A PASTORAL ENTRE A TEOLOGIA E A
MÍSTICA
Pe. Nicolau João Bakker, svd*
Introdução:
A pastoral da Igreja
(Católica), hoje, se parece um pouco com uma feira: há produtos para todos os
gostos. Leigas, leigos, padres, religiosas, religiosos, todos podem optar pela
pastoral considerada mais conveniente. Numa mesma paróquia podemos facilmente
encontrar pastorais tidas como avançadas ou comprometidas, e outras
consideradas tradicionais ou conservadoras. Olhando para as dioceses, a
diversidade é ainda maior. Às vezes um verdadeiro vale-tudo. A Igreja
Particular (diocese) colocada pelo Vaticano II como símbolo – em escala menor –
da unidade da Igreja Universal, muitas vezes se parece com uma colcha de
retalhos onde todas as propostas são bem-vindas. Poucas décadas atrás ainda era
relativamente fácil unir as diversas cabeças numa mesma paróquia ou diocese e
elaborar um planejamento comum. Hoje não faltam boas intenções e boas tentativas,
mas os pensamentos são tão diversificados que a maioria dos planos morre na praia
por falta de sinergia. Infelizmente, onde cada um(a) rema para um lado,
dificilmente se chega a um porto seguro.
Temos lido com muita atenção – ontem e hoje - o que
nossos melhores teólogos e teólogas escrevem sobre o assunto. Via de regra
apontam para a tal da “pós-modernidade” como sendo a grande causa. Durante
séculos, a Religião funcionava como diretriz segura para a humanidade. Com a
vinda da Modernidade, a Ciência atribuiu a si o direito de substituir a
Religião. Hoje, na pós-modernidade, para muitos, nem a Religião inspira
confiança, pois ela gerou muitas guerras e muita desunião, nem a Ciência, pois
ela também não resolveu os grandes problemas que a humanidade – e o planeta! –
continuam sofrendo. Sobrou, então, o cada um por si.
Pessoalmente não gostamos muito da expressão
“pós-modernidade”. No nosso entender, a modernidade continua a pleno vapor,
mas, como tudo nas ciências sociais, ela sempre se apresenta de cara nova. Sem
dúvida, as religiosidades atuais manifestam feições diferentes das de um passado
ainda recente, mas atribuí-las todas a uma etérea e difusa pós-modernidade pode
nos tornar cegos para causas mais profundas que têm a ver com a própria história
da nossa Igreja, em especial da teologia e da mística e sua mútua relação. É
dela que queremos tratar neste artigo, buscando abrir caminhos para uma ação
pastoral mais coerente.
I
O Caminho da Teologia
O que é
“teologia”? Simplificando, poderíamos dizer: “teologia é o conhecimento de
Deus”. Mas, Deus pode ser conhecido? Esta é a grande questão. Aristóteles (†322
a.C) foi o primeiro filósofo grego que, reagindo ao mestre Platão, desenvolveu
uma sólida teoria sobre o que é conhecimento. Só podemos conhecer a realidade
observando-a, diz Aristóteles. As ideias que estão na nossa cabeça – nosso
conhecimento – são todas fruto da observação sistemática e organizada da
realidade, captada pelos nossos sentidos. Só conhecemos o que vemos, cheiramos,
ouvimos, etc. Percebemos que uma coisa é causada por outra, e outra e mais outra, até a causa
original que está inteiramente fora do alcance dos sentidos. Querer explicar as
causas originais – as “archai”, diz Aristóteles – não faz sentido, porque deixariam
de ser originais. Devem ser aceitas como tais.
Já nos primeiros séculos do cristianismo, inteiramente percorridos
dentro do contexto da filosofia grega, ocorreu uma fortíssima disputa sobre
quem é Deus e como Ele se manifesta ao ser humano. Como falar d´Ele? A pergunta
nunca mais calou. Para responder a ela, na história da Igreja, foram dois os
caminhos percorridos. O caminho mais visível e mais forte foi o dos teólogos. O
outro foi o dos místicos. No tempo do Império Romano, não tanto com base em
Aristóteles, mas com base nas diferentes vertentes da cultura grega, teve
grande destaque a questão do “conhecimento” da verdade, tanto do mundo físico
quanto do não-físico. Os teólogos e as autoridades eclesiásticas da época
definiram os principais conceitos teológicos, entre outros, nos grandes
Concílios de Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia
(451).
Para muitos Santos Padres da época, o conhecimento em si ou,
como diríamos hoje o “modo de conhecer”, não era grande problema. Aceitava-se
com certa naturalidade que todo o conhecimento de Deus vinha da Revelação, do
“livro da Bíblia” ou do “livro da natureza”, dizia S. Agostinho (†430). Mais
valia a boa vontade do coração para aderir à sabedoria divina do que a fria compreensão
do intelecto ou da razão.
Quem introduziu a primazia da razão na disputa teológica
foram os teólogos escolásticos do início da Idade Média, particularmente São
Tomás de Aquino (†1274). São Tomás era grande fã de Aristóteles. A filosofia
grega foi redescoberta em sua época. Aristóteles estava certo, dizia Tomás: a
razão humana trabalha com as imagens que lhe vem à cabeça através dos sentidos.
Usando bem a razão, todos os seres criados podem ser conhecidos. Mas Deus não é
um Ser criado. Como conhecê-lo? Tomás reconhece que Deus não pode ser
“conhecido” verdadeiramente, nem sequer pode se provar cabalmente sua
existência, mas, tomando a Revelação como ponto de partida, e fazendo bom uso
da razão, indo sempre às causas das coisas, como fazia Aristóteles, Deus “se
deixa conhecer”. Com base nestes dois instrumentos da Revelação e da Razão, os
teólogos escolásticos elaboraram um arsenal tão fabuloso de conhecimentos sobre
Deus que, em princípio, nenhuma pergunta ficava sem resposta. Uma Verdade
“definitiva”, pois originada no próprio Deus.
A partir dos escolásticos, o grande apego à razão humana vai
caracterizar a teologia da Igreja por séculos, nas Igrejas Protestantes históricas
mais ainda do que na Igreja Católica. A questão de como Deus pode ser conhecido
e aceito pelo ser humano, é um ponto fundamental e permanente nas reflexões
teológicas e pastorais no decorrer do tempo. Os escolásticos não irão
sobreviver, porém, ao implacável rolo compressor do tempo moderno. Para os modernos
racionalistas “iluminados”, tudo que não tiver uma comprovação experimental não
passa de ficção. Quem começou a questionar estes racionalistas modernos em
maior profundidade foi o filósofo alemão Immanuel Kant (†1804), afirmando que o
conhecimento de Deus era algo inato e interno ao ser humano, não sujeito a
qualquer tipo de experimentação racional, mas suficientemente real para
determinar a moralidade humana. “Tive que dar um desconto para a razão, para
que a fé pudesse sobreviver”, disse certa vez.
Do
lado protestante, o mais respeitado dos teólogos reformados, Karl Barth
(†1968), ainda tentou salvar a teologia escolástica, explicitando em sua
magistral Kirchliche Dogmatik que,
embora Deus seja inteiramente inacessível ao conhecimento humano - Deus é “der
ganz Andere” (o totalmente Outro), ele diz - Ele se deixa conhecer tal qual Ele
é, não por meio da lógica humana refletindo a partir das coisas criadas, mas
simplesmente concedendo ao ser humano a graça da fé na Palavra revelada.
Descartando por inteiro o caminho de baixo para cima – isto é, a partir do
conhecimento humano, já tão em voga no seu tempo, - Barth só concebe o caminho
de cima para baixo: apenas Deus pode falar com propriedade sobre si mesmo. Nesta
linha, como na teologia escolástica, nenhuma pergunta fica sem resposta. Na
opinião de Barth, o próprio Deus dá todas as respostas de forma clara e
definitiva.
Do
lado católico, mais do que a Bíblia, sobressai a tradição teológica, guardada
fielmente pelo magistério eclesiástico. A teologia, como ciência, tem grande
destaque nas principais universidades. Não se nega, formalmente, que querer conhecer
a Deus, tal qual Ele é, é pura arrogância humana, mas, por outro lado, temos à
disposição a Revelação e a Razão. Razão também, sim, pois, como ensinaram Santo
Anselmo (†1109) e São Tomás, a fé humana busca sempre o apoio da razão – fides querens intellectum (a fé em busca da
razão) -, e as coisas criadas revelam o Ser Incriado. O real fundamento da
fé, contudo, é a Revelação, assim como ensinada com propriedade pela Igreja. Na
tradição católica, a transmissão da fé se dá pela transmissão do conhecimento
das verdades divinas. Quem garante a confiabilidade deste conhecimento é o
magistério da Igreja. Os teólogos neoescolásticos questionaram esta teologia
escolástica em diversos pontos, mas nunca puseram em dúvida o fator
“conhecimento”. Suas disputas e querelas provam o contrário: Deus pode ser
conhecido, sim. Um sabe ainda mais que o outro.
Tanto
do lado protestante quanto do lado católico, nas últimas décadas antes do
Concílio Vaticano II (1962/65), a teologia toma um novo rumo. Não sem razão
surgiu na França a expressão “Nouvelle Théologie” (a Nova Teologia). Esta
teologia leva a sério uma das mais profundas convicções da modernidade:
conhecimento exige prova. Para afirmar que algo é isto ou aquilo é preciso
provar, por a mais b, que a afirmação é verdadeira. Mas, se não se pode falar
em conhecimento se não houver prova, como falar das coisas de Deus? De
realidades espirituais? Os teólogos se sentiram cada vez menos à vontade para
falar de coisas sobrenaturais que não se sujeitam a nenhum tipo de prova.
Justamente por isso são chamadas de “sobre”-naturais. O Vaticano II assumiu a
modernidade defendendo a “plena autonomia do ser humano e das realidades
terrestres” (GS 36). Como continuar falando de Deus?
Para
os teólogos pós-conciliares, a saída encontrada foi a seguinte: se, de fato,
fica difícil falar em “conhecimento” de Deus, uma das realidades terrestres
mais comuns é a constatação que a fé em Deus - ou em forças divinas, dependendo
das culturas - é uma realidade fortemente presente em todos os povos. Esta fé
ou religiosidade pode ser analisada de mil formas, usando para isto os
diferentes métodos das ciências humanas. Esta fé, ainda quando não baseada num
conhecimento considerado científico, corresponde a uma necessidade humana e dá
uma resposta altamente satisfatória para o ser humano sempre em busca de um
sentido para sua vida. Cabe aos teólogos demonstrar “cientificamente” – no
sentido acima falado, isto é, usando a metodologia das demais ciências humanas
– de que forma o Deus real da fé se revelou no passado e continua se revelando
hoje, tendo em vista a felicidade humana.
Estas
discussões teológicas, no entanto, são intermináveis e, como partem de
realidades históricas, mudam sempre de feição e de conteúdo. O cristão comum,
digamos assim, não tem nem sequer a possibilidade de participar desta
discussão. Não é inteiramente incompreensível que Roma tenta “segurar” os
teólogos – e também as teólogas! – insistindo na transmissão de uma doutrina
confiável, e num “catecismo” seguro, acessível ao povo. O Ano da Fé que o diga!
Voltamos a afirmar: o caminho mais visível e mais forte na caminhada histórica
da nossa Igreja (Católica) foi o dos teólogos.
II
O Caminho da Mística
Mas sempre
existiu, igualmente, o caminho dos místicos. Não fosse a presença constante dos
místicos, todo o prédio da teologia e da Igreja teria ruído há muito tempo.
Publicamos na revista de espiritualidade Grande
Sinal uma série de artigos, iniciada em maio/junho de 2012, que busca
demonstrar como uma grande corrente de místicos e místicas manteve viva a fé da
Igreja, apesar das profundas mudanças nas “cosmovisões” da humanidade.1
Para os místicos, as intermináveis discussões teológicas não têm grande
importância. Seu foco não é o “conhecimento” de Deus, mas o “estar em” Deus. A
vida espiritual não é guiada (apenas) pela razão, mas, antes de tudo, pelo
coração. Não basta crer em Deus; é
preciso viver para Deus. No século
IV, quando as disputas teológicas estavam no auge – o imperador Constantino as chamou
de “epidemia” -, grandes místicos como Santo Antão (†356), São Pacômio (†346) e
Santo Anastásio (†378), se refugiaram no deserto. Esta “mística do deserto”
deixou uma lição permanente: para ser bom cristão não precisa ser teólogo/a;
basta ter Deus como real fonte de inspiração para a vida. Foi no deserto – não
no Templo! - que Jesus se deu conta que “não é só de pão que vive o ser humano”
(Mt 4,4).
O teólogo Dionísio, o “Areopagita” (†500), foi o que, da
forma mais explícita, analisou esta questão da relação entre o conhecimento de
Deus, a teologia, e a vivência de Deus, a mística. Em sua Teologia Espiritual, Dionísio descarta, por inteiro, qualquer
possibilidade de a razão humana chegar a um entendimento mínimo do que seja
Deus. Citemos alguns trechos do texto mencionado: Deus é o “além de tudo”; para
alcançá-lo é preciso “deixar para trás os sentidos e as operações do intelecto”;
Deus “transcende todo o ser e todo o conhecimento” e está “além de todas as
diferenças positivas e negativas” (cap. 1). É pelo “não-ver e não-saber que
alcançamos a verdadeira visão e conhecimento” (cap. 2). É preciso ir até “o
silêncio absoluto dos pensamentos e das palavras”; para assim chegar “Àquele
que está além de todas as abstrações” (cap. 3). Deus “não pode ser expresso ou
concebido”; “não tem semelhança nem diferença”, pois “não é espírito de acordo
com nosso pensamento” (cap. 5). Deus é o “sem nome” – JHVH – já dizia a antiga
tradição (Ex 3, 13-15).
Com sua sensibilidade mística, Dionísio influenciou toda
a história mística do cristianismo até os nossos dias. Do lado oriental, onde o
poder imperial sobre a Igreja era mais forte e mais prolongado, o misticismo
vive épocas de grande profundidade. No famosíssimo mosteiro de Stoudion, que
chega a ter mais de mil monges, São Simão (†1022), o “novo teólogo”, prega que
a mais dura ascese tem apenas uma finalidade: chegar à “iluminação”, a
experiência direta de Deus, a que dispensa os recursos intelectuais. O papa
Bento XVI o chamou de “o teólogo da união mística com Deus”. No Ocidente, já um
tanto quanto contaminado por um clero desinteressado das coisas de Deus, é São
Bernardo de Claraval (†1153) que prega o “retorno” a Deus, e aos padres do
deserto.
Nas
camadas populares dos tempos medievais surge uma espiritualidade que passa
longe dos critérios teológicos. Enquanto a Igreja-Instituição se preocupa com a
doutrina certa e o poder, a população em geral se alimenta de uma “mística das
emoções”. A mística beneditina, Hildegarda de Bingen (†1179), percorre a Europa
para, em nome do “amor divino”, combater a praga das investiduras
eclesiásticas. Na Alemanha, o mosteiro cisterciense de Helfta vive seu momento
mais sublime com as “três santas do Sagrado Coração”: Santa Matilde de
Magdeburgo (†1285), Santa Matilde de Hackeborn (†1298) e Santa Gertrudes
(†1302), a “teóloga do Sagrado Coração”. Não é a teologia que salva a
cristandade da época, mas a mística.
A
mística popular de São Francisco de Assis (†1226) não se inspira na teologia,
mas na pobreza evangélica de Jesus e dos Santos Padres. Francisco não quer
clero para sua “fraternidade”, mas “frades menores”, mendicantes sem pecúnia.
Quando volta de sua frustrada viagem entre os sarracenos e encontra sua comunidade
dividida, alguns reclamando até por mais “erudição”, ele reage contrariado.
Nada disto! Tem que ser como no Evangelho. O amor divino exige amor aos
desvalidos à beira do caminho e nada mais. Sua mística não ressalta o discurso
teológico, mas a poesia, a música e a encenação. Somente a arte exprime o
indizível. Seu amigo, Domingos de Gusmão (†1221), o complementa. Quer seus
dominicanos bem preparados e qualificados. O pietismo popular da época chega às
raias da histeria e nem tudo é válido na seara do Mestre.
Quem
retoma então em grande profundidade a questão do “conhecimento” de Deus é o
Mestre Eckhart (†1328). Proclamado mestre em teologia pela famosa universidade
de Paris, formado na mais perfeita teologia escolástica como aluno do grande
Santo Alberto Magno (†1280), este místico dominicano, rodeado por movimentos
pietistas de todos os gêneros – para alguns um verdadeiro “panteísmo religioso”
-, se convenceu de que Deus não chega ao coração humano pela via da razão.
Fortemente influenciado por Dionísio prega que apenas o total desprendimento de
tudo possibilita o encontro com Deus. O ser humano não alcança a verdadeira
felicidade pelo conhecimento de doutrinas, mas apenas quando ele “nada mais
deseja, nada mais sabe e nada mais possui”. Deus, então sim, ocupa “o fundo da
alma” – sua metáfora preferida – para aí fazer a sua morada.
Em épocas de Inquisição, quando a Igreja-Instituição se
envolve com o poder e defende a “sã doutrina” com mão de ferro, os místicos
propagam a Igreja “por dentro”, a que emociona o coração do povo. Nos séculos
XIV e XV, o norte europeu é fortemente influenciado pela “mística flamenga” de
João de Ruysbroeck (†1381), de forte viés popular, sem uso de recursos
filosóficos ou teológicos, e mais ainda pela famosa “escola de Deventer”
(Holanda) onde o amigo de João, o místico cartuxo Geert Groote (†1384), inicia
a nova vida comunitária dos “Irmãos e Irmãs da Vida Comum”, sem votos, mas
tendo como modelo a primeira comunidade cristã de Jerusalém. A partir desta
experiência “renana” (do rio Reno), por pressão de Roma, surgirão as inúmeras
casas dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho que depois terão forte
influência sobre a reforma das ordens religiosas, especialmente na Alemanha.
Este
grande ardor místico, baseado no Mestre Eckhart, terá significativa influência ainda
sobre místicos posteriores como Thomas à Kempis (†1471), Santa Tereza d´Ávila
(†1582) e São João da Cruz (†1591). Tereza e João dedicam a vida à reforma do
Carmelo. Tereza não quer suas irmãs com os privilégios da nobreza, mas
“descalças”. João, o “patrono dos poetas espanhóis”, viu, nos dias de glória da
universidade de Salamanca, “muita doutrinação e pouca contemplação”. É preciso
voltar às origens. Ambos se exprimem na linguagem mística e celestial da época,
linguagem que está acima da razão e dos sentidos. Tereza não se cansa de falar
do “Castelo Interior”, onde vive seu príncipe encantado, Jesus, e João escreve
sua Noite Escura da Alma, a Subida do Monte Carmelo e o Cântico Espiritual. Apenas passando
pelos degraus do total desprendimento e, em seguida, do estado de “iluminação”,
a pessoa chega ao estágio final da verdadeira contemplação, a união mística com
Deus, o encontro da criatura com o Amado.
No decorrer da modernidade, a própria mística adquire,
crescentemente, conotações mais racionais. A íntima ligação entre fé e cultura,
mais uma vez, se comprova. A cosmovisão teológica do passado, onde o
conhecimento “metafísico” é aceito com naturalidade, é substituída pela
cosmovisão antropológica onde apenas as posturas racionais são valorizadas.
Limitar a vida devota à piedade dos conventos não passa de uma heresia, diz o
“santo cavalheiro” São Francisco de Sales (†1622). Surge uma impressionante
leva de “santos da caridade”, em resposta à cruel espoliação industrial: São
Vicente de Paulo (†1660), Santa Luisa de Marilac (†1660) – suas Irmãs devem ter
“por claustro as ruas da cidade” – e o beato Frederico Ozanam (†1853), além de
outros. Surge a mística própria do “catolicismo social”, como também a mística
da “pequena via” de Santa Teresa de Lisieux (†1897), a santa que se considerava “pequena demais para subir
a rude escada da perfeição”. Com os santos da modernidade, a mística do céu se
transformou na mística da terra.
E o que dizer dos tempos atuais? Os místicos ainda
existem? Fica cada vez mais difícil encontrá-los se mantivermos os modelos
tradicionais do pensar da Igreja. Talvez o “moderno” filósofo e teólogo da
religião, Friedrich Schleiermacher (†1834), o “pai da teologia liberal
protestante”, abra uma pista: a “consciência religiosa” – “das fromme Bewusstsein”,
ele diz – do ser humano é (a única) fonte inesgotável de religiosidade, ainda
que ela não se alimente de um conhecimento real, mas de experiências vividas.
Hoje ficou mais evidente: a mística brota da própria vida ou do coração, não da
cabeça. Talvez possamos aduzir como exemplo Charles de Foucauld (†1916). Antes
inteiramente descrente, sente-se “tocado” pela fé simples e profunda dos povos
do deserto, em Marrocos. Convertido, vive sua profunda “espiritualidade de
Nazaré”, isolado e “aniquilado” em seu eremitério “tuaregue”, primeiro em Beni
Abbes e depois em Assekreme. Ou a filósofa judia Simone Weil (†1943),
incondicionalmente solidária com os explorados, já muito antes de ajoelhar-se
pela primeira vez na igrejinha de Assis. Mesmo considerando Deus inteiramente
inacessível, O vê presente no que todas as religiões têm de belo e humano, e em
especial no sofrimento do povo, assumido na cruz de Jesus Cristo. Na opinião de
Albert Camus, Simone era “o maior gênio espiritual da atualidade”. Morre sem
ser batizada.
Poderíamos citar ainda Thomas Merton (†1968), Madre
Tereza de Calcutá (†1997), Irmão Roger de Taizé (†2005) ou Chiara Lubich
(†2008). O místico ou a mística que encontramos tem sempre a mesma feição: a
feição de um ser humano cujo coração afirma crer num Deus que a razão diz ser
indizível e inominável, desconhecido até, mas que, ainda assim, o leva a
superar seus próprios limites e contingências para ir em busca de algo que está
além, um além sem fronteiras e sem certezas e, tenhamos a coragem de dizê-lo,
às vezes (aparentemente) sem Igreja e sem fé.
Se olharmos para trás e nos perguntarmos: a Vida
Religiosa, masculina ou feminina, assim como ela se encontra hoje, ainda
corresponde ao que sempre foi essencial aos olhos dos místicos? Responderíamos: na lógica da razão, sim, na
do coração, não. O que ocorreu com a Igreja ocorreu também com a Vida
Religiosa: na disputa entre a razão e o coração, a razão, com raras exceções, quase
sempre venceu. Especialmente na ala masculina, a presença maciça de sacerdotes
“paroquiais”, versados, basicamente, em teologia e pastoreio, distorceu enormemente
a tradição. Na verdade fez com que a “mística” tomasse chá de sumiço aos olhos
do povo. Algo parecido talvez ocorra com irmãs e irmãos religiosos totalmente
“inseridos” em atividades pastorais comuns. A mística original passa
inteiramente ao largo de “funções”, sejam doutrinais ou pastorais. Seu carisma
é o testemunho.
Este testemunho é recuperável na nossa modernidade
avançada? Com certeza, sim, mas é difícil dizer como. Que bom seria nossa
Igreja celebrar as bodas de ouro do Vaticano II com uma profunda reforma
institucional, a começar pela dos ministérios! Vemos conforme nosso contexto. Mudando
o contexto, novos horizontes se abrem. Uma coisa é certa: em cada época o povo
encontra Deus em algum “lugar”. É lá que deve estar a Vida Religiosa.
III
E a Pastoral, como é que fica?
Quando falamos
de pastoral falamos da ação concreta da Igreja. Uma Igreja que se fundamenta,
sim, na Palavra de Deus e, de modo particular, na proposta deixada por Jesus. Como
vimos, apenas dois caminhos são percorridos para corresponder ao que Deus
espera de todos nós e da Igreja: o da teologia e o da mística. O caminho da
teologia é o caminho da razão, o da mística é o do coração. Não existe oposição
entre os dois caminhos, mas, para uma ação pastoral consciente e coerente, é
preciso perceber com muita clareza os limites – e o alcance! – de cada um.
Façamos uma reflexão a partir de um exemplo concreto.
Há pouco tempo voltamos de uma viagem de férias à
Holanda, a terra onde vivemos a nossa juventude, até 21 anos de idade. Trata-se
de um dos países mais “secularizados” do mundo. O fenômeno da secularização
pode ser analisado de diversos modos. Neste momento chamamos de “secularização”:
“a credibilidade cada vez menor da Igreja-Instituição, na opinião da sociedade
em geral”. Usando uma expressão bem rasteira poderíamos dizer: a Igreja, nos
países europeus, “já era”. Numa permanência de sete semanas, apenas uma única
vez fomos convidados para celebrar a Eucaristia. Os bispos deste pequeno país
decidiram fechar e colocar à venda 1200 igrejas, por falta de frequência, e
levando em conta os altos custos de manutenção. Entrando numa destas igrejas,
já lacrada pelo bispo, mas reaberta à força por um pequeno grupo de idosos da
localidade, fomos convidados a celebrar. Embora proibido pelo bispo, mas,
estando ainda sem resposta o apelo feito ao papa, atendemos ao convite.
O caso é muito ilustrativo. Num país onde, 50 anos atrás,
a quase totalidade da população ainda frequentava fielmente a Igreja, onde
ninguém deixava de receber os sacramentos, e onde os preceitos morais eram
acolhidos respeitosamente, hoje, nada disto mais ocorre. Restaram apenas umas
poucas cabecinhas brancas. O que aconteceu? A Igreja perdeu sua razão de ser? A
fé em Deus acabou? A Religião morreu? Nada disto, muito pelo contrário. Tudo
continua como antes, apenas de forma diferente.
A característica mais forte da modernidade talvez seja a
autonomia do sujeito como ser pensante. Esta autonomia não existia na cultura
cristã tradicional onde a Igreja pensava para todos. Ela, com base na teologia
clássica, como vimos, ensinava sobre quase tudo com grande autoridade, pois
esta era considerada e aceita como de origem divina. As culturas se formam
exatamente assim. A partir de suas crenças e convicções básicas, cada povo da
terra desenvolve sua própria linguagem e seu modo particular de viver, conviver
e sobreviver. Mas vimos também que nossos teólogos, aos poucos, se deram conta
que “conhecimento” de Deus, assim como a modernidade entende, com provas e
tudo, não existe. Neste ponto, os místicos chegaram mais perto da verdade: o
conhecimento de Deus não vem da lógica da razão, mas da lógica do coração. Este
é o lado misterioso do ser humano: em que época for, ou por onde ele andar, é o
coração que lhe diz em que Deus deve crer e qual a estrada que deve trilhar.
Mas então, você me diz, todas as pessoas são autônomas,
livres para escolher qualquer caminho? Todas as religiosidades são igualmente
válidas? Sim, exatamente. A autonomia que a modernidade oferece ao ser humano não
deve ser acolhida com temor, mas com alegria. Porém, justamente aí entra o
papel da Igreja, da pastoral e da Vida Religiosa. O ser humano é um ser muito
frágil. Se todos os caminhos estão abertos, nem todos os caminhos são bons.
Cabe à Igreja oferecer ao ser humano de hoje um sentido para sua vida, a partir
da riqueza acumulada em seu próprio passado. Cabe à nossa pastoral apontar
caminhos de sentido, de felicidade, ainda que existam cruzes no meio do caminho.
Da mesma forma agiram os profetas dos tempos antigos, e assim também agiu
Jesus. Não existiam verdades pré-estabelecidas e definitivas, ou conhecimentos já
dados. Como grandes místicos, em meio às alegrias e tristezas do seu tempo,
captaram a voz de Deus na sua consciência religiosa e no coração, buscando
caminhos às vezes inteiramente novos, mas inspirando-se na tradição dos
antepassados. Na verdade, assim agem todas as religiões. Nós temos apenas o
privilégio de poder contar com a sabedoria divina de Jesus e, assim, entrar em
diálogo com nossos irmãos e irmãs de outras crenças.
Voltemos ao mundo secularizado. Rejeitando uma Igreja que
não correspondeu às suas expectativas, vimos inúmeras pessoas e grupos
organizados correndo atrás de um novo sentido para sua vida pessoal e coletiva.
Não apenas religiosidades de todas as cores e sabores, mas também, em todo
lugar, grupos espontâneos de voluntariados para esta ou aquela finalidade
social, iniciativas as mais variadas para lidar, de forma alternativa, com a
saúde e o bem-estar, e buscas intensivas e persistentes na direção de
auto-ajuda ou aprofundamento pessoal mediante alguma forma de meditação.
Percebemos também que, de crise em crise, aumenta a consciência da força
avassaladora e destruidora de um sistema econômico e político que impede, na
raiz, o florescer da existência humana. Este processo de conscientização,
devido à complexidade da realidade global, é mais difícil de ocorrer. Por
enquanto há maior clareza sobre a destruição ambiental. Também aí são inúmeros
os grupos engajados na superação da “insustentabilidade”. Mas também os
protestos anti-sistêmicos crescem, dia a dia.
O que, sob ponto de vista pastoral e espiritual, é
importante observar é que, em tudo isto, a Igreja está inteiramente ausente.
Num contexto cultural novo, a Igreja continua oferecendo apenas os “meios de
santificação” tradicionais do passado. Onde uma população inteira busca,
ansiosamente, por alguma “ilha de sentido”, algo que corresponda às
expectativas atuais, a Igreja teima em oferecer – por um equívoco teológico - apenas
o que dava sentido em épocas que já não existem mais. Não é de admirar que as
igrejas se esvaziam. “Secularização é um problema da Europa!”, ouvimos dizer.
Nossa sensibilidade de pastoralista e cientista social alerta para um possível
equívoco: a secularização não é um fenômeno local, mas uma tendência global da
modernidade. Está crescentemente presente também entre nós, na medida em que se
assenta a mentalidade urbana e a visão de mundo de pessoas escolarizadas.
Reparem nas estatísticas do IBGE e no sumiço dos jovens das nossas atividades
pastorais!
Nossa pastoral
deve se tornar menos teológica e mais mística. Em certo sentido, é a mística
que atesta a veracidade da nossa teologia e não vice-versa. Saudamos com imensa
satisfação o esforço dos nossos irmãos e irmã José Maria Vigil, Luiza E. Tomita
e Marcelo Barros que organizaram a série de publicações intitulada “pelos
caminhos de Deus”. Estas publicações visam harmonizar o que as teologias da
libertação, em seu estágio atual, têm de melhor com as grandes tradições
místicas da humanidade, assim como manifestadas pela atual “teologia da
pluralidade religiosa”. Cremos, sinceramente, que o caminho é por aí. Religião
não é uma doutrina fixa a ser transmitida de geração em geração. Muito mais ela
expressa uma necessidade antropológica do ser humano que busca um sentido para a
vida do dia a dia. A enorme riqueza da nossa mística cristã tem muito a
contribuir. Cabe à pastoral das comunidades cristãs conduzir o processo.
Endereço
do autor: R. Juruá, 798 – Jd. Paineiras - 09932-220 Diadema SP Email: nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
1) Para os interessados
nestas diferentes cosmovisões que alteram em profundidade o entendimento e o
agir da Igreja, aconselhamos ler a série de quatro artigos (A Vida Pastoral em Novas Perspectivas),
publicados nos no´s 278, 279, 281 e 282 da Revista Vida Pastoral (anos
2011/2012).
* Missionário do Verbo
Divino, svd, sacerdote formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou
sempre na pastoral prática, rural e urbana. Foi educador no Centro de Direitos
Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), São Paulo, coordenando
o
programa de formação de lideranças eclesiais e o do combate à violência urbana.
Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008
foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra, SP.
Representa, atualmente, a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas
(Provita/SP) e atua na pastoral paroquial de Diadema/SP. Além de cartilhas
populares publicou diversos artigos nas revistas REB, Vida Pastoral.e Grande
Sinal.
Para reflexão em grupo:
1) Como você, enquanto
religioso/religiosa, percebe as mudanças que ocorrem na Igreja, em sua Congregação,
e na ação pastoral nos últimos anos? Quais suas características?
2) Na sua opinião, a fé
depende do conhecimento ou da vivência da pessoa e do grupo? Comente a sua
opinião.
3) O que você acha que,
no Brasil hoje, deveria ter maior prioridade para a VR, para a sua Congregação
e para a VR no Brasil?
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