quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Verbum 59/2018: Maio de 1968: O sonho que não vingou


MAIO DE 1968: O SONHO QUE NÃO VINGOU
Nicolau João Bakker, SVD*
                O presente artigo não pretende apresentar uma análise acadêmica dos históricos acontecimentos de Paris, e da França em geral, no mês de maio de 1968. Mesmo fazendo referência a fatos, sob ponto de vista sociológico e político importantes para aquele momento, nossa intenção é apenas colocá-los em sua perspectiva pastoral: o que significaram para a ação concreta da Igreja na época em que pegaram de surpresa a maioria dos analistas, e o que ainda podem significar para a ação pastoral da Igreja hoje.
Introdução
            Quando a TV brasileira, em maio de 1968, trouxe as primeiras imagens das impressionantes “barricadas de Paris”, nós, padres jovens “do outro lado do mundo”, ficamos surpresos, mas os fatos não nos pegaram inteiramente desprevenidos. Por aqui estávamos então em plena ditadura militar. Com os meios de comunição fortemente censurados não era fácil captar os eventos nas suas devidas proporções. Na época, eu fazia parte da relativamente pequena, mas crescente, faixa do clero que se colocava em aberta oposição ao governo militar. Este governo fazia questão de apresentar os acontecimentos de Paris como mais uma prova dos avanços comunistas no mundo inteiro. O “terrorismo internacional” estaria também contaminando o pacífico povo brasileiro, e estava mais do que na hora de o governo militar – a “reserva moral” da nação – impor um breque a esta nefasta ameaça.
            Muita gente da Igreja ficou, de fato, assustada, não apenas com a ameaça comunista, mas também com o “descalabro moral” em curso. Onde se viu aquele comportamento hippie, aquela loucura jovem do rock and roll, e agora aquelas mulheres “moderninhas” jogando seus soutiens nas fogueiras em plena rua! A tal da Modernidade trouxe mesmo a barbárie! Entre nós, embora em graus bem menores, os mesmos fenômenos de Paris se repetiram. A América Latina sempre preservou fortes laços com a cultura europeia. Estudar na Sorbonne significava, também para a elite brasileira, o “top” em termos de status social e intelectual. Nossa juventude universitária, em certa medida, vivia o clima de Paris, mas a imensa maioria da população brasileira nem se dava conta do que realmente estava acontecendo. Naquela altura, eu fazia minhas primeiras experiências pastorais no Vale do Ribeira, a região mais pobre do Estado de São Paulo, por alguns especialistas apelidada de “inferno verde” por seu clima quente e úmido e suas matas fechadas muito parecidas com a Amazônia. Na beirada dos rios acompanhava as comunidades “caiçaras” – de descendência indígena – e me perguntava: que tipo de pastoral devo fazer aqui para ela estar em concordância com as exigências conciliares?  
I Lembranças do inferno
            Visitando os povoados ribeirinhos, pouco ou nada percebia das mudanças em curso. Voltando, porém, à casa paroquial, na pequena cidade litorânea de Iguape, havia a televisão e os jornais. Havia também a renomada Revista Eclesiástica Brasileira (REB), de circulação nacional, onde os mais destacados teólogos e biblistas da Am. Latina manifestavam sua opinião, em geral clamando por “renovação”. E havia ainda algum livro que, ocasionalmente, me caía às mãos. Desde o noviciado e a filosofia, feitos no Verbo Divino, na Bélgica, a “Nova Teologia” europeia havia grudado na minha alma. Schillebeeckx já estava em destaque e ecos cada vez mais fortes vinham da “Escola de Saulchoir”, dos dominicanos franceses Congar, Marie-Dominique Chenu, e outros. Diante dos votos precisava tomar uma decisão. Não queria dedicar minha vida a uma Igreja parecida com um prédio velho caindo aos pedaços. Após o 18º dia do famoso “retiro de trinta dias”, de Santo Inácio, fomos todos falar com nosso mestre espiritual: “Chega, assim não dá. Queremos outra coisa!” E não terminamos o retiro. Habituei-me a “meditar” então a partir do que os melhores teólogos daquele tempo tinham a oferecer. Até hoje mantenho o mesmo hábito com absoluta fidelidade. O “inferno” pode ser dos mais brabos, mas é preciso manter o foco no mundo a ser salvo.
               Éramos então como aqueles jovens católicos do Quartier Latin, em Paris, que, em maio de 1968, ocuparam a igreja e disseram ao pároco: “Chega de missa; não basta a língua vernácula, queremos debater o país que queremos!” Fiz a teologia em São Paulo, pois minha família emigrou para o Brasil em 1958 e eu, em 1960, segui atrás. Organizamos naquela metrópole, - meio clandestinamente, pois a tradicional disciplina germânica ainda imperava -, o “II Congresso dos Estudantes de Teologia da cidade de São Paulo”. Também nós queríamos uma outra Igreja, mais popular, mais pé no chão, e mais voltada para a sociedade ao redor. Assim como os milhares de estudantes franceses que clamaram por profundas mudanças na educação, e os dez milhões de trabalhadores que, no mês de maio, ocuparam ruas e fábricas, assim nós também clamamos por mudanças profundas na Igreja e na Sociedade. Certo dia, já atuando como padre no tal “inferno verde”, um padre holandês, já mais idoso, na reunião mensal da região pastoral – hoje a Diocese de Registro SP – nos disse: “Proponho a gente se reunir, todo mês, por um dia inteiro, nós, padres, irmãs e leigos; o Concílio propõe grandes mudanças, e jamais vamos avançar sem uma forte pastoral de conjunto”. Hoje, olhando para trás, reconhecemos: foi a partir deste dia que começou a surgir, no Vale do Ribeira, a talvez primeira Diocese brasileira inteiramente estruturada em pequenas unidades que, poucos anos depois, seriam chamadas “Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)”. O céu e o inferno têm afinidade com a mesma lógica teológica!
II Sonhos da juventude
            Não creio que o levante popular francês, com reflexos no mundo inteiro, tenha tido aquele significado profundo – e único – que muitos pensadores lhe atribuem. Ainda hoje, alguns dos nossos teólogos veem nele o “momento axial” que pôs fim à Modernidade e deu início à Pós-Modernidade. Em parte, para Europa, talvez seja. Acontece, porém, que os mesmos fenômenos, de tempos em tempos, se repetem em todos os países. As grandes utopias da Modernidade teriam morrido juntamente com Martin Luther King e Che Guevara (1967), e com o levante de Paris. Será? A irrefreável onda de secularização pôs fim à espiritualidade humana e à utopia da “salvação celeste” prometida pelo cristianismo? Não parece. Novas espiritualidades pipocam em todos os cantos. A utopia da “salvação terrestre”, prometida pelo marxismo, acabou com a queda do muro de Berlim? Também não parece. Morreram Marx, Mao Tse Tung e Fidel Castro (quase), mas grande parte da juventude e da intelectualidade mundial (e cristã) continua apostando num futuro socialista, sem predomínio do capital, e o atual ateísmo militante está aí com sua promessa de mais outra salvação terrestre. Finalmente, do outro lado, a utopia capitalista com sua fé no progresso, na tecnologia, e na “riqueza das nações”, prometida por Adam Smith (†1790), ela está morta? Tudo menos isto. Ainda recentemente, Christine Lagarde, atual Diretora do Fundo Monetário Internacional, apregoou sua fé no “capitalismo inclusivo”, a nova face “humana” do mesmo sistema antropo e eco-fágico que de tão longa data conhecemos. Não, as utopias não morreram. Os sonhos humanos continuam e continuarão presentes. Deles, os protestos juvenis e as canções dos artistas da “contracultura” são sua expressão mais palpável.
            O que de tudo isso repercutiu entre nós, pobres mortais do “terceiro mundo”? Para captar melhor o momento histórico e adequar a nossa pastoral do Vale do Ribeira ao que a Igreja pós-Medellín exigia de nós, fui estudar ciências sociais com os jesuítas em São Paulo. Aprofundei-me na então muito em voga “teoria da dependência” da qual o Documento da Conferência Episcopal de Medellín (1968) foi um indisfarçado eco. Diziam os economistas da “Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe” (CEPAL), criada pela ONU em 1945, que os países “periféricos” do terceiro mundo giravam, como numa roda, em volta dos países desenvolvidos “centrais”, numa eterna e firmemente consolidada “dependência” econômica, política e cultural, sem chance para qualquer desenvolvimento autônomo. Era preciso sacudir este jugo e tomar as rédeas do desenvolvimento nas próprias mãos! A Igreja da América Latina, incentivada pelo Vaticano II e por Medellín, e empurrada também pela forte renovação teológica e bíblica europeia, com base nesta teoria, elaborou então, pela primeira vez na história, sua teologia própria, a da “libertação”. Jesus, em nome do Deus da Misericórdia, veio oferecer “Vida Plena” ao mundo, o “Reinado do Pai”, feito de relações justas e fraternas entre pessoas e povos; uma teologia embebida de espiritualidade, com opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Surgiram assim as milhares de CEBs, e, nelas, as dezenas de milhares de “grupos de rua”, confrontando a Palavra de Deus com a realidade vivida. Surgiram assim também as inúmeras “Pastorais Sociais” que, em seu conjunto, deram à Igreja do continente um rosto muito próprio.
            Maio de ´68 não foi o estopim do nosso entusiasmo pastoral nas doze paróquias do Vale do Ribeira – nove das quais sob responsabilidade Verbita – onde então atuávamos, mas que o fortaleceu, isto sim. Os eventos de Paris foram fruto de um clima mundial já pré-existente. Havia a sensação generalizada que algo novo precisava e iria acontecer.  O que, no meu entender, mais pesava na balança não eram as maiores liberdades individuais            , reivindicadas por todos, mas principalmente a consciência de um contexto social e político sem perspectiva iminente de solução. Sonho e pesadelo se mesclavam. O economista francês, Thomas Piketty, em seu recentemente lançado livro O Capital – no Século XXI, acaba de demonstrar, por meio de tabelas praticamente incontestáveis, que, mesmo nos tão decantados “Trinta Anos Gloriosos” dos países desenvolvidos (1945-1975), os 50% mais pobres da população não tiveram acesso à farta mesa do rico, da qual o pobre Lázaro apenas recebia migalhas. O que sacudiu Paris e o mundo foram, antes de tudo, os trabalhadores explorados. Pelos cálculos, em 20 de maio, 10 milhões de franceses estavam em greve geral. Enquanto, em junho de ´68, a “Primavera de Praga” florescia, - Dubcek, contra o stalinismo, prometia dar ao socialismo uma “face humana” -, em Rio de Janeiro aconteceu a histórica “passeata dos 100.000”, o primeiro levante massivo contra a opressão militar. Pouco depois, porém, em outubro, 1200 estudantes, realizando o 30º Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), foram presos em Ibiúna SP e a repressão se fortalecia, fechando o Congresso. Sonhos humanos nunca se concretizam da noite para o dia. Enquanto isso, no Vale do Ribeira, organizamos nossas “batidas” pastorais: sem levar em conta fronteiras paroquiais e eventuais ciúmes clericais, fomos todos – padres, irmãs e leigos/as – visitar os bairros periféricos das cidades e também os núcleos mais distantes nas matas fechadas, visitando, no decorrer de três dias, as casas e as roças, aonde o povo estivesse, e propúnhamos iniciar uma nova CEB, com leigos e leigas assumindo as diversas tarefas, entre as quais o culto dominical, com momentos certos para refletir, a partir da prática de Jesus, a realidade local, regional e nacional. Coisas parecidas aconteciam em todo o Brasil. Em toda a América Latina, a Igreja foi contaminada por um sonho juvenil.
III A volta à realidade
            Depois da bebedeira vem a ressaca. Paris nos deixou uma eterna lição. Quando a efervescência social, na França, estava no auge, o frustrado Presidente De Gaulle, conforme relato do embaixador americano, teria dito: “O jogo acabou; em poucos dias os comunistas estarão no poder”. Enquanto isso, entre os muitos intelectuais marxistas, o pensamento era outro. Apenas um mês antes dos acontecimentos, o “grande marxista”, Ernest Mandel, analisando a conjuntura política do momento, afirmava em Londres: “Nada vai acontecer; os trabalhadores franceses estão aburguesados e americanizados”. Na realidade, os dirigentes do Partido Comunista Francês e da Confederação Geral dos Trabalhadores – todos comodamente encastelados em suas burocracias oficiais – torciam pelo fim das greves. Estava-se, então, no auge da economia capitalista pós-guerra e muitas categorias de trabalhadores se beneficiavam dela. O movimento popular, de fato, evanesceu tão rápido quanto começou. Em maio, De Gaulle se viu diante da necessidade de dissolver a Assembleia Nacional e, um mês depois, nas novas eleições marcadas, ele saiu mais fortalecido do que nunca! Sonhos são apenas sonhos. Para torná-los realidade, um imenso e prolongado esforço coletivo – espiritual e político – se faz necessário.
            Algo muito parecido aconteceu conosco aqui no Brasil (e no mundo em geral). Na tradição cultural do mundo ocidental, tanto na judaico-cristã quanto na islâmica, religião e política, Igreja e Sociedade, estão mutuamente implicadas, e não há como separá-las. Quanto mais a Igreja “fugir” do mundo, mais ela colabora para manter o status quo em que se encontra. No auge do governo militar, em pleno “milagre econômico” da década de 1970, tanto a Igreja quanto a Sociedade, cada uma a seu modo, sonhavam com uma “nova sociedade”, sem exclusão social. Após esforços coletivos prolongados, lideranças religiosas, sindicais, universitárias e populares, em 2003, conseguiram emplacar, pela primeira vez na história do país, um governo popular, elegendo o Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Foi a concretização de um sonho efêmero. Mudou a governança política, mas não o frágil sistema político do país, consolidado após  longa história de coronelismo político (cede-se o anel para não perder o dedo). Já em 2016, a elite nacional retomou as rédeas nas mãos mediante um mal disfarçado golpe parlamentar.
            Tudo isso ocorreu não sem a colaboração indireta da Igreja. Desde a década de 1980 sentimos por aqui a mão pesada da Cúria Romana. Nossos bispos-profeta morreram e não foram substituídos. A teologia da libertação foi duramente criticada, embora o Papa João Paulo II, em 1986, após forte apelo dos bispos brasileiros, ainda se viu forçado a declará-la “não apenas útil, mas também necessária”. Uma nova orientação foi imposta aos seminários de teologia. Senti-o na pele quando dava minhas aulas de Teologia Pastoral. Hoje, a maioria dos padres não incentiva mais a histórica “caminhada das CEBs”. Também nossas pastorais sociais estão ao Deus dará. Nas nossas Províncias Verbitas, o quadro não é muito diferente. Nossos muitos missionários estrangeiros, vindos da Indonésia, da Índia e da África, conhecem o belo momento histórico pelo qual a Igreja brasileira passou, mas não o “vivenciaram” no dia a dia. Em geral acostumados com uma configuração eclesial mais tradicional, não se sentem motivados a ir por aquele caminho, ou têm maior dificuldade para implementá-lo. Será este o ponto fraco da nossa tão decantada “interculturalidade”? Não basta a boa convivência comunitária; impõe-se também uma real inserção na proposta pastoral da Igreja Local. Seja como for, fato é que, também por aqui, como em Paris, o sonho não vingou e “voltamos à realidade”.
Por que o sonho não vingou?
            Talvez este modo de ver seja radical demais. Sonhos, se não se realizam hoje podem realizar-se amanhã. Interpretar fatos históricos não é uma tarefa simples. Acostumados à nossa tradicional lógica binária, tendemos a querer encontrar explicações simples ou únicas para realidades complexas. A nova consciência da interdisciplinaridade das últimas décadas nos ajudou a ver que, diante das pequenas e grandes realidades que nos envolvem, especialmente quando se trata da “teia da Vida”, impõem-se as abordagens múltiplas. Durante mais de dois milênios impôs-se a nós a “antropologia cultural”. O ser humano, dizia Aristóteles, se distingue por sua alma racional. Na tradição semítica, o ser humano é animado pelo sopro do espírito divino. Séculos de gnosticismo e maniqueísmo, além de “escolasticismo”, deram ao ser humano uma alma “racional” separada do corpo. E haja racionalismo e idealismo. O “cogito, ergo sum” de Descartes veio apenas reforçar a tendência. Faltou o “novo olhar”, tão insistentemente reclamado por Teilhard de Chardin (†1955). O ser humano não é apenas razão e é preciso dar maior atenção à nossa origem física e bioquímica. O antropólogo francês, Edgar Morin, tem falado de uma “brecha antropológica”. O recente novo cérebro – o “córtex cerebral” – do “homo sapiens” fez com que perdêssemos cada vez mais o nosso comportamento natural e instintivo. Nosso atual cérebro nos possibilitou “criar asas” e, voando por cima da realidade, imaginar e criar os mais diferentes mundos culturais. Frequentemente chamamos de real o que, na verdade, é uma fantasia. Apenas agora, dando mais valor ao que poderíamos chamar de “antropologia bioquímica”, descobrimos, como recentemente o Papa Francisco nos lembrou, que “tudo está interligado”.
            Sonhar, fantasiar, ou imaginar um mundo ilusório, é fácil. Lidar com o mundo real é bem mais difícil. Estamos sempre diante de contextos complexos, alimentados permanentemente por múltiplas causas. Cada sociedade humana, como também cada ser humano, é uma “teia de ralações”, uma rede interconectada de múltiplos nós. Não se concerta o indivíduo sem concertar a sociedade, nem salvamos a sociedade sem salvar o meio ambiente que a sustenta. Se está tudo interligado é no todo que devemos mexer. E esta é a nossa grande dificuldade. Estamos todos presos, basicamente, a uma ação local. Só nos resta esperar (e agir) até que as múltiplas consciências locais possibilitem a mudança global. A vida levou quase quatro bilhões de anos para chegar onde chegou. Não é um pouco ingênuo ou ilusório esperar em grandes revoluções da noite para o dia?
            A tão falada “Revolução Francesa”, a de 1789, foi tão revolucionária assim? O mundo foi mesmo inundado de fraternidade, liberdade e igualdade? E a Revolução Russa de 1917, ela realmente abriu a porta do paraíso à classe operária? Todos sonhos que não vingaram, como não vingou o sonho do levante de Paris. O livro de Robert E. Ornstein e Paul Ehrlich New World New Mind: Moving Toward Conscious Evolution, nos alertou para um dado muitas vezes esquecido. Debaixo da quarta e última camada do nosso cérebro, a do córtex cerebral, existe uma terceira camada que ainda influi poderosamente sobre o comportamento humano. Trata-se do cérebro dos primatas. Não sujeitos a mudanças culturais, os primatas, durante 60 milhões de anos, viviam sempre do mesmo jeito. Adaptados ao seu nicho ecológico, viviam sempre nas mesmas árvores. Alimentavam-se, procriavam e mantinham sua estratificação social sempre da mesma forma. Em fim, mantinham, às vezes a ferro e fogo, os seus territórios e as suas “tradições”. Esse primata ainda vive em todos nós. É difícil sair da nossa zona de conforto. Ficamos felizes quando tudo fica como está. Vejam a nossa dificuldade. Perguntaram ao renomado teólogo peruano, Gustavo Gutiérrez, se não achava necessário um “Vaticano III”. “Que antes se cumpra o Vaticano II”, respondeu. As revoluções com as quais sonhamos acontecem, mas não sem um longo (muito longo) e árduo trabalho coletivo. Maio de 1968 foi um sonho. O nosso dia a dia, coletivo, um dia há de concretizá-lo.
Conclusão
            Aqui entre nós, na América Latina, o clima geral do momento não se compara com a euforia pós-Medellín. Está mais para o que um jornalista francês observou poucos meses após o elétrico maio de 1968: “os franceses estão morrendo de tédio”. Ainda assim, o trem não parou e novos sonhos estão surgindo. Nossos teólogos e biblistas, em nenhum momento, assumiram o que, no Brasil, foi chamado de “A volta à Grande Disciplina” (J.B. Libânio). Na verdade, o foco da teologia da libertação apenas se ampliou. Depois de absorver melhor o papel central da subjetividade humana (as questões culturais, do gênero, etc.), acabou assumindo em sua plenitude também a questão ecológica. Neste momento, a esperança maior, a meu ver, está depositada na reflexão do expressivo grupo de teólogos e biblistas que propõem unir a teologia latino-americana da libertação com a teologia mundial do pluralismo religioso. A Comissão Teológica da “Associação dos teólogos e teólogas do Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT)”, sob a coordenação de José Maria Vigil, Luiza Tomita e Marcelo Barros, lançou recentemente a série de cinco livros, intitulada “Pelos muitos caminhos de Deus”.  As “sementes” do Verbo, das quais Ad Gentes falava, se transformaram em belíssimas flores. Da própria antropologia humana brotam as irreprimíveis e riquíssimas espiritualidades que, em seu conjunto, oferecem as melhoras esperanças de futuro. Pelo destaque que os livros merecem vou citá-los, nas suas edições sucessivas: 1) Pelos muitos caminhos de Deus: Desafios do Pluralismo Religioso e Teologia da Libertação; 2) Pluralismo e Libertação: Por uma Teologia Latino-Americana Pluralista a partir da fé cristã; 3) Teologia Latino-Americana Pluralista da Libertação; 4) Teologia Pluralista Libertadora Intercontinental; 5) Para uma Teologia Planetária. 
            Os sonhos da humanidade nunca são uniformes. Nas ruas de Paris se encontravam os anarquistas radicais da esquerda, entre os quais o estudante Daniel Cohn-Bendit, então em grande destaque. Mas havia também os ultra-radicais da direita, além das inúmeras matizes intermediárias. Até hoje é assim, em todos os países. Quem levará este mundo ao paraíso, à “Nova Jerusalém” do Apocalipse de São João? Provavelmente estes sonhos, estas utopias humanas, nunca se concretizarão em sua totalidade. Ainda assim, são da maior importância. As utopias nos indicam por qual caminho seguir e elas fornecem a indispensável energia para não desanimar da longa peregrinação. Acima de tudo, elas indicam os avanços pastorais a serem feitos para que se concretize o Reinado do Pai, ou a “Vida Plena” sonhada por Jesus.

*Nasceu na Holanda, em 1939. Fez noviciado e filosofia na Bélgica, e teologia e ciências sociais em São Paulo, Brasil. Sua atuação principal esteve sempre ligada à pastoral prática, rural e urbana. Por muitos anos atuou também no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), em São Paulo, e deu aulas de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia dos religiosos (ITESP/SP). De 2001 a 2008 atuou na política, como vereador, no Município de Holambra-SP. Nos últimos anos tem trabalhado na paróquia svd, em Diadema SP. Escreve regularmente em revistas pastorais de circulação nacional, além de prestar assessorias diversas às CEBs e às Pastorais Sociais. Acesso aos artigos em artigospadrenicolausvd@blogspot.com;  E-mail: nijlbakker@hotmail.com

Studia Inst. Missiologici 2018: Missão SVD na realidade "glocal", bras. e lat. americ.


A MISSÃO SVD NA REALIDADE “GLOCAL”, BRASILEIRA E LATINO-AMERICANA
Pe. Nicolau João Bakker, svd – Brasil Centro

Introdução
            A missão svd, no Brasil (e na Am. Latina) de hoje, não pode ser retratada corretamente sem um breve olhar retrospectivo. Os primeiros missionários svd aportaram aqui em 1895. Em pouco tempo, muitos outros se juntaram a eles. Com certa naturalidade trouxeram com eles a mentalidade missionária que era comum na Europa, no final do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX. Não estava presente ainda o conceito da ”inculturação” e, menos ainda, a concepção teológica da “opção pelos pobres”. Sob ponto de vista pastoral, a Igreja do Brasil vivia, na primeira metade do século passado, o clima eclesial típico da “romanização”. Desde o Concílio de Trento (1545/63) e o lançamento posterior da “contra-reforma católica”, a Igreja de Roma se deixou guiar, como afirmou o grande historiador eclesiástico brasileiro, Riolando Azzi, por três princípios básicos: centralização, doutrinação e clericalização. Pela “implantatio ecclesiae”, as “terras de missão” precisavam ser cristianizadas. Missionários e missionárias vieram em grande número para “converter” os povos pagãos e, assim, como também pensava Arnold Janssen, “levar as almas todas para o céu”.
            A “globalização católica” que ocorreu, nas terras latino-americanas, muito mais do que ser um “implante” era, na verdade, um “transplante”. Transplantou-se o modelo eclesial europeu. Quando chegaram por aqui os primeiros missionários verbitas, os colonos europeus já estavam por toda parte. O que restou da população indígena original havia se refugiado nas distantes florestas do interior, e, nas cidades e pequenas vilas, florescia uma típica “religiosidade popular brasileira”, fruto em grande parte da colonização inicial portuguesa. Com um clero extremamente escasso, quem sustentava a religiosidade popular eram as irmandades religiosas leigas. Com o fortalecimento da romanização, estas antigas irmandades foram sendo substituídas pelas “pias sociedades”, todas elas comandadas pelo clero. Os missionários verbitas foram assumindo paróquias, uma a uma, dando seguimento a este modelo pastoral, frequentemente dando preferência às paróquias das colonizações estrangeiras. Fazia parte do esforço romanizador também a preocupação com a educação da juventude. Não seria possível cristianizar o país sem a cristianização dos jovens, em especial os da classe média urbana, vista como o futuro do país. Por isso, em muitas cidades, os verbitas deram início a grandes centros de educação, até hoje de expressivo prestígio nacional.

1.      A MISSÃO SVD NA PASTORAL PÓS-CONCILIAR
            Quando, em novembro de 1964, a nova comissão conciliar que preparava o documento sobre as missões, decidiu criar uma subcomissão de cinco membros – assessorada por cinco teólogos, entre os quais Yves Congar e Joseph Ratzinger - para acolher as reflexões conciliares e elaborar um novo ante-projeto, nosso Geral, Pe. João Schütte, estava entre eles. Sua influência foi decisiva. Após dois períodos de quinze dias de trabalho intensivo, na residência de verão do generalado svd, em Nemi, o próprio Pe. Schütte apresentou o ante-projeto na Aula Conciliar, o qual recebeu a maior aprovação de todos os documentos conciliares: 2394 a favor e apenas 5 contra. Com algumas novas emendas, o documento – Ad Gentes - foi promulgado por Paulo VI no dia 7 de dezembro de 1965. O conceito geográfico de missão – na comissão conciliar, o Prefeito da Propaganda Fide, cardeal Agagianian, e até o progressista, Yves Congar, ainda o defendiam – foi abandonado e a expressão “implantatio ecclesiae” é usada com reservas. A própria Igreja, por natureza, é missão, em qualquer lugar do mundo. Todo o eclesiocentrismo é evitado. A Igreja é instrumento do Verbo, a serviço do mundo. E, de forma surpreendente, o documento reconhece que as “sementes do Verbo”, embora “adormecidas”, já estão presentes em todas as religiões (nº 11), pois “o Espírito Santo já atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado” (nº  4).
1.1 O surgimento das CEBs e das Pastorais Sociais
            A “recepção”, deste e dos demais documentos conciliares, pelos bispos latino-americanos foi excepcional, embora muito dependente de algumas lideranças extraordinárias, entre as quais o brasileiro, Dom Helder Câmara. Este estava entre os principais articuladores do “Pacto das Catacumbas”, assinado, em 16/11/1965, por 42 bispos, dando início à assim denominada “Igreja dos Pobres”. De modo geral, a América Latina vivia então um clima de grande inquietação social. A forte e crescente “globalização econômica” foi por muitos percebida como a “globalização da pobreza”. Em muitos países do continente, em oposição à articulação das forças populares, nos sindicatos, nos movimentos sociais e nos movimentos estudantis, com apoio de intelectuais “orgânicos” das universidades e das Igrejas, surgiram as ditaduras militares, em aliança com as elites econômicas nacionais. Como estudantes de teologia, em São Paulo, pudemos acompanhar de perto a movimentação. Como estudante de ciências sociais, poucos anos depois, pude adquirir uma melhor compreensão dos fatos. O grande grito da época era pelas “reformas de base”. Entre elas se propunha, em primeiro lugar, uma efetiva “reforma agrária” para estancar o assustador “êxodo rural” e impor um freio ao avanço do agrobusiness sobre a tradicional agricultura familiar. Propunha-se também uma “reforma urbana” para integrar melhor as imensas periferias abandonadas às benesses das políticas públicas. Na euforia do recém-descoberto “planejamento estatal”, o Presidente brasileiro, Juscelino Kubitschek (1956/61), prometeu fazer “50 anos em 5”, mas, enquanto isso, nas universidades latino-americanas, nascia a famosa “teoria da dependência”: a globalização nada mais é do que uma imensa periferia mundial girando, numa eterna dependência econômica e política, em torno de um centro dominador que dita todas as regras.
            Com forte apoio do episcopado brasileiro, realizou-se, na cidade de Medellin, em 1968, a mais do que afamada “II Conferência Episcopal Latino-americana”. Muito bem assessorada por teólogos de destaque, a Conferência adaptou o Vaticano II à situação real do continente, tendo em vista a realidade acima mencionada. Nunca mais surgiu um documento de tal envergadura. Com grande fidelidade à Gaudium et Spes, fez-se uma acurada leitura dos “sinais do tempo” e, com muito respeito às “realidades terrestres”, nasceu a proposta de uma Igreja renovada. Não uma Igreja de feição hierárquica, mas uma “Igreja-Povo”, de rosto latino-americano, emergindo “a partir das bases”. O documento de Medellin usa, pela primeira vez, a expressão “Comunidade de Base”, rebatizada, oficialmente, em Comunidade Eclesial de Base (CEB) na III Conferência, em Puebla (1979). Em oposição à “globalização romana”, caracterizada por paróquias centralizadas, clericalizadas e doutrinadas, Medellin propõe a paróquia “descentralizada”, por meio da criação das Comunidades de Base, “desclericalizada”, por meio de maior autonomia e protagonismo leigos, e “des-doutrinada” por meio de uma nova pedagogia pastoral: cada Comunidade se subdivide em pequenos grupos que se reúnem regularmente para confrontar a Palavra de Deus com os desafios reais da vida de cada dia, em especial a situação de exclusão social.
            As quatro Regiões SVD (Centro, Sul, Norte e Extremo Norte), no Brasil, se encaixaram perfeitamente no modelo proposto. Apoiadas pelo incentivo permanente dos excelentes planejamentos pastorais quadrianuais da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), as Comunidades Eclesiais de Base surgiram por toda parte. As paróquias se descentralizaram com o surgimento das CEBs nos bairros e nas vilas; se desclericalizaram porque os leigos e as leigas, em co-responsabilidade com os padres, foram assumindo a coordenação e a animação das mais diferentes frentes de trabalho; e se des-doutrinaram porque, por meio dos grupos bíblicos, o tradicional ensinamento, imposto de cima para baixo, foi substituído pelo lento, mas muito mais autônomo, processo de amadurecimento pessoal (e comunitário)l na fé. Enviado, em 1965, a minha primeira paróquia no Vale do Ribeira, a região mais pobre do Estado de São Paulo, hoje a Diocese de Registro, tive o privilégio de participar intensivamente deste processo. Das 12 paróquias da atual Diocese, 10 estavam sob a batuta dos missionários verbitas. Com um extraordinário entrosamento, raramente visto, entre padres, irmãs religiosas, e leigos/as, aos poucos, a Diocese inteira foi se estruturando no “modelo CEBs”. Chegamos a inventar nossa metodologia própria, chamada de “batida”. Sem olhar divisas paroquiais chegamos a visitar – padres, irmãs e leigos/as -, no decorrer de três dias, a população local, nas casas e nas roças, ou aonde estivesse, e, dividindo-nos em grupos, à noite, trocamos ideias sobre uma possível “caminhada de CEB” naquele lugar. Na terceira noite, os grupos se reuniam num mesmo local para tomar uma decisão coletiva. Em caso positivo, as primeiras atividades já eram organizadas. Surgiram assim inúmeras novas Comunidades. Na grande metrópole de São Paulo (20 milhões de habitantes!), como nas quatro Regiões SVD em geral, os padres verbitas, pelos mais diferentes caminhos, perseguiram o mesmo objetivo, também com excelente resultado. Sem dúvida, tempos de uma nova “Igreja em construção”. Todos reconhecem: a SVD fez bonito! A missão “ad gentes” se cumpriu.
            O conceito de CEB, na América Latina, está intimamente ligado ao conceito de “Pastoral Social”. Do caldeirão fervente da “Nova Teologia” pré-conciliar, da longamente discutida e combatida proposta de Gaudium et Spes no decorrer do Concílio, de Medellin, e da nova concepção de Igreja e Missão, mas, mais ainda, da própria convivência com os excluídos e marginalizados do continente latino-americano, nasceu a Teologia da Libertação com sua “opção preferencial pelos pobres”. Juntamente com ela, como fruto da convivência com o povo pobre, nasceu uma nova leitura bíblica, não apenas histórico-crítica, mas também, digamos, “presencial-profética”. Pela amplamente divulgada “leitura popular da bíblia”, a Igreja Latino-americana aprendeu que “tudo é política, mas a política não é tudo”. Apenas uma atitude pastoral “transformadora” é capaz de romper a camisa de força da dependência econômica e política globalizada e – em fidelidade ao Reino de Deus pregado por Jesus - oferecer ao povo um horizonte de esperança. Com base nesta “espiritualidade libertadora” surgiram pastorais sociais das mais diversas cores. No Vale do Ribeira vimos nascer a, até hoje, importante “pastoral operária”. Com apoio de lideranças nacionais, como Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio, fomos incentivando os grupos de alfabetização e os cursos para lavradores. Surgiram as lutas populares contra as barragens e contra as grilagens de terras. Nasceu a pastoral dos pescadores, a luta pela preservação da mata atlântica e contra as usinas nucleares. Verbitas ajudaram a defender os quilombolas e os pequenos núcleos indígenas restantes. Em fim, todo um elenco de “pastorais sociais”. Na cidade de São Paulo, e em muitos outros lugares, não foi diferente. Inseridos numa “Igreja em renovação”, os verbitas se esmeraram na oposição ao regime militar, na defesa dos direitos humanos, no incentivo aos movimentos sociais, e na formação de novas lideranças. Tudo isso sempre em nome e em conjunto com a “caminhada das CEBs”. CEBs e Pastorais Sociais são irmãs gêmeas. “CEBs é o novo modo de ser Igreja”, costumava-se dizer.
1.2 No enfoque da globalização
Todo este empenho pastoral tem a ver com “globalização”? Tem, sim, e muito. Desde há muito tempo, o continente latino-americano é um continente globalizado. Povos europeus e árabes vieram para cá em grande número e acabaram, sob ponto de vista cultural, estabelecendo um certo clima generalizado de paz e boa convivência. Sob ponto de vista social, porém, a análise é outra. Indígenas e “afro-descendentes” (no Brasil, 50% da população!), foram empurrados para as margens, dando origem à reação pastoral acima esboçada. Entre nós, muito mais do que a imigração foi a migração das últimas décadas que desafiou a missão da Igreja. No Brasil, por exemplo, a população urbana aumentou de 30% em 1937 para 85% em 2017!  Sair da vida rural para uma moderna vida urbana, geralmente envolvendo distâncias de centenas ou milhares de quilômetros, com ou sem a família, é tão impactante quanto mudar para o outro lado do globo! Nosso colega, S. M. Michael svd, observa (cf. em 2.a) que a globalização é a marca do nosso tempo, uma marca, porém, que não pode ser corretamente analisada sem um ajuste conveniente das lentes. A “cultura relativística” da nossa sociedade pós-moderna, ele diz (cf. em 3.iii), mexe com os próprios “fundamentos” da sociedade humana. Um “individualismo exagerado” fragmenta os laços familiares e o comprometimento com os “laços sociais e institucionais”, entre os quais os religiosos. Perde-se de vista até o próprio “sentido” da vida humana (cf. em 4.a). Hoje, o individualismo ocidental, pelos mecanismos da globalização, atinge o mundo todo. Conclui S. M. Michael (cf. em 5.) que nosso discipulado missionário requer uma forte dose de “discernimento” para fazer as escolhas certas, tendo em vista o mundo que está à nossa frente. Na América Latina optamos pelo caminho das CEBs, até hoje considerado o melhor caminho para enfrentar os desafios mencionados. Seja na cidade, onde a modernidade avançada age com mais força, ou no distante  interior, onde o novo clima cultural penetra com vigor crescente, o bom observador pode constatá-lo facilmente. É na CEB que o indivíduo “desenraizado” encontra um novo ambiente familiar e social onde suas carências antropológicas são atendidas plenamente, e onde, lentamente, elabora um novo “sentido” para sua existência.
“Processos locais têm consequências globais”, diz nosso outro colega, Philip Gibbs (cf. em 1.). A reflexão – aprofundada e permanente – sobre a realidade “local” (Am. Latina) fez nascer não apenas as CEBs com suas pastorais sociais, mas também uma nova teologia, de feição particular, a “teologia da libertação”. Esta teologia, apesar das contestações, correu o mundo (Cf. Gibbs 9.). Ela se “glocalizou”, podemos dizer. Não se trata de “uma teoria a mais”; trata-se de um novo modo de agir. Não novo no sentido do jamais visto. Na verdade, ela se parece com a práxis pastoral dos Santos Padres do início da Igreja. Pense, por exemplo, na famosa “Basilíada” de São Basílio de Cesareia (379). Se os teólogos da Capadócia se preocupavam, antes de tudo, com o pobre em seu estado de penúria, os teólogos da libertação se preocupam, antes de tudo, com o pobre em sua situação “estrutural” de opressão. De uma conotação mais assistencialista se passa a uma conotação mais política. No mundo globalizado, diz Gibbs (cf. em 2. e 3.), não basta mais a simples participação popular nas democracias locais; a globalização traz novos desafios para a condução política do processo democrático em nível internacional. Também nosso confrade, Christian Tauchner, lembra que nossas “pós-democracias” são profundamente desafiadas pelo fator “conhecimento”, privilégio dos poucos que comandam os processos tecnológicos, especialmente os “digitais”, colocando à margem os processos democráticos tradicionais (Cf. em “information society”). “A cultura dominante”, já dizia Marx, “costuma ser a cultura dos dominadores”. Nossa convivência íntima com as pastorais sociais, no decorrer das últimas décadas, deixou mais claro qual o nosso desafio básico: a grande dificuldade não é entender, teológica e espiritualmente, que a Igreja deve se preocupar com os excluídos e marginalizados; a dificuldade maior está na correta compreensão das causas (“estruturais”, cf. Gibbs 3. e 4.) da exclusão, e na coragem profética de enfrentá-las pastoralmente. Isso requer um eterno “nadar contra a maré”, uma vez que a cultura dominante, presente também nas tradições religiosas, e propagada pelos mais modernos meios de comunicação, não costuma revelar a face oculta do sistema. “Com a expansão do capitalismo e da economia neoliberal, ajudados pelas corporações internacionais de comunicação, nós temos uma permanente exportação global da cultura “ocidental”, diz Gibbs (cf. em 7.). Muitos representantes das nossas CEBs e Pastorais Sociais costumam participar do “Fórum Social Mundial”. Será que, nas nossas províncias svd, ainda hoje, a JUPIC está significativamente presente? Ou vamos permitir que a “globalização cultural” seja feita exclusivamente pelas Igrejas Pentecostais e Neopentecostais (Gibbs 8.)? 

2.      A MISSÃO SVD NO CONTEXTO PASTORAL DAS ÚLTIMAS DÉCADAS
            Até aqui falei da missão svd no contexto pastoral latino-americano e brasileiro, enfocando mais o período pós-Vaticano II e pós-Medellin. Para o bem da verdade, este não é o único período a ser ressaltado. Não é segredo para ninguém que a teologia da libertação, e o seu rosto mais visível nas CEBs e nas Pastorais Sociais, nunca foram bem aceitos pela Cúria Romana. Em 1984, o documento da Santa Sé, Libertatis Nuntius, condenou diversos aspectos desta teologia e, embora suavizada pelo documento Libertatis Coscientia, de 1986, e pela carta do papa João Paulo II à CNBB, chamando-a de “não só oportuna, mas útil e necessária”, muitas críticas da ala mais conservadora da Igreja permaneceram. Convivendo com alguns estudantes de teologia numa das nossas paróquias, na distante periferia da cidade de São Paulo, em 1985, fomos surpreendidos pelo “silêncio imposto” ao teólogo brasileiro Leonardo Boff. As inúmeras lideranças leigas das CEBs e das Pastorais Sociais ficaram indignadas. Por iniciativa de um dos estudantes, enviamos, entre outros ao Núncio Apostólico, um cartão postal que mostrava Boff com a boca tampada por um pano vermelho. “É hora de gritar e não de calar”, dizia o cartão. O Núncio Apostólico reclamou, mas nosso bispo, o amável Dom Luciano Mendes de Almeida SJ, que dormia sempre com um batalhão de pobres em frente à sua porta, sendo Secretário Geral da CNBB, nos entendeu muito bem. Não se pode calar a voz profética da Igreja. Mas eram, então, os primeiros sinais da “volta à grande disciplina”, como tão bem observou o eminente teólogo e pastoralista brasileiro, João Batista Libânio SJ. Como professor de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia dos Religiosos (ITESP), em São Paulo, senti o aperto bem de perto. Alguns emissários de Roma vieram verificar quais os “manuais” que usávamos. Uma nova disciplina foi imposta aos seminários e a imensa Arquidiocese de São Paulo, dirigida pelo grande defensor dos Direitos Humanos, Dom Paulo Evaristo Arns, foi subdividida em diversas dioceses independentes. Fim da nossa tradicional e bem planejada “pastoral de conjunto”. Na nomeação dos novos bispos, até hoje, os critérios da Cúria Romana se tornaram muito mais rígidos. Nuvens no horizonte para uma Igreja que dava seus primeiros passos rumo à Igreja “una, santa, católica e apostólica”, mas dentro do princípio conciliar de uma “colegialidade partilhada”.
2.1 O desafio das nossas “dimensões prioritárias”
            Apesar da camisa de força, imposta à pastoral latino-americana a partir da década de 1980, a missão svd, por um bom tempo ainda, se mostrou bastante vibrante. Como Congregação Missionária, as diferentes Regiões SVD tentaram definir com maior clareza qual a sua missão específica na Igreja e na sociedade. Aos poucos foram se estabelecendo as quatro prioridades que, até hoje, orientam as Províncias. Falarei, mais especificamente, da Província Centro do Brasil, por conhecê-la mais de perto. Já em 1979 surgiu a “VERBO FILMES”, tendo em vista a prioridade “comunicação”. Em poucos anos, ganhou destaque nacional, lançando um impressionante número de valiosos instrumentos pastorais de comunicação, entre os quais filmes de longa e curta duração. Até hoje alimenta, de forma permanente e atualizada, os diversos grupos e pastorais da Igreja, com destaque para os muitos leigos e leigas que dedicam a vida às CEBs, às Pastorais Sociais, e à caminhada de uma Igreja autenticamente libertadora. Ainda que não se use o nome, dificilmente algum aspecto da “glocalização” em andamento fica sem a devida atenção. Para a prioridade “Bíblia” nasceu, em 1987, o “CENTRO BÍBLICO VERBO”, também alcançando rapidamente destaque nacional. Uma incansável equipe se dedica à organização de grande variedade de cursos, além de publicações, sempre fiel ao objetivo original da “leitura popular da bíblia”, refletindo a Palavra de Deus a partir do contexto de sua origem, e dentro do contexto da realidade atual. Um instrumento valiosíssimo para os milhares de grupos bíblicos brasileiros que encontram nesta dinâmica grupal um antídoto contra o individualismo da cidade moderna globalizada, e contra a falta de consciência crítica, impingida pela cultura ocidental midiatizada, secularizada, fragmentada e consumista. A terceira prioridade, a da “ANIMAÇÃO MISSIONÁRIA”, também sempre esteve presente, ora de uma forma mais visível, ora de forma mais discreta. Não possuindo uma “sede” e agindo de forma mais difusa, nas paróquias, ela, na verdade, se faz presente em todas as atividades pastorais dos membros da Província.
            Quero destacar, de forma especial, a prioridade “JUPIC” (Justiça, Paz e Integridade da Criação). No meu modo particular de entender, a JUPIC é a prioridade das prioridades, especialmente na Am. Latina. Se as outras prioridades são “meios” que favorecem uma atuação mais eficaz, mais fiel ao Evangelho, a JUPIC é a essência da própria ação evangelizadora da Igreja. Vejo a Igreja como o grande instrumento – Schillebeeckx falava de um “sacramento”, um sinal – que Deus usa para que o mundo progrida em direção à paz, à justiça, à fraternidade e ao bem viver, com inclusão do equilíbrio ecológico. Sem atuação na linha JUPIC, a Igreja perde a sua própria razão de ser. Já falei das muitas atividades JUPIC no Vale do Ribeira, na cidade de São Paulo, e em outras Regiões, frequentemente por iniciativa particular. Na década de 1990, a prioridade JUPIC se tornou mais visível em nível das nossas províncias religiosas. Em conjunto com as Servas do Espírito Santo, organizamos, de dois em dois anos, as “Semanas Latino-americanas JUPIC”: S. Paulo/Brasil: 1992; Puerto Rico/Argentina: 1994; Ypacaraí/Paraguai: 1994; Santiago/Chile: 1996; Cochabamba/Bolívia: 1998. Nos anos intermediários foram as “Semanas Nacionais JUPIC”: São Paulo/Brasil: 1995; Ponta Grossa/Brasil: 1997; Borda do Campo/Brasil: 1999; Barra Mansa/Brasil: 2001. Em todos estes encontros de formação e animação, que costumavam reunir em torno de 50 ou mais das melhores lideranças, entre padres, irmãs e leigos/as, os resultados foram excelentes. Para a formação tivemos sempre as melhores assessorias possíveis, tanto em nível nacional quanto em nível internacional. A animação JUPIC nas Províncias dependia em muito destes encontros. Na preparação da “V Semana Latino-americana JUPIC”, infelizmente, esta forte dinâmica JUPIC foi interrompida por entraves burocráticos. Nas Províncias dos Verbitas, estava-se em busca de um fortalecimento pan-americano. O novo coordenador pan-americano, Pe. Sérgio Cerna, pouco ligado à questão JUPIC, cancelou o encontro e os provinciais verbitas mandaram esperar pela nomeação de um coordenador pan-americano para a prioridade JUPIC, o que nunca aconteceu. A força espontânea que veio “de baixo” foi podada pela força institucional que veio “de cima”. É a briga tradicional entre instituição e missão. Quem perde, normalmente, é a missão.
2.2 O momento atual
Sob ponto de vista da globalização econômica e política, o momento atual, na América Latina e no Brasil, é de grande preocupação, e até de certo desalento. O que acontece no “centro” do mundo ocidental (EUA/Europa) continua afetando fortemente a “periferia” latino-americana. O liberalismo econômico, mais global do que nunca, apesar da crise de 2008, de tal maneira se “monopolizou”, que até um dos seus atuais mais expressivos representantes, o economista francês, Thomas Piketty (em seu livro O Capital - do Século XXI), observa que “o sistema enlouqueceu”. Os seus contundentes gráficos e tabelas demonstram que, com a introdução do neoliberalismo, o acúmulo capitalista tende a superar a própria realidade pré-Marx. Menos de 1% da população mundial possui mais de 50% da riqueza mundial. Verdade é que a oposição popular nas ruas também cresce. “Nós somos os 99%”, dizem os cartazes em Nova York. “Onde está o nosso pão e nosso emprego”, perguntam as ruas de Atenas, Lisboa, Roma e Madrid. O que é comum na Europa, começa a se repetir na Am. Latina: governos trabalhistas e liberais se revezam, mas o sistema não muda. Muitos países árabes e africanos estão em frangalhos e o número de “sobrantes” aumenta. Aonde encontrar esperança? A minha está na própria antropologia humana: somos parte da “Vida”, e a vida evolui de forma aleatória, mas não sem um nexo com as possibilidades pré-existentes. Também a consciência humana, lentamente, “se globaliza”. A flecha do tempo vai no rumo da “complexidade crescente”, e não no rumo da autodestruição. S. Paulo já o dizia: são as “dores do parto”. O desalento do momento, no entanto, é grande.
Também na Igreja, pois ela respira o mesmo ar. Entre nós, as CEBs, nas últimas décadas, estão pedindo socorro. Os bispos foram sumindo dos vibrantes encontros nacionais. Nossa última e significativa “V Conferência Episcopal Latino-americana”, em Aparecida SP (2007), representou um certo alívio. A parte do documento final que incentivava as CEBs, contudo, foi, entre todas, a parte mais “censurada” por Roma. Foi eliminada, inclusive, a frase que afirmava serem as CEBs “obra do Espírito Santo”. De modo geral, nas Dioceses, as CEBs não são mais “o novo modo de ser Igreja”, mas uma vertente pastoral qualquer em meio a muitas outras. Mesmo em muitas das nossas paróquias verbitas, a “dinâmica CEB” deixou de existir. O mesmo aconteceu às Pastorais Sociais. As poucas que ficaram apresentam, em geral, um caráter mais assistencialista. Se, em 1985, uma pesquisa universitária em S. Paulo ainda indicava os estudantes de teologia como “os militantes mais combativos” nas lutas sociais, os de hoje – sem se darem conta - estão muito pouco presentes. O clima eclesial é bem outro. O poder institucional é mais forte do que o poder das boas vontades. A “romanização” está de volta, com as mesmas características de sempre: centralização, doutrinação e clericalização. Com uma ressalva: desde o início do pontificado do papa Francisco, vemos os primeiros sinais de recuperação, tanto na sociedade civil quanto na Igreja.                                                                                 
Conclusão
“As Igrejas locais são chamadas a serem uma presença profética junto aos migrantes, em defesa de seus direitos e dignidade”, diz nosso confrade, G. Lazar, na conclusão de sua reflexão. Observa ele também – citando Jehu Hanciles - que Deus não se revela a partir dos poderes do “centro”, mas a partir da “periferia”. Nós, Verbitas e Servas, na Am. Latina e no Brasil, vivemos na periferia e ouvimos “o clamor do povo” (Êx 2:23-24). O fator “migração”, em perspectiva pastoral, faz parte do nosso dia a dia. A teologia da libertação surgiu como resposta aos clamores deste povo, e é dela que nasceram nossas CEBs e Pastorais Sociais. Limitei-me a falar mais delas, pois é nossa contribuição específica à grande missão verbita no mundo. Estamos cientes que, mais importante do que olhar com saudade para nosso passado, é encarar com fé e coragem o mundo que vem ao nosso encontro. A Teologia da Libertação continua evoluindo. Se, inicialmente, a ênfase maior estava voltada para as transformações sociais, já na década de 1990 se tornou muito visível a preocupação com os aspectos culturais, tanto do ser humano quanto da sociedade. A questão do gênero, por exemplo, ficou mais do que evidente. Hoje, um dos focos principais desta teologia é a questão ambiental. Amadureceu a concepção de que “tudo está interligado”, conceito que o papa Francisco repete trinta vezes em sua Encíclica Laudato Si. Parabenizamos o nosso confrade, Anthony Le Duc, por tão bem ressaltar “as preocupações ecológicas na nossa era de globalização” (cf. o título de sua contribuição). Creio que também o “nosso” footprint – como instituição missionária, dentro da Vida Religiosa Ativa - está acima da capacidade do planeta de suportá-lo.... e acima daquilo que nos identifica com “os pobres”. Penso que cabe ao Capítulo Geral repensar mais concretamente esta questão.
Como último ponto gostaria de ressaltar a conexão entre globalização e a, entre nós verbitas, tão elogiada interculturalidade. Aqui entre nós, a comissão teológica da “Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo” (ASETT), lançou uma série de cinco livros (série: “pelos muitos caminhos de Deus”), unindo a teologia da libertação latino-americana à teologia mundial do “pluralismo religioso”. Um avanço mais do que bem vindo. A globalização econômica, com suas inerentes consequências políticas e culturais, chegará à exaustão, não por rejeitar esta ou aquela religião, mas por rejeitar a religiosidade humana como tal. Há inúmeros pontos comuns à religiosidade humana, e estes brotam da própria essência antropológica. A globalização cultural ocidental (secularizada), ou qualquer outra, estará fadada ao fracasso caso não respeitar esta religiosidade. Com aproximações diversas, nossos confrades abordam este importante enfoque em suas reflexões: Le Duc (cf. “religious contribution”); Lazar (cf. “Migration as Spiritual Experience”, e “Migration: Missiological Perspective”); Michael (Cf. 4.a, 4.b e conclusão); e Gibbs (Cf. 8). Nossa interculturalidade religiosa verbita, neste sentido, é de exemplar importância. Mas há de se ressaltar também o lado preocupante. Ninguém de nós, indo a um outro continente, consegue “desvestir-se” de sua roupagem cultural original. Podemos compreender, e até “adotar”, uma nova cultura ou tradição religiosa, mas esta nunca será o nosso “eu”, formado na infância e adolescência. Apenas um descomunal esforço nos permite “captar” de verdade e “nos dar bem” na nova religiosidade encontrada. O atual “desalento”, perceptível em diversos segmentos das Províncias SVD, como acima comentei, não é apenas fruto do novo contexto pastoral em geral. É também fruto dos muitos confrades da Indonésia, Índia e África – e dos estrangeiros em geral – que não “vivenciaram” o nascer da teologia da libertação e seu “rosto latino-americano”, mais visível nas CEBs e nas Pastorais Sociais. Espontaneamente “se dão bem” com, e se limitam mais facilmente, ao tradicional modelo romano que, de modo uniforme, foi aplicado ao mundo inteiro e que é da nossa infância. Ainda que haja a maior boa vontade do mundo para adotar o “jeito latino-americano” de fazer pastoral, os limites culturais de origem criam, de fato, um forte obstáculo. Impõe-se uma formação inicial e permanente muito bem elaborada e acompanhada, em cada Província ou Região, para fazer frente a este desafio. Entre nós falha visivelmente. Seria importante o Capítulo Geral criar mecanismos adequados para que os frequentes apelos feitos neste sentido não fiquem “soltos no ar”.


Vida Pastoral Março 2019: Fraternidade e Políticas Públicas


Fraternidade e Políticas Públicas

Nicolau João Bakker, svd*

Para ter uma ação pastoral eficaz diante da necessidade de combater, promover ou aperfeiçoar políticas públicas, o autor vê como indispensável a constituição de expressivos “fóruns sociais regionais”, de caráter plurirreligioso. Estes, porém, na sociedade secular que vem se impondo, precisam atuar não apenas a partir de critérios racionais, mas também, e principalmente, a partir de uma profunda dimensão espiritual.


Introdução:
            Nos temas que a CNBB indica para as Campanhas de Fraternidade podemos observar certa alternância entre temas gerais e temas específicos. Se no ano passado a opção foi por um tema específico, no caso a “violência”, este ano temos novamente um tema geral: “as políticas públicas”. Certamente pesa o fato de a Igreja, devido a sua configuração ainda predominantemente clerical, se sentir mais à vontade com abordagens genéricas. Já os/as leigos/as, profissionalmente e no dia a dia, lidam com questões específicas de educação, família, trânsito, biomas, justiça do trabalho, violência, e, na questão política, só podem atuar “partidariamente”. As abordagens genéricas são necessárias, mas elas perdem sua utilidade se não abrirem perspectivas para a ação concreta. 
            Inicialmente gostaríamos de relembrar a importância e a riqueza pastoral das Campanhas de Fraternidade, justamente agora no nosso tempo pós-moderno quando uma imaginária “volta ao sagrado” parece sugerir abandonar de vez a preocupação com as políticas públicas, qualquer que seja. Em seguida refletiremos sobre a necessidade de uma melhor elaboração do que hoje se entende por “teologia pública”. Especialmente no mundo cultural do Ocidente impuseram-se as democracias laicas. Mas são realmente democracias? E qual a laicidade que se possa admitir se todo ser humano é, na sua essência, um ser religioso? Falar em políticas públicas requer uma análise teológica mais apurada sobre o que nós, como cristãos/ãs, podemos e devemos esperar de qualquer governo. Finalmente gostaria de apontar para algumas pistas pastorais concretas na perspectiva da CFr. 2019, levando em conta especialmente uma experiência recentemente vivida num país onde a secularização alcançou, talvez, o seu grau mais elevado.
I As Campanhas de Fraternidade: um legado insubstituível
            A primeira CFr. nacional realizou-se em 1964 com o lema: “lembre-se: você também é Igreja”. De lá para cá, anualmente, num autêntico processo de “formação permanente”, temos sido lenbrados que a fé, sem as obras, é uma ilusão (Tg 2,14-26), e que o “amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei” (Jo 15,12) define a essência do Evangelho e da vida cristã. Uma das principais características das nossas CFr´s tem sido o empenho em superar o assistencialismo. Mais do que em outros continentes, a teologia entre nós evoluiu no sentido de captar melhor a necessidade de mudanças estruturais e sistêmicas. A maldade individual e a coletiva se alimentam mutuamente, porém, mais importante do que combater o mal nas pessoas é combater as “estruturas de pecado” (Sollicitudo Rei Socialis, 38), o mal entranhado nos modos de ser da sociedade: seu modo específico de lidar com a economia, a política, as questões sociais, culturais, ambientais, etc. Assistir ao pobre continua um testemunho poderoso da fé cristã, mas não basta deixar as migalhas ao pobre Lázaro. É preciso apontar também para a situação injusta dos que “recebem os bens na vida”, enquanto outros, “por sua vez, os males” (Lc 16,19-31). É o que fez Jesus. Superar o assistencialismo não é um modismo apenas, fruto da teologia da libertação. Seu imperativo está solidamente ancorado no Magistério da Igreja. Basta dar uma olhada nos escritos dos Papas João Paulo II (Sollicitudo Rei Socialis, 38-43), Bento XVI (Caritas in Veritate, 56-58) e Francisco (encontros com os movimentos sociais). O mesmo incentivo encontramos na Doutrina Social da Igreja: DSI 184, 201, 208, 351 e 524. Na atual conjuntura da nossa Igreja percebemos, aqui e ali, um certo mal-estar com as CFr´s. Em muitos lugares, elas são simplesmente “esquecidas”. Enfrentar o mal sistêmico (este ano nas “políticas públicas”) é desafiador e requer, de fato, muita persistência. Facilmente bate um desânimo, especialmente no clero. Mas nunca é hora de ”jogar a toalha”. As CFr´s constituem um dos mais ricos legados das comunidades cristãs do Brasil.
II O grande desafio da “teologia pública”: qual o espaço da religião em governos laicos?
            Pouco se tem falado no Brasil de uma “teologia pública”, mas, crescentemente, uma melhor elaboração se impõe (ver também: Bakker N.J., REB, nº 304/2016). Tratando, genericamente, de políticas públicas, a questão que se coloca é: o que a teologia (e a Igreja) tem a dizer sobre o dever do Estado, se este Estado é laico e possui sua autonomia própria? Nesta perspectiva, a Doutrina Social da Igreja, redigida pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz” e apresentada de modo orgânico em 2004, apresenta uma rica fonte de informação e inspiração. O nº 424 lembra o fundamento colocado em Gaudium et Spes 76: “No terreno que lhe é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas”. No nº 571, a autonomia política recebe limites: “A doutrina moral católica, todavia, exclui claramente a perspectiva de uma laicidade concebida como autonomia da lei moral”. E, dada a realidade que vivemos hoje em sociedades multirreligiosas, o nº 572 acrescenta: “Numa sociedade pluralista, a laicidade é um lugar de comunicação entre as diferentes tradições espirituais e a nação”.
            Em Caritas in Veritate 56, o Papa Bento XVI pondera: “A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso, impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm risco de não ser respeitados, porque ficam privados do seu fundamento transcendente, ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal. No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé, e isto vale também para a razão política, que não se deve crer onipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade”. Cremos que estão aí os parâmetros principais para uma adequada teologia pública. O que, contudo, mais importa, sob ponto de vista pastoral, é verificar o que estes parâmetros nos têm a dizer sobre políticas públicas, no atual contexto da realidade brasileira.
III As Políticas Públicas e o indispensável aporte da religiosidade humana
            Recentemente tive a oportunidade de passar um tempo na Holanda, o país onde vivi até os meus 21 anos de idade, e onde o processo de secularização parece ter chegado ao seu nível mais elevado. Um grande número de pensadores atuais entende que o fenômeno da secularização é um fenômeno típico da Modernidade, sendo a tão comentada e atual “volta ao sagrado” um fenômeno típico da pós-Modernidade. Nós entendemos que a mesma Modernidade continua existindo, mas adquirindo novas feições, ou novas “fases”, aprofundando o clima laico da sociedade, e atingindo faixas sempre crescentes da população. Nesta perspectiva, a “volta ao sagrado” não é uma volta, mas o “aparecimento” de centenas de novas formas de religiosidade humana e buscas de sentido que antes eram abafadas ou “invisibilizadas” por uma tradição religiosa onipresente, mais instituída e legalizada, caracterizada por um grande respeito à autoridade, às normas e às leis.
            Vejamos um exemplo. Na aldeia rural onde nasci, todas as famílias católicas (sem exceção!) frequentavam a missa dominical, muitas delas ainda uma segunda missa, de manhã, mais as vésperas cantadas à tarde. Ninguém deixava também de receber os sacramentos oferecidos. Hoje, cinquenta anos depois, não existe mais um único vestígio daquela tradição. As mesmas famílias, antes sempre presentes, hoje estão sempre ausentes. Ao máximo umas vinte ou trinta cabecinhas brancas se reúnem para a celebração dominical, geralmente dirigida por leigos. Os últimos padres vivos, também de cabeça branca, se esforçam para atender, sozinhos, o que antes eram cinco, dez ou até quinze paróquias. Neste país minúsculo, 1200 (grandes) igrejas estão oficialmente à venda. Até os cegos podem ver que, com mais vinte anos, os bispos podem lacrar a última das igrejas ainda aberta. “Fechadas para reforma”.
            Vitória final da secularização e fim da Igreja Católica na Holanda? Ledo engano. Vejamos outro exemplo. Seis anos atrás passei também uma temporada na Holanda (onde ainda tenho muitos familiares) e, de bicicleta, passei por uma grande igreja que havia sido lacrada pelo bispo. Vendo a igreja aberta, entrei para ver. Encontrei um animado grupo de velhinhos e velhinhas, tomando café após a celebração. “Nossa igreja foi fechada pelo bispo, mas nós é que fizemos esta igreja e nós a abrimos de novo!”, disseram. Agora, seis anos depois, sabendo que a igreja acabou sendo comprada por uma grande imobiliária, mandei um email para uma das lideranças do grupo: “Que pena que a longa batalha de vocês não frutificou, e mais esta comunidade teve um triste fim”. Imediatamente veio um email de volta: “O senhor está muito enganado. Nossa comunidade agora se reúne no antigo conventinho tal e tal, e venha nos visitar, ela está mais animada do que nunca!”. De fato, encontrei o grupo, bem-disposto, acompanhado discretamente pelo ex-pároco (muito entristecido) e dois ex-padres, casados mas bem animados. E, milagre, alguns jovens participando do grupo! Um deles, bem-formado, mas sem cerimônia, me disse: “aquela Igreja de mitra e báculo não nos empolga mais!”.
            Uma “comunidade de base” renascendo das cinzas? Creio que sim. Para um observador atento, é fácil perceber que, debaixo de uma laicidade mal digerida, existe uma fortíssima busca de novas formas de espiritualidade e buscas de sentido. O próprio “ateísmo moderno”, tão em voga atualmente no mundo ocidental, não passa de uma nova forma de lidar com a fé. Deus, - sempre um “mistério”, e inacessível à linguagem humana, - é deixado de lado, ou combatido, em favor de valores humanos que são, todos eles, profundamente religiosos. Na atual Holanda, em qualquer lugar, podem ser encontrados incontáveis grupos de voluntários e voluntárias para as mais diferentes finalidades, todas elas voltadas, ou para o meio ambiente, ou para o ser humano, em especial para as pessoas “deitadas à beira da estrada” (Lc 10,25-37): doentes, idosos, portadores de deficiência, desempregados, migrantes sem destino, drogados, etc. Crescentemente, as diferentes ciências que se relacionam com a antropologia ressaltam que a religiosidade é seu traço essencial. Mudam as feições históricas, mas não o interesse pelo outro (a preocupação grupal ou comunitária), nem a busca pelo sentido da vida (que transcende a realidade observável). Trata-se de uma “constante antropológica” diriam Edgar Morin e muitos outros.
            Tem razão, portanto, a Doutrina Social da Igreja quando observava: “Numa sociedade pluralista, a laicidade é um lugar de comunicação entre as diferentes tradições espirituais e a nação”. Políticas Públicas que não respeitam as tradições espirituais das sociedades, hoje multirreligiosas, não vêm ao encontro daquilo que mais preserva uma democracia autenticamente humana: a boa ética social e ambiental que, quando aberta ao transcendente, constitui o coração de todas as religiosidades existentes.
IV Políticas Públicas e a ação pastoral concreta
            Entrando agora na ação pastoral concreta, gostaria de me aconselhar com um autor ainda pouco conhecido entre nós, mas, atualmente,  em grande destaque nos países europeus: o teólogo, filósofo, sociólogo (e místico) checo, Tomás Halík. É professor de filosofia e sociologia na universidade de Praga e foi o confidente pessoal do Papa João Paulo II. É considerado um dos autores que, em maior profundidade, aborda a questão da fé em sociedades seculares. Seus dois livros principais, Paciência com Deus1 e A noite do confessor2 (tradução minha), são best-sellers na Europa.
            Por que insisto no enfoque da secularização? Porque este não é apenas um problema “do lado de lá”, a secularização é também uma forte e crescente realidade entre nós. Quais as duas metodologias pastorais, ou, poderíamos dizer, quais as duas “Igrejas” que mais se fazem presentes entre nós? Não são a Igreja do Movimento Carismático e a Igreja das CEBs? Há muitos motivos para concordar com isto. Quanto à Renovação Carismática, nós seguimos o pensamento do teólogo Pedro Rubens (ver: REB, nº 308/2017), vendo no Movimento um dos melhores frutos do Concílio Vaticano II. Leonardo Boff (mais crítico) teria usado para a Renovação a mesma definição usada para as CEBs: “um novo modo de ser Igreja”. Mas os teólogos ressaltam algumas diferenças significativas. Na nossa análise, uma vertente (a das CEBs) absorveu mais plenamente a secularização, a outra não. Para sobreviverem no mundo secular, ambas precisam abrir-se uma à outra. Tendo em vista a CFr. 2019, quais as propostas pastorais concretas que surgem desta abordagen?
1. A melhor forma de lidar com políticas públicas é a constituição de “fóruns sociais regionais”.
2. Os “fóruns sociais regionais” devem estar abertos para uma ampla participação multirreligiosa.
             Já, já me explico. Após argumentar que a secularização é um processo histórico irreversível e universal, embora de feições muito variadas, de acordo com o contexto histórico local e a receptividade individual (inclusive entre o clero), Tomás Halík vai concluindo: “A Igreja dará a melhor resposta às diversificadas necessidades espirituais das futuras gerações se conseguir apresentar o cristianismo como um “modo de vida” com profunda dimensão espiritual e, como segunda característica, um forte testemunho de solidariedade, especialmente para com aqueles que foram excluidos dos bens da sociedade” (em: A noite do confessor, cap. 9).
            Qual o ponto central nas reflexões do autor? A Renovação Carismática é uma representante típica da religiosidade não secularizada: prioriza não a razão, mas a emoção; a ação de Deus (ou do E. Santo) é concebida não dentro mas fora das realidades históricas; a leitura da bíblia é mais literal que racional (não leva em conta os contextos históricos); trabalha bem a indispensável adesão pessoal à fé, mas fecha a pessoa na sua tradição religiosa, sem mostrar as “estruturas de pecado” que a aprisionam; mobiliza o laicato, mas não desenvolve uma consciência crítica que possibilita superar o clericalismo.
            As CEBs, por sua vez, são exemplos típicos de uma religiosidade mais secularizada. Nascem da mesma fonte conciliar, mas apresentam uma dinâmica oposta à da Renovação porque usam uma metodologia diferente, mais racional. Por confrontar a bíblia e a teologia sempre com os contextos históricos (antigos e novos), captam melhor os “sinais do tempo” e desenvolvem a consciência crítica que favorece uma espiritualidade mais profética frente às estruturas de pecado na sociedade (e até na Igreja). Quem, porém, pensa que esta postura pastoral mais racional está livre da tentação, se engana muito. A secularização é um processo histórico normal de purificação da fé, mas, devido à sua índole racional, fica facilmente presa à racionalidade sem a “dimensão espiritual” ressaltada por Halík. Ele insiste neste ponto: a fé começa onde a ciência acaba. A fé capta o que está para além do racionalmente observável. Na sociedade secular, insistir nesta fé é questão de vida ou morte.
            Diz o autor: “Religião, no sentido mais amplo desta palavra, é tão natural à vida humana quanto a ética, a estética ou o erotismo... Muita gente confunde a indispensável neutralidade religiosa (ou ‘confessional’) do Estado com uma nova forma de ‘ateísmo estatal’... A neutralidade religiosa do Estado é a garantia jurídica para a liberdade e pluralidade religiosas (com inclusão da fé ateísta)... Assim como ‘não se envolver com política’ é uma postura política, assim também o ‘não se envolver com Deus’ reflete uma postura religiosa... Estou convencido que a ‘salvação da Igreja’ não vem nem da esquerda nem da direita... mas da profundidade, de uma profunda renovação teológica e espiritual (cap. 9)... “Por isso, cada passo em direção... à formação de um novo clima social é da maior importância” (cap. 11)... “Um dos paradoxos do nosso tempo é este: aquela parte da Igreja que se considera ser seu ‘burgo inexpugnável’, na verdade pode ser ‘a casa construída sobre a areia’... Em diversos lugares neste livro... distanciei-me dos ‘novos movimentos religiosos’... No calor do fervor religioso pode não ser percebida a profunda crise em que o atual contexto religioso se encontra... e assim perder a chance de um novo começo” (cap.16). 
            Claramente, o autor, para o mundo secular que vem se impondo, não vê futuro nos “renascimentos espirituais” à moda antiga, mas também não vê futuro numa “solidariedade” (das pastorais sociais) baseada exclusivamente em modernos critérios racionais. Apenas a fé, que vai além da objetividade racional (política, econômica, cultural, etc.) pode indicar o rumo do “outro mundo” a construir. Sem profunda dimensão espiritual, o mundo secular torna-se facilmente secularista ou antirreligiosa. O Espírito de Deus, presente em todo ser humano em qualquer lugar do mundo, se rebela contra isso. A busca de um sentido para a existência faz parte da própria antropologia humana – ela faz parte da “gramática” humana, dizia Bento XVI – e apenas na fé é possível encontrar resposta.
            Está aí toda a urgência da constituição de expressivos fóruns sociais regionais. Combater ou aperfeiçoar políticas públicas – com base na fé - requer um imenso esforço, persistente e coletivo, da grande comunidade religiosa. Os fóruns não querem substituir as iniciativas de pastorais específicas, ou a ação de qualquer grupo ou entidade existente. Os fóruns querem “integrar” e “fortalecer” esforços e interesses comuns. Basta uma reunião mensal dos representantes dos diferentes grupos, pastorais ou entidades. Diversas dinâmicas são possíveis: pesquisar a população sobre suas propostas; apresentá-las às autoridades em encontros coletivos ou seminários; ouvir especialistas da área; caminhadas ecológicas, ou manifestações de protesto; paticipação em conselhos e eventos municipais, etc., etc. O importante é trabalhar de forma multirreligiosa, com portas abertas também para grupos não religiosos (associações de bairro, etc.). O importante é que a fraternidade (a “solidariedade” nas políticas públicas) não deixe de acontecer.
Bibliografia
1)       Halík, T. Geduld met God,  Zoetermeer (Holanda): Uitgeverij Boekencentrum, 2014.
2)       Halík, T. De nacht van de biechtvader, Zoetermeer (Holanda): Uitgeverij Boekencentrum, 2016.
*Missionário do Verbo Divino, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Foi educador popular no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, São Paulo (CDHEP/CL), e professor de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia (Itesp/SP). Publica regularmente em: Vida Pastoral, REB, Convergência e Grande Sinal. Acesso em: artigospadrenicolausvd.blogspot.com - Email: nijlbakker@hotmail.com