma, publicada já em
1898.
Conhecendo
muito bem a vida dos grandes santos, considerou-se “pequena demais para subir a
rude escada da perfeição”, contentando-se a vida inteira em “jogar flores de
pequenos sacrifícios para Jesus”.
Tornou-se, desta forma, conhecida como a “santa da pequena via”. Ela
mesma escreve: “sinto que minha missão vai começar, minha missão de fazer amar
o bom Deus como eu O amo, de indicar às almas meu pequeno caminho”. Passa o
tempo todo fazendo os afazeres caseiros: cuidar da rouparia, do dormitório, do
refeitório e da cozinha. Rejeitando o Deus vingativo de sua catequese de
infância, oferece todos os seus sacrifícios – percebidos nos mínimos detalhes –
ao Deus misericordioso, e a Jesus, seu “esposo amado”: “Agora compreendo que a
caridade perfeita consiste em suportar os defeitos dos outros, em não estranhar
suas fraquezas, em edificar-se com os menores atos de virtude que a gente vê
praticar”. Afirma categoricamente: “não quero ser santa pela metade”!
.
Seus manuscritos revelam grande preocupação com a “salvação das almas”. Seu
desejo mais profundo era “ser missionária”, revela a dois amigos missionários. Esta
santa dos “pequenos nadas” ofereceu todos os seus gestos pela salvação das
almas e pela Igreja. Em 1927 é declarada “padroeira das missões”. Sua alma
sensível a fez também poeta. Escreveu 57 poesias. Adorava observar as flores do
jardim, vendo nelas uma mensagem de Deus: “Compreendi que o brilho da rosa...
não tira o perfume da pequena violeta; compreendi que, se todas as flores quisessem
ser rosas, a natureza perderia seu encanto primaveril”. Gostava de colocar
flores, em especial para Jesus Crucificado. Em seu leito de morte prometeu fazer
chover rosas sobre o mundo, desfolhando uma rosa e deixando cair as pétalas
sobre o crucifixo. Sua “mística da
pequena via” incendiou a vida cristã européia. Alguns a chamaram “a maior santa
da vida moderna”. Quando, em 1925, Pio XI a declara santa, 500.000 peregrinos
lotam a praça de Roma.
Encerramos
os mestres espirituais da cosmovisão antropológica com o cardeal belga Josef Léon Cardijn (†1967). Sem dúvida um místico de plena cosmovisão antropológica,
ainda que no limiar de uma nova cosmovisão, a ecológica. Cardijn nasceu numa
tradicional família católica da classe popular flamenga, numa época em que as
mazelas sociais do capitalismo industrial escandalizam o mundo cristão.
Voltando às pressas do seminário para encontrar seu pai no leito da morte,
jura-lhe dedicar a vida à promoção da classe operária. Ordenado padre em 1906, manifesta
logo sua capacidade organizativa junto aos trabalhadores. Já é Diretor das
Obras Sociais de Bruxelas em 1912 e Capelão dos Sindicatos Cristãos em 1915,
dirigindo também a Juventude Sindicalista em 1919. Por resistência à ocupação
alemã fica preso por sete meses. Profundamente religioso, preocupa-o a “perda
do operariado”, chamado por Pio XI “o maior escândalo do Séc. XIX”. Acompanha
os comentários à Encíclica Rerum Novarum (1891) de Leão XIII e aprofunda-se nos
estudos de sociologia e sindicalismo, além das grandes questões econômicas e políticas.
Em
1920 funda a “Ação Católica” que reúne todos os dirigentes operários católicos,
e, em 1924, funda, com autonomia própria, a Juventude Operária Católica (JOC),
seguindo uma nova metodologia formativa, a da “revisão de vida”: ver, julgar, e
agir. Acredita que os próprios jovens, sem paternalismo patronal, sindical ou
clerical – uma das mais arraigadas tradições da época – e julgando a sua
própria realidade a partir dos princípios evangélicos, poderiam e deveriam
transformar a classe operária, recuperando-a para a vida cristã. Sua
espiritualidade centraliza o Reino de Deus e a presença do Espírito em todos os
batizados. Não visa conversões individuais, mas mudanças estruturais em
benefício da classe operária.
Quando
sua proposta de autonomia leiga e seu método original de conscientização
despertam muita oposição no meio do clero, Cardijn apela a Pio XI que aprova,
oficialmente, o movimento, agradecendo “a sagrada ambição da JOC de organizar,
não só uma elite, mas o conjunto da classe trabalhadora”. Daí em diante, os
grupos da JOC se espalham pela Bélgica e, logo em seguida, também pelo mundo.
No Brasil chegam em 1932, mas têm uma divulgação muito maior a partir de 1948
quando o próprio Cardijn visita o Brasil e a Am. Latina.
A
experiência da Ação Católica e da JOC se insere numa mudança eclesial profunda
onde surge, entre outras, a experiência dos “padres operários”. A “Nouvelle
Théologie” européia desperta um forte movimento bíblico, litúrgico e ecumênico,
além de suscitar as teologias do desenvolvimento e das realidades terrestres.
Devido à sua espiritualidade profundamente encarnada, João XXIII convida
Cardijn para assessorar a Comissão de Apostolado do Vat. II. Percebendo o
caráter fortemente clerical e pouco democrático da Comissão, o futuro Cardeal
Cardijn não deixa de externar suas objeções. Opina que apenas organizações
operárias autônomas têm poder para provocar mudanças de dentro para fora. Sua
JOC não visa uma revolução marxista, mas uma revolução cristã capaz de superar
o neopaganismo, o nacionalmaterialismo, o racismo messiânico e, especialmente,
o liberalismo, o secularismo e o ateísmo. Cardijn não é um místico tradicional.
É um místico típico da lógica antropológica. Ainda assim, seu processo de
beatificação está em andamento.
III A “espiritualidade do outro
mundo” na cosmovisão antropológica
O que mudou na
espiritualidade no decorrer da Renascença e da Modernidade? Em primeiro lugar é
preciso lembrar, como ressaltamos no nosso artigo anterior sobre a cosmovisão
teológica, que, na Idade Média, ocorreu uma cisão na espiritualidade da Igreja.
Na Igreja-Instituição se consolida o que denominamos a “espiritualidade do
poder”. Nela, o poder religioso da Igreja busca o maior predomínio possível
sobre o poder civil. Não uma busca do poder pelo poder. Trata-se da tentativa de
impor a vontade da Igreja, em nome de uma Revelação Divina considerada
inquestionável. A característica essencial desta espiritualidade – e da
cosmovisão teológica - é sua “fidelidade à Doutrina”.
No
decorrer da Modernidade, a Igreja-Instituição não abandona esta
espiritualidade. A cosmovisão antropológica ainda a aprofundou. As teologias
escolástica e neoescolástica – que geram o ultramontanismo e o antimodernismo -
fazem apelo explícito à razão para defender uma espécie de monopólio da Verdade
Revelada. Apenas a “Nouvelle Théologie” pré-conciliar e o próprio Concílio Vat.
II suavizam esta postura, abrindo as portas da Igreja para o Deus que se revela
também nas realidades terrestres e na religiosidade não explicitamente
católica. Falamos em “suavizar” porque a espiritualidade do poder continua fortemente
presente na Igreja. Sem dúvida tem a ver com o que Jesus chamou de “Reino de Deus”,
mas a Igreja, até hoje, não encontrou o tom adequado. A nova cosmovisão
ecológica abrirá, talvez, melhores perspectivas.
Vimos
no artigo anterior também que, em oposição à espiritualidade do poder, surgiu na
Idade Média uma “espiritualidade popular”. Ela é sucessora da espiritualidade
do deserto, mas muito menos fundamentada na Bíblia e bem mais no sentimento
religioso e nas devoções. Na religiosidade do início da Idade Média, o “outro
mundo” está tão presente no imaginário popular que, em muitas situações, leva a
um desprezo total das coisas deste mundo. Ocorre uma espécie de “fuga do mundo”
para salvar a alma mediante uma grande diversidade de devoções de forte caráter
“celestial”. O céu é importante, não a terra. No final da Idade Média, a partir
de São Francisco, Santa Clara e São Domingos, o outro mundo se articula
novamente com a ação neste mundo. O pobre e o povo comum, abandonados,
reconquistam a primazia. A união mística com Deus passa pelo encontro com os
que foram abandonados à beira da estrada.
Na nova cosmovisão antropológica da Modernidade, Deus não
é mais o único critério do crer e do agir. Na verdade, Deus é posto de lado ou
relegado ao foro íntimo das pessoas. Embora, como temos dito, muitos aspectos
da antiga cosmovisão perdurem, a nova cosmovisão mexe profundamente com a
religiosidade popular. Desde Eckhart, e em especial na “Escola de Deventer”,
vemos uma clara autonomia leiga frente à Igreja-Instituição. A “Devoção
Moderna” vive às turras com a Inquisição. Se Roma insiste na fidelidade a uma
doutrina revelada, a devoção popular insiste na fidelidade ao Espírito. Se a
teologia oficial apela à razão, a teologia popular apela ao coração.
A racionalidade acaba se impondo também à espiritualidade
popular. A “Devoção Moderna” não visa, como
dizia Ruysbroeck, uma “piedade das nuvens”. Visa uma ação racional e eficaz
neste mundo, mas dentro de uma mística da “volta do coração a Cristo”. As
inúmeras tentativas de criar uma vida religiosa sem vínculos institucionais
(Groote) – o protestantismo também se encaixa nesta tendência -, como também o
forte despertar do apostolado leigo (Sales e Vicente), apontam para uma nova
postura teológica e espiritual: a rejeição ao monopólio doutrinário de Roma e a
valorização da autonomia leiga. Nicolau de Cusa já deixou claro que a
racionalidade secular não se opõe à boa mística. Ao contrário, esta, embora
superior, se sustenta nela. Já esboça até uma “teologia da imanência”, tão
própria da cosmovisão antropológica, e mais ainda da ecológica onde o “outro
mundo” está presente nas entranhas deste mundo.
Mesmo a “pequena via” de Santa Terezinha demonstra que a
cosmovisão antropológica não se opõe à teológica, como muitas vezes se alega. A
razão humana deixa para trás o caráter “miraculoso” da fé, as revelações, as
visões, os estigmas, etc., próprios da cosmovisão teológica, e valoriza muito
mais as pequenas ações do dia a dia. O sobrenatural se manifesta no natural, o
divino no humano.
O
Cardeal Cardijn irá expressar, de forma mais explícita, todos esses avanços da
cosmovisão antropológica: a presença do Espírito na luta autônoma dos
trabalhadores, homens ou mulheres; uma espiritualidade inteiramente encarnada,
onde a união mística com Deus se expressa numa “mística de engajamento”, no
compromisso fraterno com o mundo do trabalho; uma “nova teologia”, arquitetada
não mais a partir de verdades eternas pré-estatabelecidas, mas a partir de
anseios populares historicamente contextualizados. Em fim, uma nova postura
eclesial, não mais articulada de cima para baixo, mas de baixo para cima, a
partir da nova consciência de Povo de Deus. O Vat. II consagrou esta nova
cosmovisão onde Deus não mais se opõe à razão, e onde o divino, em certo
sentido, é subjugado à razão humana.
*Missionário Verbita,
presbítero, formado em filosofia, teologia e ciências sociais.
Endereço
do autor: R. Juruá, 798 – Jd. Paineiras – 09932-220 Diadema
SP. Email: nijlbakker@hotmail.com Fone: (11) 4091-7928. Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Nota:
1) Em Vida Pastoral Nos 278/279/281/282
(2011/12) pode ser encontrada uma descrição detalhada destas cosmovisões,
como também sua espiritualidade e perspectiva política correspondentes, tendo
em vista a indispensável renovação pastoral da Igreja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário