sexta-feira, 3 de junho de 2016

REB, janeiro de 2015: Carta ao papa Francisco

CARTA AO PAPA FRANCISCO
           
            Estimado Papa Francisco,
            Peço desculpas pelo atrevimento. Quem lhe envia esta carta é um humilde sacerdote de paróquia que, neste ano de 2014, celebra suas bodas de ouro de vida sacerdotal. Habita-me, neste momento, acredite, aquele mesmo sentimento respeitoso da pessoa simples que se dirige a alguma autoridade e não sabe bem qual postura e linguagem adotar. Creio, porém, que o senhor tenha o mesmo espírito dos bispos que, por ocasião do Concílio Vaticano II, na catacumba de Santa Domitila, se comprometeram com a vida simples de Jesus, longe dos títulos de grandeza, uma vez que um só é o nosso Mestre. Ainda que ciente do alto cargo e da responsabilidade descomunal que pesa sobre seus ombros, espero poder dirigir-me ao senhor na linguagem comum dos simples mortais. Somos irmãos em Cristo, e no sacerdócio. É desta forma que me sinto mais à vontade.
            Temos uma tarefa comum: fazer com que o Reino de Deus, pregado por Jesus, se torne realidade no tempo atual. Vejo a Igreja como a encarnação histórica deste sonho divino. E não é também, de alguma forma, o grande sonho da humanidade? Um dia haveremos de encontrar-nos todos juntos numa "Nova Jerusalém" onde até os templos perdem sua razão de ser, pois "o templo é o Senhor" (Ap 21,22). Mas como é longa a caminhada, e como são tortuosos os caminhos! Fui ordenado sacerdote em 1964, em pleno Concílio. Sou, portanto, da geração dos padres para os quais a renovação da Igreja era uma prioridade. Na época, os bispos do Brasil lançaram um plano pastoral, amplo e corajoso, chamado "Plano Pastoral de Conjunto". Formamos então equipes, padres, irmãs e leigos/as, e lá fomos nós transformando paróquias em comunidades de comunidades, dando à Igreja um novo rosto, aberta ao mundo e comprometida com ele, fazendo da Palavra de Deus a semente de um novo espírito e de uma nova ação. Costumávamos lembrar as palavras do papa João XXIII sobre os novos ventos a entrar pelas portas e janelas da Igreja, para que ela se transformasse "na cidade santa, a esposa enfeitada para o seu marido" (Ap 21,2).  
            Quanto suor derramado! Batalhei, lutei, carreguei o piano muitas vezes, às vezes também coordenando ou lecionando. Lutei contra o governo militar - o senhor sabe o que isto significa! -, militei numa ONG de Direitos Humanos e não fiquei alheio aos compromissos políticos do povo cristão. Tudo para que a caminhada pastoral da Igreja fosse a melhor possível. À essa altura, o senhor deve estar pensando: conheço esses workaholics, já os encontrei em Buenos Aires! Desculpe opor-me, Papa Francisco, meu caso não é esse. Posso garantir-lhe que, o que mais me motiva, não é o trabalho em si, mas a teologia e a espiritualidade. Evangelicamente orientadas, são elas que fundamentam a caminhada pastoral, e tenho feito delas, desde o noviciado - sou Missionário do Verbo Divino - a minha meditação diária, ao menos de uma a duas horas por dia.
            Por isso digo com pesar: a situação da Igreja, hoje, é preocupante. Nas últimas décadas, ela se desviou da tão esperada renovação conciliar e parou no tempo. Ocasionalmente me encontro ainda com colegas que vivem intensamente "a alegria do Evangelho" da qual o senhor nos falou recentemente, e que mantêm a esperança numa Igreja renovada, mas seu número diminuiu drasticamente. Com maior freqüência encontro, especialmente nas pastorais sociais e nas CEBs, leigos e leigas que dão testemunho da presença viva do Espírito em suas vidas e em seus compromissos pastorais, mas sinto que seu fervor é permanentemente desafiado pela desânimo. Somente um "choque de esperança" pode sacudir os ânimos. Por isso, Papa Francisco, tomo a liberdade de, em nome de todos eles, apresentar algumas sugestões:
1. Reforme a Cúria Romana, Papa Francisco!
            Este é, de longe, nosso ponto primeiro. Estou ciente que, certamente, não é o ponto prioritário do povo simples das nossas comunidades rurais, ou das nossas periferias urbanas. É tão difícil elas obterem clareza das complicadas entranhas desta tão vetusta instituição eclesial! O povo cristão não conhece os que tomam as decisões atrás das cortinas. Na verdade não estão nem muito aí com isso. Não é a cúpula da Igreja que os guia, mas o Espírito Santo. Nós, padres, temos clareza maior. Sabemos que nada escapa ao olhar de Roma. Mas também sabemos que Jesus derrubou as mesas do Templo onde ocorria algo parecido. A Boa Nova pregada por Jesus pede uma Igreja de feição mais simples e mais humilde. Com maior confiança na ação do Espírito. Afinal, quem guia a Igreja, a Cúria Romana ou o Espírito Santo?
            Sentimos que estamos sendo sufocados por uma Cúria que não conhece a nossa realidade. O Documento de Aparecida (2007) pede que priorizemos o anúncio de Jesus Cristo, e nossos bispos brasileiros nos pedem uma catequese paroquial renovada, permanente, dirigida também aos adultos. Mas como evangelizar sem nexo com a nossa realidade que - como em qualquer outro lugar do mundo - é única? O Concílio Vat. II não nos pediu uma leitura atenta aos sinais do (nosso) tempo, e uma hermenêutica teológica adequada à (nossa) realidade? E o Papa João XXIII não teve a coragem de dizer que a doutrina sempre requer uma linguagem própria que o povo entenda? Se a verdade é uma só, são muitos os caminhos para chegar a ela. Também a nossa liturgia paroquial sofre muito com a camisa de força imposta por Roma. Não podemos desviar uma vírgula do missal romano! A solução é imprimir folhetos litúrgicos uniformes. Pobre padre de paróquia que, após anos de estudo litúrgico numa faculdade de teologia, não consegue (nem pode) desvencilhar-se de um folheto litúrgico de muito texto e pouca oração! Mas é o que nos resta. Está tudo no Direito Canônico. Roma "não abre mão" de uma lei universal. O apóstolo Paulo, como nós, reconheceu este drama em sua própria vida: a letra mata, o Espírito é que vivifica! (2Cor 3,6).
2. Restaure os patriarcados ocidentais, papa Francisco!
            Papa Francisco, fiquei surpreso e muito feliz com o seguinte texto de sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (32): "O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança das antigas Igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem 'aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial leve a aplicações concretas' (Lumen Gentium, 23). Mas este desejo não se realizou plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal". Que alívio para nós, padres de paróquia, ouvir estas palavras! Nossa CNBB sempre mereceu um voto de confiança. Mas, ultimamente, algo parece estar mudando. Tenho tido contatos freqüentes com grupos de padres de diferentes regiões pastorais e é desanimador ouvi-los falar de seus bispos. Muitos parecem conformados com o peso (exagerado) das imposições romanas. Outros dão a impressão de se inspirarem mais no Direito Canônico do que no Evangelho! Tenho certeza que não falta boa vontade. É antes uma espécie de "couraça institucional" que prende nossos bispos (especialmente os nomeados nas últimas décadas). Gaiolas institucionais costumam prender o Espírito. Dê asas ao Espírito, papa Francisco!
            Um dos caminhos mais promissores seria mesmo restaurar os patriarcados ocidentais e dar maior autonomia às conferências episcopais. E com quanta satisfação os patriarcas orientais receberiam a novidade! Quem sabe, ainda antes de 2054 possamos, todas juntas, Igrejas Orientais e Ocidentais, comungar de fato da mesma Mesa do Senhor. Só falta Roma soltar as amarras. O mundo inteiro está à espera. Aqui, nas paróquias, com relação às CEBs por exemplo, sentimos que nossos bispos, freqüentemente, se sentem tolhidos. Não podem falar e agir como o Espírito lhes pede. Quando a Igreja do inteiro Continente Latino-Americano, e do Caribe, se reúne e elabora um Documento, este volta de Roma reformado. Será que um pequeno grupo curial é mais fiel ao Espírito do que todo um Continente? E se houver alguma diversidade no entendimento e na ação das Igrejas do mundo, qual o problema? Não foi essa diversidade que levou Pedro e Paulo a um entendimento melhor? Ou será que devemos acreditar na história muito engraçada  - um renomado teólogo brasileiro me afirmou que ela consta de um arquivo oficial! - que, na opinião de um já falecido bispo paraguaio, para Roma, os bispos latino-americanos não passam de "índios mitrados"?
3. Dê maior credibilidade à voz dos teólogos, Papa Francisco!
            Esta é outra questão prioritária. Qual o recurso mais precioso que nós, padres de paróquia, temos para não nos encontrar, desatualizados e enferrujados, à beira do caminho? Quem mais nos ajuda a crescer no árduo caminho da espiritualidade e da lida pastoral não são os especialistas da Palavra de Deus e os experts na interpretação teológica da realidade? A quem recorremos diante de incertezas e dúvidas? Como bem cumprir nossa missão no mundo atual sem uma atualização permanente, e sem que nos "acomodemos à mediocridade" (EG 121)? Sei que muitos de nós não sentem falta deste aporte precioso dos teólogos. Contentam-se com a praxe institucional. Bem que o senhor os adverte do perigo do "mundanismo espiritual" (EG 93-97). Pessoalmente tenho na mais alta estima o que os teólogos e as teólogas de todos os continentes nos falam. As revistas estão aí para serem apreciadas.  
            Sei muito bem que, especialmente hoje, a voz dos teólogos é extremamente diversificada. Mas uma das mais felizes conquistas da modernidade não é justamente a consciência que apenas o caminhar histórico e a diversidade dos caminhos podem conduzir a humanidade a uma compreensão mais profunda da verdade verdadeira e da real Mensagem de Jesus? A última palavra não pode sempre depender de uma pequena Comissão Teológica do Vaticano. Aliás, ainda se pode confiar numa "última palavra" quando, em todos os cantos e em todas as épocas, a humanidade se depara com novas sensibilidades e novas demandas? No dia a dia da nossa ação pastoral sentimos um crescente e perigoso abismo entre o magistério doutrinal dos nossos teólogos e o magistério pastoral dos nossos bispos. Desde São Tomás de Aquino (†1274) se faz uma feliz distinção entre os dois magistérios. O Papa Bento, recentemente, ainda insistiu na sua necessidade, mas como, coerentemente, unir a teoria à prática?
            Por que não institucionalizar, por exemplo, congressos nacionais ou continentais de teólogos antes da realização dos Sínodos dos Bispos, enfocando a mesma temática? Não apenas os teólogos mais renomados, mas encontros oficiais em escala mais ampla, em busca de um consenso razoável que possa assessorar com maior segurança os bispos na sua condução pastoral. Um caso emblemático é a reforma da Cúria Romana. Já houve muitas tentativas para adaptá-la às expectativas da Igreja universal e do mundo. Nenhuma reforma satisfez, e poucos acreditam que da recém-formada pequena comissão de cardeais possa resultar alguma coisa significativa. Perscrutar "os sinais do tempo", como pede o Concílio Vat. II, requer algo muito mais corajoso. Ouça com mais atenção a voz ponderada de nossos teólogos (e teólogas!), Papa Francisco!
4. Faça prosperar o diálogo inter-religioso, Papa Francisco!
            Sei que este é um desejo muito caro ao seu coração. Aliás, é um desejo intenso repetidas vezes manifestado por todas as Igrejas cristãs. As esperanças, porém, sempre de novo se frustram. Qual a razão? Um diálogo inter-religioso sem avanços concretos com o passar do tempo aborrece. Com muitos outros creio eu, Papa Francisco, que o maior entrave ao (macro) ecumenismo vem do lado católico. Confundimos alhos com bugalhos. Estamos demasiadamente aferrados ao arcabouço teológico do passado, com sua roupagem cultural, e pouco propensos a perceber a presença do Espírito nas tradições divergentes dos nossos irmãos separados e na riqueza das tradições culturais (religiosas) dos nossos povos. O consenso teológico do mundo (secularizado ou não) se opõe cada vez mais ao consenso teológico que parece existir na Cúria Romana. E como sangra a Igreja de Jesus por causa disso, interna e externamente!
            E que alívio quando acontece o contrário! O senhor permite-me contar um caso particular? Já mencionei que, há pouco, celebrei minhas bodas de ouro de ordenação sacerdotal aqui na paróquia. Fazer ecumenismo nesta distante periferia da Grande São Paulo, numa recém-criada paróquia que nem igreja-matriz não tem, e onde sete comunidades católicas convivem em meio a uma centena de comunidades evangélicas, é dose pra leão. Não fui eu que preparei a cerimônia, mas, sob ponto de vista (macro) ecumênico, ela foi linda. Em diferentes momentos litúrgicos vi se apresentarem, com alegria e espontaneidade, representantes de uma Igreja Evangélica, de uma Comunidade de Umbanda, de Movimentos Sociais, e até de um grupo proveniente de uma sociedade já bem secularizada. A liturgia, parcialmente, foi fruto de um "Fórum (supra-religioso e supra-partidário) de Entidades" que temos incentivado aqui na Região Norte de Diadema SP. Nosso povo, reunido no pátio de uma grande escola, vibrou intensamente e mal e mal se deu conta das pequenas diferenças ideológicas ou religiosas. Todos/as se sentiram unidos/as na perspectiva da "Nova Jerusalém" que está a caminho. Não titubeie, Papa Francisco!
            Muitas outras coisas gostaria de dizer-lhe, mas vou terminar aqui. O senhor já percebeu que minha carta, na verdade, se destina mais à Cúria Romana. Não há, porém, a quem possamos dirigir nossas queixas. Talvez o senhor possa fazer isto por nós. Encerro enviando-lhe um grande abraço fraterno. Quem sabe possamos, algum dia, ter novamente sua presença nas terras brasileiras. Ficaríamos felizes.
            Sem mais no momento, com grande respeito,

                                                                                  Pe. Nicolau João Bakker, svd
                                                                                 Email: nijlbakker@hotmail.com


Nota de esclarecimento:
            No texto acima me dirijo ao papa Francisco, não na vã esperança de chegar até sua modesta moradia na pousada Santa Maria, mas simplesmente porque nós, humildes pastores dedicados à vida paroquial comum, temos algumas inquietações que há muito tempo nos incomodam e que merecem ser externadas. Quem sabe ajudem a dar maior destaque ao sensus fidelium, tão enfaticamente ressaltado pelo Concílio Vaticano II. Não escrevo, portanto, a partir da academia, mas a partir da paróquia. Não que tenha algo contra a academia, muito pelo contrário. Devo reconhecer que até passei por ela, mas sem jamais deixar de lado a carga normal da vida paroquial. Certa vez fui feito "professor", na preciosa área da teologia pastoral, mas, ainda assim, minha abordagem não partia de conceitos, mas de práticas. Meu foco de atenção é somente a prática pastoral. É dela que brotam minhas inquietações, e é a partir dela que me atrevo a dialogar com o papa Francisco.
            Não sou ingênuo ao ponto de acreditar que o papa já não saiba de tudo que eu escrevi. Trata-se de uma pessoa muito mais inteligente do que eu. Mas todos precisamos uns dos outros. Os "padres de paróquia" são a imensa maioria dos "ordenados". E há os incontáveis leigos e leigas que estão conosco. O papa deve ouvir nossa voz. No Documento 100 da CNBB sobre a "nova paróquia", os bispos nos pedem inúmeras atitudes cuja concretização não depende somente da nossa boa vontade. Elas dependem (e muito!) também de atitudes que somente nossos bispos (e especialmente o papa) podem tomar. As sugestões acima indicadas, enquanto não concretizadas, não nos impedem de fazer um bom trabalho pastoral, mas, concretizadas, darão não apenas novo ânimo, mas também um novo dinamismo e uma nova eficácia à nossa ação pastoral. O amor à Igreja exige de todos/as nós buscar, juntamente com nossos bispos, novos caminhos.
            A atual estrutura eclesial é rigorosamente "de cima para baixo". Há muitos motivos teológicos para mantê-la. Mas para Jesus, um só é nosso Senhor, e seu Espírito está conosco pelo Batismo. O Batismo, teologicamente, estrutura a Igreja "de baixo para cima". A Igreja, como instituição, tem muito de criação histórica. Qual o caminho a seguir no nosso tempo? O "vale tudo" entre nossos irmãos e irmãs protestantes é um alerta. Nem eles se sentem felizes com sua grande divisão. A perspectiva da unidade - mantida a riqueza da diversidade - deve ser preservada, e entendemos que, nisso, Roma tem um importante papel a exercer. Mas todos/as devemos, antes de tudo, obedecer ao Espírito que "sopra onde quer". E Ele sopra, com intensidade muito especial, nas incertezas do mundo atual que espera, ansiosamente, por uma Igreja renovada onde todos/as possam reconhecer o rosto de Jesus. Dissemos acima que apenas um "choque de esperança" pode sacudir os ânimos. Que nosso Papa tenha esta coragem. Nossa voz tem (apenas) a intenção de ajudá-lo.  

Nicolau João Bakker *
R. Juruá, 798 - Jd. Paineiras
09932-220 Diadema SP
Email: nijlbakker@hotmail.com
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
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* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em S. Paulo, atuou também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008, foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente, atua na pastoral paroquial de Diadema, SP. Além de cartilhas populares, publicou artigos diversos em REB, Verbum, Vida Pastoral, Convergência e Grande Sinal.





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