quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Studia Inst. Missiologici 2018: Missão SVD na realidade "glocal", bras. e lat. americ.


A MISSÃO SVD NA REALIDADE “GLOCAL”, BRASILEIRA E LATINO-AMERICANA
Pe. Nicolau João Bakker, svd – Brasil Centro

Introdução
            A missão svd, no Brasil (e na Am. Latina) de hoje, não pode ser retratada corretamente sem um breve olhar retrospectivo. Os primeiros missionários svd aportaram aqui em 1895. Em pouco tempo, muitos outros se juntaram a eles. Com certa naturalidade trouxeram com eles a mentalidade missionária que era comum na Europa, no final do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX. Não estava presente ainda o conceito da ”inculturação” e, menos ainda, a concepção teológica da “opção pelos pobres”. Sob ponto de vista pastoral, a Igreja do Brasil vivia, na primeira metade do século passado, o clima eclesial típico da “romanização”. Desde o Concílio de Trento (1545/63) e o lançamento posterior da “contra-reforma católica”, a Igreja de Roma se deixou guiar, como afirmou o grande historiador eclesiástico brasileiro, Riolando Azzi, por três princípios básicos: centralização, doutrinação e clericalização. Pela “implantatio ecclesiae”, as “terras de missão” precisavam ser cristianizadas. Missionários e missionárias vieram em grande número para “converter” os povos pagãos e, assim, como também pensava Arnold Janssen, “levar as almas todas para o céu”.
            A “globalização católica” que ocorreu, nas terras latino-americanas, muito mais do que ser um “implante” era, na verdade, um “transplante”. Transplantou-se o modelo eclesial europeu. Quando chegaram por aqui os primeiros missionários verbitas, os colonos europeus já estavam por toda parte. O que restou da população indígena original havia se refugiado nas distantes florestas do interior, e, nas cidades e pequenas vilas, florescia uma típica “religiosidade popular brasileira”, fruto em grande parte da colonização inicial portuguesa. Com um clero extremamente escasso, quem sustentava a religiosidade popular eram as irmandades religiosas leigas. Com o fortalecimento da romanização, estas antigas irmandades foram sendo substituídas pelas “pias sociedades”, todas elas comandadas pelo clero. Os missionários verbitas foram assumindo paróquias, uma a uma, dando seguimento a este modelo pastoral, frequentemente dando preferência às paróquias das colonizações estrangeiras. Fazia parte do esforço romanizador também a preocupação com a educação da juventude. Não seria possível cristianizar o país sem a cristianização dos jovens, em especial os da classe média urbana, vista como o futuro do país. Por isso, em muitas cidades, os verbitas deram início a grandes centros de educação, até hoje de expressivo prestígio nacional.

1.      A MISSÃO SVD NA PASTORAL PÓS-CONCILIAR
            Quando, em novembro de 1964, a nova comissão conciliar que preparava o documento sobre as missões, decidiu criar uma subcomissão de cinco membros – assessorada por cinco teólogos, entre os quais Yves Congar e Joseph Ratzinger - para acolher as reflexões conciliares e elaborar um novo ante-projeto, nosso Geral, Pe. João Schütte, estava entre eles. Sua influência foi decisiva. Após dois períodos de quinze dias de trabalho intensivo, na residência de verão do generalado svd, em Nemi, o próprio Pe. Schütte apresentou o ante-projeto na Aula Conciliar, o qual recebeu a maior aprovação de todos os documentos conciliares: 2394 a favor e apenas 5 contra. Com algumas novas emendas, o documento – Ad Gentes - foi promulgado por Paulo VI no dia 7 de dezembro de 1965. O conceito geográfico de missão – na comissão conciliar, o Prefeito da Propaganda Fide, cardeal Agagianian, e até o progressista, Yves Congar, ainda o defendiam – foi abandonado e a expressão “implantatio ecclesiae” é usada com reservas. A própria Igreja, por natureza, é missão, em qualquer lugar do mundo. Todo o eclesiocentrismo é evitado. A Igreja é instrumento do Verbo, a serviço do mundo. E, de forma surpreendente, o documento reconhece que as “sementes do Verbo”, embora “adormecidas”, já estão presentes em todas as religiões (nº 11), pois “o Espírito Santo já atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado” (nº  4).
1.1 O surgimento das CEBs e das Pastorais Sociais
            A “recepção”, deste e dos demais documentos conciliares, pelos bispos latino-americanos foi excepcional, embora muito dependente de algumas lideranças extraordinárias, entre as quais o brasileiro, Dom Helder Câmara. Este estava entre os principais articuladores do “Pacto das Catacumbas”, assinado, em 16/11/1965, por 42 bispos, dando início à assim denominada “Igreja dos Pobres”. De modo geral, a América Latina vivia então um clima de grande inquietação social. A forte e crescente “globalização econômica” foi por muitos percebida como a “globalização da pobreza”. Em muitos países do continente, em oposição à articulação das forças populares, nos sindicatos, nos movimentos sociais e nos movimentos estudantis, com apoio de intelectuais “orgânicos” das universidades e das Igrejas, surgiram as ditaduras militares, em aliança com as elites econômicas nacionais. Como estudantes de teologia, em São Paulo, pudemos acompanhar de perto a movimentação. Como estudante de ciências sociais, poucos anos depois, pude adquirir uma melhor compreensão dos fatos. O grande grito da época era pelas “reformas de base”. Entre elas se propunha, em primeiro lugar, uma efetiva “reforma agrária” para estancar o assustador “êxodo rural” e impor um freio ao avanço do agrobusiness sobre a tradicional agricultura familiar. Propunha-se também uma “reforma urbana” para integrar melhor as imensas periferias abandonadas às benesses das políticas públicas. Na euforia do recém-descoberto “planejamento estatal”, o Presidente brasileiro, Juscelino Kubitschek (1956/61), prometeu fazer “50 anos em 5”, mas, enquanto isso, nas universidades latino-americanas, nascia a famosa “teoria da dependência”: a globalização nada mais é do que uma imensa periferia mundial girando, numa eterna dependência econômica e política, em torno de um centro dominador que dita todas as regras.
            Com forte apoio do episcopado brasileiro, realizou-se, na cidade de Medellin, em 1968, a mais do que afamada “II Conferência Episcopal Latino-americana”. Muito bem assessorada por teólogos de destaque, a Conferência adaptou o Vaticano II à situação real do continente, tendo em vista a realidade acima mencionada. Nunca mais surgiu um documento de tal envergadura. Com grande fidelidade à Gaudium et Spes, fez-se uma acurada leitura dos “sinais do tempo” e, com muito respeito às “realidades terrestres”, nasceu a proposta de uma Igreja renovada. Não uma Igreja de feição hierárquica, mas uma “Igreja-Povo”, de rosto latino-americano, emergindo “a partir das bases”. O documento de Medellin usa, pela primeira vez, a expressão “Comunidade de Base”, rebatizada, oficialmente, em Comunidade Eclesial de Base (CEB) na III Conferência, em Puebla (1979). Em oposição à “globalização romana”, caracterizada por paróquias centralizadas, clericalizadas e doutrinadas, Medellin propõe a paróquia “descentralizada”, por meio da criação das Comunidades de Base, “desclericalizada”, por meio de maior autonomia e protagonismo leigos, e “des-doutrinada” por meio de uma nova pedagogia pastoral: cada Comunidade se subdivide em pequenos grupos que se reúnem regularmente para confrontar a Palavra de Deus com os desafios reais da vida de cada dia, em especial a situação de exclusão social.
            As quatro Regiões SVD (Centro, Sul, Norte e Extremo Norte), no Brasil, se encaixaram perfeitamente no modelo proposto. Apoiadas pelo incentivo permanente dos excelentes planejamentos pastorais quadrianuais da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), as Comunidades Eclesiais de Base surgiram por toda parte. As paróquias se descentralizaram com o surgimento das CEBs nos bairros e nas vilas; se desclericalizaram porque os leigos e as leigas, em co-responsabilidade com os padres, foram assumindo a coordenação e a animação das mais diferentes frentes de trabalho; e se des-doutrinaram porque, por meio dos grupos bíblicos, o tradicional ensinamento, imposto de cima para baixo, foi substituído pelo lento, mas muito mais autônomo, processo de amadurecimento pessoal (e comunitário)l na fé. Enviado, em 1965, a minha primeira paróquia no Vale do Ribeira, a região mais pobre do Estado de São Paulo, hoje a Diocese de Registro, tive o privilégio de participar intensivamente deste processo. Das 12 paróquias da atual Diocese, 10 estavam sob a batuta dos missionários verbitas. Com um extraordinário entrosamento, raramente visto, entre padres, irmãs religiosas, e leigos/as, aos poucos, a Diocese inteira foi se estruturando no “modelo CEBs”. Chegamos a inventar nossa metodologia própria, chamada de “batida”. Sem olhar divisas paroquiais chegamos a visitar – padres, irmãs e leigos/as -, no decorrer de três dias, a população local, nas casas e nas roças, ou aonde estivesse, e, dividindo-nos em grupos, à noite, trocamos ideias sobre uma possível “caminhada de CEB” naquele lugar. Na terceira noite, os grupos se reuniam num mesmo local para tomar uma decisão coletiva. Em caso positivo, as primeiras atividades já eram organizadas. Surgiram assim inúmeras novas Comunidades. Na grande metrópole de São Paulo (20 milhões de habitantes!), como nas quatro Regiões SVD em geral, os padres verbitas, pelos mais diferentes caminhos, perseguiram o mesmo objetivo, também com excelente resultado. Sem dúvida, tempos de uma nova “Igreja em construção”. Todos reconhecem: a SVD fez bonito! A missão “ad gentes” se cumpriu.
            O conceito de CEB, na América Latina, está intimamente ligado ao conceito de “Pastoral Social”. Do caldeirão fervente da “Nova Teologia” pré-conciliar, da longamente discutida e combatida proposta de Gaudium et Spes no decorrer do Concílio, de Medellin, e da nova concepção de Igreja e Missão, mas, mais ainda, da própria convivência com os excluídos e marginalizados do continente latino-americano, nasceu a Teologia da Libertação com sua “opção preferencial pelos pobres”. Juntamente com ela, como fruto da convivência com o povo pobre, nasceu uma nova leitura bíblica, não apenas histórico-crítica, mas também, digamos, “presencial-profética”. Pela amplamente divulgada “leitura popular da bíblia”, a Igreja Latino-americana aprendeu que “tudo é política, mas a política não é tudo”. Apenas uma atitude pastoral “transformadora” é capaz de romper a camisa de força da dependência econômica e política globalizada e – em fidelidade ao Reino de Deus pregado por Jesus - oferecer ao povo um horizonte de esperança. Com base nesta “espiritualidade libertadora” surgiram pastorais sociais das mais diversas cores. No Vale do Ribeira vimos nascer a, até hoje, importante “pastoral operária”. Com apoio de lideranças nacionais, como Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio, fomos incentivando os grupos de alfabetização e os cursos para lavradores. Surgiram as lutas populares contra as barragens e contra as grilagens de terras. Nasceu a pastoral dos pescadores, a luta pela preservação da mata atlântica e contra as usinas nucleares. Verbitas ajudaram a defender os quilombolas e os pequenos núcleos indígenas restantes. Em fim, todo um elenco de “pastorais sociais”. Na cidade de São Paulo, e em muitos outros lugares, não foi diferente. Inseridos numa “Igreja em renovação”, os verbitas se esmeraram na oposição ao regime militar, na defesa dos direitos humanos, no incentivo aos movimentos sociais, e na formação de novas lideranças. Tudo isso sempre em nome e em conjunto com a “caminhada das CEBs”. CEBs e Pastorais Sociais são irmãs gêmeas. “CEBs é o novo modo de ser Igreja”, costumava-se dizer.
1.2 No enfoque da globalização
Todo este empenho pastoral tem a ver com “globalização”? Tem, sim, e muito. Desde há muito tempo, o continente latino-americano é um continente globalizado. Povos europeus e árabes vieram para cá em grande número e acabaram, sob ponto de vista cultural, estabelecendo um certo clima generalizado de paz e boa convivência. Sob ponto de vista social, porém, a análise é outra. Indígenas e “afro-descendentes” (no Brasil, 50% da população!), foram empurrados para as margens, dando origem à reação pastoral acima esboçada. Entre nós, muito mais do que a imigração foi a migração das últimas décadas que desafiou a missão da Igreja. No Brasil, por exemplo, a população urbana aumentou de 30% em 1937 para 85% em 2017!  Sair da vida rural para uma moderna vida urbana, geralmente envolvendo distâncias de centenas ou milhares de quilômetros, com ou sem a família, é tão impactante quanto mudar para o outro lado do globo! Nosso colega, S. M. Michael svd, observa (cf. em 2.a) que a globalização é a marca do nosso tempo, uma marca, porém, que não pode ser corretamente analisada sem um ajuste conveniente das lentes. A “cultura relativística” da nossa sociedade pós-moderna, ele diz (cf. em 3.iii), mexe com os próprios “fundamentos” da sociedade humana. Um “individualismo exagerado” fragmenta os laços familiares e o comprometimento com os “laços sociais e institucionais”, entre os quais os religiosos. Perde-se de vista até o próprio “sentido” da vida humana (cf. em 4.a). Hoje, o individualismo ocidental, pelos mecanismos da globalização, atinge o mundo todo. Conclui S. M. Michael (cf. em 5.) que nosso discipulado missionário requer uma forte dose de “discernimento” para fazer as escolhas certas, tendo em vista o mundo que está à nossa frente. Na América Latina optamos pelo caminho das CEBs, até hoje considerado o melhor caminho para enfrentar os desafios mencionados. Seja na cidade, onde a modernidade avançada age com mais força, ou no distante  interior, onde o novo clima cultural penetra com vigor crescente, o bom observador pode constatá-lo facilmente. É na CEB que o indivíduo “desenraizado” encontra um novo ambiente familiar e social onde suas carências antropológicas são atendidas plenamente, e onde, lentamente, elabora um novo “sentido” para sua existência.
“Processos locais têm consequências globais”, diz nosso outro colega, Philip Gibbs (cf. em 1.). A reflexão – aprofundada e permanente – sobre a realidade “local” (Am. Latina) fez nascer não apenas as CEBs com suas pastorais sociais, mas também uma nova teologia, de feição particular, a “teologia da libertação”. Esta teologia, apesar das contestações, correu o mundo (Cf. Gibbs 9.). Ela se “glocalizou”, podemos dizer. Não se trata de “uma teoria a mais”; trata-se de um novo modo de agir. Não novo no sentido do jamais visto. Na verdade, ela se parece com a práxis pastoral dos Santos Padres do início da Igreja. Pense, por exemplo, na famosa “Basilíada” de São Basílio de Cesareia (379). Se os teólogos da Capadócia se preocupavam, antes de tudo, com o pobre em seu estado de penúria, os teólogos da libertação se preocupam, antes de tudo, com o pobre em sua situação “estrutural” de opressão. De uma conotação mais assistencialista se passa a uma conotação mais política. No mundo globalizado, diz Gibbs (cf. em 2. e 3.), não basta mais a simples participação popular nas democracias locais; a globalização traz novos desafios para a condução política do processo democrático em nível internacional. Também nosso confrade, Christian Tauchner, lembra que nossas “pós-democracias” são profundamente desafiadas pelo fator “conhecimento”, privilégio dos poucos que comandam os processos tecnológicos, especialmente os “digitais”, colocando à margem os processos democráticos tradicionais (Cf. em “information society”). “A cultura dominante”, já dizia Marx, “costuma ser a cultura dos dominadores”. Nossa convivência íntima com as pastorais sociais, no decorrer das últimas décadas, deixou mais claro qual o nosso desafio básico: a grande dificuldade não é entender, teológica e espiritualmente, que a Igreja deve se preocupar com os excluídos e marginalizados; a dificuldade maior está na correta compreensão das causas (“estruturais”, cf. Gibbs 3. e 4.) da exclusão, e na coragem profética de enfrentá-las pastoralmente. Isso requer um eterno “nadar contra a maré”, uma vez que a cultura dominante, presente também nas tradições religiosas, e propagada pelos mais modernos meios de comunicação, não costuma revelar a face oculta do sistema. “Com a expansão do capitalismo e da economia neoliberal, ajudados pelas corporações internacionais de comunicação, nós temos uma permanente exportação global da cultura “ocidental”, diz Gibbs (cf. em 7.). Muitos representantes das nossas CEBs e Pastorais Sociais costumam participar do “Fórum Social Mundial”. Será que, nas nossas províncias svd, ainda hoje, a JUPIC está significativamente presente? Ou vamos permitir que a “globalização cultural” seja feita exclusivamente pelas Igrejas Pentecostais e Neopentecostais (Gibbs 8.)? 

2.      A MISSÃO SVD NO CONTEXTO PASTORAL DAS ÚLTIMAS DÉCADAS
            Até aqui falei da missão svd no contexto pastoral latino-americano e brasileiro, enfocando mais o período pós-Vaticano II e pós-Medellin. Para o bem da verdade, este não é o único período a ser ressaltado. Não é segredo para ninguém que a teologia da libertação, e o seu rosto mais visível nas CEBs e nas Pastorais Sociais, nunca foram bem aceitos pela Cúria Romana. Em 1984, o documento da Santa Sé, Libertatis Nuntius, condenou diversos aspectos desta teologia e, embora suavizada pelo documento Libertatis Coscientia, de 1986, e pela carta do papa João Paulo II à CNBB, chamando-a de “não só oportuna, mas útil e necessária”, muitas críticas da ala mais conservadora da Igreja permaneceram. Convivendo com alguns estudantes de teologia numa das nossas paróquias, na distante periferia da cidade de São Paulo, em 1985, fomos surpreendidos pelo “silêncio imposto” ao teólogo brasileiro Leonardo Boff. As inúmeras lideranças leigas das CEBs e das Pastorais Sociais ficaram indignadas. Por iniciativa de um dos estudantes, enviamos, entre outros ao Núncio Apostólico, um cartão postal que mostrava Boff com a boca tampada por um pano vermelho. “É hora de gritar e não de calar”, dizia o cartão. O Núncio Apostólico reclamou, mas nosso bispo, o amável Dom Luciano Mendes de Almeida SJ, que dormia sempre com um batalhão de pobres em frente à sua porta, sendo Secretário Geral da CNBB, nos entendeu muito bem. Não se pode calar a voz profética da Igreja. Mas eram, então, os primeiros sinais da “volta à grande disciplina”, como tão bem observou o eminente teólogo e pastoralista brasileiro, João Batista Libânio SJ. Como professor de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia dos Religiosos (ITESP), em São Paulo, senti o aperto bem de perto. Alguns emissários de Roma vieram verificar quais os “manuais” que usávamos. Uma nova disciplina foi imposta aos seminários e a imensa Arquidiocese de São Paulo, dirigida pelo grande defensor dos Direitos Humanos, Dom Paulo Evaristo Arns, foi subdividida em diversas dioceses independentes. Fim da nossa tradicional e bem planejada “pastoral de conjunto”. Na nomeação dos novos bispos, até hoje, os critérios da Cúria Romana se tornaram muito mais rígidos. Nuvens no horizonte para uma Igreja que dava seus primeiros passos rumo à Igreja “una, santa, católica e apostólica”, mas dentro do princípio conciliar de uma “colegialidade partilhada”.
2.1 O desafio das nossas “dimensões prioritárias”
            Apesar da camisa de força, imposta à pastoral latino-americana a partir da década de 1980, a missão svd, por um bom tempo ainda, se mostrou bastante vibrante. Como Congregação Missionária, as diferentes Regiões SVD tentaram definir com maior clareza qual a sua missão específica na Igreja e na sociedade. Aos poucos foram se estabelecendo as quatro prioridades que, até hoje, orientam as Províncias. Falarei, mais especificamente, da Província Centro do Brasil, por conhecê-la mais de perto. Já em 1979 surgiu a “VERBO FILMES”, tendo em vista a prioridade “comunicação”. Em poucos anos, ganhou destaque nacional, lançando um impressionante número de valiosos instrumentos pastorais de comunicação, entre os quais filmes de longa e curta duração. Até hoje alimenta, de forma permanente e atualizada, os diversos grupos e pastorais da Igreja, com destaque para os muitos leigos e leigas que dedicam a vida às CEBs, às Pastorais Sociais, e à caminhada de uma Igreja autenticamente libertadora. Ainda que não se use o nome, dificilmente algum aspecto da “glocalização” em andamento fica sem a devida atenção. Para a prioridade “Bíblia” nasceu, em 1987, o “CENTRO BÍBLICO VERBO”, também alcançando rapidamente destaque nacional. Uma incansável equipe se dedica à organização de grande variedade de cursos, além de publicações, sempre fiel ao objetivo original da “leitura popular da bíblia”, refletindo a Palavra de Deus a partir do contexto de sua origem, e dentro do contexto da realidade atual. Um instrumento valiosíssimo para os milhares de grupos bíblicos brasileiros que encontram nesta dinâmica grupal um antídoto contra o individualismo da cidade moderna globalizada, e contra a falta de consciência crítica, impingida pela cultura ocidental midiatizada, secularizada, fragmentada e consumista. A terceira prioridade, a da “ANIMAÇÃO MISSIONÁRIA”, também sempre esteve presente, ora de uma forma mais visível, ora de forma mais discreta. Não possuindo uma “sede” e agindo de forma mais difusa, nas paróquias, ela, na verdade, se faz presente em todas as atividades pastorais dos membros da Província.
            Quero destacar, de forma especial, a prioridade “JUPIC” (Justiça, Paz e Integridade da Criação). No meu modo particular de entender, a JUPIC é a prioridade das prioridades, especialmente na Am. Latina. Se as outras prioridades são “meios” que favorecem uma atuação mais eficaz, mais fiel ao Evangelho, a JUPIC é a essência da própria ação evangelizadora da Igreja. Vejo a Igreja como o grande instrumento – Schillebeeckx falava de um “sacramento”, um sinal – que Deus usa para que o mundo progrida em direção à paz, à justiça, à fraternidade e ao bem viver, com inclusão do equilíbrio ecológico. Sem atuação na linha JUPIC, a Igreja perde a sua própria razão de ser. Já falei das muitas atividades JUPIC no Vale do Ribeira, na cidade de São Paulo, e em outras Regiões, frequentemente por iniciativa particular. Na década de 1990, a prioridade JUPIC se tornou mais visível em nível das nossas províncias religiosas. Em conjunto com as Servas do Espírito Santo, organizamos, de dois em dois anos, as “Semanas Latino-americanas JUPIC”: S. Paulo/Brasil: 1992; Puerto Rico/Argentina: 1994; Ypacaraí/Paraguai: 1994; Santiago/Chile: 1996; Cochabamba/Bolívia: 1998. Nos anos intermediários foram as “Semanas Nacionais JUPIC”: São Paulo/Brasil: 1995; Ponta Grossa/Brasil: 1997; Borda do Campo/Brasil: 1999; Barra Mansa/Brasil: 2001. Em todos estes encontros de formação e animação, que costumavam reunir em torno de 50 ou mais das melhores lideranças, entre padres, irmãs e leigos/as, os resultados foram excelentes. Para a formação tivemos sempre as melhores assessorias possíveis, tanto em nível nacional quanto em nível internacional. A animação JUPIC nas Províncias dependia em muito destes encontros. Na preparação da “V Semana Latino-americana JUPIC”, infelizmente, esta forte dinâmica JUPIC foi interrompida por entraves burocráticos. Nas Províncias dos Verbitas, estava-se em busca de um fortalecimento pan-americano. O novo coordenador pan-americano, Pe. Sérgio Cerna, pouco ligado à questão JUPIC, cancelou o encontro e os provinciais verbitas mandaram esperar pela nomeação de um coordenador pan-americano para a prioridade JUPIC, o que nunca aconteceu. A força espontânea que veio “de baixo” foi podada pela força institucional que veio “de cima”. É a briga tradicional entre instituição e missão. Quem perde, normalmente, é a missão.
2.2 O momento atual
Sob ponto de vista da globalização econômica e política, o momento atual, na América Latina e no Brasil, é de grande preocupação, e até de certo desalento. O que acontece no “centro” do mundo ocidental (EUA/Europa) continua afetando fortemente a “periferia” latino-americana. O liberalismo econômico, mais global do que nunca, apesar da crise de 2008, de tal maneira se “monopolizou”, que até um dos seus atuais mais expressivos representantes, o economista francês, Thomas Piketty (em seu livro O Capital - do Século XXI), observa que “o sistema enlouqueceu”. Os seus contundentes gráficos e tabelas demonstram que, com a introdução do neoliberalismo, o acúmulo capitalista tende a superar a própria realidade pré-Marx. Menos de 1% da população mundial possui mais de 50% da riqueza mundial. Verdade é que a oposição popular nas ruas também cresce. “Nós somos os 99%”, dizem os cartazes em Nova York. “Onde está o nosso pão e nosso emprego”, perguntam as ruas de Atenas, Lisboa, Roma e Madrid. O que é comum na Europa, começa a se repetir na Am. Latina: governos trabalhistas e liberais se revezam, mas o sistema não muda. Muitos países árabes e africanos estão em frangalhos e o número de “sobrantes” aumenta. Aonde encontrar esperança? A minha está na própria antropologia humana: somos parte da “Vida”, e a vida evolui de forma aleatória, mas não sem um nexo com as possibilidades pré-existentes. Também a consciência humana, lentamente, “se globaliza”. A flecha do tempo vai no rumo da “complexidade crescente”, e não no rumo da autodestruição. S. Paulo já o dizia: são as “dores do parto”. O desalento do momento, no entanto, é grande.
Também na Igreja, pois ela respira o mesmo ar. Entre nós, as CEBs, nas últimas décadas, estão pedindo socorro. Os bispos foram sumindo dos vibrantes encontros nacionais. Nossa última e significativa “V Conferência Episcopal Latino-americana”, em Aparecida SP (2007), representou um certo alívio. A parte do documento final que incentivava as CEBs, contudo, foi, entre todas, a parte mais “censurada” por Roma. Foi eliminada, inclusive, a frase que afirmava serem as CEBs “obra do Espírito Santo”. De modo geral, nas Dioceses, as CEBs não são mais “o novo modo de ser Igreja”, mas uma vertente pastoral qualquer em meio a muitas outras. Mesmo em muitas das nossas paróquias verbitas, a “dinâmica CEB” deixou de existir. O mesmo aconteceu às Pastorais Sociais. As poucas que ficaram apresentam, em geral, um caráter mais assistencialista. Se, em 1985, uma pesquisa universitária em S. Paulo ainda indicava os estudantes de teologia como “os militantes mais combativos” nas lutas sociais, os de hoje – sem se darem conta - estão muito pouco presentes. O clima eclesial é bem outro. O poder institucional é mais forte do que o poder das boas vontades. A “romanização” está de volta, com as mesmas características de sempre: centralização, doutrinação e clericalização. Com uma ressalva: desde o início do pontificado do papa Francisco, vemos os primeiros sinais de recuperação, tanto na sociedade civil quanto na Igreja.                                                                                 
Conclusão
“As Igrejas locais são chamadas a serem uma presença profética junto aos migrantes, em defesa de seus direitos e dignidade”, diz nosso confrade, G. Lazar, na conclusão de sua reflexão. Observa ele também – citando Jehu Hanciles - que Deus não se revela a partir dos poderes do “centro”, mas a partir da “periferia”. Nós, Verbitas e Servas, na Am. Latina e no Brasil, vivemos na periferia e ouvimos “o clamor do povo” (Êx 2:23-24). O fator “migração”, em perspectiva pastoral, faz parte do nosso dia a dia. A teologia da libertação surgiu como resposta aos clamores deste povo, e é dela que nasceram nossas CEBs e Pastorais Sociais. Limitei-me a falar mais delas, pois é nossa contribuição específica à grande missão verbita no mundo. Estamos cientes que, mais importante do que olhar com saudade para nosso passado, é encarar com fé e coragem o mundo que vem ao nosso encontro. A Teologia da Libertação continua evoluindo. Se, inicialmente, a ênfase maior estava voltada para as transformações sociais, já na década de 1990 se tornou muito visível a preocupação com os aspectos culturais, tanto do ser humano quanto da sociedade. A questão do gênero, por exemplo, ficou mais do que evidente. Hoje, um dos focos principais desta teologia é a questão ambiental. Amadureceu a concepção de que “tudo está interligado”, conceito que o papa Francisco repete trinta vezes em sua Encíclica Laudato Si. Parabenizamos o nosso confrade, Anthony Le Duc, por tão bem ressaltar “as preocupações ecológicas na nossa era de globalização” (cf. o título de sua contribuição). Creio que também o “nosso” footprint – como instituição missionária, dentro da Vida Religiosa Ativa - está acima da capacidade do planeta de suportá-lo.... e acima daquilo que nos identifica com “os pobres”. Penso que cabe ao Capítulo Geral repensar mais concretamente esta questão.
Como último ponto gostaria de ressaltar a conexão entre globalização e a, entre nós verbitas, tão elogiada interculturalidade. Aqui entre nós, a comissão teológica da “Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo” (ASETT), lançou uma série de cinco livros (série: “pelos muitos caminhos de Deus”), unindo a teologia da libertação latino-americana à teologia mundial do “pluralismo religioso”. Um avanço mais do que bem vindo. A globalização econômica, com suas inerentes consequências políticas e culturais, chegará à exaustão, não por rejeitar esta ou aquela religião, mas por rejeitar a religiosidade humana como tal. Há inúmeros pontos comuns à religiosidade humana, e estes brotam da própria essência antropológica. A globalização cultural ocidental (secularizada), ou qualquer outra, estará fadada ao fracasso caso não respeitar esta religiosidade. Com aproximações diversas, nossos confrades abordam este importante enfoque em suas reflexões: Le Duc (cf. “religious contribution”); Lazar (cf. “Migration as Spiritual Experience”, e “Migration: Missiological Perspective”); Michael (Cf. 4.a, 4.b e conclusão); e Gibbs (Cf. 8). Nossa interculturalidade religiosa verbita, neste sentido, é de exemplar importância. Mas há de se ressaltar também o lado preocupante. Ninguém de nós, indo a um outro continente, consegue “desvestir-se” de sua roupagem cultural original. Podemos compreender, e até “adotar”, uma nova cultura ou tradição religiosa, mas esta nunca será o nosso “eu”, formado na infância e adolescência. Apenas um descomunal esforço nos permite “captar” de verdade e “nos dar bem” na nova religiosidade encontrada. O atual “desalento”, perceptível em diversos segmentos das Províncias SVD, como acima comentei, não é apenas fruto do novo contexto pastoral em geral. É também fruto dos muitos confrades da Indonésia, Índia e África – e dos estrangeiros em geral – que não “vivenciaram” o nascer da teologia da libertação e seu “rosto latino-americano”, mais visível nas CEBs e nas Pastorais Sociais. Espontaneamente “se dão bem” com, e se limitam mais facilmente, ao tradicional modelo romano que, de modo uniforme, foi aplicado ao mundo inteiro e que é da nossa infância. Ainda que haja a maior boa vontade do mundo para adotar o “jeito latino-americano” de fazer pastoral, os limites culturais de origem criam, de fato, um forte obstáculo. Impõe-se uma formação inicial e permanente muito bem elaborada e acompanhada, em cada Província ou Região, para fazer frente a este desafio. Entre nós falha visivelmente. Seria importante o Capítulo Geral criar mecanismos adequados para que os frequentes apelos feitos neste sentido não fiquem “soltos no ar”.


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