A
PASTORAL EM NOVAS PERSPECTIVAS III
ESPIRITUALIDADE
ECOLÓGICA E PERSPECTIVAS PASTORAIS1
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Pe. Nicolau João Bakker, svd*
A reflexão pastoral que segue tem íntima
relação com o artigo A Pastoral em Novas
Perspectivas I – Introdução ao Tema, publicado em Vida Pastoral n. 278/2011. Sugerimos, portanto, uma atenta leitura
do mesmo antes de ler a presente reflexão.
Introdução
ao tema
Observamos na introdução ao tema em foco
que a ação pastoral da Igreja se alimenta de três fontes: a cosmovisão da
época, a espiritualidade e a perspectiva política de futuro. Da cosmovisão da
época e suas perspectivas pastorais tratamos em Vida Pastoral n. 279/2011. Da perspectiva política trataremos em
outra oportunidade. Nossa intenção agora é tratar da espiritualidade e sua
íntima relação com a ação pastoral. Já alertamos para o fato da estreita
interligação entre as três fontes. São como três córregos formando um único
riacho. A cosmovisão da época, sendo a geradora de sentido, é decisiva.
Definindo-a como “um determinado modo de conceber Deus, o mundo, e a própria
existência individual e coletiva” já podemos perceber que a espiritualidade não
é anterior à cosmovisão, embora a influencie. Ela nasce dela, se inspira nela e
se sustenta nela.
Dissemos que cada cosmovisão possui a sua
própria “lógica”. No assim chamado mundo ocidental, as três lógicas, das
cosmovisões teológica, antropológica e ecológica, foram sucessivas, porém, sem divisórias
muito rigorosas. Se uma lógica, um modo de pensar, é dominante não significa
que sufoca totalmente as outras. Dependendo das diferentes culturas ou dos
diferentes segmentos populacionais dentro de uma mesma cultura, as três lógicas
estarão mais ou menos presentes. O que devemos perceber melhor agora é que à
cada cosmovisão corresponde também uma espiritualidade própria, e esta, por sua
vez, traz novas e significativas perspectivas para a ação pastoral.
A lógica de cada cosmovisão constitui,
até certo ponto, uma “camisa de força” da qual é difícil escapar. Por isso, as
espiritualidades que as acompanham não mudam facilmente. E quando uma
espiritualidade não mais satisfaz, leva tempo para surgir outra melhor. Hoje,
na teologia, existe um certo consenso de que as grandes mudanças que arrastam a
população em direção a algo novo não provêm de novas doutrinas, por mais
corretas ou belas que sejam. Algo deve tocar no interior das pessoas. Apenas
uma nova “mística” abre caminhos novos. E isso tem tudo a ver com
espiritualidade. Vejamos isso mais de perto.
I
ESPITITUALIDADE NA COSMOVISÃO TEOLÓGICA
1.1 Uma espiritualidade baseada na
conversão
Os quase 4000 anos de tradição
judaico-crista, fundamentada numa fé onde Deus se comunica diretamente com o povo,
deram ao mundo ocidental cristão uma profunda consciência de “um só Deus, um só
povo eleito, um só Pastor e um só rebanho”. O que esta “teo-lógica” impõe em
primeiro lugar é a espiritualidade da conversão. Antes de tudo uma conversão
pessoal: ouvir a Palavra Revelada e aderir a ela de corpo e alma. Nesta
tradição, o Deus que fala é um Deus que salva. Ele vem para libertar e salvar,
porém, há mandamentos a cumprir. Converter-se a este Deus significa acolher os seus
mandamentos. Surge uma espécie de acordo amigável: quem os cumpre com
fidelidade será salvo; quem não os cumpre será condenado. Especialmente nos
profetas esta concepção de povo eleito é alargada e Jesus declarará superada a
barreira étnica, mas fica de pé uma incondicional fidelidade ao Deus da Nova
Aliança. Impõe-se a fidelidade a um “Novo Mandamento” (Jo 13, 34).
1.2 Uma espiritualidade de missão
Esta espiritualidade da conversão vem
acompanhada de sua irmã gêmea, a espiritualidade da missão. Como os infiéis
são, para sempre, excluídos de salvação, o amor cristão exige antes de tudo o
compromisso de salvá-los. Nossa sensibilidade moderna já nos tornou incapazes
de medir com a exata medida a urgência e o alcance desta convicção do dever
missionário. Na cosmovisão teológica trata-se de uma ordem expressa do próprio
Deus, o que facilmente dará origem a diversas formas de fundamentalismo.
Podemos observá-las nas duras “disputas ideológicas” entre irmãos e irmãs de
uma mesma Igreja ou nas odiosas tentativas de “converter” irmãos e irmãs de
outras denominações cristãs. A ordem expressa “Ide pelo mundo” (Mc 16, 15) fez
com que os primeiros cristãos se lançassem império romano adentro e este élan
missionário nunca mais parou. Uma vez descoberto um Novo Mundo, missionários e
missionárias serão uma presença constante nos navios intercontinentais. O
padroeiro dos missionários, São Fransisco Xavier (†1552), exprimindo a
espiritualidade missionária da cosmovisão teológica, ainda pôde anunciar aos
aflitos japoneses que seus antepassados não-batizados com certeza foram todos
condenados ao inferno. E até em passado recente é com esta espiritualidade
missionária que Igrejas Católicas e Protestantes buscaram converter os povos
indígenas do Brasil.
II
ESPIRITUALIDADE NA COSMOVISÃO ANTROPOLÓGICA
2.1
Uma espiritualidade de “fidelidade à doutrina”
Com a mudança da cosmovisão teológica
para a cosmovisão antropológica a partir do Séc. XVI, também a espiritualidade
do mundo cristão passa por mudanças profundas. Podemos dizer que a cosmovisão
antropológica fez com que a espiritualidade tradicional se dividisse em duas
vertentes: uma de “fidelidade à Doutrina” e outra de “fidelidade ao Espírito”. Conversão
e missão não são dispensadas, mas, na ânsia de preservar a glória da
cristandade medieval contra as ameaças do protestantismo e da modernidade, o
foco central da espiritualidade se desloca cada vez mais para uma
espiritualidade de “fidelidade à doutrina”. A grande síntese da fé cristã
elaborada por São Tomas de Aquino (†1274) será chamada de “Teologia
Escolástica” e esta, exatamente por sintetizar a racionalidade grega com a
Tradição e a Teologia Dogmática da Igreja até aquele momento, terá um caráter
oficial. Roma tentará guiar a Igreja com base nesta doutrina - com inabalável
firmeza - praticamente até os nossos dias. No Séc. XIX surgirá uma
Neoescolástica que procura adaptar a Escolástica tradicional às vertentes
filosóficas da Modernidade. A Encíclica Aeterni
Patris (1879) do papa Leão XIII abriu até algum espaço para isto, mas em
geral a relação desta nova teologia com Roma será extremamente tensa.
Não se pode negar que fidelidade à
doutrina faz parte do que existe de mais sagrado na tradição judaico-cristã.
Para os profetas e para Jesus, a fidelidade à doutrina significava, antes de
tudo, fidelidade à Aliança. Quando um farisaísmo legalista toma conta da nação,
Jesus a comparará a uma figueira seca (Mt 21, 18-22). Ao derrubar as mesas do
Templo e declarar que dele não ficaria pedra sobre pedra, Jesus demonstrou sua
indignação não com a doutrina em si, mas com uma endoutrinação farisaica que
perdeu o Espírito da Aliança (Mt 21, 12-13). O cristianismo não deixará de
sofrer as mesmas tentações sempre de novo. Desde muito cedo, com visibilidade
já nos relatos neotestamentários, a preocupação com a doutrina verdadeira se
manifesta no interminável combate às heresias. No auge da cosmovisão teológica,
ainda em plena Idade Média, ela dará origem ao que, despudoradamente, foi chamada
de “Santa” Inquisição. O papa Gregório IX (†1241) contará com os religiosos, em
especial os dominicanos, para cuidar desta tarefa. Com alguma boa vontade
podemos dizer que, com as “ameaças” do protestantismo e do modernismo, a
insistência com a “fidelidade à doutrina” se torna até uma conseqüência natural
das circunstâncias. Dentro da cosmovisão teológica, a defesa da “Verdade Única”
não podia mesmo deixar de ser uma prioridade absoluta. Mas quando o amor à
verdade se transforma num dogmatismo repetitivo – como vimos no artigo anterior -, a
espiritualidade que dele nasce não tem futuro. Na verdade já nasce morta.
2.2
E uma espiritualidade de “fidelidade ao Espírito”
Paralelamente à espiritualidade de
fidelidade à doutrina encontramos na cosmovisão antropológica a volta a uma das
espiritualidades originais do cristianismo: a “fidelidade ao Espírito”. “Viver
no Espírito” é o que Jesus pede aos seus discípulos (Jo 14,16). Paulo também o
pede aos primeiros cristãos de Roma (Rom 8). Deixar o Espírito de lado e confiar
mais na fidelidade às doutrinas e às leis é a eterna tentação do Templo. Os
historiadores da Igreja costumam apresentar a “conversão” do imperador
Constantino (†337), que deu ao cristianismo o apoio público da lei, como um
mecanismo poderoso que mais prejudicou do que ajudou a espiritualidade da jovem
Igreja. Muitos outros exemplos podem ser encontrados facilmente. Hoje ninguém
mais põe em dúvida o equívoco do Concílio de Toulouse (1229) que proibiu aos
leigos a leitura da Bíblia.
Os fundadores do protestantismo sacudiram
as portas do Vaticano clamando por fidelidade maior ao Espírito e à Palavra de
Deus do que aos dogmas, mas o diálogo já estava muito difícil. Com o Concílio
de Trento (1545-1563) as portas do Vaticano se fecharam ainda mais. A doutrina
católica é transformada num catecismo universal obrigatório e o povo cristão o
decora fielmente. Com a implantação do modelo ultramontano a partir da segunda
metade do Séc. XIX, a “romanização” se torna ainda mais rigorosa. Ficou cada
vez mais difícil perceber os ventos do Espírito na vida eclesial. Para o povo
cristão, o acesso aos sacramentos irá depender agora de um diploma de formação
catequética, enquanto que, nos seminários e conventos, a espiritualidade de
fidelidade à doutrina será considerada a prova mais forte da autenticidade da
vocação sacerdotal e religiosa. Ainda em 1964, como sabemos por própria
experiência, a admissão à ordenação sacerdotal dependia de uma abjuração
pública dos “erros da modernidade”. Ela era feita sempre, ainda que imposta.
A espiritualidade de fidelidade ao
Espírito se manifesta com mais força primeiramente nos fortes movimentos de
piedade popular no final da Idade Média e logo depois no protestantismo em
ascensão. A autonomia da razão e o direito à liberdade começam a se impor. Rejeitando
o dogmatismo papal, os fundadores protestantes seguem a cartilha da nova
cosmovisão antropológica e insistem na capacidade subjetiva de cada cristão e
de cada cristã para interpretar a Bíblia e seguir a inspiração do Espírito.
Cabe à própria Comunidade um controle maior sobre a nomeação e conduta dos ministros
e sobre a moralidade dos membros. A fidelidade ao Espírito torna-se um critério
central.
Dentro da Igreja Católica, a vertente
espiritual da fidelidade ao Espírito, por mais desvirtuada na prática, nunca
esteve ausente. Ela simplesmente não pode ser descartada do Evangelho. Após o
Concílio Vat. I (1870), o critério da racionalidade e da liberdade vão se
tornar crescentemente mais importantes. A teologia neoescolástica, que
polemizava defensivamente com a modernidade, agora, em meados do Séc. XX, dá
lugar à “Nouvelle Théologie” que adota uma postura mais positiva. Nesta
teologia, o papel da Igreja não é isolar-se do mundo moderno, mas inserir-se
nele para transformá-lo. A palavra-chave é “engajamento”. A espiritualidade que
nasce desta “Nova Teologia” não é mais a da “fuga do mundo”, mas a da
“encarnação”. Uma encarnação fundamentada no retorno às fontes originais da
Sagrada Escritura e da Tradição Patrística, e em diálogo sincero com a
racionalidade moderna. Os representantes desta Nova Teologia – Chardin, Lubac,
Chenu, Congar, Schillebeeckx, Rahner, Küng e muitos outros – são até hoje
lembrados com muito carinho. O teólogo Ratzinger, atual papa Bento XVI, na sua
fase pré-conciliar, também é contado entre eles. São os ventos desta nova
espiritualidade de fidelidade ao Espírito que fazem o papa João XXIII (†1963)
sonhar com uma Igreja inteiramente renovada. Logo após o Concílio, convocado
por ele, o papa Paulo VI (†1978) perceberá, no entanto, que, dentro dos muros
do Vaticano, nem todos dão a batalha por vencida. A resistência ao Concílio, a
“fumaça de Satanás” como ele teve a coragem de dizer, será fortíssima. A
história humana é mesmo assim. Cosmovisões, e sua espiritualidade
correspondente, mudam, mas não sem grande dificuldade.
III
ESPIRITUALIDADE NA COSMOVISÃO ECOLÓGICA
3.1
Surge a “espiritualidade da ética humanitária e eco-planetária”
A roda da história do nosso mundo
globalizado se acelera alucinadamente. Enquanto em alguns lugares a cosmovisão
teológica ainda se impõe com naturalidade, na maioria dos lugares a cosmovisão
antropológica constitui a fundamentação básica do crer e do agir. Mas já não
reina mais de forma absoluta. A nova cosmovisão ecológica anda paralelamente a
ela e em muitos lugares já a substituiu. Como conduzir uma ação pastoral num
panorama tão diversificado?
Poderíamos chamar a espiritualidade da
cosmovisão ecológica de “espiritualidade da ética humanitária e
eco-planetária”. Ela não dispensa a espiritualidade original da conversão e da
missão. Dispensa, sim, o controle de uma verdade única como monopólio de uma
determinada Igreja. Também não dispensa a espiritualidade da fidelidade a uma Doutrina.
Dispensa, sim, a fidelidade a uma Doutrina encarcerada em fórmulas fixas tidas
como definitivas e imutáveis. Muito menos dispensa a espiritualidade da
fidelidade ao Espírito. Viver no Espírito é sua essência, mas a presença do
Espírito não está mais limitada a uma Igreja, nem sequer a um conjunto de
Igrejas. O Espírito se manifesta em todo ser humano que busca Vida para si e
seus semelhantes, com inclusão de todas as formas de vida presentes no planeta
ou, quem sabe, no universo. Dissemos na introdução ao tema em foco que ninguém
deixa de ter seu “sacrário pessoal” no qual guarda suas convicções mais
profundas, tidas como sagradas e inegociáveis, e a partir do qual constrói seus
valores e seus julgamentos acerca do bem e do mal. A espiritualidade da ética
humanitária e eco-planetária, hoje, conscientemente ou não, faz parte deste
sacrário pessoal de todas as pessoas, crentes ou não.
3.2
A fundamentação teológica
Em qual teologia se baseia esta
afirmação? Em nenhuma especificamente. Depois do Concílio Vat. II não podemos
mais falar em teologia dominante. A “Nova Teologia” se dispersou e criou cores
e tonalidades diferentes de acordo com a cultura ou o ambiente onde ela é
vivenciada. A Teologia da Libertação encarna o grito latino-americano pela
superação das estruturas excludentes. Teologias asiáticas trazem o diálogo
profético com todas as religiões e culturas. Também o continente africano apresenta
seus enfoques próprios como, mais uma vez, ficou evidenciado, recentemente, no
Segundo Sínodo Africano. E quem negaria a importância para o mundo atual das
teologias feministas, entre as quais a eco-feminista, lembrando ao mundo
ocidental a chaga histórica do patriarcalismo e do modelo econômico social e
ambientalmente destruidor e insustentável?
Por sua vez, onde se ancoram todas estas
teologias? Sem dúvida na Escritura, na Patrística, na Tradição, nas culturas
humanas e no “depóstito da fé” acumulado pela Igreja no decorrer da história.
Mas estas não são as únicas fontes. Cada vez mais todas elas se inspiram também
na cosmovisão ecológica. Esta coloca sob nova luz todo o legado teológico e
todas as vertentes espirituais do passado. Vemos isto com muita clareza no
“imanentismo”, uma das características mais fortes da teologia e das vertentes
espirituais da atualidade. A cosmovisão ecológica não se dá bem com o
“transcendentalismo” da cosmovisão teológica e das correntes espirituais do
passado onde Deus falava diretamente ao coração das pessoas e, a todo momento,
interferia no curso da história e da vida humana. A cosmovisão antropológica
também rejeitou o transcendentalismo, mas, por acreditar apenas na razão, deixa
Deus inteiramente de lado, sendo muito comum o combate direto a qualquer fé
religiosa. Já na cosmovisão ecológica, - onde a razão humana não é mais a única
fonte de explicação, mas “o todo” da realidade, como vimos na introdução ao
nosso tema -, as portas se abrem novamente para as vertentes espirituais da fé,
desde que de forma “imanente”.
Numa espiritualidade ecológica Deus não age
de fora para dentro ou “sobre” a natureza, mas sempre dentro dela, de forma
imanente. Com isto a fé acaba e a religião se torna sem sentido? Muito pelo
contrário. Na cosmovisão ecológica a fé adquire uma nova profundidade. Ainda
que o consenso da atual teologia nos diga - como vimos no artigo anterior – que
“todo nosso contato com o mundo sobrenatural é mediado” e que “não existe um
caminho direto entre Deus e o ser humano”, ainda assim podemos, pela fé,
“ouvir”, “ver”, “sentir” e “tocar” o nosso Deus, de forma indireta, a qualquer
momento e em qualquer lugar. Infelizmente, a tradição secular de uma
espiritualidade que apenas valorizava o não-mundano ou o sobre-natural nos fez
perder esta sensibilidade, mas o ser humano é capaz de perceber a presença
indireta de Deus pelos mais diversos “sinais”.
Nos “sinais” encontramos o que o
“imanentismo” da atual teologia tem de mais sadio. Quando as ciências naturais
nos mostram que o surgimento da vida não é fruto de um evento sobrenatural, mas
de um processo natural, ou quando a ciência da cognição humana nos afirma que não
há meio de conhecer, objetivamente, o mundo que nos envolve, seja natural ou
sobrenatural, à primeira vista parece ficar mais difícil manter a crença num
Deus que nos acompanha em cada momento da vida e também no momento da nossa morte.
Como em qualquer espiritualidade devemos nos “exercer” também na espiritualidade
ecológica. Descobriremos as “pegadas” de Deus então até na sombra das árvores!
O conhecido biblista brasileiro, Carlos Mesters, costuma lembrar a “flor da
janela”. Para qualquer transeunte uma flor apenas. Mas não para a moça
enamorada que, surpreendida, a encontra ao passar. A flor adquire mil
significados..... fantasias, sim, mas ao mesmo tempo tão reais!
3.3
A matriz da espiritualidade humana?
A história das religiões – de todas as religiões – demonstra que a
religiosidade, a espiritualidade, não é uma característica exclusiva dos que
crêem, mas é algo inerente ao próprio ser humano. Acompanhando a moda, alguns a
chamam de “inteligência espiritual”. A tradição cristã a chama de “dom da fé”,
na cosmovisão de hoje não concedida apenas a um povo eleito, mas a todos os
povos da terra.
Qual a fonte da qual brota esta
religiosidade ou espiritualidade universal? São poucos os que se arriscam a dar
resposta a esta pergunta. Nós também não nos sentimos preparados para isto, mas
vemos uma tendência. Deixando de lado qualquer intuito dogmático, a origem pode
estar no “caso de amor” que, como vimos no artigo introdutório, existe no mais
íntimo da própria matéria e da própria vida. No mais íntimo de cada átomo do
universo, como assinalamos, tudo está interligado e tudo coopera com tudo. Em
meio a infinitas possibilidades e intermináveis transições, cada átomo acaba
adquirindo sempre um total equilíbrio. Em qualquer lugar do universo todos os
átomos da mesma “espécie” são sempre iguais. Vimos também que os átomos se
atraem mutuamente e “casam” formando moléculas e que estas moléculas também se
atraem mutuamente, interagindo entre si até formarem células. A mesma lógica
que domina o átomo também domina a célula. As unidades particulares existem,
mas apenas o conjunto dá-lhes significado ou sentido. Como no átomo, também na
célula as unidades são permanentemente substituídas, porém, cada unidade que
“morre” deixa outra no lugar para que “o todo” da vida seja preservado. Também
as células, embora autônomas, de alguma forma percebem que, em conjunto, a vida
é melhor preservada e de qualidade “superior”. Esta mesma sabedoria ecológica
se estende cada vez mais até dar origem a espécies vivas as mais diversas. Em
nenhum momento estas espécies deixam de depender umas das outras, nem de
cooperar umas com as outras. A vida de cada unidade é preservada na medida em
que as unidades permanecerem interconectadas entre si e com o meio envolvente.
Até o momento crucial em que nasce um ser tão interconectado que se conscientiza
a si mesmo, adquirindo a capacidade de destruir a teia que o envolve....ou
levá-la a uma qualidade de vida ainda mais elevada.
A fonte ou a base física da religiosidade
humana pode estar nesta consciência fundamental do ser humano que se percebe a
si mesmo como um ser relacionado, e que apenas sustenta sua qualidade de vida
em cooperação mútua? Não sabemos, mas a nova cosmovisão ecológica tende a
responder afirmativamente. Diante do permanente desafio de sua qualidade de
vida, humanitária e planetária, o ser humano percebe, a cada momento, “sinais”
de destruição ou construção. Percebe-se pessoalmente envolvido no processo e,
diante do fracasso pessoal, sua espiritualidade lhe mostrará a necessidade de
conversão, como também a necessidade de retomar a missão que lhe cabe.
Percebendo-se envolvido também numa grande teia ou rede humanitária e
planetária, todo ser humano descobrirá igualmente incontáveis “sinais” de
valores, qualidades e alegrias a serem preservados carinhosamente. Sua
espiritualidade lhe dirá que, sim, existem verdades e princípios que merecem
ser pregados, uma Doutrina à qual se deve ser fiel. Em fim, percebendo-se um
nada ao qual a vida oferece tantas alegrias profundas – como também dores sem
igual -, a espiritualidade de todo ser humano o leva a acreditar em algum
Espírito Superior, doador gratuito de tudo isso, ou, se não chegar a isso, em
alguma força espiritual que o leva a comprometer-se com alguma forma de ética
humanitária e eco-planetária. É este o conteúdo básico do sacrário pessoal de
toda a humanidade.
IV
ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA E PERSPECTIVAS PASTORAIS
4.1
Respeito profundo pela pluri-religiosidade
A cosmovisão ecológica
traz um profundo respeito por qualquer tradição religiosa, a começar pela nossa
própria. Não apenas pela religiosidade cristã como a entendemos hoje, mas
também por nossas tradições religiosas do passado. Ainda que rejeitemos o
“dogmatismo”, dentro de uma espiritualidade realmente ecológica nenhuma
doutrina ou tradição religiosa do nosso passado se tornou verdadeiramente
“ultrapassada”. O pensar da Igreja segue a mesma lógica da natureza onde, a
cada momento, tudo faz sentido, mas, ao mesmo tempo, tudo é transitório. Tudo
está sempre em movimento e em busca de um novo equilíbrio. Cada dogma pronunciado,
ou cada tradição religiosa que se firmou em determinado lugar, teve seu sentido
muito específico para aquele momento ou para aquele lugar. Na busca por uma
qualidade de vida melhor representou uma riqueza imperdível e um legado para o
futuro. Ainda que, em outra época ou em outras circunstâncias, a formulação do
dogma ou a expressão de determinada espiritualidade necessite de uma nova
roupagem, algo do seu valor essencial permanece. Não acreditamos que se possa
fazer com muita facilidade analogias com o mundo quântico, mas os especialistas
afirmam que, na microfísica da matéria, existe uma “memória quântica”. Cada
elétron, para chegar ao seu novo equilíbrio, leva em conta a memória de todo o
seu passado. Também na bioquímica da vida, o novo que surge tem sempre suas
raízes nos caminhos percorridos no passado. Se somos todos e todas do mesmo “pó
da terra” e parte da mesma natureza, por quê não dar valor ao nosso próprio
passado?
Em especial a cosmovisão ecológica nos
leva a respeitar profundamente as religiões que nos são estranhas. Todas as
culturas e tradições religiosas exprimem a mesma dinâmica da vida, a busca
coletiva por maior qualidade de vida, por “vida em abundância” (Jo 10,10). As
perspectivas pastorais mais promissoras hoje talvez provenham da assim chamada
“teologia do pluralismo religioso”. Já
vimos que a espiritualidade da missão recebeu diversas tonalidades no decorrer
da história. Nas décadas anteriores ao Concílio Vat. II, com base numa maior
democratização dos avanços científicos em áreas como filosofia, teologia,
antropologia e as ciências naturais em geral, a concepção de missão muda
radicalmente. Nas Igrejas Cristãs européias surge um forte movimento ecumênico
que busca superar a divisão cristã interna, além de se posicionar de forma mais
benevolente diante das religiões não-cristãs. Na Lumen Gentium, o Concilio
distingue entre Igreja Católica e Igreja de Cristo. O tradicional adágio “fora
da Igreja (Católica) não há salvação” é substituído por “sem Jesus Cristo não
há salvação”.
Após o Concílio, a palavra-chave na
espiritualidade missionária é implantatio
Ecclesiae: a Igreja de Cristo, com sua própria força convincente, deve
estar presente no mundo inteiro, mas com grande respeito pela liberdade
religiosa. O teólogo católico, Karl Rahner (†1984) começa a defender, em
oposição ao exclusivismo teológico tradicional, um “inclusivismo teológico”,
afirmando que, nas religiões não-cristãs, pode ser encontrado um “cristianismo
anônimo” que também salva. Mas a nova sensibilidade ecumênica não pára neste
ponto. O teólogo suíço, Hans Küng, polemizará com Rahner dizendo que sua
teologia era demasiadamente Cristocêntrica. Jesus não pregou a si mesmo. Pregou
o Reino de Deus, ao mesmo tempo já presente e a ser construído. O inclusivismo,
na opinião de Küng, era uma forma disfarçada de exclusivismo, pois a salvação é
entendida ainda como uma propriedade exclusiva do cristianismo. A nova
espiritualidade missionária que surge é a do chamado “otimismo soteriológico”
que vê força salvífica em todas as religiões. Esta espiritualidade
macroecumênica é filha legítima da cosmovisão ecológica. Na lógica desta
cosmovisão, cada parte contribui com a qualidade de vida, a inteireza ou a
coerência de um todo e desaparecem de vez as verdades únicas. Cada tradição
teológica e espiritual traz a sua indispensável contribuição. O pluralismo
religioso de fato passa a ser um pluralismo de direito. A lógica não é mais de
exclusão, mas de inclusão.
A Cúria Romana vê esta evolução com
grande preocupação. O Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, J.
Ratzinger, em Dominus Iesus (2000), no
22, ainda declara que as outras denominações religiosas se encontram,
objetivamente, “numa situação gravemente deficitária se comparada com a
daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação”. Talvez seja
mesmo a função específica da Cúria, em meio a tantas novidades teológicas, ser
um baluarte de defesa para que não se percam as riquezas tradicionais da
espiritualidade cristã. Todas elas, como dissemos, têm seu sentido específico.
Mas o ponto é exatamente este: a riqueza está no seu sentido, não na sua
formulação histórica. Numa célula viva, qualquer que seja, existe uma organela
de “reciclagem”. Nada se perde, tudo se recicla. Com suas posturas dogmáticas,
a Cúria mais perde do que ganha. O teólogo de Sri Lanka, Tissa Balasuriya,
acusará a Igreja Católica de um “complexo de superioridade religiosa”, e o
teólogo americano Paul Knitter afirmará que a busca por uma libertação humana integral
– política, econômica, cultural e ecológica – é uma tarefa grande demais para
que seja assumida por uma única nação, cultura ou religião. É preciso, diz ele,
manter uma “polaridade dinâmica” em processo permanente de fecundação mútua.
Tudo isso é cosmovisão ecológica em estado puro. “Overdoses dogmáticas”, porém,
não são privilégio do Vaticano. Também nos nossos seminários e conventos e nos
mais diversos centros de espiritualidade cristã é preciso diversificar com
urgência as nossas fontes de oração e meditação. Fazendo uso apenas de Bíblia,
Ofício Divino e livros teológicos, a overdose tende a se manter e aquilo que,
pejorativamente, às vezes é chamado de “espiritualidade de capela” pode
transformar-se numa camisa-de-força. Nós não temos nada contra uma
espiritualidade de capela, mas é fundamental ampliá-la com o estudo-meditação
das ciências naturais para perceber quais as infinitas possibilidades que a
Vida oferece e como superar uma espécie de “pastoral autista” que ainda nos
caracteriza.
Ficamos
agradavelmente surpreendidos com a proposta de uma nova lógica para o diálogo
inter-religioso, a do “terceiro incluído”, apresentada por Gilbraz de Souza
Aragão e Maria Clara Lucchetti Bingemer em Teologia,
Transdisciplinaridade e Física, REB
263 e 264/2006. Ainda são raras as tentativas de se buscar na física
moderna uma nova fundamentação para o pensar e o agir da Igreja. Na lógica do
terceiro incluído, duas verdades aparentemente antagônicas podem gerar, por
assim dizer, “uma nova verdade mais verdadeira”. De fato, na busca coletiva por
“vida plena”, por uma “verdade” que possa ser satisfatória para todos/as,
nenhum ponto de vista deve ser desprezado. Pessoalmente, no lugar do conceito
de terceiro incluído, preferimos o conceito de “sobreposição”, mais comum nos
autores quânticos. Em seu livro O ser
quântico Danah Zohar nos dá uma descrição de “relacionamento quântico” que
caracteriza seres humanos. Na lógica mecânica de Isaac Newton (†1727), as
famosas bolas de bilhar jamais se sobrepõem, mas entre seres humanos, guiados
pela “eco-lógica” de um cérebro quântico, as sobreposições são constantes. De
cada relacionamento social saímos, de alguma forma, renovados. E quanto mais
amorosas as relações, mais ricas as sobreposições....e mais “resilientes” –
como na natureza – contra adversidades. O teólogo Schillebeeckx (†2009) já
dizia que, sob ponto de vista religioso, a força coletiva das religiões vale
mais do que a força de uma só, sendo isto válido também para o cristianismo. É
da sobreposição de todas as verdades parciais, sem limites de espaço e de
tempo, que surge a “verdade evolutiva”, na feliz expressão de J. B. Libânio.
Na pastoral do ecumenismo podemos também
aplicar o importante conceito de “simbiose” do qual damos uma descrição detalhada
no artigo introdutório a este tema das novas perspectivas pastorais. A longa
convivência com a cosmovisão antropológica, com sua supervalorização da razão
humana, nos deu a sensação de sermos seres “acima” da natureza. Na verdade
somos parte da natureza e seria muito estranho não termos dentro de nós a mesma
dinâmica que a caracteriza. Analogamente ao metabolismo biológico possuímos uma
espécie de “metabolismo espiritual”, afirma o teólogo Felix Wilfred. A pastoral
da pluri-religiosidade – na verdade uma nova espiritualidade – representa a
lenta digestão da humanidade em direção à vida plena desejada por J. Cristo.
Nada impede a humanidade de alcançar o sonho comum por maior qualidade de vida
após romper com o passado milenar dos isolamentos dogmáticos. Para o teólogo
jesuíta de Sri Lanka, Aloysius Pieri, a pluri-religiosidade gera efeitos
simbióticos de unicidade quando uma religião enriquece a outra com sua “memória
histórica”. É preservando a riqueza da nossa própria Tradição, mas mantendo-nos
abertos ao fluxo de energias espirituais do meio envolvente, que podemos
crescer espiritualmente. Jon Sobrino já dizia que, no diálogo inter-religioso,
“mais valem os máximos verdadeiros do que os mínimos comuns”. Cabe à pastoral
da Igreja - das Igrejas! – conduzir,
amorosamente, este processo. A pastoral não está sem rumo, como muitos afirmam.
Apenas há dificuldade para enxergá-lo com o desaparecimento das verdades
únicas. O maior potencial de unicidade, hoje, encontramos no incentivo à
espiritualidade da ética humanitária e eco-planetária. Captando o sentido desta
nova espiritualidade, Leonardo Boff lembra a expressão significativa do mestre
yogui do Brasil, Hermógenes, em Canção
Universal, Record, Rio, 1991: “Pedi a bênção a Krishna e o Cristo me
abençoou. Orei ao Cristo e foi Buda que me atendeu. Chamei por Buda e foi
Krishna que me respondeu”.
4.2
Por uma pastoral que dê acolhida à emoção
A cosmovisão ecológica clama por uma
integração entre razão e emoção. Nos últimos cinqüenta anos houve uma guinada
pastoralmente muito significativa. A Nova Teologia da fase pré-conciliar
submeteu não apenas a teologia aos critérios da razão e da modernidade, mas
também as tradições religiosas do povo cristão. Na Europa, e no mundo ocidental
em geral, o cenário comum na espiritualidade católica era: um catecismo muito
bem decorado, mas não questionado e sem fundamento bíblico; uma prática muito
fiel dos ritos litúrgicos prescritos, mas sem preocupação em entendê-los ou
participar dos mesmos; uma observância rigorosa dos preceitos morais, em
especial os sexuais, mas muito em função do medo de um castigo eterno; um
desprezo profundo pelos protestantes e outras denominações religiosas em geral,
sem sentir necessidade de saber das razões; participação civil apenas em
organizações – e partidos – onde tremulava orgulhosamente a bandeira católica
do Vaticano, nem que fosse uma simples fanfarra municipal.
Depois da II Guerra Mundial, juntamente
com uma ampla modernização econômica com grande distribuição de riquezas, em
poucas décadas a espiritualidade católica mudou com muita rapidez, surgindo um
novo cenário: um catecismo pouco valorizado e uma esperança generalizada em
renovação bíblica; uma liturgia enxuta, em vernáculo, com mais comentário,
menos mística, e um clima generalizado de renovação; um “libera geral” na
moral, com desprezo pelas ultrapassadas exigências do clero; uma convivência
crescentemente amigável – ou indiferente – com os não-católicos e a aceitação
tranqüila de times de futebol “mistos” antes inimagináveis. O Concílio Vat. II
foi realizado em meio a estas transformações já em curso e apenas as acelerou.
Se tivéssemos que resumir o que aconteceu nestas poucas décadas numa só
palavra, diríamos: a vida eclesial se “racionalizou”. Foi para a lata do lixo
tudo que não tivesse fundamento na nova cosmovisão antropológica.
No entanto, com perdão para a
simplificação, o ser humano não é um ser racional, mas emocional. Ao priorizar
a dimensão racional, a cosmovisão antropológica, por assim dizer, cometeu um
“equívoco antropológico”. Quando vinte e dois jogadores de futebol, durante uma
hora e meia, correm atrás de uma bola e quatro bilhões de pessoas ficam
grudadas à televisão, como acontece num campeonato mundial, não é porque ali
acontece algo de profundamente racional. O que prende o mundo ali é pura
emoção. Analise o dia a dia das pessoas – e de si próprio/a – e descobrirá que
é sempre assim: não havendo emoção, não interessa. Os neurobiólogos Humberto
Maturana e Fransisco Varela, citados no artigo introdutório, chamam o fenômeno
biológico da auto-organização de “auto-poiese”. A palavra parcial “poiese” tem
a mesma raiz grega de poesia. A vida tem alma de poeta. Não segue códigos
racionais, mas, criativamente, vai em busca do que emociona, do que atrai, do
que dá prazer. Elocuções racionais, especialmente sobre o longo prazo, não
fazem parte da nossa herança biológica. Fôssemos realmente seres racionais, o
mundo não poderia estar como está. Nossa atual capacidade de raciocínio e
auto-consciência é tão recente que, caso espremêssemos todo o tempo da evolução
em uma única hora, ela surgiu apenas nos últimos segundos do último minuto. Não
tenhamos dúvida. O que nos domina não é a razão, é a emoção. Faltando emoção à
nossa espiritualidade, ela morre. E isso é de vital importância para a nossa
ação pastoral. Não foi a Teologia da Libertação que empolgou o continente, mas
sua espiritualidade. Foi a emoção, a “mística” das CEB´s que deu um novo rosto
à Igreja da América Latina.
Hoje está surgindo um novo consenso: a
emoção, infelizmente, atingiu apenas pequena parte da comunidade cristã
católica. Dos pobres, sim, mas apenas aqueles ou aquelas que tiveram o
privilégio de “entender e participar da caminhada”. Apenas as Igrejas
Evangélicas conseguiram envolver realmente as massas populares e este é um dado
de alta significância pastoral. Diante do fenômeno, nossa Igreja está
perigosamente dividida. De um lado uma Igreja comprometida, nos moldes da
Teologia da Libertação, que, no entanto, não consegue envolver nem a classe
média nem as massas populares. Do outro uma Igreja, em ascensão, que reage à
modernidade racional terceiromundista e, corretamente, busca envolver a
população pela emoção, mas, alcançando melhor a classe média, tem medo de
apresentar o verdadeiro rosto de Jesus, o Jesus libertador dos pobres e
oprimidos. Também esta Igreja apresenta dificuldades para, efetivamente, chegar
às massas populares. De alguma forma estas duas Igrejas, a Igreja da
Libertação, mais Reino-cêntrica, e a Igreja Carismática, mais Espirito-cêntrica,
hão de encontrar-se numa postura pastoral mais amadurecida. A lenta imposição
da cosmovisão ecológica – provavelmente - abrirá o caminho.
Mais acima caracterizamos a
espiritualidade da cosmovisão ecológica como “a espiritualidade da ética
humanitária e eco-planetária”. Esta espiritualidade tem a capacidade de
emocionar e empolgar a população? Na verdade ela já é uma emoção global. Talvez
não da mesma forma como pode empolgar uma religião mágica que oferece milagres
e curas espetaculares em cada esquina. Ainda que o Espírito opere “milagres”,
não são daquele feitio, e não podemos, demagogicamente, entrar naquela
proposta. Mas todas as religiões têm no seu núcleo central uma forte
preocupação humanitária. Hoje se acrescenta a ela a preocupação planetária.
Talvez não exista, nos nossos dias, uma emoção mais forte do que esta. Ela
brota, de fato, das próprias raízes materiais e biológicas da existência
humana. A cosmovisão ecológica nos convida a implementá-la de todas as formas
possíveis.
4.3
Atenção à classe média secularizada
Resta abordar um ponto pouco presente no
atual panorama da reflexão pastoral: a espiritualidade da classe média
secularizada. Fazendo do compromisso com os pobres e marginalizados o eixo
central e exclusivo da mensagem e da espiritualidade de Jesus, algumas
vertentes da Teologia da Libertação transmitiram a idéia de que, “do outro lado
dos excluídos”, não existe espiritualidade e, muito menos, cristianismo.
Décadas de leitura da realidade na ótica da “teoria da dependência”2,
que ressaltou o abismo entre dominadores e dominados, ricos e pobres, fez com
que grande parte da Igreja Latino-americana visse na “inserção” no meio dos
pobres a única opção espiritual justificável. Com isto a classe média-alta
perdeu toda respeitabilidade e ficou, de fato, “excluída” da atenção da Igreja.
A cosmovisão ecológica nos faz olhar para este desafio pastoral de grande
atualidade com outros olhos. Antes de comentá-lo gostaríamos de retratar um
exemplo concreto que consideramos significativo. Como no artigo anterior
apresentaremos os dados em ordem cronológica:
Entre
1974 e 1987, sessenta e três das maiores empresas, entre nacionais e
internacionais, depositaram, irregularmente, quase meio milhão de toneladas de
produtos químicos tóxicos num terreno rural, na divisa dos municípios paulistas
de Santo Antonio de Posse e Holambra, área metropolitana de Campinas. Avançando
pelos lençóis freáticos, uma perigosa “pluma tóxica” começou a ameaçar todas as
águas da grande Bacia Hidrográfica do rio Piracicaba (4.5 milhão de habitantes).
Em
1988 é instaurado pelo município de SAP uma Ação Civíl Pública contra o aterro
e o dono do terreno, em 1995, é condenado a uma indenização de R$90.000.000,00.
Não paga e fica por isso mesmo até hoje.
Em
Agosto de 2000, a recém-criada ONG ambiental Suprema de Holambra, da qual
participamos, assume o caso e apela ao CAO (Centro de Apoio Operacional) do
Ministério Público Estadual. O MP Estadual, em março de 2001, instaura o
Inquérito Civil 01/01 contra as empresas depositárias. É constituída uma
Comissão Mista entre MP, CETESB (órgão fiscalizador do Estado) e empresas
depositárias. A multinacional suíça CSD Geoklock é contratada, por conta das
empresas, para tomar medidas emergenciais e realizar amplo diagnóstico.
Em
Junho de 2001, tendo em vista uma maior pressão popular, a ONG Suprema e a
Câmara Municipal de Holambra, onde somos vereador Presidente da Comissão de
Meio Ambiente, realizam a 1a Audiência Pública, com a presença de
ONG´s e Imprensa locais e regionais. É constituída com as Câmaras Municipais
dos municípios mais atingidos, a CIAQUIM (Comissão Intermunicipal de
Acompanhamento do Aterro Químico Mantovani).
Em
Setembro de 2001, quarenta e oito empresas assinam com o MP o 1o TAC
(Termo de Ajustamento de Conduta) onde se comprometem com um rateio de despesas
para controle e recuperação da área. As demais empresas não assinantes são
condenadas, cada uma, a uma multa diária de R$5.000,00.
A
CIAQUIM, em conjunto com a Suprema e as ONG´s ambientais da Região, mais o
apoio de Comissões da Assembléia Legislativa do Estado e do Congresso Nacional,
realiza novas Audiências Públicas nos municípios de Santo Antonio de Posse (Julho
de 2002), Cosmópolis (Agosto de 2003) e Artur Nogueira (Fevereiro de 2005), com
participação crescente da população e sempre com forte presença de TV e
Imprensa.
Em
Março de 2003, a CETESB, antes mais favorável às empresas, sob forte pressão da
população, não aceita mais as propostas de remediação apresentadas pela CSD Geoklock,
que está sob pressão das empresas. Surgem diversos “aditamentos” ao 1o
TAC que obrigam as empresas a novas medidas de controle e remediação da área, a
altos custos. Enquanto isso, a pluma tóxica, apesar das “barreiras hidráulicas”
levantadas, avança. Em Setembro de 2004 a CSD Geoklock apresenta novo
diagnóstico e nova proposta de remediação. A CETESB, mais uma vez, a rejeita
parcialmente.
Em
Dezembro de 2004, o Coletivo Nacional “Defensoria das Águas”, fruto da Campanha
da Fraternidade de 2004, assume, em nome da CNBB, o “caso Mantovani”. Adotando
uma estratégia anarquista de extrema radicalidade, passa por cima de toda a
organização local e regional, considerada lenta, corrupta, ineficaz e
não-popular, e apela à intervenção do Ministério Público Federal. A população
do entorno do aterro cria até certa expectativa e apóia, mas todos os órgãos
envolvidos se sentem desaforados e cortam qualquer diálogo. Em curtíssimo
prazo, os MP´s Estadual e Federal se entendem perfeitamente.
Em
Fevereiro de 2005, a CETESB emite parecer técnico sobre o “Relatório Caso Mantovani”
da Defensoria das Águas, comprovando o blefe e colocando em total descrédito as
análises de água e os laudos técnicos apresentados. Pouco depois, em audiência
na sede do MP Estadual, o representante da Defensoria apresenta, aos gritos,
sua denúncia pública contra a corrupção do MP. Este nem sequer responde e, de
lá para cá, não se ouve mais falar da Defensoria. Para a “causa” de um dos
casos mais emblemáticos do Estado e da Federação, o prejuízo ocasionado pela
Igreja foi grande.
De
2005 a 2007, o caso Mantovani, de extrema complexidade e gravidade, segue seu
curso “normal” com os MP´s cedendo novos aditamentos e as empresas empurrando
com a barriga. As entidades locais, agora com o apoio da CETESB, clamam pela
retirada dos depósitos efetuados. Em 2008 as empresas assinam com o MP o
compromisso oficial de dar início à retirada das primeiras 15.000 toneladas.
Uma vitória da população como poucas vezes se concretiza na luta contra o
altíssimo poder de fogo de tantas das maiores empresas do país.
A
experiência acima relatada não teria sido possível sem a iniciativa e o apoio
permanente da ONG ambiental Suprema, de atuação supra-partidária e
supra-religiosa. Um pequeno grupo de voluntários, bem formados, todos/as
plenamente ocupados/as profissionalmente. Nenhum membro da ONG tem efetiva
participação em alguma Igreja. Religião e política não estão em pauta. Reina um
clima típico de “secularização”. Participamos da ONG como padre, mantendo, por
opção, dedicação exclusiva à atividade política como vereador, mas ajudando
ocasionalmente na Paróquia como auxiliar. Em nenhum momento vimos qualquer
sinal de apoio da Paróquia ou da Diocese, com exceção de um evento passageiro
ligado à Campanha da Fraternidade.
A impressão mais forte que coletamos dos dez
anos de participação nesta ONG “secularizada” é que, ali, aconteceu algo de
profundamente religioso. Todos os membros da ONG se dedicaram de corpo e alma a
uma “causa” que os próprios participantes teriam dificuldade em definir. Além
do “caso Mantovani” aconteceram inúmeras outras atividades de conscientização
da população local, plantio permanente de árvores, cartilhas escolares com
envolvimento dos alunos, ações por reciclagem municipal, uma legislação
municipal completa, seminários e encontros regionais, etc., etc. Uma das mais
recentes preocupações se referia ao “consumo consciente”, tendo em vista o
aquecimento global. Conclusão: uma “emoção” para salvar a Vida do planeta como
ainda não vimos em nenhuma das nossas Comunidades de Igreja. Uma clara demonstração
da nova cosmovisão ecológica que, uma vez interiorizada, produz uma
espiritualidade ecológica que os altos muros das instituições eclesiásticas
ainda têm dificuldade em perceber e apreciar.
Trata-se de um equívoco pensar que “do
outro lado” dos pobres não existe espiritualidade. A cosmovisão ecológica não
usa o olhar dualista. A “espiritualidade secularizada” sem dúvida é outra. O
“ponto de vista”, normalmente, não é o do pobre e dificilmente será. Mesmo
assim há, freqüentemente, grande preocupação com justiça social,
desenvolvimento sustentável e superação de estruturas excludentes. Religiosidade
é um traço inerente a qualquer ser humano. Cabe a todos nós “re-descobrir” os
sinais de sua presença.
Notas:
* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote,
formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Ver o currículo na
introdução ao tema em foco (VP No 278/2011).
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
1. O presente artigo dá
continuidade aos artigos A Pastoral em
Novas Perspectivas I e II, publicados na VR Nos 278 e 279/2011.
2. Para quem quer
conhecer melhor esta importante inflexão no pensamento latino-americano,
aconselhamos ler o livro de Octávio Ianni, Imperialismo
na Am. Latina, Ed. Civilização Brasileira S. A., 1974, Rio de Janeiro.
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