O
conceito de "missão": sua história e seu significado na visão pastoral do papa Francisco
*
Nicolau João Bakker, svd
Síntese:
O
conceito de missão, sob ponto de vista pastoral, talvez seja o conceito mais
importante da atualidade. O documento de Aparecida, por exemplo, ou as últimas
Diretrizes Gerais da CNBB, usam o conceito de missão como o princípio
orientador mais importante para a ação pastoral da Igreja. A recente Exortação
Apostólica 'Evangelii Gaudium' do papa Francisco também se coloca inteiramente
nesta perspectiva. Razões suficientes para retomar a evolução histórica deste
conceito, particularmente dos últimos 500 anos, tendo em vista uma compreensão
mais clara da sua essencialidade, como também da inevitável
"temporalidade" de suas expressões e concretizações culturais.
Palavras-chave:
salvar
almas; terras de missão; salvar corpo e alma; catolicismo social; implantar a Igreja;
inculturação; pluralismo religioso de princípio; dar vida plena (pessoal,
social e ambiental) a todos/as; pluralismo são; espiritualidade missionária;
místicos com os pés na terra.
Introdução:
Em sua primeira Exortação Apostólica, Evangelii Gaudium, o papa Francisco,
fiel ao Documento de Aparecida (2007) que ajudou a redigir, faz do conceito de
missão o próprio "paradigma" da vida eclesial, afirmando: "a
ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja" (15). Vemos no
documento o ponto alto de um processo de maturação ao qual o conceito de missão
foi submetido desde a descoberta do Novo Mundo (1492), passando pelos avanços
do Conc. Vat. II, e, mais recentemente, pela proposta pastoral da "nova
evangelização". A idéia de uma nova evangelização foi lançada pelo papa J.
Paulo II em 09/06/1979, por ocasião de sua visita à Polônia, numa homilia no
Santuário de Santa Cruz: "A nova cruz de madeira foi erguida não longe
daqui, precisamente durante as celebrações do Milênio. Com ela recebemos um sinal, isto é, que nas vésperas do
novo milênio - nestes novos tempos, nestas novas condições de vida - volta a
ser anunciado o Evangelho. Iniciou 'uma nova evangelização', quase como se se
tratasse de um segundo anúncio, embora na realidade seja sempre o mesmo".
O discurso do papa foi retomado com ênfase na XIX Reunião do CELAM em
09/03/1983: "A comemoração do meio milênio de evangelização alcançará seu
significado pleno se for um compromisso vosso como bispos, juntamente com o
vosso Presbitério e com os vossos fiéis; compromisso não certamente de
reevangelização, mas de uma 'nova evangelização'. Nova em seu ardor, em seus
métodos, em suas expressões".
A proposta de J. Paulo II, embora interpretada por alas
mais progressistas da Igreja como sendo de viés tradicionalista, em geral foi
bem acolhida, especialmente pelas diferentes hierarquias continentais. O
continente africano viu na proposta uma abertura concreta para o aprofundamento
do processo de inculturação da fé. Os asiáticos viram nela uma oportunidade
para avançar no caminho do diálogo interreligioso. E as Igrejas da Europa e dos
Estados Unidos, mergulhadas num forte e crescente processo de secularização,
viram na proposta da nova evangelização uma porta aberta para experiências
pastorais radicalmente renovadoras. Na América Latina e no Brasil, a proposta,
desde o Documento de Santo Domingo, consta de quase todos os documentos e
planejamentos oficiais. Diz o papa J. Paulo II, no discurso inaugural à IV
Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (1992): "Sentimos muito
viva nesta celebração a presença de J. Cristo, Senhor da História. Em Seu nome
se reuniram os Bispos da Am. Latina nas assembléias anteriores - Rio de
Janeiro, 1955; Medellin 1968; Puebla 1979 -, e em Seu mesmo nome nos reunimos
agora em S. Domingo, para tratar o tema 'Nova Evangelização, Promoção Humana,
Cultura cristã'".
Podemos observar que a expressão "nova
evangelização", olhada em perspectiva histórica, caiu rapidamente em
desuso, embora não se tenha posto de lado sua intenção original. O Documento de
Aparecida, em apenas três oportunidades, faz uso dela (nos 99e, 287
e 307), sem qualquer ênfase. Apenas no no 287, no contexto da
catequese de iniciação à vida cristã, observa: "Dessa forma, assumiremos o
desafio de uma nova evangelização, à qual temos sido reiteradamente
convocados". Nas Diretrizes Gerais da ação evangelizadora da Igreja no
Brasil, 2011-2015, a expressão é deixada inteiramente de lado. Tudo converge
para o conceito original de "missão", esse sim explicitado de forma
exaustiva. O que pretendemos mostrar neste artigo é que o conceito de missão,
nos últimos 500 anos, passou por uma evolução histórica considerável,
adquirindo uma amplitude teológica crescente, assumindo em Evangelii Gaudium uma espécie de limiar intransponível, identificando-se
com a totalidade da obra pastoral, isto é, da ação concreta da Igreja. O
conceito de missão, sem dúvida, está profundamente ancorado na tradição
judaico-cristã. Não podemos traçar aqui o itinerário percorrido desde o início.
Interessa-nos ressaltar especialmente a evolução teológica dos últimos séculos,
pois é a partir dela que encontraremos as melhores perspectivas para uma
autêntica "pastoral missionária" nos nossos dias.
I
A "Missão" antes do Concílio Vaticano II
É
difícil imaginar nos dias de hoje a profundidade do choque cultural vivido
pelos povos europeus no final do séc. XV, em parte pela descoberta de um
"Novo Mundo" (1492). Com ela abriu-se uma oportunidade de
"conquista" jamais imaginada. Muito rapidamente as novas terras se
tornaram objeto de cobiça por parte de governos, comerciantes, navegadores,
imigrantes, aventureiros, e muitos mais. Vive-se uma época de fortalecimento
dos Estados nacionais, mas a Igreja ainda mantém um enorme poder de influência.
Cada vez mais ela se vê confrontada, porém, por forças espiritualistas internas
que logo darão origem ao protestantismo, e surge o novo clima cultural do
renascentismo: a fé cristã deixa de ser o critério único do pensar, falar e
agir.
Sob ponto de vista teológico e espiritual, o foco
principal da cristandade medieval se voltou não para o corpo, mas para a alma.
Considera-se esta a missão da Igreja: salvar almas! Enquanto a
Igreja-Instituição está às voltas com um projeto de riqueza e de poder - a
cristandade termina com o escândalo das investiduras! -, as camadas populares
se alimentam de uma piedade voltada para os céus, não para a terra. Insistia
São Bernardo de Claraval (†1153) com os muitos noviços que entravam nos
mosteiros que "deixassem seus corpos do lado de fora, já que a carne não
vale para nada". São Francisco de Assis (†1226) irá retomar com força a
mensagem central do Evangelho e o testemunho fiel dos Santos Padres, colocando
o corpo pobre e doente no centro, mas, ainda assim, porque somente agindo assim
seria possível salvar a alma do cristão.
Quem, neste contexto eclesial, vive irrequieto, sentindo
a necessidade de novos caminhos, é o soldado espanhol Inácio de Loyola (†1556).
Como militar a serviço do vice-rei de Navarra havia estraçalhado sua perna,
defendendo, sem chance, a cidade de Pamplona. Agora, retirado do mundo e lendo
a história dos santos, começa a perceber que a espada não é o único caminho
para a glória. Passa por uma experiência religiosa excepcional, aprofundada
durante onze meses no mosteiro do povoado de Manresa. Ali, sentado à beira do
rio Cardona, como diz seu biógrafo, "abriram-se-lhe os olhos do
entendimento com uma iluminação tão grande que todas as coisas lhe pareciam
novas". Era preciso retomar, de uma forma nova, a antiga inspiração de seu
grande ídolo, São Francisco de Assis, voltar às origens e criar missionários
itinerantes, como Jesus e o apóstolo Paulo, mas agora, de verdade, "até os
confins do mundo".
Com alguns companheiros iniciais, Inácio propõe
colocar-se inteiramente à disposição do papa, propondo a criação de uma "Companhia
de Jesus". Salvar o Novo Mundo faz parte do projeto. O papa insiste no modelo
monástico, mas como fazer missão no Novo Mundo, pensa Inácio, sem mudar o
estilo monástico? Como garantir a indispensável mobilidade apostólica? No
século VI o próprio papa Gregório, ele mesmo monge beneditino, não havia
enviado 40 colegas monges em missão para dar um basta à idolatria dos ingleses? E não foram monges irlandeses que, no século
VIII, cumpriram a difícil missão no norte da Europa? Além do mais, a salvação
da alma, de acordo com a mais legítima espiritualidade medieval, não estava
acima de tudo? Era esta, de fato, a grande preocupação. São Tomás de Aquino
(†1274) tinha tirado as últimas dúvidas: em cada ser humano existe – “ab
extrinseco inmissa” – uma alma imortal. Salvar esta alma do fogo do inferno era
a primeira das caridades. O papado da época não estava sem a segunda intenção
de estabelecer um rigoroso controle sobre o comportamento cristão, de
preferência no mundo inteiro. Inácio, por própria experiência, viu a Inquisição
por toda parte, sempre à caça dos “alumbrados espirituais” que pipocavam por
todos os lados. O papa, contudo, precisava urgentemente de pregadores
anti-protestantes e evangelizadores para o Novo Mundo. Com dispensa da
obrigatoriedade do Ofício Divino, Inácio e seus companheiros conseguem, em
1540, a aprovação do papa Paulo III para a “Companhia de Jesus”. Um novo
projeto missionário se iniciou “ad maiorem Dei gloriam”. A juventude da época
entendeu. Na morte de Inácio, os jesuítas já são mil.
Com a ida dos jesuítas e outras ordens religiosas ao Novo
Mundo, a idéia de "missão" adquire, aos poucos, uma nova conotação,
de caráter mais geográfico: missão é ir ao encontro de povos ainda não
cristianizados. Surgem as "terras de missão". Mais adiante voltaremos
a falar delas. Por ora é preciso acompanhar a efervescência missionária que
anima o continente europeu. Quando, nos séculos XIX e XX, um número muito
grande de novas Congregações Missionárias envia milhares de missionários e
missionárias para as missões, todas elas bebem, a par do carisma próprio das
fundações, de uma mesma espiritualidade: a monástica. Roma continua insistindo
no modelo consagrado de São Bento de Núrsia (†547), pois, este sim, tinha
idéias firmes e seguras. Quando, no alto do Monte Cassino, elaborou sua
“Regra”, Bento levou em conta a já longa experiência do monaquismo oriental.
Guardou de Santo Antão (†356) sua “mística do deserto”; de Pacômio (†348) a
fraternidade comunitária; e de Basílio de Cesaréia (†379) a abertura ao pobre.
Dizia Basílio: “pertence àquele que passa fome o pão que tu guardas; àquele que
está nu a capa que tu conservas nos teus guarda-vestidos; àquele que está
descalço os sapatos que apodrecem em tua casa; ao pobre o dinheiro que tu tens
guardado; assim, tu cometes tantas injustiças quantas as pessoas às quais
poderias dar”. Cumprir a missão do Mestre, para São Bento, era, antes de tudo,
dar testemunho desta fé. Contemplação e ação, “ora (Ofício Divino) et labora”
(auto-sustento e partilha com os necessitados). Sonhava com mosteiros que
fossem centros de irradiação mediante o testemunho. Do outro lado do Monte
Cassino, em Roma, seu amigo e admirador, o papa Gregório Magno (†604), ex-prefeito
de Roma, apelidado de “pai dos pobres”, em meio ao caos da queda do império
romano, fazia a sua parte. Surgem nestes tempos os alicerces da Idade Média.
Durante esta, como afirmam os historiadores, somente a famosa Ordem de Cluny,
fiel à Regra de São Bento, chegou a ter 17.000 mosteiros subordinados a ela. Os
inúmeros missionários, vindos da Europa e enviados às "terras de
missão" nos séculos mais recentes, são todos o longínquo fruto deste
imenso esforço evangelizador.
Mas, em meio a tudo isto, novas idéias vão brotando. A
partir do século XVII surge na Europa uma impressionante leva de "santos
da caridade": São Francisco de Sales (†1622), São Vicente de Paulo (†1660),
Santa Luisa de Marillac (†1660), o beato Frederico Ozanam (†1853), São João
Bosco (†1888), e muitos outros. Estes, sem esquecer a alma, cuidaram antes de
tudo do corpo. Não foi apenas a teologia escolástica, muito simpática ao uso da
razão, mas especialmente a nova espiritualidade que, a partir da famosa “Escola
de Deventer” (Holanda) de Geert Groote (†1384), introduziu um novo clima
espiritual. Geert Groote, por sua vez, foi muito influenciado pela “mística
renana”, ou flamenga, do Mestre Eckhart (†1328). João de Ruysbroeck (†1381),
Nicolau de Cusa (†1464) e Thomas à Kempis (†1471) se inspiraram claramente
nela. O dominicano Eckhart, não muito ligado à Escolástica, afirmava que, “no
fundo da alma”, o ser humano era capaz de fundir-se com a “abissalidade”
(abgründigkeit) de Deus, mas, ainda assim, “é melhor dar de comer a quem tem
fome do que entregar-se a uma prolongada contemplação interior”. Thomas à
Kempis confessou que “cada vez que ia ao mundo voltava pior”, mas, mesmo assim,
fiel à “devoção moderna” do seu tempo, afirma, na sua “Imitação de Cristo”
(1418), que o caminho da salvação passa pelo caminho concreto do amor ao
próximo. Por isso, limitar a piedade aos conventos é uma heresia, dizia
Francisco de Sales. A Revolução Industrial já estava mostrando sua cruel
fisionomia. As ruas das cidades viviam apinhadas de pobres e doentes, sem
qualquer atenção. O novo contexto histórico não trouxe apenas uma nova
espiritualidade e novos carismas apostólicos. Trouxe também uma nova visão
teológica. Querer salvar a alma sem cuidar do corpo tornou-se problemático. O
avanço da modernidade iria demonstrar sua inteira impossibilidade.
Creio que cabe aqui uma menção especial à grande figura
do beato Frederico Ozanam, e ao papel significativo exercido pelos adeptos do
neo-catolocismo francês na primeira metade do século XIX. O pai de Ozanam,
médico, se dedicava gratuitamente aos pobres. Entrando na Sorbonne para estudar
Direito, Ozanam entra em contato com as grandes figuras do neo-catolicismo
francês: o padre Lacordair, o conde Montalembert, o padre Lammenais, e outros.
Escrevendo na Tribune Catholique, torna-se
rapidamente um dos mais destacados intelectuais do movimento. Em seu tempo, a
Igreja acorda para os grandes problemas sociais e, em breve, o papa Leão XIII
irá lançar seu Rerum Novarum (1891).
Muito devoto de São Vicente de Paulo (†1660), Ozanam será o grande incentivador
das Conferências Vicentinas - até hoje a maior força social leiga da Igreja! -,
mas surge uma nova consciência: não basta o mero assistencialismo. O clima na
França é fortemente anticlerical. Ozanam tem a convicção que o catolicismo francês
fracassou porque a Igreja não se incomodava com os pobres e excluídos à beira do caminho. A
dedicação aos pobres é para pôr em prática o "nosso" catolicismo,
afirma. Em 1844 torna-se o professor mais jovem da Sorbonne, fazendo uma
brilhante carreira acadêmica. Quando o papa Gregório XVI, em 1845, reconhece
oficialmente as "Conferências de São Vicente de Paulo", observa:
"Queremos que esta Sociedade de Caridade não seja um partido, nem uma
escola ou confraria; que seja profundamente leiga, sem deixar de ser
estritamente católica". Não assume as idéias socialistas da época, mas as
dos católicos liberais progressistas. Juntamente com o Pe. Lacordaire funda, em
1848, o jornal L´Ere Nouvelle onde o
movimento defende uma nova sociedade, a democracia cristã. Entra em pauta a
tese do "catolicismo social". Elabora-se aí uma nova visão política
do cristianismo.
Fazemos questão de ressaltar este momento histórico
porque deixará frutos muito significativos para o conceito de missão nos nossos
dias. Naqueles tempos, porém, mais na elite da vanguarda do que na população em
geral. Ainda em 1899, no "Concílio Plenário da América Latina",
realizado em Roma, a missão da Igreja é definida como "a civilização das
tribos que ainda permanecem na infidelidade". A trilogia missionária comum
continua sendo: pagãos / infidelidade / missão. O conceito teológico de fundo é
o mesmo do tempo de São Francisco Xavier (†1552), ex-colega de pensionato e
companheiro de Santo Inácio. Quando os
aflitos japoneses lhe perguntavam sobre o destino dos seus venerados
antepassados, lhes respondia tranquilamente que, com certeza, por falta de
conversão e batismo, estavam todos no inferno. Ainda em 1960, um Congresso
Protestante sobre as Missões constatou que “depois da II Guerra Mundial mais de
um bilhão de pessoas passaram desta para a vida eterna e mais da metade foi
para o fogo do inferno sem ter sequer ouvido o nome de Jesus Cristo”.
É nas últimas décadas antes do Vat. II, em meio ao
rebuliço da Nouvelle Théologie (a
Nova Teologia), que as brasas quase
apagadas do catolicismo social francês serão remexidas novamente. Já em 1937, o
grande teólogo dominicano Marie-Dominique Chenu escreve seu famoso livreto (não
publicado) Une école de théologie: le
Saulchoir. Insiste numa ampla reforma teológica, não mais amarrada apenas
ao legado de São Tomás de Aquino, e apela à autonomia humana e à sensibilidade
diante dos sinais do tempo. Roma o condena em 1942, mas em vão. Por toda parte
surge na Europa um grande esforço de renovação bíblica, teológica, litúrgica e
ecumênica. O Concílio Vaticano II colherá os frutos desta renovação.
II
Missão no tempo do Vaticano II
O documento
conciliar Ad Gentes, que trata
explicitamente da missão, fatalmente iria refletir as duas tendências mais
fortes na Igreja. Em geral, na opinião de boa maioria dos atuais teólogos, no
Vat. II “uma minoria lúcida prevaleceu sobre uma maioria sem proposta”. Como o
documento Ad Gentes relaciona o enfoque central “missão / salvação”? Abordando
a questão das outras religiões, afirma: “os esforços humanos para encontrar
Deus precisam ser purificados, mas
podem às vezes ser considerados uma preparação
evangélica para o Deus verdadeiro” (3). “Não
há dúvida de que o Espírito Santo atuava
no mundo antes de Cristo ser glorificado” (4). Os padres conciliares
concebem um certo “gradualismo”: “a Igreja, embora de si possua a totalidade ou
a plenitude dos meios de salvação,.... quanto aos indivíduos e povos, só gradualmente os atinge...e os traz à
plenitude católica” (6). E ainda: “Tudo o que de verdade e de graça se
encontrava já entre os gentios como uma
secreta presença de Deus, Cristo, o autor da salvação expurga-o de
contaminações malignas” (9). E, um dos destaques mais lembrados: “(os fiéis
cristãos) façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo neles (os povos) adormecidas” (11).
Especialmente esta última palavra inspirada, das
“sementes do Verbo” acolhidas com alegria e respeito, iriam produzir inúmeros
frutos pós-conciliares. Não sem forte resistência. O cardeal Sirí opinava que a
Igreja levaria cinqüenta anos para corrigir o que João XXIII estragou em cinco.
Em especial depois do Sínodo de 1985 houve uma clara tendência de reverter os
avanços conciliares. O teólogo jesuíta José González Faus chegou mesmo a falar em
um autêntico “golpe do Vaticano”. De forma genérica, no entanto, a Nouvelle
Théologie emplacou no Concílio. A "teologia das realidades
terrestres", tão cara a Chenu, foi assumida em Gaudium et Spes, embora seu texto preparatório, como afirmou, foi
"batizado com água benta". No final do Concílio observa: “a expressão
(sinais dos tempos) tende hoje em dia, de maneira bastante sensacional, a
converter-se numa das categorias fundamentais da teologia emergente para
definir particularmente as relações da Igreja com o mundo”. O conceito de
missão, a partir do Concílio, não pôde mais deixar de lado a relação intrínseca
com o mundo.
A proposta de ir para as missões e salvar gente - Ad
Gentes ainda usa com certa naturalidade a expressão "terras de missão" (AG 26 e 38) - receberia novos
enfoques teológicos em tempos pós-conciliares. A teologia deixou de ser
européia e a Europa deixou de ser centro. A América Latina trouxe seu enfoque
libertador. Missão, numa concepção latino-americana, é dar testemunho de um
Deus que não fez opção pelos pobres por motivos de caridade (“charity”), mas
por ter-se revelado um Deus comprometido, essencialmente, com os injustiçados.
A Ásia colocou em pauta a indispensável exigência do diálogo. Um diálogo não
feito a partir de um centro privilegiado, mas a partir da certeza de que Deus,
“kenoticamente”, veio habitar o coração da humanidade inteira. E na África
continuou amadurecendo a idéia da inculturação. Não apenas a inserção de
costumes cristãos nas culturas locais, mas, muito além disto, também uma
abertura teológica ao modo de pensar e sentir dos povos africanos. Uma
autêntica “inculturação doutrinal” com “des-helenização e des-ocidentalização
dos conteúdos da fé”, observa o teólogo africano Leonard Santedi Kinkupu. No
Sínodo de 1974, os bispos africanos declararam ultrapassada a teologia da "implantação"
da Igreja (cf. AG 6), optando pela “teologia da inculturação”. Na exortação
apostólica pós-sinodal Ecclesia in Africa,
o papa J. Paulo II afirma que "a inculturação é um dos maiores desafios do
continente”. Os primeiros grandes avanços pós-conciliares, contudo, se fizeram
ouvir na Europa. O teólogo Karl Rahner (†1984) falava em “cristãos anônimos”.
Hans Küng rebatia dizendo que este “inclusivismo” era, na verdade, um
“exclusivismo”, pois negava a salvação a quem não fosse cristão. Timidamente
começaram a surgir vozes defendendo caminhos pluralistas de salvação. A
trilogia “exclusivismo - inclusivismo – pluralismo” ocupou por um bom tempo o
palco eclesial.
III
Missão em tempos mais recentes
A teologia que
melhor visualiza o que se entende por missão cristã em tempos mais recentes é,
de fato, a teologia do pluralismo religioso. O mais destacado teólogo deste
pluralismo , nos EUA, é Paul F. Knitter. Em seu muito aclamado livro No other Name? (1992) observa: “os cristãos estão aprendendo que para
uma coisa ser verdadeira não se exige que seja absoluta”. Já em 1987, em Um diálogo necessário: entre a teologia da
libertação e a teologia do pluralismo, Knitter havia dito que “a libertação
integral (política, econômica, ecológica, etc.) é uma tarefa grande demais para
que seja assumida por uma única nação, cultura ou religião, uma vez que cada
uma traz a sua própria contribuição para a superação do modelo da globalização
neoliberal que ameaça de morte a humanidade e o planeta, sendo imprescindível
manter em tensão dialética e mutuamente fecundante a 'polaridade dinâmica' dos
pobres e das religiões”. Em diversas ocasiões, o teólogo belga, Edward Schillebeeckx
(†2009), se manifestou no mesmo sentido. Em 1995, em One earth, many religions: multifaith dialogue and global
responsability, Knitter apela a um esforço inter-religioso com o horizonte
comum do “eco-bem-estar” e, em 2009, escreve Without Buddha I could not be a Christian. Passa-se de um
pluralismo religioso de fato para um pluralismo religioso de princípio.
Na
Europa, outro destacado mestre do pluralismo religioso é o jesuíta Jacques
Dupuis (†2004). Deu seqüência ao grande esforço ecumênico do teólogo conciliar
Yves Congar (†1995). Este já havia destacado que “a vontade salvífica de Deus é
universal”, que “a graça vive fora das fronteiras da Igreja”, e que as
religiões são “mediações de salvação”. Em Homme
de Dieu, Dieu des Hommes (1995), Dupuis critica os “dogmatismos fechados”,
insistindo numa espécie de “de-centração”, e explicitando que cada Igreja local
(a intérprete), necessariamente, recebe determinada doutrina (o texto), devendo
traduzi-la para sua própria realidade cultural (o contexto), ocorrendo desta
forma uma "recepção criativa" da fé. Em seu último livro Rumo a uma teologia cristã do pluralismo
religioso (2001) mais uma vez lembra “a distinta percepção da mesma fé em
contextos diversos”. A Igreja, hoje, opina Dupuis, precisa de uma "metanoia
teológica" que propicie “um tríplice mecanismo de purificação: da memória,
da linguagem e do entendimento teológico”. Deus se revela em cada cultura
contra suas próprias forças destrutivas internas. Por isso, na opinião de
Dupuis e muitos outros, a teologia da inculturação é sempre uma teologia
libertadora. Nesta mesma linha, o africano Alphonse Ngindu Mushete propõe, em Les thèmes majeurs de La théologie africaine
(1989): “a Igreja da África...deve sair dos caminhos batidos de uma práxis
que a encerra numa espécie de 'sono dogmático'”. Muitíssimos outros teólogos e
pensadores poderiam ser citados, mas o foco é sempre o mesmo. Na Am. Latina, um
grupo de teólogos, José M. Vigil, Luiza E. Tomita e Marcelo Barros, todos da
Comissão Teológica da “Associação Ecumênica de teólogos e teólogas do Terceiro
Mundo na Am. Latina” (ASETT), está editando um belíssimo conjunto de cinco
livros sobre a íntima relação entre teologia da libertação e pluralismo
religioso. Com destaque para uma nova forma de "espiritualidade
missionária", cientes de que não são as doutrinas, mas as místicas que
propulsionam os povos.
Vemos,
portanto, que as adormecidas “sementes do Verbo”, semeadas nos mais variados
contextos, quando acordadas, produzem as mais variadas flores. Mas, e Roma?
Bem, Roma não deixa de observar esta metanoia teológica sobre missão e salvação
com grande preocupação. A Cúria Romana e o teólogo Ratzinger, além de
“notificarem” alguns dos nossos mais renomados mestres, reagiram, em 2000, com
a Declaração da Congregação da Doutrina da Fé “Dominus Iesus”. O documento reafirma solenemente a
universalidade do destino salvífico e a unicidade do Salvador e da Igreja.
Afirma, com rude violência, que as outras religiões se encontram “numa situação
gravemente deficitária” (DI 22). Não é de admirar que muitos, entre os quais
Paul Knitter e o teólogo de Sri Lanka, Tissa Balasuriya, acusam a Igreja de
propagar o “mito da superioridade religiosa”. Dominus Iesus tornou-se, de fato,
um dos documentos mais mal recebidos no mundo cristão.
Mas
não há nada no pluralismo religioso que não possa ser harmonizado com a Igreja
“sacramento universal de salvação”.
Como sacramento, a Igreja é apenas um “sinal”, uma mediação, um instrumento.
Quem, gratuitamente, quer salvar a todos é Deus, e não cabe a uma única Igreja cristã
definir de qual forma Deus deve exercer sua “catolicidade”. O grande teólogo
asiático, Felix Wilfred, atual Diretor da Revista Concilium, tem dito que o
excessivo dogmatismo eclesial corre perigo de transformar a Igreja, chamada a
ser kat-ólica, em uma Igreja kat-áutica, isto é, fechada sobre si mesma. Diante
das outras religiões propõe um “pluralismo contemplativo”, de linha apofática,
sem disputa teórica. Não há nada mais idolátrico do que o próprio ser humano
colocar-se no lugar de Deus. Moisés, no deserto, descobriu estar diante de um
Deus cujo nome - "JHWH" - é impronunciável. Elias sentiu sua presença
apenas numa brisa imperceptível. E o Jesus histórico, tão ressaltado pelas
atuais “cristologias de baixo”, submeteu sua vontade à vontade do Pai, o Pai
querido em cujas mãos entregou seu espírito. Deus, na mais legítima mística
cristã, foi sempre um Mistério insondável. Em sua Teologia Mística, o Pseudo-Dionísio (†500 aprox.), após séculos de
construção doutrinal contra as heresias, define Deus como o “além de tudo” ou
“a escuridão atrás da luz”, e “Deus é tudo e não é nada”; para alcançá-lo, é
preciso “deixar para trás os sentidos e as operações do intelecto”. A Internet
afirma que São Tomás de Aquino o cita mais de 1700 vezes! Ficou, de fato,
famosa a frase de Tomás: “de Deus não podemos saber o que é, mas apenas o que
não é”. Todas as correntes místicas do cristianismo tiveram uma forte ligação
com a espiritualidade “apofática” de Dionísio, desde São Boaventura (†1274) e
Santo Alberto Magno (†1280), passando, como já assinalamos pelo Mestre Eckhart
e seus seguidores, até a mística espanhola
de Santa Tereza d´Ávila (†1582) e São João da Cruz (†1591),
desembocando, finalmente, na nova espiritualidade missionária do pluralismo
religioso. O teólogo chileno Diego Irarrázaval diz que, somente quando silenciada
a disputa, ouvimos a “polifonia espiritual” dos povos.
Falando de Jesus, Ad gentes diz que “não há salvação em
nenhum outro”, e Dominus Iesus retoma o antigo adágio “fora da Igreja
(Católica) não há salvação”. O tom dogmático é evidente. Mas como ir "ad
gentes", ao encontro dos povos, desta forma? O excessivo dogmatismo da
Igreja gerou, no decorrer da recente história eclesiástica, inúmeros movimentos
de resistência. Não apenas gerou os movimentos protestantes, mas levou ao
extremo também os movimentos laicos e anti-clericais da modernidade. No século
passado deu origem ainda ao maior movimento missionário de todos os tempos,
ainda em franca expansão: o pentecostalismo. No Brasil, festejado como “o maior
país católico do mundo”, um milhão de católicos abandonam a Igreja, anualmente.
Quase sempre partem para alguma Igreja Pentecostal. O Espírito de Deus é
indomável. É também implacável com qualquer instituição. Os bispos da Am.
Latina e do Caribe realizaram em 2007 (Aparecida) sua Vª Conferência Episcopal,
tendo como tema central: “a missão”. Apelam os bispos a uma generalizada
“conversão pastoral”, tendo em vista uma grande “Missão Continental”. Entre os
“sinais do nosso tempo" não vemos nenhum que nos indica tal possibilidade.
No mundo inteiro, a credibilidade da Igreja está em baixa. Como sinal do tempo
verdadeiramente gritante – e há, parece-nos, um quase-consenso sobre isto entre
teólogos e teólogas, sem falar do sempre importante “sensus fidelium” – vemos
apenas um: a imperiosa necessidade e urgência de uma reforma institucional nas
estruturas e ministérios da nossa própria Igreja1. Esta “conversão
institucional” - assumida pelo papa na EG 32 - é conditio sine qua non para a
missão nos dias de hoje.
IV
Missão na visão pastoral do papa Francisco
E o papa
Francisco, como trata da questão da missionariedade da Igreja? Fazendo dela, em
Evangelii
Gaudium, o "paradigma de toda a obra da Igreja" (15), a missão é
tudo. O foco não está mais na salvação da alma, mas em ..."dar vida aos
outros. Isto é, definitivamente, a missão" (10; cf. DAp 360). Não se trata
de chegar às periferias do mundo, mas "às periferias humanas" (46). A
conotação geográfica desapareceu de vez. "A mensagem revelada não se
identifica com nenhuma cultura e possui um conteúdo transcultural" (117). Para
o papa, a missão não é um ornamento que posso pôr de lado, não é um momento
entre tantos outros, não é algo reservado a congregações missionárias. "É
algo que não posso arrancar do meu ser... Eu 'sou uma missão' nesta terra...
Somos marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar,
levantar, curar, libertar" (273). Não há dúvida, para o papa Francisco a
missionariedade faz parte do próprio ser da Igreja. Gostaríamos de ressaltar
três aspectos que o papa aponta e que nos parecem fundamentais para a atual
caminhada pastoral da Igreja no nosso tempo.
A)
Uma boa missão requer uma boa antropologia
Analisando no 2o
capítulo de Evangelii Gaudium a atual
"crise do compromisso comunitário", o papa fala de uma "crise
antropológica profunda"... "A crise mundial põe a descoberto a grave
carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma
das suas necessidades: o consumo" (55). Conceber o ser humano como um ser
isolado e autônomo é, de fato, pôr fim à coletividade e aos demais seres vivos
que nos envolvem. Por isso uma boa antropologia (e, em geral, cada ciência
ligada ao “sentido” da vida humana) será sempre fundamental.
Predominava no século passado a chamada “antropologia
cultural”. Ela privilegiava os aspectos mentais ou racionais do ser humano: seu
modo de pensar, suas crenças, seus ritos, seus comportamentos, em fim, sua
cultura. Grandes equívocos foram cometidos esquecendo que o ser humano não é
apenas mente, mas também corpo. A cultura européia, cristã, considerava-se
superior a qualquer outra, não-cristã. Para muitos, o objetivo da missão era
“extirpar as idolatrias”. Hoje, as teologias do terceiro mundo clamam por uma
“descolonização da mente”, com inclusão da teologia. Nas últimas décadas do
século XX surgiu com força a “antropologia natural”, mais ligada ao corpo ou à
biologia humana. Esta não exclui a mente, mas a vê como parte do corpo.
Recentemente um pensador africano, Eboussi Boulaga, plagiou a famosa frase de
Descartes “penso, logo existo” e, para exprimir uma visão de mundo inteiramente
diferente, disse “danço, logo existo”. A antropologia natural deve muito às
ciências naturais da modernidade. A biologia evolutiva nos faz admirar a grande
“sinfonia da vida” sobre o planeta Terra. Bilhões de anos de vida unicelular,
bacterial, diversificando-se, até oxigenar a atmosfera e criar um meio ambiente
favorável à vida multicelular, depois às plantas e florestas, e finalmente aos
animais. Muito recentemente surgiu um animal com um córtex cerebral avantajado
que se autodenomina “homo sapiens”. Vendo os resultados, porém...., bem,
pulemos esta parte. Os neurocientistas demonstraram que o grande cérebro não
nos elevou acima da natureza, nem nos fez capaz de olhar, objetivamente, para o
mundo à nossa volta. Apenas nos dotou de um novo e sofisticado mecanismo para
sobreviver melhor. Desde que Ilya Prigogine (†2003), em seu maravilhoso livro Ordem a partir do Caos, demonstrou que a
essência da vida é contrariar a segunda lei da termodinâmica e, em vez de
degenerar para o caos crescente pelo efeito da entropia, criar novas e sempre
surpreendentes formas de vida cada vez mais complexas, sabemos que todos os
caminhos estão abertos ao ser humano, inclusive o de viver e conviver melhor.
B)
Uma boa missão exige um diálogo respeitoso, sem preconceito
Percebe-se na Evangelii Gaudium que o papa Francisco
aposta alto num diálogo respeitoso com as religiões e com a modernidade, sem
atitudes preconceituosas. Está convencido que a Igreja só cresce "por
atração" (14). Em vista disto também o papado e as estruturas centrais da
Igreja precisam de uma "conversão pastoral" (32). Critica grupos
eclesiais que se deixam levar por um "espírito de contenda" (98),
apela a uma presença mais incisiva da mulher na Igreja, especialmente nas
"decisões importantes" (103). O papa confia no "instinto da
fé" - sensus fidei - da totalidade dos fiéis (119), e reconhece que
"nem o papa nem a Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade
social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos"
(184). Considera a questão da paz e o diálogo social "fundamentais neste
momento da história" e os considera, juntamente com a inclusão dos pobres,
"determinantes para o futuro da humanidade" (185). O papa lembra que,
apenas com o passar do tempo, o joio pode ser erradicado (225), que a harmonia
é superior ao conflito (226 a 228), e que a realidade tem prevalência sobre a
idéia (231). É preciso, portanto, manter "os pés na terra" (234). O
papa cita três campos onde o diálogo se impõe: com o Estado, com a sociedade, e
com os não-católicos (238). É a hora da busca de acordos e consensos (239), sem
deixar de lado as próprias convicções mais profundas (251). Os não cristãos,
quando sinceros, também estão "associados ao mistério pascal de Jesus
Cristo" (254). Chegou a hora do "pluralismo são" (255).
É muito confortante ouvir o papa falar assim. De fato, Jesus
não pregou a si próprio, nem priorizou o fator Igreja. Não veio para fundar uma
nova religião. “Jesus nem foi cristão”, disse, com ousadia, o arcebispo
anglicano Desmond Tutu, assustando meio mundo. Jesus iniciou um movimento, um
modo de viver. “O Reino de Deus está próximo”. “Que venha a nós o Vosso Reino”.
“Não basta dizer Senhor, Senhor”. O que importa é olhar para as pessoas à beira
da estrada. Reparem, esta é a essência de todas as religiões, o sonho da
humanidade. A busca por melhor qualidade de “vida” (vida "plena”) é também
o cerne da própria natureza viva. A atual ecoteologia acrescenta a redenção
cósmica. Diante das atuais evidências não resta dúvida: ou fazemos do planeta
Terra nossa casa comum, digna de se viver, ou iremos todos precipício abaixo. A “missão” à nossa frente promete uma
colheita maravilhosa e promissora se soubermos harmonizar o melhor do
pluralismo religioso com o melhor das teologias de libertação. A diversidade
religiosa não é problema, é solução. Dupuis a chamava de “providencial”. O
jesuita Aloysius Pieris (Sri Lanka) – para quem “fora da aliança de Deus com os
pobres não há salvação” - falou de uma “religiosidade simbiótica”. Assim como a
diversidade biológica torna a natureza mais “resiliente”, assim também a
diversidade cultural-religiosa permite ao ser humano crescer em consciência.
Uma consciência mais "amorística" ou “crística”, diria Teilhard de
Chardin (†1955).
O primeiro mundo, faz tempo, está em busca de uma espécie
de “ética global” (Küng). Surgiram críticas: não basta uma espécie de mínimo
humano, aceitável ao mundo secular. A teologia política de J. B. Metz colocou
no centro o “princípio misericórdia” (“mitgleid”), mais próximo da tradição e
memória cristãs. No terceiro mundo também surgiram vozes dizendo que “mais
valem os máximos particulares do que os mínimos comuns” (J. Sobrino). Raimon
Panikkar (†2010) insiste em dizer que o diálogo inter-religioso exige "não
deixar a própria riqueza na soleira da porta”. A teologia pós-moderna aposta
facilmente numa etérea “espiritualidade pós-religiosa”, mas isto parece muito
pouco para quem crê em Alguém que morreu numa cruz para fazer valer sua
proposta. Os teólogos do diálogo inter-religioso, mais recentemente, têm
insistido na “pedagogia da escuta” (Marcelo Barros), no exercício da “cortesia
espiritual” (o “adab” corânico), na busca da “empatia”, etc. Se o mesmo Deus de
Israel se revela em todas as religiões, esta pedagogia, evidentemente, faz
sentido.
C)
Uma boa missão requer uma espiritualidade apropriada
No decorrer de toda a sua Exortação, o papa Francisco
desenha o retrato de uma "espiritualidade missionária" que se oponha
ao que chama de "introversão eclesial" (27). O sonho missionário é
"chegar a todos" (31). Após enfatizar, muito otimisticamente, a
"enorme importância" da piedade popular (68-70) - um "lugar
teológico" (126), ele diz -, o papa observa que a vida espiritual de
muitos agentes pastorais "se confunde com alguns momentos religiosos que
proporcionam algum alívio, mas não alimentam....a paixão pela
evangelização" (78). O papa critica a "desertificação
espiritual" dos que buscam construir a sociedade sem Deus (86). Uma
expressão que repete é a do "mundanismo espiritual", aquele que
"se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor
à Igreja, mas que, "em vez de buscar a glória do Senhor, busca a glória
humana e o bem-estar pessoal" (93). "Noutros, o próprio mundanismo
espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas
sociais e políticas...ou por meio de uma densa vida social cheia de viagens,
reuniões, jantares, recepções. Ou se desdobra num funcionalismo empresarial,
carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal
beneficiário não é o povo de Deus, mas a Igreja como organização. Já não há
ardor evangélico, mas...autocomplacência egocêntrica" (95). O papa termina
dizendo que não servem "místicas desprovidas de um vigoroso compromisso
social", ou "uma espiritualidade intimista e individualista que
dificilmente se coaduna com ...'a lógica da encarnação'" (262). É
necessário resolver, também, as "causas estruturais" da pobreza (202);
além disso, a "participação na vida política é uma obrigação moral"
(220).
Podemos nos perguntar com sinceridade: por quê uma
espiritualidade tão verdadeira às vezes é tão difícil a nós, agentes pastorais,
missionários ou missionárias? Não devemos esquecer que a modernidade arranhou
profundamente a espiritualidade tradicional. Por mais que nos impressionem as
biografias dos nossos fundadores ou fundadoras, não podemos esquecer que a religiosidade
é muito anterior a Moisés e Jesus Cristo. Ela já nasceu com a própria
consciência humana e, desde tempos imemoráveis, teve um caráter fortemente
mágico. O Deus inominável, muito além de qualquer sim ou não, como dizia o
Pseudo-Dionísio, era apenas imaginado, nunca racionalizado. A inteira vida
humana e cósmica era sentida como totalmente dependente das forças divinas,
onipresentes e onipotentes. É na tradição profética de Israel, e na filosofia
grega, que surge por primeiro um processo crescente de racionalização. O Deus
libertador, o Código da Aliança em oposição ao Código da Pureza, o Reino de
Deus, não no Templo mas “no meio de vós”, tudo implica em um novo modo de
pensar e de viver. A Modernidade fez da razão seu critério único. Também dentro
da Igreja, a autonomia da razão criou uma explosão de teologias. Mas, onde a
razão entra, a magia acaba. Foi-se o “ab extrínseco inmissa” de São Tomás.
Foi-se o milagre. Surge o “desencantamento”, já dizia Max Weber (†1920).
Inúmeras expressões religiosas “perderam a graça”. O processo ainda está em
andamento, por mais que se diga que já estamos na pós-modernidade. A nível mais
popular, em especial nos povos não-ocidentalizados, muitos elementos mágicos
continuam presentes na espiritualidade. Mas, cuidado! No “fundo da alma” de
todos nós, religiosos e religiosas, banhados em teologia e ciências, uma
misteriosa varinha mágica continua nos movendo. É de berço.
Nossa missão, porém, não pode mais ser pautada por uma
religiosidade mágica. O tempo dos nossos avós, ou dos nossos fundadores, não
volta mais. A missão, hoje, deve ser mística! Os racionais Rahner e Schillebeeckx
não se cansavam de dizer: o cristianismo do futuro será místico, ou não haverá
cristianismo! O tema é complexo, mas, simplificando, poderíamos dizer que,
ambas, magia e mística, crêem no que está além da razão, porém, na magia, o
conteúdo se apresenta, digamos, contaminado, na mística não. Comparando as
biografias dos grandes místicos e místicas da pré-modernidade, modernidade e
pós-modernidade, descobrimos que sua espiritualidade apresenta características
bastante diferentes2. O que sobressai em todos/as, no entanto, - e o
mesmo ocorre com os místicos das outras grandes religiões tradicionais - é: 1)
Deus, o Transcendente, o “além de tudo” (com os mais diversos nomes) é a fonte
absoluta do sentido da vida; 2) É desta fonte, pura, que brota o caminho a
seguir no dia a dia, a ética do viver; 3) A ética do viver tem um caráter
coletivo e cósmico.
A razão secularizou o mundo ocidental, privando-o da
espontaneidade mágica da fé no transcendental que nós, missionários/as, ainda
encontramos nos povos chamados “periféricos”. Dizemos “ainda” porque também aí
as coisas vão mudando. Qual a missão que sobra quando a sensibilidade pelo
transcendental desaparece e tudo na terra é assumido por forças laicas,
imanentes, secularizadas? Questão difícil. Quem, a nosso ver, oferece uma boa pista
é o mais fiel discípulo de Schillebeeckx , o dominicano leigo Eric Borgman,
que, recentemente, escreveu o belo livro Metamorfosen:
Over Religie en moderne Cultuur (2006). Tese central: não muda no ser
humano sua busca pelo sentido da vida, por vida plena; o que muda – de forma
sempre surpreendente e imprevista - é o “modo” de viver esta religiosidade. Na
pós-modernidade, em especial o lado institucional das religiões sofre forte
resistência. Não oferecendo “sentido”, estará desacreditado. Hoje, apenas os
místicos "com os pés na terra", como diz o papa Francisco, têm respostas
convincentes.
Conclusão:
Hoje, o conceito
de missão está menos preso a critérios temporais ou espaciais. O papa Francisco
propõe abandoná-los e substituí-los pelo critério único da própria razão de ser
da Igreja: gerar vida "plena" (Jo 10,10), para todos/as. Para isto
Jesus veio a este mundo. Vida concebida na sua amplitude individual, coletiva e
ambiental. A mesma missão cabe a todos os batizados, e até, também, aos não
batizados, pois todos, diz o papa, partilham, de alguma forma, do mistério
pascal de Jesus Cristo. Nada impede - muito pelo contrário - de as congregações
missionárias irem até as "periferias do mundo", nem importam muito as
fragilidades das linguagens do passado. Salvar almas, implantar a Igreja, ou
converter pagãos, tudo isso - nos afirma a linguística moderna - faz parte da
inevitável camisa de força que prende nossa linguagem ao tempo em que vivemos.
O que importa é ouvir o chamado do Mestre de Nazaré - e de tantos outros
líderes religiosos do nosso mundo - e então desamarrar o nosso barco para
levá-lo ao largo. O que importa é ir sem preconceito, sem ares de
superioridade, sem arrogância, nem falsa modéstia. O cosmos inteiro clama por
libertação, diz o apóstolo Paulo. Uma missão apenas possível quando os
diferentes povos do mundo vivem uma interculturalidade de paz, respeito e
solidariedade mútua.
1) Ver o artigo: A "Nova Paróquia" na "análise
institucional" da Igreja, REB,
julho, 2013.
2) Ver quatro artigos
sucessivos em Grande Sinal, maio a
dezembro, 2012.
Endereço
do autor:R. Juruá, 798 - Jd. Paineiras
09932-220
Diadema SP
Email:
nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
*
Missionário
do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências
sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou
também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo
Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e
o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto
de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT,
no município de Holambra SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção
a Testemunhas (Provita SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema
SP. Além de cartilhas populares publicou diversos artigos em REB, Verbum, Vida Pastoral e Grande Sinal.
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