quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Verbum 59/2018: Maio de 1968: O sonho que não vingou


MAIO DE 1968: O SONHO QUE NÃO VINGOU
Nicolau João Bakker, SVD*
                O presente artigo não pretende apresentar uma análise acadêmica dos históricos acontecimentos de Paris, e da França em geral, no mês de maio de 1968. Mesmo fazendo referência a fatos, sob ponto de vista sociológico e político importantes para aquele momento, nossa intenção é apenas colocá-los em sua perspectiva pastoral: o que significaram para a ação concreta da Igreja na época em que pegaram de surpresa a maioria dos analistas, e o que ainda podem significar para a ação pastoral da Igreja hoje.
Introdução
            Quando a TV brasileira, em maio de 1968, trouxe as primeiras imagens das impressionantes “barricadas de Paris”, nós, padres jovens “do outro lado do mundo”, ficamos surpresos, mas os fatos não nos pegaram inteiramente desprevenidos. Por aqui estávamos então em plena ditadura militar. Com os meios de comunição fortemente censurados não era fácil captar os eventos nas suas devidas proporções. Na época, eu fazia parte da relativamente pequena, mas crescente, faixa do clero que se colocava em aberta oposição ao governo militar. Este governo fazia questão de apresentar os acontecimentos de Paris como mais uma prova dos avanços comunistas no mundo inteiro. O “terrorismo internacional” estaria também contaminando o pacífico povo brasileiro, e estava mais do que na hora de o governo militar – a “reserva moral” da nação – impor um breque a esta nefasta ameaça.
            Muita gente da Igreja ficou, de fato, assustada, não apenas com a ameaça comunista, mas também com o “descalabro moral” em curso. Onde se viu aquele comportamento hippie, aquela loucura jovem do rock and roll, e agora aquelas mulheres “moderninhas” jogando seus soutiens nas fogueiras em plena rua! A tal da Modernidade trouxe mesmo a barbárie! Entre nós, embora em graus bem menores, os mesmos fenômenos de Paris se repetiram. A América Latina sempre preservou fortes laços com a cultura europeia. Estudar na Sorbonne significava, também para a elite brasileira, o “top” em termos de status social e intelectual. Nossa juventude universitária, em certa medida, vivia o clima de Paris, mas a imensa maioria da população brasileira nem se dava conta do que realmente estava acontecendo. Naquela altura, eu fazia minhas primeiras experiências pastorais no Vale do Ribeira, a região mais pobre do Estado de São Paulo, por alguns especialistas apelidada de “inferno verde” por seu clima quente e úmido e suas matas fechadas muito parecidas com a Amazônia. Na beirada dos rios acompanhava as comunidades “caiçaras” – de descendência indígena – e me perguntava: que tipo de pastoral devo fazer aqui para ela estar em concordância com as exigências conciliares?  
I Lembranças do inferno
            Visitando os povoados ribeirinhos, pouco ou nada percebia das mudanças em curso. Voltando, porém, à casa paroquial, na pequena cidade litorânea de Iguape, havia a televisão e os jornais. Havia também a renomada Revista Eclesiástica Brasileira (REB), de circulação nacional, onde os mais destacados teólogos e biblistas da Am. Latina manifestavam sua opinião, em geral clamando por “renovação”. E havia ainda algum livro que, ocasionalmente, me caía às mãos. Desde o noviciado e a filosofia, feitos no Verbo Divino, na Bélgica, a “Nova Teologia” europeia havia grudado na minha alma. Schillebeeckx já estava em destaque e ecos cada vez mais fortes vinham da “Escola de Saulchoir”, dos dominicanos franceses Congar, Marie-Dominique Chenu, e outros. Diante dos votos precisava tomar uma decisão. Não queria dedicar minha vida a uma Igreja parecida com um prédio velho caindo aos pedaços. Após o 18º dia do famoso “retiro de trinta dias”, de Santo Inácio, fomos todos falar com nosso mestre espiritual: “Chega, assim não dá. Queremos outra coisa!” E não terminamos o retiro. Habituei-me a “meditar” então a partir do que os melhores teólogos daquele tempo tinham a oferecer. Até hoje mantenho o mesmo hábito com absoluta fidelidade. O “inferno” pode ser dos mais brabos, mas é preciso manter o foco no mundo a ser salvo.
               Éramos então como aqueles jovens católicos do Quartier Latin, em Paris, que, em maio de 1968, ocuparam a igreja e disseram ao pároco: “Chega de missa; não basta a língua vernácula, queremos debater o país que queremos!” Fiz a teologia em São Paulo, pois minha família emigrou para o Brasil em 1958 e eu, em 1960, segui atrás. Organizamos naquela metrópole, - meio clandestinamente, pois a tradicional disciplina germânica ainda imperava -, o “II Congresso dos Estudantes de Teologia da cidade de São Paulo”. Também nós queríamos uma outra Igreja, mais popular, mais pé no chão, e mais voltada para a sociedade ao redor. Assim como os milhares de estudantes franceses que clamaram por profundas mudanças na educação, e os dez milhões de trabalhadores que, no mês de maio, ocuparam ruas e fábricas, assim nós também clamamos por mudanças profundas na Igreja e na Sociedade. Certo dia, já atuando como padre no tal “inferno verde”, um padre holandês, já mais idoso, na reunião mensal da região pastoral – hoje a Diocese de Registro SP – nos disse: “Proponho a gente se reunir, todo mês, por um dia inteiro, nós, padres, irmãs e leigos; o Concílio propõe grandes mudanças, e jamais vamos avançar sem uma forte pastoral de conjunto”. Hoje, olhando para trás, reconhecemos: foi a partir deste dia que começou a surgir, no Vale do Ribeira, a talvez primeira Diocese brasileira inteiramente estruturada em pequenas unidades que, poucos anos depois, seriam chamadas “Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)”. O céu e o inferno têm afinidade com a mesma lógica teológica!
II Sonhos da juventude
            Não creio que o levante popular francês, com reflexos no mundo inteiro, tenha tido aquele significado profundo – e único – que muitos pensadores lhe atribuem. Ainda hoje, alguns dos nossos teólogos veem nele o “momento axial” que pôs fim à Modernidade e deu início à Pós-Modernidade. Em parte, para Europa, talvez seja. Acontece, porém, que os mesmos fenômenos, de tempos em tempos, se repetem em todos os países. As grandes utopias da Modernidade teriam morrido juntamente com Martin Luther King e Che Guevara (1967), e com o levante de Paris. Será? A irrefreável onda de secularização pôs fim à espiritualidade humana e à utopia da “salvação celeste” prometida pelo cristianismo? Não parece. Novas espiritualidades pipocam em todos os cantos. A utopia da “salvação terrestre”, prometida pelo marxismo, acabou com a queda do muro de Berlim? Também não parece. Morreram Marx, Mao Tse Tung e Fidel Castro (quase), mas grande parte da juventude e da intelectualidade mundial (e cristã) continua apostando num futuro socialista, sem predomínio do capital, e o atual ateísmo militante está aí com sua promessa de mais outra salvação terrestre. Finalmente, do outro lado, a utopia capitalista com sua fé no progresso, na tecnologia, e na “riqueza das nações”, prometida por Adam Smith (†1790), ela está morta? Tudo menos isto. Ainda recentemente, Christine Lagarde, atual Diretora do Fundo Monetário Internacional, apregoou sua fé no “capitalismo inclusivo”, a nova face “humana” do mesmo sistema antropo e eco-fágico que de tão longa data conhecemos. Não, as utopias não morreram. Os sonhos humanos continuam e continuarão presentes. Deles, os protestos juvenis e as canções dos artistas da “contracultura” são sua expressão mais palpável.
            O que de tudo isso repercutiu entre nós, pobres mortais do “terceiro mundo”? Para captar melhor o momento histórico e adequar a nossa pastoral do Vale do Ribeira ao que a Igreja pós-Medellín exigia de nós, fui estudar ciências sociais com os jesuítas em São Paulo. Aprofundei-me na então muito em voga “teoria da dependência” da qual o Documento da Conferência Episcopal de Medellín (1968) foi um indisfarçado eco. Diziam os economistas da “Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe” (CEPAL), criada pela ONU em 1945, que os países “periféricos” do terceiro mundo giravam, como numa roda, em volta dos países desenvolvidos “centrais”, numa eterna e firmemente consolidada “dependência” econômica, política e cultural, sem chance para qualquer desenvolvimento autônomo. Era preciso sacudir este jugo e tomar as rédeas do desenvolvimento nas próprias mãos! A Igreja da América Latina, incentivada pelo Vaticano II e por Medellín, e empurrada também pela forte renovação teológica e bíblica europeia, com base nesta teoria, elaborou então, pela primeira vez na história, sua teologia própria, a da “libertação”. Jesus, em nome do Deus da Misericórdia, veio oferecer “Vida Plena” ao mundo, o “Reinado do Pai”, feito de relações justas e fraternas entre pessoas e povos; uma teologia embebida de espiritualidade, com opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Surgiram assim as milhares de CEBs, e, nelas, as dezenas de milhares de “grupos de rua”, confrontando a Palavra de Deus com a realidade vivida. Surgiram assim também as inúmeras “Pastorais Sociais” que, em seu conjunto, deram à Igreja do continente um rosto muito próprio.
            Maio de ´68 não foi o estopim do nosso entusiasmo pastoral nas doze paróquias do Vale do Ribeira – nove das quais sob responsabilidade Verbita – onde então atuávamos, mas que o fortaleceu, isto sim. Os eventos de Paris foram fruto de um clima mundial já pré-existente. Havia a sensação generalizada que algo novo precisava e iria acontecer.  O que, no meu entender, mais pesava na balança não eram as maiores liberdades individuais            , reivindicadas por todos, mas principalmente a consciência de um contexto social e político sem perspectiva iminente de solução. Sonho e pesadelo se mesclavam. O economista francês, Thomas Piketty, em seu recentemente lançado livro O Capital – no Século XXI, acaba de demonstrar, por meio de tabelas praticamente incontestáveis, que, mesmo nos tão decantados “Trinta Anos Gloriosos” dos países desenvolvidos (1945-1975), os 50% mais pobres da população não tiveram acesso à farta mesa do rico, da qual o pobre Lázaro apenas recebia migalhas. O que sacudiu Paris e o mundo foram, antes de tudo, os trabalhadores explorados. Pelos cálculos, em 20 de maio, 10 milhões de franceses estavam em greve geral. Enquanto, em junho de ´68, a “Primavera de Praga” florescia, - Dubcek, contra o stalinismo, prometia dar ao socialismo uma “face humana” -, em Rio de Janeiro aconteceu a histórica “passeata dos 100.000”, o primeiro levante massivo contra a opressão militar. Pouco depois, porém, em outubro, 1200 estudantes, realizando o 30º Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), foram presos em Ibiúna SP e a repressão se fortalecia, fechando o Congresso. Sonhos humanos nunca se concretizam da noite para o dia. Enquanto isso, no Vale do Ribeira, organizamos nossas “batidas” pastorais: sem levar em conta fronteiras paroquiais e eventuais ciúmes clericais, fomos todos – padres, irmãs e leigos/as – visitar os bairros periféricos das cidades e também os núcleos mais distantes nas matas fechadas, visitando, no decorrer de três dias, as casas e as roças, aonde o povo estivesse, e propúnhamos iniciar uma nova CEB, com leigos e leigas assumindo as diversas tarefas, entre as quais o culto dominical, com momentos certos para refletir, a partir da prática de Jesus, a realidade local, regional e nacional. Coisas parecidas aconteciam em todo o Brasil. Em toda a América Latina, a Igreja foi contaminada por um sonho juvenil.
III A volta à realidade
            Depois da bebedeira vem a ressaca. Paris nos deixou uma eterna lição. Quando a efervescência social, na França, estava no auge, o frustrado Presidente De Gaulle, conforme relato do embaixador americano, teria dito: “O jogo acabou; em poucos dias os comunistas estarão no poder”. Enquanto isso, entre os muitos intelectuais marxistas, o pensamento era outro. Apenas um mês antes dos acontecimentos, o “grande marxista”, Ernest Mandel, analisando a conjuntura política do momento, afirmava em Londres: “Nada vai acontecer; os trabalhadores franceses estão aburguesados e americanizados”. Na realidade, os dirigentes do Partido Comunista Francês e da Confederação Geral dos Trabalhadores – todos comodamente encastelados em suas burocracias oficiais – torciam pelo fim das greves. Estava-se, então, no auge da economia capitalista pós-guerra e muitas categorias de trabalhadores se beneficiavam dela. O movimento popular, de fato, evanesceu tão rápido quanto começou. Em maio, De Gaulle se viu diante da necessidade de dissolver a Assembleia Nacional e, um mês depois, nas novas eleições marcadas, ele saiu mais fortalecido do que nunca! Sonhos são apenas sonhos. Para torná-los realidade, um imenso e prolongado esforço coletivo – espiritual e político – se faz necessário.
            Algo muito parecido aconteceu conosco aqui no Brasil (e no mundo em geral). Na tradição cultural do mundo ocidental, tanto na judaico-cristã quanto na islâmica, religião e política, Igreja e Sociedade, estão mutuamente implicadas, e não há como separá-las. Quanto mais a Igreja “fugir” do mundo, mais ela colabora para manter o status quo em que se encontra. No auge do governo militar, em pleno “milagre econômico” da década de 1970, tanto a Igreja quanto a Sociedade, cada uma a seu modo, sonhavam com uma “nova sociedade”, sem exclusão social. Após esforços coletivos prolongados, lideranças religiosas, sindicais, universitárias e populares, em 2003, conseguiram emplacar, pela primeira vez na história do país, um governo popular, elegendo o Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Foi a concretização de um sonho efêmero. Mudou a governança política, mas não o frágil sistema político do país, consolidado após  longa história de coronelismo político (cede-se o anel para não perder o dedo). Já em 2016, a elite nacional retomou as rédeas nas mãos mediante um mal disfarçado golpe parlamentar.
            Tudo isso ocorreu não sem a colaboração indireta da Igreja. Desde a década de 1980 sentimos por aqui a mão pesada da Cúria Romana. Nossos bispos-profeta morreram e não foram substituídos. A teologia da libertação foi duramente criticada, embora o Papa João Paulo II, em 1986, após forte apelo dos bispos brasileiros, ainda se viu forçado a declará-la “não apenas útil, mas também necessária”. Uma nova orientação foi imposta aos seminários de teologia. Senti-o na pele quando dava minhas aulas de Teologia Pastoral. Hoje, a maioria dos padres não incentiva mais a histórica “caminhada das CEBs”. Também nossas pastorais sociais estão ao Deus dará. Nas nossas Províncias Verbitas, o quadro não é muito diferente. Nossos muitos missionários estrangeiros, vindos da Indonésia, da Índia e da África, conhecem o belo momento histórico pelo qual a Igreja brasileira passou, mas não o “vivenciaram” no dia a dia. Em geral acostumados com uma configuração eclesial mais tradicional, não se sentem motivados a ir por aquele caminho, ou têm maior dificuldade para implementá-lo. Será este o ponto fraco da nossa tão decantada “interculturalidade”? Não basta a boa convivência comunitária; impõe-se também uma real inserção na proposta pastoral da Igreja Local. Seja como for, fato é que, também por aqui, como em Paris, o sonho não vingou e “voltamos à realidade”.
Por que o sonho não vingou?
            Talvez este modo de ver seja radical demais. Sonhos, se não se realizam hoje podem realizar-se amanhã. Interpretar fatos históricos não é uma tarefa simples. Acostumados à nossa tradicional lógica binária, tendemos a querer encontrar explicações simples ou únicas para realidades complexas. A nova consciência da interdisciplinaridade das últimas décadas nos ajudou a ver que, diante das pequenas e grandes realidades que nos envolvem, especialmente quando se trata da “teia da Vida”, impõem-se as abordagens múltiplas. Durante mais de dois milênios impôs-se a nós a “antropologia cultural”. O ser humano, dizia Aristóteles, se distingue por sua alma racional. Na tradição semítica, o ser humano é animado pelo sopro do espírito divino. Séculos de gnosticismo e maniqueísmo, além de “escolasticismo”, deram ao ser humano uma alma “racional” separada do corpo. E haja racionalismo e idealismo. O “cogito, ergo sum” de Descartes veio apenas reforçar a tendência. Faltou o “novo olhar”, tão insistentemente reclamado por Teilhard de Chardin (†1955). O ser humano não é apenas razão e é preciso dar maior atenção à nossa origem física e bioquímica. O antropólogo francês, Edgar Morin, tem falado de uma “brecha antropológica”. O recente novo cérebro – o “córtex cerebral” – do “homo sapiens” fez com que perdêssemos cada vez mais o nosso comportamento natural e instintivo. Nosso atual cérebro nos possibilitou “criar asas” e, voando por cima da realidade, imaginar e criar os mais diferentes mundos culturais. Frequentemente chamamos de real o que, na verdade, é uma fantasia. Apenas agora, dando mais valor ao que poderíamos chamar de “antropologia bioquímica”, descobrimos, como recentemente o Papa Francisco nos lembrou, que “tudo está interligado”.
            Sonhar, fantasiar, ou imaginar um mundo ilusório, é fácil. Lidar com o mundo real é bem mais difícil. Estamos sempre diante de contextos complexos, alimentados permanentemente por múltiplas causas. Cada sociedade humana, como também cada ser humano, é uma “teia de ralações”, uma rede interconectada de múltiplos nós. Não se concerta o indivíduo sem concertar a sociedade, nem salvamos a sociedade sem salvar o meio ambiente que a sustenta. Se está tudo interligado é no todo que devemos mexer. E esta é a nossa grande dificuldade. Estamos todos presos, basicamente, a uma ação local. Só nos resta esperar (e agir) até que as múltiplas consciências locais possibilitem a mudança global. A vida levou quase quatro bilhões de anos para chegar onde chegou. Não é um pouco ingênuo ou ilusório esperar em grandes revoluções da noite para o dia?
            A tão falada “Revolução Francesa”, a de 1789, foi tão revolucionária assim? O mundo foi mesmo inundado de fraternidade, liberdade e igualdade? E a Revolução Russa de 1917, ela realmente abriu a porta do paraíso à classe operária? Todos sonhos que não vingaram, como não vingou o sonho do levante de Paris. O livro de Robert E. Ornstein e Paul Ehrlich New World New Mind: Moving Toward Conscious Evolution, nos alertou para um dado muitas vezes esquecido. Debaixo da quarta e última camada do nosso cérebro, a do córtex cerebral, existe uma terceira camada que ainda influi poderosamente sobre o comportamento humano. Trata-se do cérebro dos primatas. Não sujeitos a mudanças culturais, os primatas, durante 60 milhões de anos, viviam sempre do mesmo jeito. Adaptados ao seu nicho ecológico, viviam sempre nas mesmas árvores. Alimentavam-se, procriavam e mantinham sua estratificação social sempre da mesma forma. Em fim, mantinham, às vezes a ferro e fogo, os seus territórios e as suas “tradições”. Esse primata ainda vive em todos nós. É difícil sair da nossa zona de conforto. Ficamos felizes quando tudo fica como está. Vejam a nossa dificuldade. Perguntaram ao renomado teólogo peruano, Gustavo Gutiérrez, se não achava necessário um “Vaticano III”. “Que antes se cumpra o Vaticano II”, respondeu. As revoluções com as quais sonhamos acontecem, mas não sem um longo (muito longo) e árduo trabalho coletivo. Maio de 1968 foi um sonho. O nosso dia a dia, coletivo, um dia há de concretizá-lo.
Conclusão
            Aqui entre nós, na América Latina, o clima geral do momento não se compara com a euforia pós-Medellín. Está mais para o que um jornalista francês observou poucos meses após o elétrico maio de 1968: “os franceses estão morrendo de tédio”. Ainda assim, o trem não parou e novos sonhos estão surgindo. Nossos teólogos e biblistas, em nenhum momento, assumiram o que, no Brasil, foi chamado de “A volta à Grande Disciplina” (J.B. Libânio). Na verdade, o foco da teologia da libertação apenas se ampliou. Depois de absorver melhor o papel central da subjetividade humana (as questões culturais, do gênero, etc.), acabou assumindo em sua plenitude também a questão ecológica. Neste momento, a esperança maior, a meu ver, está depositada na reflexão do expressivo grupo de teólogos e biblistas que propõem unir a teologia latino-americana da libertação com a teologia mundial do pluralismo religioso. A Comissão Teológica da “Associação dos teólogos e teólogas do Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT)”, sob a coordenação de José Maria Vigil, Luiza Tomita e Marcelo Barros, lançou recentemente a série de cinco livros, intitulada “Pelos muitos caminhos de Deus”.  As “sementes” do Verbo, das quais Ad Gentes falava, se transformaram em belíssimas flores. Da própria antropologia humana brotam as irreprimíveis e riquíssimas espiritualidades que, em seu conjunto, oferecem as melhoras esperanças de futuro. Pelo destaque que os livros merecem vou citá-los, nas suas edições sucessivas: 1) Pelos muitos caminhos de Deus: Desafios do Pluralismo Religioso e Teologia da Libertação; 2) Pluralismo e Libertação: Por uma Teologia Latino-Americana Pluralista a partir da fé cristã; 3) Teologia Latino-Americana Pluralista da Libertação; 4) Teologia Pluralista Libertadora Intercontinental; 5) Para uma Teologia Planetária. 
            Os sonhos da humanidade nunca são uniformes. Nas ruas de Paris se encontravam os anarquistas radicais da esquerda, entre os quais o estudante Daniel Cohn-Bendit, então em grande destaque. Mas havia também os ultra-radicais da direita, além das inúmeras matizes intermediárias. Até hoje é assim, em todos os países. Quem levará este mundo ao paraíso, à “Nova Jerusalém” do Apocalipse de São João? Provavelmente estes sonhos, estas utopias humanas, nunca se concretizarão em sua totalidade. Ainda assim, são da maior importância. As utopias nos indicam por qual caminho seguir e elas fornecem a indispensável energia para não desanimar da longa peregrinação. Acima de tudo, elas indicam os avanços pastorais a serem feitos para que se concretize o Reinado do Pai, ou a “Vida Plena” sonhada por Jesus.

*Nasceu na Holanda, em 1939. Fez noviciado e filosofia na Bélgica, e teologia e ciências sociais em São Paulo, Brasil. Sua atuação principal esteve sempre ligada à pastoral prática, rural e urbana. Por muitos anos atuou também no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), em São Paulo, e deu aulas de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia dos religiosos (ITESP/SP). De 2001 a 2008 atuou na política, como vereador, no Município de Holambra-SP. Nos últimos anos tem trabalhado na paróquia svd, em Diadema SP. Escreve regularmente em revistas pastorais de circulação nacional, além de prestar assessorias diversas às CEBs e às Pastorais Sociais. Acesso aos artigos em artigospadrenicolausvd@blogspot.com;  E-mail: nijlbakker@hotmail.com

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