Nossa
Pastoral diante do novo "ícone pop" da economia, Thomas Piketty
Nicolau João Bakker, svd*
INTRODUÇÃO:
Neste artigo gostaria de apresentar a
todos os leitores da Vida Pastoral o
surpreendente livro do economista francês Thomas Piketty, "O Capital
- no Século XXI". O
livro foi editado no Brasil pela Editora
Intrínseca Ltda, Rio de Janeiro, 2014, tornando-se imediatamente um
"best-seller" nas principais livrarias. Assim como Karl Marx (†1883),
Piketty - o novo "ícone pop" da economia, conforme The Economist - faz uma análise profunda
do capitalismo, abrangendo, porém, um período histórico muito mais amplo. Com
diversas equipes altamente especializadas pesquisou, durante 15 anos, as fontes
mundiais mais confiáveis, trazendo à luz, por meio de uma impressionante série
de gráficos e tabelas, uma autêntica "tomografia computadorizada" do
sistema capitalista.
Considero o livro de grande relevância
pastoral porque todos nós, sejamos ministros ordenados, religiosos/as, ou
leigos/as atuantes na Igreja, todos estamos diante de uma sociedade cada vez
mais complexa, com a incumbência de captar o que Deus tem a nos dizer mediante,
como nos lembrou Gaudium et Spes 4 e 11,
uma leitura atenta aos sinais do nosso tempo. E é bom lembrar que o
"eixo" que faz girar todas as engrenagens da sociedade, é a economia.
Quem não souber "ler" o sistema econômico que nos aprisiona,
dificilmente será uma "luz que brilha diante dos homens" (Mt 5,16). Quero
apresentar neste artigo apenas uma espécie de "roteiro de leitura"
para o livro de Piketty. Que ele fale por si mesmo. Como Gaudium et Spes nos pede para ler os sinais do tempo "à luz do
Evangelho", acrescentarei algumas observações neste sentido após a
"leitura" do texto.
I
ROTEIRO DE LEITURA
Questão
1: Da "renda nacional", qual a parte que cabe ao trabalhador?
Piketty diz: "Por definição, a renda nacional mede o conjunto das rendas de que
dispõem os residentes de um país ao longo de um ano." (p. 49)... "Renda nacional = renda do capital
+ renda do trabalho" (p. 51)... "Em
termos práticos, a renda nacional de uns 30.000 euros por habitante em vigor
nos países ricos se decompunha em aproximadamente 21.000 euros de renda do
trabalho (70%) e 9.000 euros de renda do capital (30%)" (p. 58)... "O caso mais importante... é sem
dúvida o da alta da participação do capital durante as primeiras fases da
Revolução Industrial (1800-1860). No Reino Unido, cujos dados são mais
completos, os trabalhos históricos disponíveis ... sugerem que a participação
do capital se expandiu em dez pontos percentuais da renda nacional, passando de
cerca de 35-40% ao fim do Séc. XVIII e no início do Séc. XIX para 45-50% em
meados do Séc. XIX, momento em que o Manifesta Comunista era redigido" (p.
220).
O conceito de "renda nacional" é
básico em análise de economia, pois permite indicar qual a parte que cabe ao
trabalhador e qual ao capital. Os gráficos de Piketty mostram a famosa
"curva em U": o capital era forte no Séc. XIX, decresceu na primeira
metade do Séc. XX (motivo, entre outros: guerras, desvalorização imobiliária e
financeira, além de altos impostos sobre a renda), e voltou a crescer com força
na segunda metade do Séc. XX (especialmente com a onda neoliberal).
Questão
2: Da "renda nacional", qual a parte que cabe ao capital?
Piketty diz: "A relação capital/renda (nos países
desenvolvidos) seguiu trajetórias muito semelhantes, apresentando uma relativa
estabilidade nos séculos XVIII e XIX (o capital nacional valia de seis a sete
anos de renda nacional em 1910), depois passando por um enorme choque no Séc.
XX (não valendo mais do que dois a três anos de renda nacional em 1950), para
finalmente retomar, no início do Séc. XXI, aos níveis próximos dos observados
às vésperas das guerras do Séc. XX" (p. 118)... "O capital mudou de
natureza - ele era a terra e se tornou imobiliário, industrial e financeiro -,
mas não perdeu nada de sua importância" (p. 121)... "O décimo superior da distribuição da riqueza, mais ainda do
que o décimo superior da distribuição de salários, é por si só extremamente
desigual. Quando esse décimo superior possui 60% do patrimônio total (em 1910
era 90%!) - como é o caso de vários países europeus hoje em dia -, o centésimo
superior possui cerca de 25% e os 9% seguintes, possui cerca de 35%" (p.
254).
Uma tese central no livro de Piketty é que
a tendência atual é a de fortalecimento do capital. Se a taxa média anual de
poupança de um país (pelos mais diferentes motivos) é de, p. ex., 12% da renda
nacional, e a taxa de crescimento da renda nacional por habitante for de 2%, a
longo prazo "o país terá acumulado o equivalente a seis anos de renda
nacional em capital"... "Um país que poupe muito e cresça lentamente
acumula, no longo prazo, um enorme estoque de capital"... "É a queda
do crescimento - sobretudo da expansão demográfica - que conduz ao retorno do
capital" (p. 165)... "Resumindo: o crescimento moderno, fundado no
crescimento da produtividade e na difusão do conhecimento, permitiu evitar o
apocalipse marxista e equilibrar o processo de acumulação do capital. Mas ele
não modificou as estruturas profundas do capital - ou, ao menos, não reduziu de
verdade sua importância macroeconômica em relação ao trabalho" (p. 229).
Questão
3: O "mercado livre" é anjo ou demônio?
Piketty diz: "Essa desigualdade fundamental, que denotarei como r > g, em
que r é a taxa de remuneração do capital (isto é, o que rende, em média, o
capital durante um ano, sob a forma de lucros, dividendos, juros, alugueis e
outras rendas do capital, em porcentagem de seu valor) e g representa a taxa de
crescimento (isto é, o crescimento anual da renda e da produção), desempenhará
um papel essencial nesse livro. De certa maneira, ela resume a lógica de minhas
conclusões."... "É importante ressaltar que a desigualdade
fundamental, r > g, a principal força de divergência no meu estudo, não tem
relação alguma com qualquer imperfeição do mercado... É possível imaginar que
instituições e políticas públicas possam contrabalançar os efeitos dessa lógica
implacável: por exemplo, a adoção de um imposto progressivo sobre o capital
pode atuar sobre a desigualdade r > g, alinhando a remuneração do capital e
o crescimento econômico." (p. 33-34).
Para Piketty, o mercado livre está mais
para anjo. A falta de políticas públicas adequadas, contudo, o transformam em
demônio.
Questão
4: No sistema capitalista, os ricos ficam cada vez mais ricos?
Piketty diz: "A principal força desestabelizadora está relacionada ao fato de
que a taxa de rendimento privado do capital r pode ser forte e continuamente mais elevada do que a taxa de
crescimento da renda e da produção g.
A desigualdade r > g faz com que
os patrimônios originados no passado se recapitalizem mais rápido do que a
progressão da produção e dos salários. Essa desigualdade exprime uma
contradição lógica fundamental. O empresário tende inevitavelmente a se
transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua
força de trabalho" (p. 555)...
"O mais assombroso é que, em todas essas sociedades (Europa), a metade
mais pobre da população não possui quase nada: os 50% mais pobres em patrimônio
detêm sempre menos de 10% da riqueza nacional, e geralmente menos de 5%" (p.
252).
Para Piketty, de fato, a "contradição
central do capitalismo r > g"
faz com que os ricos tendem a ficar cada vez mais ricos, e, pelas numerosas tabelas
e gráficos que apresenta, é esta, claramente, a tendência da atual fase
neoliberal do capitalismo.
Questão
5: Qual a marca principal do capitalismo atual?
Piketty diz: "Desde os anos 1970-1980, assiste-se a uma explosão sem
precedentes da desigualdade da renda nos Estados Unidos. A parcela do décimo
superior passou de 30-35% da renda nacional nos anos 1970 para cerca de 40-45%
nos anos 2000-2010, uma alta de quase quinze pontos percentuais da renda
nacional americana" (p. 287)...
"Dos 15 pontos percentuais de renda nacional suplementar que foram
absorvidos pelo décimo superior, em torno de 11 pontos - quase três quartos -
foram arrebanhados pelo 1% (isto é, o grupo das rendas atuais superiores a
352.000 dólares em 2010), e a metade disso foi para o 0,1% (o grupo das rendas
anuais acima de 1,5 milhão de dólares" (p. 289)... "A nova desigualdade americana tem relação estreita com o
advento de uma sociedade de 'superexecutivos'" (p. 295)... "A parcela do milésimo superior
(0,1%) passou de 2% a quase 10% da renda nacional" (p. 310)... "As ordens de grandeza obtidas para a
parcela do centésimo superior na renda nacional nas nações pobres ou emergentes
são, a princípio, extremamente próximas das observadas nos países ricos"
(p. 318)... "A arrecadação fiscal
hoje se tornou ou está a ponto de se tornar, regressiva no topo da hierarquia
das rendas na maioria dos países" (p. 483).
Piketty atribui a decolagem dos
"superexecutivos" ao surgimento das macroempresas modernas e ao
"extremismo meritocrático", sem nenhuma ligação lógica com aumento de
produção, além da "enorme queda da taxa do imposto sobre a renda marginal
superior nos países anglo-saxões a partir dos anos 1970-1980" (p. 327).
Questão
6: Podemos continuar falando "do" capitalismo?
Piketty diz: "Para um mesmo salário médio de 2.000 euros
por mês, a distribuição escandinava, mais igualitária, corresponde a 4.000
euros por mês para os 10% mais bem remunerados (e 10.000 para o 1% com os
maiores salários), 2.250 euros para os 40% do meio e 1.400 euros para os 50%
com os menores salários. Enquanto isso, a distribuição americana, mais desigual, tem uma hierarquia claramente mais
acentuada: 7.000 euros para os 10% do topo (e 24.000 euros para o 1%), 2.000
euros para os 40% do meio e apenas 1.000 euros por mês para os 50% da base da
distribuição." (p. 251)... "A
história da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais
e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência
relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso
decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os
atores envolvidos" (p. 27)...
"Por volta de 1900-1910... não havia classe média, uma vez que os 40% do
meio eram quase tão pobres quanto os 50% mais pobres (o 1% mais abastado possuía
sozinho mais de 50% do total da riqueza)" (p. 255).
Dependendo do foco faz sentido falar
"do" capitalismo, mas, em geral, é preciso deixar claro de qual
capitalismo estamos falando. Dependendo do tempo e do lugar, as realidades são
totalmente diferentes. Não faz sentido levantar as placas "condenado"
ou "aprovado" sem entrar nos detalhes. As generalizações inúteis são muito
comuns, também na Igreja.
Questão
7: Fazendo sua análise "do Capital", Marx errou ou acertou?
Piketty diz: "Marx rejeitou a hipótese de que o progresso tecnológico pudesse
ser duradouro e de que a produtividade fosse capaz de crescer de modo contínuo
- duas forças que poderiam, em alguma medida, se contrapor ao processo de
acumulação e concentração do capital privado. Sem dúvida, faltavam-lhe dados
estatísticos para refinar suas posições... O princípio de acumulação infinita
proposto por ele contém uma noção fundamental, tão válida para a análise do
Séc. XXI como foi para a do Séc. XIX." (p. 17-18).
Assim como para o capitalismo, também não
valem as placas de "aprovado" ou "desaprovado" para o
marxismo. Tudo depende do foco em discussão. Marx foi o ícone do passado,
Piketty é o ícone do presente.
Questão
8: Fazendo sua análise "do Capital", Piketty traz algo novo?
Piketty diz: "A lição geral de minha pesquisa é que a evolução dinâmica de uma
economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte,
contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do
conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergência vigorosas e
potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores
de justiça social sobre os quais elas se fundam... A melhor solução é o imposto
progressivo anual sobre o capital. Com ele, é possível evitar a espiral
desigualadora sem fim e ao mesmo tempo preservar as forças de concorrência e os
incentivos para que novas acumulações primitivas se produzam sem cessar"
(p. 555-556)... "O imposto
progressivo exprime, de certa forma, um compromisso ideal entre justiça social
e liberdade individual" (p. 492).
A proposta de um imposto progressivo sobre
o capital, como complemento aos impostos sobre a renda e a herança, não elimina
o sistema capitalista, mas inova no sentido de impedir a "acumulação
infinita" que faz parte de seu DNA.
Questão
9: No sistema capitalista, os salários são sempre achatados?
Piketty diz: "Na Europa Ocidental, na América do Norte e no Japão, a renda
média passou de pouco mais de 100 euros por mês e por habitante em 1700 para
mais de 2.500 euros por mês em 2012, multiplicando-se em mais de vinte vezes.
Na realidade, a expansão da produtividade, ou seja, da produção por hora
trabalhada, foi ainda mais elevada... O poder de compra médio em vigor no Velho
Continente quase não mudou entre 1700 e 1820, depois mais do que dobrou entre
1820 e 1913 e, por fim, aumentou mais de seis vezes entre 1913 e 2012." (p.
90).
Cuidado com este "médio" do
poder de compra. As médias escondem grandes disparidades. Todos ganharam, mas
alguns bem mais que os outros.
Questão
10: Com a queda do muro de Berlim, o capitalismo venceu?
Piketty diz: "Elaborada em 1955 (a 'teoria de Simon Kuznets'), trata-se de uma
teoria sobre os anos mágicos do período pós-guerra (quando as economias desenvolvidas
cresciam a taxas de até 5% anuais) que na França ficaram conhecidos como os
'Trinta Gloriosos', o intervalo compreendido entre 1945 e 1975. Para Kuznets,
bastava ter paciência e esperar que o crescimento começasse a beneficiar a
todos. A filosofia da época podia ser resumida em apenas uma frase: 'Growth is
a rising tide that lifts all the boats' ('O crescimento é como a maré alta que
levanta todos os barcos'). Otimismo semelhante foi proposto por Robert Solow em
1956 (com a teoria do 'crescimento equilibrado' para todos os grupos sociais)"
(p. 18).
A euforia capitalista dos "Trinta
Gloriosos", de fato, chegou ao auge (apesar da estagflação após 1975) com
a queda do muro de Berlim (1989). A obra de Piketty, no entanto, traz um
panorama histórico muito mais amplo, com gráficos e tabelas quase
incontestáveis. Fato real é que surgiu, no pós-guerra da Europa, o que Piketty
chama de "a classe média patrimonial": boa parte da riqueza dos 10%
mais ricos acabou indo para os 40% do meio. O que é importante observar, porém,
é que os 50% de baixo ficaram quase na mesma. Piketty diz: "Que os
leitores não se enganem: o desenvolvimento de uma verdadeira 'classe média
patrimonial' constitui a principal transformação estrutural da distribuição da
riqueza nos países desenvolvidos no Séc. XX'" (p. 255).
Questão
11: E a tal "meritocracia", ela é mesmo a solução?
Piketty diz: "No futuro poderemos reencontrar uma combinação de dois mundos: de
um lado, o retorno das fortes desigualdades do capital herdado e, do outro, as
desigualdades salariais exacerbadas e justificadas por mérito e produtividade
(cujo fundamento factual se mostrou, como vimos, muito escasso). O extremismo
meritocrático pode assim conduzir a uma disputa entre os superexecutivos e os
rentistas, em detrimento de todos os que não são nem uma coisa nem outra."
(p. 407).
Piketty afirma que "a desigualdade
não é necessariamente um mal em si: a questão central é decidir se ela se
justifica e se há razões concretas para que ela exista" (p. 26) . Mas diz
também: "Quando a taxa de remuneração do capital ultrapassa a taxa de
crescimento da produção e da renda, como ocorreu no Séc. XIX e parece provável
que volte a ocorrer no Séc. XXI, o capitalismo produz automaticamente
desigualdades insustentáveis, arbitrárias, que ameaçam de maneira radical os
valores de meritocracia sobre os quais se fundam nossas sociedades
democráticas." (p. 9). A meritocracia, para Piketty, admite a
desigualdade, desde que "justa" (p. 37). "O capital é
potencialmente útil para todos, e, se as sociedades forem organizadas o
suficiente, todos poderão se beneficiar dele" (p. 166). O que fazer,
porém, com os doentes e paralíticos à beira da estrada?
Questão
12: A economia manda na política, ou nem sempre?
Piketty diz: " A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser
profundamente política" (p. 27)...
"Existem, contudo, meios pelos quais a democracia pode retomar o controle
do capitalismo e assegurar que o interesse geral da população tenha precedência
sobre os interesses privados, preservando o grau de abertura econômica e
repelindo retrocessos protecionistas e nacionalistas. Ao longo do livro, tento
fazer proposições neste sentido, e elas se apoiam nas lições tiradas dessas
experiências históricas, cuja narrativa forma a trama principal deste texto"
(p. 9)... "O fracasso cada vez
mais evidente dos modelos estatizantes soviético e chinês nos anos 1970 levou
os dois gigantes comunistas a implantar, no início dos anos 1980, uma
liberalização gradual de seus sistemas econômicos" (p. 139)... "A desigualdade aumentou desde os
anos 1970-1980, com fortes variações entre países, o que sugere que as
diferenças institucionais e políticas tenham exercido um papel central" (p.
233).
Piketty crê firmemente que uma política de
impostos progressivos, anuais e globais, sobre o capital, é perfeitamente capaz
de impor um eficaz controle sobre as "loucuras" (p. 462) da economia
liberal. Formas estatizantes, no entanto, não fazem parte de sua proposta,
embora esteja aberto a novas formas de propriedade coletiva e controle
democrático do capital (p. 553-554).
Questão
13: O crescimento econômico é uma necessidade?
Piketty diz: "O crescimento... compreende sempre um componente puramente
demográfico e outro propriamente econômico, e apenas o econômico permite a
melhoria das condições de vida" (p. 77)... "Se o mesmo ritmo de crescimento demográfico que observamos entre
1700 e 2012 - 0,8% ao ano - se materializasse ao longo dos próximos séculos,
isso implicaria uma população mundial da ordem de 70 bilhões de habitantes em
2300." (p. 87)... "Com um
crescimento (populacional) fraco, seria também bastante plausível que as taxas
de retorno do capital (em geral de 4 a 5%) ultrapassassem a taxa de crescimento,
condição que, como discutimos na Introdução, é a principal força que impulsiona
uma intensa desigualdade na distribuição da riqueza no longo prazo" (p.
88)... "Não existe nenhum exemplo na
história de um país na fronteira tecnológica mundial no qual o crescimento da
produção por habitante tenha sido sistematicamente superior a 1,5%" (p.
98).
Hoje se discute a conveniência, ou não, do
crescimento econômico nulo, ou até do decrescimento. Piketty não entra nesta
questão. Vê o crescimento como o meio mais adequado para beneficiar também a
classe trabalhadora.
Questão
14: O meio ambiente tem futuro dentro do sistema capitalista?
Piketty diz: "O Relatório Stern, publicado em 2006, dividiu a opinião
pública... Para Stern, a perda em matéria de bem-estar global para a humanidade
é tal que justifica gastar a partir de agora o equivalente a pelo menos 5% do
PIB mundial por ano para tentar limitar o aquecimento global futuro... Esse é
um dos principais debates para o futuro." (p. 551-552).
Jogando o problema do meio ambiente para o
futuro, Piketty sai de fininho. O problema é fruto do sistema (econômico) e,
acolhendo o sistema, é preciso dizer como o problema pode ser resolvido dentro
do mesmo.
Questão
15: Os "paraísos fiscais" constituem entraves à democracia real?
Piketty diz: "O papel principal do imposto sobre o capital ... é evitar uma
espiral desigualadora sem fim e uma divergência ilimitada das desigualdades
patrimoniais, além de possibilitar um controle eficaz das crises financeiras e
bancárias. Contudo, antes de poder cumprir esse duplo papel, o imposto sobre o
capital deve permitir que se atinja um objetivo de transparência democrática e
financeira sobre os patrimônios e os ativos detidos pelos indivíduos em escala
internacional" (p. 504)... O
imposto sobre o capital seria uma forma de cadastro financeiro mundial, algo que
não existe hoje"... Cada autoridade fiscal nacional deve receber todas as
informações (internacionais) necessárias para lhe permitir calcular o
patrimônio líquido de cada cidadão" (p. 506)... "A transparência financeira internacional é uma questão
central para o Estado fiscal moderno" (p. 510).
Pesquisas feitas indicam que 10% do PIB
mundial está escondido nos paraísos fiscais. Piketty admite que, sem os devidos
controles bancários, e sem uma transparência financeira internacional
popularmente accessível, sua proposta de um imposto progressivo sobre o capital
é pouco viável. A crescente concorrência entre os países é o grande entrave
atual.
Questão
16: O imposto progressivo sobre o capital é a melhor solução?
Piketty diz: "A instituição ideal que seria capaz de evitar uma espiral
infindável de aumento da desigualdade e retomar o controle da dinâmica em curso
seria um imposto progressivo global sobre o capital" (p. 459)... "O imposto progressivo sobre o capital
é um instrumento mais apropriado para responder aos desafios do Séc. XXI do que
o imposto progressivo sobre a renda inventada no Séc. XX (veremos, porém, que
esses dois instrumentos podem ter papeis úteis e complementares)" (p.
461)... "É necessário ... retomar o
controle de um capitalismo financeiro que enlouqueceu" (p. 462)... "A questão do desenvolvimento de um
Estado fiscal e social no mundo emergente reveste-se de uma importância
fundamental para o futuro do planeta" (p. 479)... "Se essa regressividade fiscal no topo da hierarquia social se
confirmar e se amplificar no futuro, é provável que haja consequências importantes
para a dinâmica da desigualdade patrimonial e para o possível retorno de uma
enorme concentração do capital" (p. 483)... "As maiores fortunas mundiais (incluindo as herdadas)
progrediram em média a taxas elevadíssimas ao longo das últimas décadas (da
ordem de 6-7% ao ano) - rendimentos bem mais altos do que a progressão média
dos patrimônios" (p. 420)... Um
imposto igual a 1% ou 2% do valor da fortuna é relativamente pequeno para um
empreendedor que consegue obter um retorno de 10% ao ano sobre seu
patrimônio" (p. 513).
Piketty se diz "vacinado" contra
ideias marxistas (p. 37). Não quer mudar o sistema econômico, muito menos o desmonte
do Estado Social moderno. Sua proposta é: aperfeiçoamento. Sendo a renda média
dos ricos mais alta do que a renda média dos pobres, propõe, além do imposto
sobre a renda (cujo "nível ótimo... seria superior a 80%"! - p. 499) e
a herança, também um imposto direto e progressivo sobre o capital acumulado.
"Mencionamos a possibilidade de uma tabela de cálculos de tributos com
taxas limitadas a 0,1% ou 0,5% ao ano para patrimônios inferiores a 1 milhão de
euros, 1% para aqueles entre 1 e 5 milhões de euros, 2% para os que estão entre
os 5 e 10 milhões de euros, podendo subir até 5% ou 10% ao ano para os
patrimônios de centenas de milhões ou bilhões de euros" (p. 556)...
"Todavia, sua aplicação iria requerer um esforço brutal de coordenação
internacional" (p. 34).
Questão
17: A dívida pública brasileira tem solução?
Piketty diz: "Financiar a dívida é, acima de tudo, do interesse de quem tem os
meios para emprestar ao Estado, e seria melhor para o Estado taxar os ricos em
vez de pegar dinheiro emprestado deles ... Com uma dívida pública se aproximando,
em média, de um ano de renda nacional (cerca de 90% do PIB) nos países ricos, o
mundo desenvolvido encontra-se hoje com um nível de endividamento que não se
via desde 1945" (p. 526)...
"Existem três métodos principais (para diminuir a dívida) ... : o imposto sobre
o capital, a inflação e a austeridade. O imposto excepcional sobre o capital
privado é a solução mais justa e eficaz. Na ausência dele, a inflação pode ser útil.
... A pior solução ... é uma dose prolongada de austeridade" (p. 527).
A atual dívida pública brasileira (bruta) é
de aproximadamente 2,5 trilhões de Reais, passando de 62% do PIB. O atual
tratado de Maastricht (Europa) propõe um máximo de 60%. O problema maior é a
taxa absurdamente alta dos juros que, no Brasil, é muito maior do que nos
países desenvolvidos, comprometendo até 45% do nosso orçamento público anual.
Uma verdadeira "espada de Dâmocles"! Com pesadíssimos superávit
primários anuais de 2 a 3% do PIB, ainda pode levar mais de um século para
saldar esta dívida.
Questão
18: O abismo entre países ricos e pobres continua crescendo?
Piketty diz: "A participação dos países ricos (União Europeia, Estados
Unidos/Canadá, Japão) na renda global (mundial) alcança 46% em 2012 se usarmos
a paridade de poder de compra, contra 57% se utilizarmos as taxas de câmbio
nominais... A participação dos países ricos na renda global tem diminuído de
forma sistemática desde os anos 1970-1980. Qualquer que seja a medida
utilizada, o mundo parece ter entrado numa fase de convergência entre países
ricos e pobres" (p. 72)...
"A experiência histórica sugere que o principal mecanismo que permite a
convergência entre países é a difusão do conhecimento, tanto no âmbito
internacional quanto no doméstico" (p. 75)... "A parcela do milésimo superior (do mundo) atualmente parece estar
próxima de 20% do patrimônio total, a do centésimo superior, perto de 50% do
patrimônio total, e a do décimo superior, entre 80 e 90%; a metade inferior da
população mundial possui, sem dúvida, menos de 5% do patrimônio total" (p.
427).
Os
países ricos e pobres continuam se distanciando uns dos outros, mas o ritmo
está diminuindo. O gráfico 1.3 de Piketty mostra a desigualdade mundial de 1700
a 2012. Adotando a média mundial como 100%, o hiato aproximado é de: 140%/90%
(do PIB por habitante) em 1700, 220%/37% em 1950, 245%/45% em 1990 e 225%/61%
em 2012 (p. 66).
Questão
19: Qual o cenário para o futuro da economia mundial?
Piketty diz: "O crescimento do PIB mundial foi de 0,1% do ano 0 a 1700, 0,5% de
1700-1820, 1,5% de 1820-1913 e 3,0% de 1913-2012. Nos mesmos períodos, o
crescimento da população mundial foi de 0,1%, 0,4%, 0,6% e 1,4%. A produção por
habitante, ainda nestes mesmos períodos foi, portanto, de 0,0%, 0,1%, 0,9% e
1,6%. Entre 1700 e 2012, a média da produção mundial foi de 1,6%, do
crescimento populacional 0,8%, e produção por habitante 0,8%.... Segundo as
previsões da ONU, a taxa de crescimento populacional pode ficar abaixo de 0,4%
até 2030-2040 e se estabelecer em torno de 0,1% a partir de 2070-2080 (como
antes de 1700).... A lei do 'crescimento acumulado' é de natureza idêntica à
lei chamada de 'retornos acumulados', segundo a qual uma taxa de retorno atual
de alguns pontos percentuais, acumulada ao longo de várias décadas, conduz
automaticamente a uma expansão muito forte do capital inicial"... A tese
central deste livro é precisamente que uma diferença que parece pequena entre a
taxa de retorno (ou remuneração) do capital e a taxa de crescimento pode
produzir, no longo prazo, efeitos muito potentes e desestabelizadores para a
estrutura e a dinâmica da desigualdade numa sociedade" (p. 78-80).
Piketty prevê, para o futuro, um
crescimento econômico "lento" (aproximadamente 1%). Ainda assim, as
consequências para as sociedades serão muito significativas, para o bem ou para
o mal.
II
À LUZ DO EVANGELHO
A Bíblia não tem a intenção de oferecer
análises científicas. Os autores sagrados falam do que o Espírito de Deus lhes
inspirava, partindo de sua própria leitura do contexto social e cultural da
época, e levando em conta a riqueza espiritual já transmitida pelos
antepassados. A Igreja, até hoje, percorre o mesmo caminho. Ainda recentemente,
no Sínodo da Palavra de Deus (2007), o papa Bento XVI nos lembrava a
importância da "leitura canônica": a leitura do presente se ilumina
com a leitura do passado (unindo a Palavra revelada com a Tradição vivenciada).
Assim, diz Dei Verbum 8, "a
Igreja, no decurso dos séculos, caminha continuamente para a plenitude da
verdade divina".
Hoje
percebemos melhor que algo muito parecido acontece com todas as religiões: os
povos deste mundo, na busca por uma vivência, convivência e sobrevivência feliz,
se debruçam sobre os desafios do presente, amparando-se nas riquezas culturais
("religiosas") do passado. Nossa "teologia do pluralismo
religioso", atualmente, se enriquece com uma antropologia - neste caso
mais biológica que cultural -, que vê o ser humano dotado de uma carga genética
(Bento XVI falava de uma "gramática", e Tomás de Aquino (†1274) de
uma "lei natural") onde as sementes do bem e do mal (genes egoístas e
altruístas) competem entre si, com a feliz tendência de as sementes do bem
tenderem à vitória. Se, de alguma forma, o Espírito de Deus permeia toda a
realidade, o "happy end" está garantido, não é mesmo? Aproxima-se o
"banquete nupcial. Felizes os convidados!" (Apoc 19,9). A utopia de
um final feliz é uma utopia humana quase universal.
Lendo o livro de Piketty, veio-me à mente o
tom às vezes bastante azedo das disputas polêmicas em torno da teologia da
libertação latino-americana. E isto não apenas nos níveis mais altos da
hierarquia eclesial, mas também a nível básico das lideranças leigas envolvidas
com as pastorais sociais. Com relação à sociedade, em qual proposta embarcar:
marxismo, socialismo, capitalismo? Se não é nem socialismo, nem capitalismo,
qual a alternativa? Um "outro mundo" é possível? Piketty, como já
observamos, se declara "vacinado" contra ideias marxistas. Opta pelo
"mercado livre". Mas o capitalismo que Piketty propõe é muito
diferente do que temos visto até agora. Sua proposta de um imposto progressivo
não apenas sobre as rendas, mas também sobre o capital acumulado vem muito mais
ao encontro do que a Igreja sempre defendeu: preservar a liberdade, mas
prendê-la ao objetivo maior do bem comum. Desigualdade, diz Piketty, apenas
quando útil ao bem comum. A proposta "laica" de Piketty, sem dúvida,
se aproxima bastante das simpatias de alas muito fortes da Igreja.
Mas não me parece ser esta a proposta de
Jesus. Por mais que a teoria econômica de Piketty, caso posta em prática, possa
provocar uma reversão radical nas "loucuras" do atual capitalismo
neoliberal ou financeiro, - e, pastoralmente, devemos apoiar qualquer ação
concreta nesta direção -, a Igreja, em princípio, não pode acolher nenhum tipo
de capitalismo, por mais decente que seja. Como também não pode dar-se por
satisfeita com nenhuma das experiências socialistas postas em prática até hoje.
A proposta de Jesus é muito mais radical do que a proposta de qualquer esquerda
política imaginável. Por mais radical que uma sociedade seja, ela não calará a prece do povo: que venha a nós o "Vosso"
Reino. A mensagem cristã aponta para algo que vai além do historicamente
viável. O Reino de Deus já "está no meio de vós", mas sua
concretização final estará sempre no porvir (Mt 4,17).
A narração bíblica que mais belamente fala
de tudo isso - resumindo a história de Israel e a história da humanidade - é a que
fala dos celeiros abarrotados e a dos lírios do campo (Mt 12,13-34). Na
perspectiva do Reino é inútil acumular bens sobre bens, consumir sempre mais, e
destruir celeiros para construir outros maiores. Se Deus veste tão bem o que é
insignificante, pra quê se preocupar tanto? Muito mais do que uma
"doutrina", o cristianismo é uma espiritualidade, um
"Caminho" a seguir. O que importa não é acumular, mas partilhar. Apenas
quando Deus governa, o coração humano pode descansar. Ninguém, então, ficará à
beira do caminho. A sociedade não será meritocrática, mas
"gratuicrática", e até os coxos e paralíticos vão andar. A profunda
crença humana na utopia da "Terra sem Males", por alguns considerada
pura alienação, na verdade é a energia mais forte que habita o coração humano.
Isso não dispensa a Igreja de, também,
fazer uma análise racional do "sistema econômico" e trabalhá-la
pastoralmente, mas essa é outra questão.
* Missionário do Verbo
Divino, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais (com
pré-especialização em economia dos países em desenvolvimento). Atuou sempre na
pastoral prática, rural e urbana. Em S. Paulo foi Educador Popular no Centro de
Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP/CL) e professor de Teologia Pastoral
no Instituto de Teologia (ITESP/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e
vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Representa a CRB no Conselho
Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral
paroquial de Diadema SP. Nos últimos anos publica regularmente na Vida Pastoral, REB, Convergência e Grande
Sinal. E-mail: nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
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