MAIO DE 1968: O SONHO QUE NÃO
VINGOU
Nicolau João Bakker, SVD*
O
presente artigo não pretende apresentar uma análise acadêmica dos históricos
acontecimentos de Paris, e da França em geral, no mês de maio de 1968. Mesmo
fazendo referência a fatos, sob ponto de vista sociológico e político
importantes para aquele momento, nossa intenção é apenas colocá-los em sua perspectiva
pastoral: o que significaram para a ação concreta da Igreja na época em que
pegaram de surpresa a maioria dos analistas, e o que ainda podem significar
para a ação pastoral da Igreja hoje.
Introdução
Quando
a TV brasileira, em maio de 1968, trouxe as primeiras imagens das impressionantes
“barricadas de Paris”, nós, padres jovens “do outro lado do mundo”, ficamos
surpresos, mas os fatos não nos pegaram inteiramente desprevenidos. Por aqui
estávamos então em plena ditadura militar. Com os meios de comunição fortemente
censurados não era fácil captar os eventos nas suas devidas proporções. Na
época, eu fazia parte da relativamente pequena, mas crescente, faixa do clero
que se colocava em aberta oposição ao governo militar. Este governo fazia
questão de apresentar os acontecimentos de Paris como mais uma prova dos
avanços comunistas no mundo inteiro. O “terrorismo internacional” estaria
também contaminando o pacífico povo brasileiro, e estava mais do que na hora de
o governo militar – a “reserva moral” da nação – impor um breque a esta nefasta
ameaça.
Muita gente da Igreja ficou, de fato,
assustada, não apenas com a ameaça comunista, mas também com o “descalabro
moral” em curso. Onde se viu aquele comportamento hippie, aquela loucura jovem
do rock and roll, e agora aquelas mulheres “moderninhas” jogando seus soutiens
nas fogueiras em plena rua! A tal da Modernidade trouxe mesmo a barbárie! Entre
nós, embora em graus bem menores, os mesmos fenômenos de Paris se repetiram. A
América Latina sempre preservou fortes laços com a cultura europeia. Estudar na
Sorbonne significava, também para a elite brasileira, o “top” em termos de
status social e intelectual. Nossa juventude universitária, em certa medida,
vivia o clima de Paris, mas a imensa maioria da população brasileira nem se
dava conta do que realmente estava acontecendo. Naquela altura, eu fazia minhas
primeiras experiências pastorais no Vale do Ribeira, a região mais pobre do
Estado de São Paulo, por alguns especialistas apelidada de “inferno verde” por
seu clima quente e úmido e suas matas fechadas muito parecidas com a Amazônia.
Na beirada dos rios acompanhava as comunidades “caiçaras” – de descendência
indígena – e me perguntava: que tipo de pastoral devo fazer aqui para ela estar
em concordância com as exigências conciliares?
I
Lembranças do inferno
Visitando
os povoados ribeirinhos, pouco ou nada percebia das mudanças em curso. Voltando,
porém, à casa paroquial, na pequena cidade litorânea de Iguape, havia a
televisão e os jornais. Havia também a renomada Revista Eclesiástica Brasileira
(REB), de circulação nacional, onde os mais destacados teólogos e biblistas da
Am. Latina manifestavam sua opinião, em geral clamando por “renovação”. E havia
ainda algum livro que, ocasionalmente, me caía às mãos. Desde o noviciado e a
filosofia, feitos no Verbo Divino, na Bélgica, a “Nova Teologia” europeia havia
grudado na minha alma. Schillebeeckx já estava em destaque e ecos cada vez mais
fortes vinham da “Escola de Saulchoir”, dos dominicanos franceses Congar,
Marie-Dominique Chenu, e outros. Diante dos votos precisava tomar uma decisão.
Não queria dedicar minha vida a uma Igreja parecida com um prédio velho caindo
aos pedaços. Após o 18º dia do famoso “retiro de trinta dias”, de Santo Inácio,
fomos todos falar com nosso mestre espiritual: “Chega, assim não dá. Queremos
outra coisa!” E não terminamos o retiro. Habituei-me a “meditar” então a partir
do que os melhores teólogos daquele tempo tinham a oferecer. Até hoje mantenho
o mesmo hábito com absoluta fidelidade. O “inferno” pode ser dos mais brabos,
mas é preciso manter o foco no mundo a ser salvo.
Éramos
então como aqueles jovens católicos do Quartier Latin, em Paris, que, em maio
de 1968, ocuparam a igreja e disseram ao pároco: “Chega de missa; não basta a
língua vernácula, queremos debater o país que queremos!” Fiz a teologia em São
Paulo, pois minha família emigrou para o Brasil em 1958 e eu, em 1960, segui
atrás. Organizamos naquela metrópole, - meio clandestinamente, pois a tradicional
disciplina germânica ainda imperava -, o “II Congresso dos Estudantes de Teologia
da cidade de São Paulo”. Também nós queríamos uma outra Igreja, mais popular,
mais pé no chão, e mais voltada para a sociedade ao redor. Assim como os
milhares de estudantes franceses que clamaram por profundas mudanças na
educação, e os dez milhões de trabalhadores que, no mês de maio, ocuparam ruas
e fábricas, assim nós também clamamos por mudanças profundas na Igreja e na
Sociedade. Certo dia, já atuando como padre no tal “inferno verde”, um padre
holandês, já mais idoso, na reunião mensal da região pastoral – hoje a Diocese
de Registro SP – nos disse: “Proponho a gente se reunir, todo mês, por um dia
inteiro, nós, padres, irmãs e leigos; o Concílio propõe grandes mudanças, e jamais
vamos avançar sem uma forte pastoral de
conjunto”. Hoje, olhando para trás, reconhecemos: foi a partir deste dia
que começou a surgir, no Vale do Ribeira, a talvez primeira Diocese brasileira
inteiramente estruturada em pequenas unidades que, poucos anos depois, seriam
chamadas “Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)”. O céu e o inferno têm
afinidade com a mesma lógica teológica!
II
Sonhos da juventude
Não creio que o levante popular
francês, com reflexos no mundo inteiro, tenha tido aquele significado profundo –
e único – que muitos pensadores lhe atribuem. Ainda hoje, alguns dos nossos
teólogos veem nele o “momento axial” que pôs fim à Modernidade e deu início à
Pós-Modernidade. Em parte, para Europa, talvez seja. Acontece, porém, que os
mesmos fenômenos, de tempos em tempos, se repetem em todos os países. As
grandes utopias da Modernidade teriam morrido juntamente com Martin Luther King
e Che Guevara (1967), e com o levante de Paris. Será? A irrefreável onda de
secularização pôs fim à espiritualidade humana e à utopia da “salvação celeste”
prometida pelo cristianismo? Não parece. Novas espiritualidades pipocam em
todos os cantos. A utopia da “salvação terrestre”, prometida pelo marxismo,
acabou com a queda do muro de Berlim? Também não parece. Morreram Marx, Mao Tse
Tung e Fidel Castro (quase), mas grande parte da juventude e da
intelectualidade mundial (e cristã) continua apostando num futuro socialista,
sem predomínio do capital, e o atual ateísmo militante está aí com sua promessa
de mais outra salvação terrestre. Finalmente, do outro lado, a utopia
capitalista com sua fé no progresso, na tecnologia, e na “riqueza das nações”,
prometida por Adam Smith (†1790), ela está morta? Tudo menos isto. Ainda
recentemente, Christine Lagarde, atual Diretora do Fundo Monetário
Internacional, apregoou sua fé no “capitalismo inclusivo”, a nova face “humana”
do mesmo sistema antropo e eco-fágico que de tão longa data conhecemos. Não, as
utopias não morreram. Os sonhos humanos continuam e continuarão presentes.
Deles, os protestos juvenis e as canções dos artistas da “contracultura” são
sua expressão mais palpável.
O que de tudo isso repercutiu entre
nós, pobres mortais do “terceiro mundo”? Para captar melhor o momento histórico
e adequar a nossa pastoral do Vale do Ribeira ao que a Igreja pós-Medellín
exigia de nós, fui estudar ciências sociais com os jesuítas em São Paulo.
Aprofundei-me na então muito em voga “teoria da dependência” da qual o
Documento da Conferência Episcopal de Medellín (1968) foi um indisfarçado eco.
Diziam os economistas da “Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe”
(CEPAL), criada pela ONU em 1945, que os países “periféricos” do terceiro mundo
giravam, como numa roda, em volta dos países desenvolvidos “centrais”, numa
eterna e firmemente consolidada “dependência” econômica, política e cultural,
sem chance para qualquer desenvolvimento autônomo. Era preciso sacudir este
jugo e tomar as rédeas do desenvolvimento nas próprias mãos! A Igreja da
América Latina, incentivada pelo Vaticano II e por Medellín, e empurrada também
pela forte renovação teológica e bíblica europeia, com base nesta teoria,
elaborou então, pela primeira vez na história, sua teologia própria, a da
“libertação”. Jesus, em nome do Deus da Misericórdia, veio oferecer “Vida
Plena” ao mundo, o “Reinado do Pai”, feito de relações justas e fraternas entre
pessoas e povos; uma teologia embebida de espiritualidade, com opção
preferencial pelos pobres e marginalizados. Surgiram assim as milhares de CEBs,
e, nelas, as dezenas de milhares de “grupos de rua”, confrontando a Palavra de
Deus com a realidade vivida. Surgiram assim também as inúmeras “Pastorais Sociais”
que, em seu conjunto, deram à Igreja do continente um rosto muito próprio.
Maio de ´68 não foi o estopim do
nosso entusiasmo pastoral nas doze paróquias do Vale do Ribeira – nove das
quais sob responsabilidade Verbita – onde então atuávamos, mas que o
fortaleceu, isto sim. Os eventos de Paris foram fruto de um clima mundial já pré-existente.
Havia a sensação generalizada que algo novo precisava e iria acontecer. O que, no meu entender, mais pesava na
balança não eram as maiores liberdades individuais , reivindicadas por todos, mas principalmente a
consciência de um contexto social e político sem perspectiva iminente de
solução. Sonho e pesadelo se mesclavam. O economista francês, Thomas Piketty,
em seu recentemente lançado livro O
Capital – no Século XXI, acaba de demonstrar, por meio de tabelas
praticamente incontestáveis, que, mesmo nos tão decantados “Trinta Anos
Gloriosos” dos países desenvolvidos (1945-1975), os 50% mais pobres da
população não tiveram acesso à farta mesa do rico, da qual o pobre Lázaro
apenas recebia migalhas. O que sacudiu Paris e o mundo foram, antes de tudo, os
trabalhadores explorados. Pelos cálculos, em 20 de maio, 10 milhões de franceses
estavam em greve geral. Enquanto, em junho de ´68, a “Primavera de Praga”
florescia, - Dubcek, contra o stalinismo, prometia dar ao socialismo uma “face
humana” -, em Rio de Janeiro aconteceu a histórica “passeata dos 100.000”, o
primeiro levante massivo contra a opressão militar. Pouco depois, porém, em
outubro, 1200 estudantes, realizando o 30º Congresso da UNE (União Nacional dos
Estudantes), foram presos em Ibiúna SP e a repressão se fortalecia, fechando o
Congresso. Sonhos humanos nunca se concretizam da noite para o dia. Enquanto
isso, no Vale do Ribeira, organizamos nossas “batidas” pastorais: sem levar em
conta fronteiras paroquiais e eventuais ciúmes clericais, fomos todos – padres,
irmãs e leigos/as – visitar os bairros periféricos das cidades e também os núcleos
mais distantes nas matas fechadas, visitando, no decorrer de três dias, as
casas e as roças, aonde o povo estivesse, e propúnhamos iniciar uma nova CEB,
com leigos e leigas assumindo as diversas tarefas, entre as quais o culto dominical,
com momentos certos para refletir, a partir da prática de Jesus, a realidade
local, regional e nacional. Coisas parecidas aconteciam em todo o Brasil. Em
toda a América Latina, a Igreja foi contaminada por um sonho juvenil.
III
A volta à realidade
Depois
da bebedeira vem a ressaca. Paris nos deixou uma eterna lição. Quando a
efervescência social, na França, estava no auge, o frustrado Presidente De
Gaulle, conforme relato do embaixador americano, teria dito: “O jogo acabou; em
poucos dias os comunistas estarão no poder”. Enquanto isso, entre os muitos
intelectuais marxistas, o pensamento era outro. Apenas um mês antes dos
acontecimentos, o “grande marxista”, Ernest Mandel, analisando a conjuntura
política do momento, afirmava em Londres: “Nada vai acontecer; os trabalhadores
franceses estão aburguesados e americanizados”. Na realidade, os dirigentes do
Partido Comunista Francês e da Confederação Geral dos Trabalhadores – todos
comodamente encastelados em suas burocracias oficiais – torciam pelo fim das
greves. Estava-se, então, no auge da economia capitalista pós-guerra e muitas
categorias de trabalhadores se beneficiavam dela. O movimento popular, de fato,
evanesceu tão rápido quanto começou. Em maio, De Gaulle se viu diante da
necessidade de dissolver a Assembleia Nacional e, um mês depois, nas novas
eleições marcadas, ele saiu mais fortalecido do que nunca! Sonhos são apenas
sonhos. Para torná-los realidade, um imenso e prolongado esforço coletivo –
espiritual e político – se faz necessário.
Algo muito parecido aconteceu
conosco aqui no Brasil (e no mundo em geral). Na tradição cultural do mundo
ocidental, tanto na judaico-cristã quanto na islâmica, religião e política,
Igreja e Sociedade, estão mutuamente implicadas, e não há como separá-las. Quanto
mais a Igreja “fugir” do mundo, mais ela colabora para manter o status quo em
que se encontra. No auge do governo militar, em pleno “milagre econômico” da
década de 1970, tanto a Igreja quanto a Sociedade, cada uma a seu modo,
sonhavam com uma “nova sociedade”, sem exclusão social. Após esforços coletivos
prolongados, lideranças religiosas, sindicais, universitárias e populares, em
2003, conseguiram emplacar, pela primeira vez na história do país, um governo
popular, elegendo o Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Foi a concretização
de um sonho efêmero. Mudou a governança política, mas não o frágil sistema político
do país, consolidado após longa história
de coronelismo político (cede-se o anel para não perder o dedo). Já em 2016, a
elite nacional retomou as rédeas nas mãos mediante um mal disfarçado golpe
parlamentar.
Tudo isso ocorreu não sem a
colaboração indireta da Igreja. Desde a década de 1980 sentimos por aqui a mão
pesada da Cúria Romana. Nossos bispos-profeta morreram e não foram
substituídos. A teologia da libertação foi duramente criticada, embora o Papa
João Paulo II, em 1986, após forte apelo dos bispos brasileiros, ainda se viu
forçado a declará-la “não apenas útil, mas também necessária”. Uma nova orientação
foi imposta aos seminários de teologia. Senti-o na pele quando dava minhas aulas
de Teologia Pastoral. Hoje, a maioria dos padres não incentiva mais a histórica
“caminhada das CEBs”. Também nossas pastorais sociais estão ao Deus dará. Nas
nossas Províncias Verbitas, o quadro não é muito diferente. Nossos muitos
missionários estrangeiros, vindos da Indonésia, da Índia e da África, conhecem
o belo momento histórico pelo qual a Igreja brasileira passou, mas não o
“vivenciaram” no dia a dia. Em geral acostumados com uma configuração eclesial
mais tradicional, não se sentem motivados a ir por aquele caminho, ou têm maior
dificuldade para implementá-lo. Será este o ponto fraco da nossa tão decantada
“interculturalidade”? Não basta a boa convivência comunitária; impõe-se também uma
real inserção na proposta pastoral da Igreja Local. Seja como for, fato é que,
também por aqui, como em Paris, o sonho não vingou e “voltamos à realidade”.
Por
que o sonho não vingou?
Talvez
este modo de ver seja radical demais. Sonhos, se não se realizam hoje podem
realizar-se amanhã. Interpretar fatos históricos não é uma tarefa simples.
Acostumados à nossa tradicional lógica binária, tendemos a querer encontrar
explicações simples ou únicas para realidades complexas. A nova consciência da
interdisciplinaridade das últimas décadas nos ajudou a ver que, diante das
pequenas e grandes realidades que nos envolvem, especialmente quando se trata
da “teia da Vida”, impõem-se as abordagens múltiplas. Durante mais de dois
milênios impôs-se a nós a “antropologia cultural”. O ser humano, dizia
Aristóteles, se distingue por sua alma racional. Na tradição semítica, o ser
humano é animado pelo sopro do espírito divino. Séculos de gnosticismo e
maniqueísmo, além de “escolasticismo”, deram ao ser humano uma alma “racional”
separada do corpo. E haja racionalismo e idealismo. O “cogito, ergo sum” de
Descartes veio apenas reforçar a tendência. Faltou o “novo olhar”, tão
insistentemente reclamado por Teilhard de Chardin (†1955). O ser humano não é apenas
razão e é preciso dar maior atenção à nossa origem física e bioquímica. O
antropólogo francês, Edgar Morin, tem falado de uma “brecha antropológica”. O
recente novo cérebro – o “córtex cerebral” – do “homo sapiens” fez com que
perdêssemos cada vez mais o nosso comportamento natural e instintivo. Nosso
atual cérebro nos possibilitou “criar asas” e, voando por cima da realidade,
imaginar e criar os mais diferentes mundos culturais. Frequentemente chamamos
de real o que, na verdade, é uma fantasia. Apenas agora, dando mais valor ao
que poderíamos chamar de “antropologia bioquímica”, descobrimos, como
recentemente o Papa Francisco nos lembrou, que “tudo está interligado”.
Sonhar, fantasiar, ou imaginar um
mundo ilusório, é fácil. Lidar com o mundo real é bem mais difícil. Estamos
sempre diante de contextos complexos, alimentados permanentemente por múltiplas
causas. Cada sociedade humana, como também cada ser humano, é uma “teia de
ralações”, uma rede interconectada de múltiplos nós. Não se concerta o indivíduo
sem concertar a sociedade, nem salvamos a sociedade sem salvar o meio ambiente
que a sustenta. Se está tudo interligado é no todo que devemos mexer. E esta é
a nossa grande dificuldade. Estamos todos presos, basicamente, a uma ação
local. Só nos resta esperar (e agir) até que as múltiplas consciências locais
possibilitem a mudança global. A vida levou quase quatro bilhões de anos para
chegar onde chegou. Não é um pouco ingênuo ou ilusório esperar em grandes
revoluções da noite para o dia?
A tão falada “Revolução Francesa”, a
de 1789, foi tão revolucionária assim? O mundo foi mesmo inundado de
fraternidade, liberdade e igualdade? E a Revolução Russa de 1917, ela realmente
abriu a porta do paraíso à classe operária? Todos sonhos que não vingaram, como
não vingou o sonho do levante de Paris. O livro de Robert E. Ornstein e Paul
Ehrlich New World New Mind: Moving Toward
Conscious Evolution, nos alertou para um dado muitas vezes esquecido.
Debaixo da quarta e última camada do nosso cérebro, a do córtex cerebral,
existe uma terceira camada que ainda influi poderosamente sobre o comportamento
humano. Trata-se do cérebro dos primatas. Não sujeitos a mudanças culturais, os
primatas, durante 60 milhões de anos, viviam sempre do mesmo jeito. Adaptados
ao seu nicho ecológico, viviam sempre nas mesmas árvores. Alimentavam-se,
procriavam e mantinham sua estratificação social sempre da mesma forma. Em fim,
mantinham, às vezes a ferro e fogo, os seus territórios e as suas “tradições”.
Esse primata ainda vive em todos nós. É difícil sair da nossa zona de conforto.
Ficamos felizes quando tudo fica como está. Vejam a nossa dificuldade.
Perguntaram ao renomado teólogo peruano, Gustavo Gutiérrez, se não achava
necessário um “Vaticano III”. “Que antes se cumpra o Vaticano II”, respondeu.
As revoluções com as quais sonhamos acontecem, mas não sem um longo (muito
longo) e árduo trabalho coletivo. Maio de 1968 foi um sonho. O nosso dia a dia,
coletivo, um dia há de concretizá-lo.
Conclusão
Aqui entre nós, na América Latina, o
clima geral do momento não se compara com a euforia pós-Medellín. Está mais
para o que um jornalista francês observou poucos meses após o elétrico maio de
1968: “os franceses estão morrendo de tédio”. Ainda assim, o trem não parou e
novos sonhos estão surgindo. Nossos teólogos e biblistas, em nenhum momento,
assumiram o que, no Brasil, foi chamado de “A volta à Grande Disciplina” (J.B.
Libânio). Na verdade, o foco da teologia da libertação apenas se ampliou.
Depois de absorver melhor o papel central da subjetividade humana (as questões
culturais, do gênero, etc.), acabou assumindo em sua plenitude também a questão
ecológica. Neste momento, a esperança maior, a meu ver, está depositada na
reflexão do expressivo grupo de teólogos e biblistas que propõem unir a
teologia latino-americana da libertação com a teologia mundial do pluralismo
religioso. A Comissão Teológica da “Associação dos teólogos e teólogas do
Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT)”, sob a coordenação de José Maria Vigil, Luiza
Tomita e Marcelo Barros, lançou recentemente a série de cinco livros,
intitulada “Pelos muitos caminhos de Deus”.
As “sementes” do Verbo, das quais Ad
Gentes falava, se transformaram em belíssimas flores. Da própria
antropologia humana brotam as irreprimíveis e riquíssimas espiritualidades que,
em seu conjunto, oferecem as melhoras esperanças de futuro. Pelo destaque que
os livros merecem vou citá-los, nas suas edições sucessivas: 1) Pelos muitos caminhos de Deus: Desafios do
Pluralismo Religioso e Teologia da Libertação; 2) Pluralismo e Libertação: Por
uma Teologia Latino-Americana Pluralista a partir da fé cristã; 3) Teologia
Latino-Americana Pluralista da Libertação; 4) Teologia Pluralista Libertadora
Intercontinental; 5) Para uma Teologia Planetária.
Os sonhos da humanidade nunca são
uniformes. Nas ruas de Paris se encontravam os anarquistas radicais da
esquerda, entre os quais o estudante Daniel Cohn-Bendit, então em grande
destaque. Mas havia também os ultra-radicais da direita, além das inúmeras
matizes intermediárias. Até hoje é assim, em todos os países. Quem levará este
mundo ao paraíso, à “Nova Jerusalém” do Apocalipse de São João? Provavelmente
estes sonhos, estas utopias humanas, nunca se concretizarão em sua totalidade.
Ainda assim, são da maior importância. As utopias nos indicam por qual caminho
seguir e elas fornecem a indispensável energia para não desanimar da longa
peregrinação. Acima de tudo, elas indicam os avanços pastorais a serem feitos
para que se concretize o Reinado do Pai, ou a “Vida Plena” sonhada por Jesus.
*Nasceu
na Holanda, em 1939. Fez noviciado e filosofia na Bélgica, e teologia e
ciências sociais em São Paulo, Brasil. Sua atuação principal esteve sempre
ligada à pastoral prática, rural e urbana. Por muitos anos atuou também no
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), em São Paulo, e deu
aulas de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia dos religiosos (ITESP/SP). De
2001 a 2008 atuou na política, como vereador, no Município de Holambra-SP. Nos
últimos anos tem trabalhado na paróquia svd, em Diadema SP. Escreve
regularmente em revistas pastorais de circulação nacional, além de prestar
assessorias diversas às CEBs e às Pastorais Sociais. Acesso aos artigos em artigospadrenicolausvd@blogspot.com; E-mail: nijlbakker@hotmail.com
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