A MISSÃO SVD NA
REALIDADE “GLOCAL”, BRASILEIRA E LATINO-AMERICANA
Pe. Nicolau João Bakker, svd – Brasil Centro
Introdução
A missão svd, no Brasil (e na Am. Latina) de hoje, não pode ser retratada
corretamente sem um breve olhar retrospectivo. Os primeiros missionários svd
aportaram aqui em 1895. Em pouco
tempo, muitos outros se juntaram a eles. Com certa naturalidade trouxeram com
eles a mentalidade missionária que era comum na Europa, no final do séc. XIX e
na primeira metade do séc. XX. Não estava presente ainda o conceito da
”inculturação” e, menos ainda, a concepção teológica da “opção pelos pobres”. Sob
ponto de vista pastoral, a Igreja do Brasil vivia, na primeira metade do século
passado, o clima eclesial típico da “romanização”. Desde o Concílio de Trento
(1545/63) e o lançamento posterior da “contra-reforma católica”, a Igreja de
Roma se deixou guiar, como afirmou o grande historiador eclesiástico brasileiro,
Riolando Azzi, por três princípios básicos: centralização, doutrinação e
clericalização. Pela “implantatio ecclesiae”, as “terras de missão” precisavam
ser cristianizadas. Missionários e missionárias vieram em grande número para
“converter” os povos pagãos e, assim, como também pensava Arnold Janssen,
“levar as almas todas para o céu”.
A
“globalização católica” que ocorreu, nas terras latino-americanas, muito mais
do que ser um “implante” era, na verdade, um “transplante”. Transplantou-se o
modelo eclesial europeu. Quando chegaram por aqui os primeiros missionários
verbitas, os colonos europeus já estavam por toda parte. O que restou da
população indígena original havia se refugiado nas distantes florestas do
interior, e, nas cidades e pequenas vilas, florescia uma típica “religiosidade
popular brasileira”, fruto em grande parte da colonização inicial portuguesa. Com
um clero extremamente escasso, quem sustentava a religiosidade popular eram as
irmandades religiosas leigas. Com o fortalecimento da romanização, estas
antigas irmandades foram sendo substituídas pelas “pias sociedades”, todas elas
comandadas pelo clero. Os missionários verbitas foram assumindo paróquias, uma
a uma, dando seguimento a este modelo pastoral, frequentemente dando preferência
às paróquias das colonizações estrangeiras. Fazia parte do esforço romanizador
também a preocupação com a educação da juventude. Não seria possível
cristianizar o país sem a cristianização dos jovens, em especial os da classe
média urbana, vista como o futuro do país. Por isso, em muitas cidades, os
verbitas deram início a grandes centros de educação, até hoje de expressivo prestígio
nacional.
1. A MISSÃO SVD NA PASTORAL PÓS-CONCILIAR
Quando, em novembro de 1964, a nova comissão conciliar que preparava o
documento sobre as missões, decidiu criar uma subcomissão de cinco membros –
assessorada por cinco teólogos, entre os quais Yves Congar e Joseph Ratzinger -
para acolher as reflexões conciliares e elaborar um novo ante-projeto, nosso
Geral, Pe. João Schütte, estava entre eles. Sua influência foi decisiva. Após dois
períodos de quinze dias de trabalho intensivo, na residência de verão do
generalado svd, em Nemi, o próprio Pe. Schütte apresentou o ante-projeto na
Aula Conciliar, o qual recebeu a maior aprovação de todos os documentos
conciliares: 2394 a favor e apenas 5 contra. Com algumas novas emendas, o
documento – Ad Gentes - foi
promulgado por Paulo VI no dia 7 de dezembro de 1965. O conceito geográfico de
missão – na comissão conciliar, o Prefeito da Propaganda Fide, cardeal Agagianian, e até o progressista, Yves
Congar, ainda o defendiam – foi abandonado e a expressão “implantatio
ecclesiae” é usada com reservas. A própria Igreja, por natureza, é missão, em
qualquer lugar do mundo. Todo o eclesiocentrismo é evitado. A Igreja é
instrumento do Verbo, a serviço do mundo. E, de forma surpreendente, o
documento reconhece que as “sementes do Verbo”, embora “adormecidas”, já estão
presentes em todas as religiões (nº 11), pois “o Espírito Santo já atuava no
mundo antes de Cristo ser glorificado” (nº 4).
1.1 O surgimento das
CEBs e das Pastorais Sociais
A “recepção”,
deste e dos demais documentos conciliares, pelos bispos latino-americanos foi excepcional, embora
muito dependente de algumas lideranças extraordinárias, entre as quais o
brasileiro, Dom Helder Câmara. Este estava entre os principais articuladores do
“Pacto das Catacumbas”, assinado, em 16/11/1965, por 42 bispos, dando início à assim
denominada “Igreja dos Pobres”. De modo geral, a América Latina vivia então um
clima de grande inquietação social. A forte e crescente “globalização econômica”
foi por muitos percebida como a “globalização da pobreza”. Em muitos países do
continente, em oposição à articulação das forças populares, nos sindicatos, nos
movimentos sociais e nos movimentos estudantis, com apoio de intelectuais
“orgânicos” das universidades e das Igrejas, surgiram as ditaduras militares,
em aliança com as elites econômicas nacionais. Como estudantes de teologia, em
São Paulo, pudemos acompanhar de perto a movimentação. Como estudante de
ciências sociais, poucos anos depois, pude adquirir uma melhor compreensão dos
fatos. O grande grito da época era pelas “reformas de base”. Entre elas se
propunha, em primeiro lugar, uma efetiva “reforma agrária” para estancar o
assustador “êxodo rural” e impor um freio ao avanço do agrobusiness sobre a
tradicional agricultura familiar. Propunha-se também uma “reforma urbana” para
integrar melhor as imensas periferias abandonadas às benesses das políticas
públicas. Na euforia do recém-descoberto “planejamento estatal”, o Presidente
brasileiro, Juscelino Kubitschek (1956/61), prometeu fazer “50 anos em 5”, mas,
enquanto isso, nas universidades latino-americanas, nascia a famosa “teoria da
dependência”: a globalização nada mais é do que uma imensa periferia mundial
girando, numa eterna dependência econômica e política, em torno de um centro
dominador que dita todas as regras.
Com forte
apoio do episcopado brasileiro, realizou-se, na cidade de Medellin, em 1968, a
mais do que afamada “II Conferência Episcopal Latino-americana”. Muito bem
assessorada por teólogos de destaque, a Conferência adaptou o Vaticano II à
situação real do continente, tendo em vista a realidade acima mencionada. Nunca
mais surgiu um documento de tal envergadura. Com grande fidelidade à Gaudium et Spes, fez-se uma acurada
leitura dos “sinais do tempo” e, com muito respeito às “realidades terrestres”,
nasceu a proposta de uma Igreja renovada. Não uma Igreja de feição hierárquica,
mas uma “Igreja-Povo”, de rosto latino-americano, emergindo “a partir das
bases”. O documento de Medellin usa, pela primeira vez, a expressão “Comunidade
de Base”, rebatizada, oficialmente, em Comunidade Eclesial de Base (CEB) na III
Conferência, em Puebla (1979). Em oposição à “globalização romana”,
caracterizada por paróquias centralizadas, clericalizadas e doutrinadas, Medellin
propõe a paróquia “descentralizada”, por meio da criação das Comunidades de
Base, “desclericalizada”, por meio de maior autonomia e protagonismo leigos, e “des-doutrinada”
por meio de uma nova pedagogia pastoral: cada Comunidade se subdivide em
pequenos grupos que se reúnem regularmente para confrontar a Palavra de Deus
com os desafios reais da vida de cada dia, em especial a situação de exclusão
social.
As quatro Regiões
SVD (Centro, Sul, Norte e Extremo Norte), no Brasil, se encaixaram
perfeitamente no modelo proposto. Apoiadas pelo incentivo permanente dos
excelentes planejamentos pastorais quadrianuais da CNBB (Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil), as Comunidades Eclesiais de Base surgiram por toda
parte. As paróquias se descentralizaram com o surgimento das CEBs nos bairros e
nas vilas; se desclericalizaram porque os leigos e as leigas, em
co-responsabilidade com os padres, foram assumindo a coordenação e a animação das
mais diferentes frentes de trabalho; e se des-doutrinaram porque, por meio dos
grupos bíblicos, o tradicional ensinamento, imposto de cima para baixo, foi
substituído pelo lento, mas muito mais autônomo, processo de amadurecimento
pessoal (e comunitário)l na fé. Enviado, em 1965, a minha primeira paróquia no
Vale do Ribeira, a região mais pobre do Estado de São Paulo, hoje a Diocese de
Registro, tive o privilégio de participar intensivamente deste processo. Das 12
paróquias da atual Diocese, 10 estavam sob a batuta dos missionários verbitas. Com
um extraordinário entrosamento, raramente visto, entre padres, irmãs religiosas,
e leigos/as, aos poucos, a Diocese inteira foi se estruturando no “modelo
CEBs”. Chegamos a inventar nossa metodologia própria, chamada de “batida”. Sem
olhar divisas paroquiais chegamos a visitar – padres, irmãs e leigos/as -, no
decorrer de três dias, a população local, nas casas e nas roças, ou aonde
estivesse, e, dividindo-nos em grupos, à noite, trocamos ideias sobre uma
possível “caminhada de CEB” naquele lugar. Na terceira noite, os grupos se
reuniam num mesmo local para tomar uma decisão coletiva. Em caso positivo, as
primeiras atividades já eram organizadas. Surgiram assim inúmeras novas
Comunidades. Na grande metrópole de São Paulo (20 milhões de habitantes!), como
nas quatro Regiões SVD em geral, os padres verbitas, pelos mais diferentes
caminhos, perseguiram o mesmo objetivo, também com excelente resultado. Sem
dúvida, tempos de uma nova “Igreja em construção”. Todos reconhecem: a SVD fez
bonito! A missão “ad gentes” se cumpriu.
O conceito
de CEB, na América Latina, está intimamente ligado ao conceito de “Pastoral
Social”. Do caldeirão fervente da “Nova Teologia” pré-conciliar, da longamente
discutida e combatida proposta de Gaudium
et Spes no decorrer do Concílio, de Medellin, e da nova concepção de Igreja
e Missão, mas, mais ainda, da própria convivência com os excluídos e
marginalizados do continente latino-americano, nasceu a Teologia da Libertação
com sua “opção preferencial pelos pobres”. Juntamente com ela, como fruto da
convivência com o povo pobre, nasceu uma nova leitura bíblica, não apenas
histórico-crítica, mas também, digamos, “presencial-profética”. Pela amplamente
divulgada “leitura popular da bíblia”, a Igreja Latino-americana aprendeu que
“tudo é política, mas a política não é tudo”. Apenas uma atitude pastoral
“transformadora” é capaz de romper a camisa de força da dependência econômica e
política globalizada e – em fidelidade ao Reino de Deus pregado por Jesus - oferecer
ao povo um horizonte de esperança. Com base nesta “espiritualidade libertadora”
surgiram pastorais sociais das mais diversas cores. No Vale do Ribeira vimos
nascer a, até hoje, importante “pastoral operária”. Com apoio de lideranças
nacionais, como Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio, fomos incentivando os
grupos de alfabetização e os cursos para lavradores. Surgiram as lutas
populares contra as barragens e contra as grilagens de terras. Nasceu a
pastoral dos pescadores, a luta pela preservação da mata atlântica e contra as
usinas nucleares. Verbitas ajudaram a defender os quilombolas e os pequenos núcleos
indígenas restantes. Em fim, todo um elenco de “pastorais sociais”. Na cidade
de São Paulo, e em muitos outros lugares, não foi diferente. Inseridos numa
“Igreja em renovação”, os verbitas se esmeraram na oposição ao regime militar,
na defesa dos direitos humanos, no incentivo aos movimentos sociais, e na
formação de novas lideranças. Tudo isso sempre em nome e em conjunto com a
“caminhada das CEBs”. CEBs e Pastorais Sociais são irmãs gêmeas. “CEBs é o novo
modo de ser Igreja”, costumava-se dizer.
1.2 No enfoque da
globalização
Todo este empenho pastoral tem a ver
com “globalização”? Tem, sim, e muito. Desde há muito tempo, o continente
latino-americano é um continente globalizado. Povos europeus e árabes vieram
para cá em grande número e acabaram, sob ponto de vista cultural, estabelecendo
um certo clima generalizado de paz e boa convivência. Sob ponto de vista
social, porém, a análise é outra. Indígenas e “afro-descendentes” (no Brasil,
50% da população!), foram empurrados para as margens, dando origem à reação
pastoral acima esboçada. Entre nós, muito mais do que a imigração foi a
migração das últimas décadas que desafiou a missão da Igreja. No Brasil, por
exemplo, a população urbana aumentou de 30% em 1937 para 85% em 2017! Sair da vida rural para uma moderna vida
urbana, geralmente envolvendo distâncias de centenas ou milhares de
quilômetros, com ou sem a família, é tão impactante quanto mudar para o outro
lado do globo! Nosso colega, S. M. Michael svd, observa (cf. em 2.a) que a
globalização é a marca do nosso tempo, uma marca, porém, que não pode ser corretamente
analisada sem um ajuste conveniente das lentes. A “cultura relativística” da
nossa sociedade pós-moderna, ele diz (cf. em 3.iii), mexe com os próprios
“fundamentos” da sociedade humana. Um “individualismo exagerado” fragmenta os
laços familiares e o comprometimento com os “laços sociais e institucionais”,
entre os quais os religiosos. Perde-se de vista até o próprio “sentido” da vida
humana (cf. em 4.a). Hoje, o individualismo ocidental, pelos mecanismos da
globalização, atinge o mundo todo. Conclui S. M. Michael (cf. em 5.) que nosso
discipulado missionário requer uma forte dose de “discernimento” para fazer as
escolhas certas, tendo em vista o mundo que está à nossa frente. Na América
Latina optamos pelo caminho das CEBs, até hoje considerado o melhor caminho
para enfrentar os desafios mencionados. Seja na cidade, onde a modernidade
avançada age com mais força, ou no distante interior, onde o novo clima cultural penetra
com vigor crescente, o bom observador pode constatá-lo facilmente. É na CEB que
o indivíduo “desenraizado” encontra um novo ambiente familiar e social onde
suas carências antropológicas são atendidas plenamente, e onde, lentamente,
elabora um novo “sentido” para sua existência.
“Processos locais têm consequências
globais”, diz nosso outro colega, Philip Gibbs (cf. em 1.). A reflexão –
aprofundada e permanente – sobre a realidade “local” (Am. Latina) fez nascer
não apenas as CEBs com suas pastorais sociais, mas também uma nova teologia, de
feição particular, a “teologia da libertação”. Esta teologia, apesar das
contestações, correu o mundo (Cf. Gibbs 9.). Ela se “glocalizou”, podemos dizer.
Não se trata de “uma teoria a mais”; trata-se de um novo modo de agir. Não novo
no sentido do jamais visto. Na verdade, ela se parece com a práxis pastoral dos
Santos Padres do início da Igreja. Pense, por exemplo, na famosa “Basilíada” de
São Basílio de Cesareia (†379). Se os teólogos da Capadócia se
preocupavam, antes de tudo, com o pobre em seu estado de penúria, os teólogos
da libertação se preocupam, antes de tudo, com o pobre em sua situação “estrutural”
de opressão. De uma conotação mais assistencialista se passa a uma conotação
mais política. No mundo globalizado, diz Gibbs (cf. em 2. e 3.), não basta mais
a simples participação popular nas democracias locais; a globalização traz
novos desafios para a condução política do processo democrático em nível
internacional. Também nosso confrade, Christian Tauchner, lembra que nossas
“pós-democracias” são profundamente desafiadas pelo fator “conhecimento”,
privilégio dos poucos que comandam os processos tecnológicos, especialmente os
“digitais”, colocando à margem os processos democráticos tradicionais (Cf. em
“information society”). “A cultura dominante”, já dizia Marx, “costuma ser a
cultura dos dominadores”. Nossa convivência íntima com as pastorais sociais, no
decorrer das últimas décadas, deixou mais claro qual o nosso desafio básico: a
grande dificuldade não é entender, teológica e espiritualmente, que a Igreja
deve se preocupar com os excluídos e marginalizados; a dificuldade maior está
na correta compreensão das causas (“estruturais”, cf. Gibbs 3. e 4.) da
exclusão, e na coragem profética de enfrentá-las pastoralmente. Isso requer um
eterno “nadar contra a maré”, uma vez que a cultura dominante, presente também
nas tradições religiosas, e propagada pelos mais modernos meios de comunicação,
não costuma revelar a face oculta do sistema. “Com a expansão do capitalismo e
da economia neoliberal, ajudados pelas corporações internacionais de
comunicação, nós temos uma permanente exportação global da cultura “ocidental”,
diz Gibbs (cf. em 7.). Muitos representantes das nossas CEBs e Pastorais
Sociais costumam participar do “Fórum Social Mundial”. Será que, nas nossas
províncias svd, ainda hoje, a JUPIC está significativamente presente? Ou vamos
permitir que a “globalização cultural” seja feita exclusivamente pelas Igrejas
Pentecostais e Neopentecostais (Gibbs 8.)?
2. A MISSÃO SVD NO CONTEXTO PASTORAL DAS ÚLTIMAS DÉCADAS
Até aqui
falei da missão svd no contexto pastoral latino-americano e brasileiro,
enfocando mais o período pós-Vaticano II e pós-Medellin. Para o bem da verdade,
este não é o único período a ser ressaltado. Não é segredo para ninguém que a
teologia da libertação, e o seu rosto mais visível nas CEBs e nas Pastorais
Sociais, nunca foram bem aceitos pela Cúria Romana. Em 1984, o documento da
Santa Sé, Libertatis Nuntius,
condenou diversos aspectos desta teologia e, embora suavizada pelo documento Libertatis Coscientia, de 1986, e pela
carta do papa João Paulo II à CNBB, chamando-a de “não só oportuna, mas útil e
necessária”, muitas críticas da ala mais conservadora da Igreja permaneceram.
Convivendo com alguns estudantes de teologia numa das nossas paróquias, na
distante periferia da cidade de São Paulo, em 1985, fomos surpreendidos pelo “silêncio
imposto” ao teólogo brasileiro Leonardo Boff. As inúmeras lideranças leigas das
CEBs e das Pastorais Sociais ficaram indignadas. Por iniciativa de um dos estudantes,
enviamos, entre outros ao Núncio Apostólico, um cartão postal que mostrava Boff
com a boca tampada por um pano vermelho. “É hora de gritar e não de calar”,
dizia o cartão. O Núncio Apostólico reclamou, mas nosso bispo, o amável Dom
Luciano Mendes de Almeida SJ, que dormia sempre com um batalhão de pobres em
frente à sua porta, sendo Secretário Geral da CNBB, nos entendeu muito bem. Não
se pode calar a voz profética da Igreja. Mas eram, então, os primeiros sinais da
“volta à grande disciplina”, como tão bem observou o eminente teólogo e pastoralista
brasileiro, João Batista Libânio SJ. Como professor de Teologia Pastoral no
Instituto de Teologia dos Religiosos (ITESP), em São Paulo, senti o aperto bem
de perto. Alguns emissários de Roma vieram verificar quais os “manuais” que
usávamos. Uma nova disciplina foi imposta aos seminários e a imensa
Arquidiocese de São Paulo, dirigida pelo grande defensor dos Direitos Humanos,
Dom Paulo Evaristo Arns, foi subdividida em diversas dioceses independentes.
Fim da nossa tradicional e bem planejada “pastoral de conjunto”. Na nomeação
dos novos bispos, até hoje, os critérios da Cúria Romana se tornaram muito mais
rígidos. Nuvens no horizonte para uma Igreja que dava seus primeiros passos
rumo à Igreja “una, santa, católica e apostólica”, mas dentro do princípio
conciliar de uma “colegialidade partilhada”.
2.1 O desafio das
nossas “dimensões prioritárias”
Apesar da camisa de força, imposta à pastoral latino-americana a partir
da década de 1980, a missão svd, por um bom tempo ainda, se mostrou bastante
vibrante. Como Congregação Missionária, as diferentes Regiões SVD tentaram
definir com maior clareza qual a sua missão específica na Igreja e na
sociedade. Aos poucos foram se estabelecendo as quatro prioridades que, até
hoje, orientam as Províncias. Falarei, mais especificamente, da Província
Centro do Brasil, por conhecê-la mais de perto. Já em 1979 surgiu a “VERBO
FILMES”, tendo em vista a prioridade “comunicação”. Em poucos anos, ganhou
destaque nacional, lançando um impressionante número de valiosos instrumentos
pastorais de comunicação, entre os quais filmes de longa e curta duração. Até
hoje alimenta, de forma permanente e atualizada, os diversos grupos e pastorais
da Igreja, com destaque para os muitos leigos e leigas que dedicam a vida às
CEBs, às Pastorais Sociais, e à caminhada de uma Igreja autenticamente
libertadora. Ainda que não se use o nome, dificilmente algum aspecto da “glocalização”
em andamento fica sem a devida atenção. Para a prioridade “Bíblia” nasceu, em
1987, o “CENTRO BÍBLICO VERBO”, também alcançando rapidamente destaque
nacional. Uma incansável equipe se dedica à organização de grande variedade de
cursos, além de publicações, sempre fiel ao objetivo original da “leitura
popular da bíblia”, refletindo a Palavra de Deus a partir do contexto de sua
origem, e dentro do contexto da realidade atual. Um instrumento valiosíssimo
para os milhares de grupos bíblicos brasileiros que encontram nesta dinâmica
grupal um antídoto contra o individualismo da cidade moderna globalizada, e
contra a falta de consciência crítica, impingida pela cultura ocidental
midiatizada, secularizada, fragmentada e consumista. A terceira prioridade, a
da “ANIMAÇÃO MISSIONÁRIA”, também sempre esteve presente, ora de uma forma mais
visível, ora de forma mais discreta. Não possuindo uma “sede” e agindo de forma
mais difusa, nas paróquias, ela, na verdade, se faz presente em todas as
atividades pastorais dos membros da Província.
Quero
destacar, de forma especial, a prioridade “JUPIC” (Justiça, Paz e Integridade
da Criação). No meu modo particular de entender, a JUPIC é a prioridade das
prioridades, especialmente na Am. Latina. Se as outras prioridades são “meios”
que favorecem uma atuação mais eficaz, mais fiel ao Evangelho, a JUPIC é a
essência da própria ação evangelizadora da Igreja. Vejo a Igreja como o grande
instrumento – Schillebeeckx falava de um “sacramento”, um sinal – que Deus usa
para que o mundo progrida em direção à paz, à justiça, à fraternidade e ao bem
viver, com inclusão do equilíbrio ecológico. Sem atuação na linha JUPIC, a
Igreja perde a sua própria razão de ser. Já falei das muitas atividades JUPIC
no Vale do Ribeira, na cidade de São Paulo, e em outras Regiões, frequentemente
por iniciativa particular. Na década de 1990, a prioridade JUPIC se tornou mais
visível em nível das nossas províncias religiosas. Em conjunto com as Servas do
Espírito Santo, organizamos, de dois em dois anos, as “Semanas Latino-americanas
JUPIC”: S. Paulo/Brasil: 1992; Puerto Rico/Argentina: 1994; Ypacaraí/Paraguai:
1994; Santiago/Chile: 1996; Cochabamba/Bolívia: 1998. Nos anos intermediários
foram as “Semanas Nacionais JUPIC”: São Paulo/Brasil: 1995; Ponta
Grossa/Brasil: 1997; Borda do Campo/Brasil: 1999; Barra Mansa/Brasil: 2001. Em
todos estes encontros de formação e animação, que costumavam reunir em torno de
50 ou mais das melhores lideranças, entre padres, irmãs e leigos/as, os
resultados foram excelentes. Para a formação tivemos sempre as melhores
assessorias possíveis, tanto em nível nacional quanto em nível internacional. A
animação JUPIC nas Províncias dependia em muito destes encontros. Na preparação
da “V Semana Latino-americana JUPIC”, infelizmente, esta forte dinâmica JUPIC
foi interrompida por entraves burocráticos. Nas Províncias dos Verbitas,
estava-se em busca de um fortalecimento pan-americano. O novo coordenador pan-americano,
Pe. Sérgio Cerna, pouco ligado à questão JUPIC, cancelou o encontro e os
provinciais verbitas mandaram esperar pela nomeação de um coordenador
pan-americano para a prioridade JUPIC, o que nunca aconteceu. A força
espontânea que veio “de baixo” foi podada pela força institucional que veio “de
cima”. É a briga tradicional entre instituição e missão. Quem perde,
normalmente, é a missão.
2.2 O momento atual
Sob ponto de vista da globalização
econômica e política, o momento atual, na América Latina e no Brasil, é de
grande preocupação, e até de certo desalento. O que acontece no “centro” do
mundo ocidental (EUA/Europa) continua afetando fortemente a “periferia”
latino-americana. O liberalismo econômico, mais global do que nunca, apesar da
crise de 2008, de tal maneira se “monopolizou”, que até um dos seus atuais mais
expressivos representantes, o economista francês, Thomas Piketty (em seu livro O Capital - do Século XXI), observa que
“o sistema enlouqueceu”. Os seus contundentes gráficos e tabelas demonstram
que, com a introdução do neoliberalismo, o acúmulo capitalista tende a superar
a própria realidade pré-Marx. Menos de 1% da população mundial possui mais de
50% da riqueza mundial. Verdade é que a oposição popular nas ruas também
cresce. “Nós somos os 99%”, dizem os cartazes em Nova York. “Onde está o nosso
pão e nosso emprego”, perguntam as ruas de Atenas, Lisboa, Roma e Madrid. O que
é comum na Europa, começa a se repetir na Am. Latina: governos trabalhistas e
liberais se revezam, mas o sistema não muda. Muitos países árabes e africanos
estão em frangalhos e o número de “sobrantes” aumenta. Aonde encontrar
esperança? A minha está na própria antropologia humana: somos parte da “Vida”,
e a vida evolui de forma aleatória, mas não sem um nexo com as possibilidades
pré-existentes. Também a consciência humana, lentamente, “se globaliza”. A
flecha do tempo vai no rumo da “complexidade crescente”, e não no rumo da
autodestruição. S. Paulo já o dizia: são as “dores do parto”. O desalento do
momento, no entanto, é grande.
Também na Igreja, pois ela respira o
mesmo ar. Entre nós, as CEBs, nas últimas décadas, estão pedindo socorro. Os
bispos foram sumindo dos vibrantes encontros nacionais. Nossa última e
significativa “V Conferência Episcopal Latino-americana”, em Aparecida SP
(2007), representou um certo alívio. A parte do documento final que incentivava
as CEBs, contudo, foi, entre todas, a parte mais “censurada” por Roma. Foi
eliminada, inclusive, a frase que afirmava serem as CEBs “obra do Espírito
Santo”. De modo geral, nas Dioceses, as CEBs não são mais “o novo modo de ser
Igreja”, mas uma vertente pastoral qualquer em meio a muitas outras. Mesmo em
muitas das nossas paróquias verbitas, a “dinâmica CEB” deixou de existir. O
mesmo aconteceu às Pastorais Sociais. As poucas que ficaram apresentam, em
geral, um caráter mais assistencialista. Se, em 1985, uma pesquisa universitária
em S. Paulo ainda indicava os estudantes de teologia como “os militantes mais
combativos” nas lutas sociais, os de hoje – sem se darem conta - estão muito
pouco presentes. O clima eclesial é bem outro. O poder institucional é mais
forte do que o poder das boas vontades. A “romanização” está de volta, com as
mesmas características de sempre: centralização, doutrinação e clericalização. Com
uma ressalva: desde o início do pontificado do papa Francisco, vemos os
primeiros sinais de recuperação, tanto na sociedade civil quanto na Igreja.
Conclusão
“As Igrejas locais são chamadas a
serem uma presença profética junto aos migrantes, em defesa de seus direitos e
dignidade”, diz nosso confrade, G. Lazar, na conclusão de sua reflexão. Observa
ele também – citando Jehu Hanciles - que Deus não se revela a partir dos
poderes do “centro”, mas a partir da “periferia”. Nós, Verbitas e Servas, na
Am. Latina e no Brasil, vivemos na periferia e ouvimos “o clamor do povo” (Êx
2:23-24). O fator “migração”, em perspectiva pastoral, faz parte do nosso dia a
dia. A teologia da libertação surgiu como resposta aos clamores deste povo, e é
dela que nasceram nossas CEBs e Pastorais Sociais. Limitei-me a falar mais
delas, pois é nossa contribuição específica à grande missão verbita no mundo.
Estamos cientes que, mais importante do que olhar com saudade para nosso
passado, é encarar com fé e coragem o mundo que vem ao nosso encontro. A
Teologia da Libertação continua evoluindo. Se, inicialmente, a ênfase maior
estava voltada para as transformações sociais, já na década de 1990 se tornou
muito visível a preocupação com os aspectos culturais, tanto do ser humano
quanto da sociedade. A questão do gênero, por exemplo, ficou mais do que
evidente. Hoje, um dos focos principais desta teologia é a questão ambiental.
Amadureceu a concepção de que “tudo está interligado”, conceito que o papa
Francisco repete trinta vezes em sua Encíclica Laudato Si. Parabenizamos o nosso confrade, Anthony Le Duc, por tão
bem ressaltar “as preocupações ecológicas na nossa era de globalização” (cf. o
título de sua contribuição). Creio que também o “nosso” footprint – como
instituição missionária, dentro da Vida Religiosa Ativa - está acima da
capacidade do planeta de suportá-lo.... e acima daquilo que nos identifica com
“os pobres”. Penso que cabe ao Capítulo Geral repensar mais concretamente esta
questão.
Como último ponto gostaria de
ressaltar a conexão entre globalização e a, entre nós verbitas, tão elogiada
interculturalidade. Aqui entre nós, a comissão teológica da “Associação
Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo” (ASETT), lançou uma série de cinco
livros (série: “pelos muitos caminhos de Deus”), unindo a teologia da
libertação latino-americana à teologia mundial do “pluralismo religioso”. Um
avanço mais do que bem vindo. A globalização econômica, com suas inerentes
consequências políticas e culturais, chegará à exaustão, não por rejeitar esta
ou aquela religião, mas por rejeitar a religiosidade humana como tal. Há
inúmeros pontos comuns à religiosidade humana, e estes brotam da própria
essência antropológica. A globalização cultural ocidental (secularizada), ou
qualquer outra, estará fadada ao fracasso caso não respeitar esta
religiosidade. Com aproximações diversas, nossos confrades abordam este
importante enfoque em suas reflexões: Le Duc (cf. “religious contribution”);
Lazar (cf. “Migration as Spiritual Experience”, e “Migration: Missiological
Perspective”); Michael (Cf. 4.a, 4.b e conclusão); e Gibbs (Cf. 8). Nossa
interculturalidade religiosa verbita, neste sentido, é de exemplar importância.
Mas há de se ressaltar também o lado preocupante. Ninguém de nós, indo a um
outro continente, consegue “desvestir-se” de sua roupagem cultural original.
Podemos compreender, e até “adotar”, uma nova cultura ou tradição religiosa,
mas esta nunca será o nosso “eu”, formado na infância e adolescência. Apenas um
descomunal esforço nos permite “captar” de verdade e “nos dar bem” na nova
religiosidade encontrada. O atual “desalento”, perceptível em diversos
segmentos das Províncias SVD, como acima comentei, não é apenas fruto do novo
contexto pastoral em geral. É também fruto dos muitos confrades da Indonésia,
Índia e África – e dos estrangeiros em geral – que não “vivenciaram” o nascer
da teologia da libertação e seu “rosto latino-americano”, mais visível nas CEBs
e nas Pastorais Sociais. Espontaneamente “se dão bem” com, e se limitam mais
facilmente, ao tradicional modelo romano que, de modo uniforme, foi aplicado ao
mundo inteiro e que é da nossa infância. Ainda que haja a maior boa vontade do
mundo para adotar o “jeito latino-americano” de fazer pastoral, os limites
culturais de origem criam, de fato, um forte obstáculo. Impõe-se uma formação
inicial e permanente muito bem elaborada e acompanhada, em cada Província ou
Região, para fazer frente a este desafio. Entre nós falha visivelmente. Seria
importante o Capítulo Geral criar mecanismos adequados para que os frequentes
apelos feitos neste sentido não fiquem “soltos no ar”.
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