quarta-feira, 7 de julho de 2021

A publicar: A estranha mente humana e os desafios pastorais daí decorrentes

 

A ESTRANHA MENTE HUMANA E OS DESAFIOS PASTORAIS DAÍ DECORRENTES

Nicolau João Bakker, svd*

São Paulo SP

 

Síntese: O presente artigo ressalta a crescente importância da neurociência para uma adequada análise pastoral. A neurociência ainda se encontra em plena elaboração, mas já vão surgindo pistas mais consensuais que abrem perspectivas significativas para uma abordagem pastoral enriquecedora. Consideramos particularmente instigantes os aportes dos autores Paul R. Ehrlich (biólogo/ecólogo) e Robert E. Ornstein (psicólogo da mente), em New World, New Mind: Moving Towards Conscious Evolution. Na primeira parte do artigo abordamos a evolução histórica do cérebro humano e sua natural pré-disposição para diversas formas de “ilusão”. Na segunda parte vemos como estas diferentes formas de ilusão podem nos levar facilmente a uma ação pastoral equivocada.

Palavras-chave: Neurociência. Evolução cerebral. Ilusões mentais. Mismatched mind (mente “desadaptada”). Ilusões pastorais.

Abstract: This article highlights the growing importance of neuroscience for a deeper pastoral analysis . Neuroscience is still in the making, but some consensual clues are emerging that open up the meaningful perspectives for an enriching pastoral approach. The author considers promising contributions from authors like Paul R. Ehrlich (biologist/ecologist) and Robert E. Ornstein (psychologist of the mind) in New World, New Mind: Moving Towards Conscious Evolution. In the first part of the article the author discusses the historical evolution of the human brain and its natural pre-disposition for various forms of “illusion”. In the second part we see how these different forms of illusion can easily lead us to a wrong pastoral approach.

Keywords: Neuroscience. Brain evolution. Mental illusions. Mismatched mind. Pastoral illusions.

 

Introdução:

            Subir ao topo do Monte Everest desafiou muita gente, mas poucas pessoas chegaram lá. O desconhecido, ou o muito difícil, parece atrair e amedrontar ao mesmo tempo. Bons livros e bons filmes de aventura sempre fazem sucesso, especialmente entre o público masculino. Quando viajamos e chegamos, pela primeira vez, a uma terra que, desde os tempos de criança, consideramos longínqua e estranha, somos tomados por um sentimento de grande admiração. Ficamos “deslumbrados” com sua beleza, sua feição rara ou única, sua excentricidade enfim. Há poucos anos vimos o filme “Xingu” sobre os irmãos Villas-Bôas. Subimos com eles rios desconhecidos da selva amazônica. Basta imaginar o momento: uma rústica canoa, deslizando suave e silenciosamente sobre um rio estreito de águas, ora escuras ora mais claras, margeadas por uma floresta densa e impenetrável, cheia de mistérios; no ar um silêncio ameaçador, recortado vez por outra pelo grito assustador de um pássaro raro. Em cada curva do rio uma nova e angustiante expectativa: uma flecha mortífera, .... ou uma nova acolhida de paz. Nervos à flor da pele, a cada braçada do remo.

            É exatamente assim que foi formada a nossa mente, milhões de anos atrás. Vivemos nosso dia a dia imaginando nossa mente como algo que, em todos os tempos, foi sempre igual. Um recurso importantíssimo que nos eleva acima de qualquer outro ser vivo e que nos capacita a julgar entre o certo e o errado, o belo e o feio, o bem e o mal. Desde que a ciência antropológica se colocou como pergunta fundamental quem é mesmo este ser humano de tão variadas tradições, o foco principal foi sempre sua mente, sua cultura, seu saber local e sua visão de mundo. Apenas nas últimas décadas, a antropologia se deu conta que o ser humano é muito mais do que mente; é antes de tudo corpo. Na verdade é mente/corpo numa só unidade. Uma unidade que chamamos “vida”. É comum também imaginar nossa mente como habitante ilustre do cérebro. Nascer sem cérebro significaria não ser gente. Na verdade, o cérebro não é nada mais que o processador final das incontáveis impressões sensoriais colhidas pelo nosso sistema nervoso que se estende por ramificações sem fim, até a última célula viva do nosso corpo.  Um corpo, como dissemos, formado há milhões, muitos milhões de anos atrás.

            O primeiro diminuto cérebro se formou, há mais de 450 milhões de anos, na linhagem, no “filo”, dos animais “cordados”1. Eles nadavam nos oceanos antes de dar origem aos anfíbios cujos descendentes – nossos parentes “próximos” - se estabeleceram definitivamente na terra. A “mente” destes cordados já era esperta como a dos seus antecessores, os primeiros animais aquáticos e, antes ainda, como a dos protistas ou das primeiras bactérias2. Todos “sabiam” perfeitamente reagir ao meio ambiente, à salinidade da água, ao excesso de cálcio no mar, à luz e ao calor do sol, à alimentação escassa ou abundante. Muito antes de o primeiro “sistema nervoso” se formar, a vida já era sábia. A vida surgiu das entranhas da terra, ou da água, porque no interior da própria matéria - onde tudo é inter-relacionado e inter-dependente -, a vida está presente3. Com os olhos da fé podemos descobrir, em toda a matéria, as “pegadas” do Criador. Num processo ininterrupto de complexidades crescentes4, a vida deu origem – recentemente – a uma mente que, pela primeira vez, criou consciência de si mesma, a mente humana. Com ela surgiu a advertência de Moisés: ou escolhemos a bênção, ou a maldição (Dt 11, 26-28). Nossa mente, contudo, não é uma máquina perfeita. Na verdade, ela é altamente “ilusória”. Captar este aspecto é de vital importância para a caminhada pastoral da Igreja. Daí a razão de ser deste artigo.

 

I As “ilusões” da mente

            O mundo em que vivemos possui uma complexidade cada vez maior. Os próprios governos locais já não governam, pois a realidade global se impõe. A confiança nos sistemas democráticos cresceu substancialmente nos últimos séculos, mas hoje se percebe que, mesmo nas democracias mais avançadas, o povo já não apita mais nada. Não tem domínio suficiente sobre a intrincada engrenagem técnico-científica que está no comando. Um dos grandes filósofos da atualidade, o alemão Hans Jonas, observa que não é mais a mente humana que governa, mas a máquina. A tecno-“logia” substitui a ideo-“logia”5. Neste mundo novo, a Igreja se tornou um corpo estranho. Uma voz no deserto. No entanto, - é esta a nossa convicção -, ela guarda consigo a sabedoria ancestral que é capaz de redimir a modernidade. Para recuperar sua voz, a Igreja não deve, obstinadamente, opor-se a ela. Deve, antes, entendê-la e ser sua luz. Para isto, um dos requisitos mais importantes é entender melhor a própria mente humana. Em especial as suas “ilusões”:

A) A ilusão do “sapiens”

            A mente que mais nos ilude é a que está mais próxima de nós, isto é, a do “homo sapiens”. Este ser que se autodenominou de “sábio” surgiu muito recentemente, há apenas uns 150.000 anos, um nada diante dos 3.8 bilhões de anos em que a vida existe sobre a face da Terra. Nosso cérebro, dizem os entendidos, consiste de quatro andares. O primeiro e mais antigo andar, o “paleocéfalo”, é ainda do tempo dos répteis, que substituíram os anfíbios 250 milhões de anos atrás. O segundo andar, o “mesocéfalo”, herdamos dos primeiros mamíferos que descenderam dos “répteis de tronco primitivo”, há 200 milhões de anos. O terceiro andar, o “neocéfalo”, foi construído no tempo dos mamíferos superiores e seus descendentes, os primatas. Estes últimos surgiram logo depois do grande cataclisma que deu fim aos dinossauros, há 65 milhões de anos. O quarto e último andar, o cérebro da grande “massa neocortical”, se desenvolveu no decorrer do processo de “hominização” ou “conscientização”, iniciado com a “família dos hominídeos”, 4 milhões de anos atrás, e que, passando pelos diferentes tipos do “gênero homo”, desembocou na atual espécie “sapiens”. A ciência insiste: não somos superiores ou melhores, mas apenas diferentes. Somos, porém, os únicos que “têm consciência” das diferenças. Aos olhos da fé, o raciocínio muda: se Deus nos deu consciência, somos responsáveis. Podemos destruir a vida no planeta, ou levá-la à plenitude. Mas eis o nosso grande tormento: as “ilusões” estão sempre por perto.

            Os antropólogos nos alertam: na medida em que o processo da hominização foi avançando, o comportamento inconsciente, genético, ou instintivo, ficou cada vez mais empurrado para trás, dando lugar ao comportamento livre e consciente das diferentes culturas humanas. Cada cultura humana estabelece seu próprio modo de pensar, falar e agir, transmitido de pais para filhos, dos mais velhos aos mais novos, do passado para o presente. Surge, desta forma, a assim denominada “brecha antropológica”6: com a hominização, o imperativo do padrão genético é substituído pelo imperativo da escolha. E não há nada na consciência humana que garanta a escolha certa. Para nós, cristãos, a Revelação orienta, a razão individual ajuda, a coletiva ainda mais. São Tomás de Aquino (†1274) fez desta constatação um dos fundamentos de sua teologia, mas, no frigir dos ovos, cada escolha representa uma opção entre muitas possíveis. A história da humanidade comprova: o futuro da humanidade depende de um permanente corrigir das “ilusões”, individuais e coletivas, da mente humana. A consciência humana, já dizia o jesuíta Teilhard de Chardin (†1955), está em processo de aperfeiçoamento, em “evolução”. Trata-se, afirma ele, de um processo de “amorização” ou de “cristificação”. Uma visão, não da ciência, mas da fé.

B) A ilusão do mundo estável

            Por mais que esta brecha antropológica possa nos atormentar ou iludir, a moderna mente humana continua sofrendo uma poderosa influência também dos demais andares do cérebro, em especial do terceiro. E aí voltamos para a nossa rústica canoa que continua deslizando sobre o estreito rio que serpenteia pela floresta tropical. Ou melhor, voltamos nossa atenção para os canoeiros que estão “com os nervos à flor da pele a cada braçada do remo”. Quem nos explica este quadro? Precisamos lembrar que, muito antes de o neocórtex do sapiens começar a se desenvolver, a “sociedade” dos primatas e hominídeos que nos antecederam era uma sociedade extremamente estável. Cheia de perigos e imprevistos, mas sempre, por dezenas e dezenas de milhões de anos, a mesma. Os animais primatas viviam em nichos ecológicos sujeitos às mais diversas intempéries, mas seus sistemas nervosos não precisavam adaptar-se, continuamente, a novos modos de pensar, falar e agir, como ocorre com as permanentes mudanças culturais dos atuais seres humanos. O primata que está dentro de nós é do tipo tradicional. Comporta-se sempre da mesma forma. Vive na sua árvore preferida, ou vaga pela floresta que lhe é familiar, alimentando-se como de costume, e fazendo amor de acordo com os padrões estabelecidos. Mas, sempre muito alerta, como o canoeiro que, por um instante, interrompe as braçadas do remo. Não se ouve mais o toque ocasional do remo no casco da canoa. O silêncio é total. A qualquer momento o imprevisto pode ocorrer. A “mente” é forjada pelo meio ambiente; um recurso criado pela natureza para viver, conviver e sobreviver melhor. Em especial ao adentrar um novo território é preciso ficar muito atento ao menor estalar de um graveto. Pode ser uma nova presa .... ou a bocarra de um felino, .... ou então, a flecha mortífera trazendo o fim.

C) A ilusão da “percepção seletiva”

            Dizem que, por ocasião do Concílio Vaticano II, os tradicionalistas eram maioria, e os progressistas minoria. Ainda assim, de modo geral, os progressistas (temporariamente!) venceram porque tinham maior clareza de sua proposta. Este fato histórico simboliza o que é comum na história humana: ela não muda facilmente, mas muda. Ela não muda facilmente porque nosso sistema nervoso está adaptado ao que é familiar, e não ao que é novo. Nossa “percepção”, por exemplo, é extremamente seletiva. Não percebemos o mundo como ele é na realidade, porque nosso sistema nervoso evoluiu para detectar apenas uma pequena parte da realidade e para ignorar o resto. Não fosse assim, ficaríamos neuróticos. Não ouvimos os sons que os morcegos ouvem, não vemos o que a águia vê, nem nos damos conta dos cheiros que orientam tão bem os cães da rua. Nós simplesmente não vemos o que não interessa ver. Num grande shopping, a mulher vê o que o homem não vê, e a criança descobre o que os pais não descobririam nem que passassem dez vezes pelo mesmo corredor. Nossa sobrevivência exigiu uma “atenção seletiva”. O estalo do graveto é muito mais importante do que os sons costumeiros da floresta. Em meio a milhares de informações sensoriais disponíveis, o nosso sistema nervoso capta apenas os “significados” familiares, não os desconhecidos. A recente mente “sábia” tende até a fabricar significados quando na verdade não existem. Deitados na relva víamos passar as nuvens do céu e descobríamos nelas as figuras mais engraçadas. Passava o palco da nossa vida familiar .... e o dos nossos sonhos e fantasias. Como nos tempos de criança, as fantasias nos acompanham sempre. Quando adultos as transformamos em utopias. Homo sapiens, mente sábia. O imaginário humano é multiforme. Por trás, contudo, está sempre o impulso primário do primata que vive dentro de nós: queremos simplesmente viver, conviver e sobreviver melhor.

D) A ilusão do momentâneo

            Há um outro aspecto da mente que merece ser destacado: apenas as “mudanças dramáticas” a impressionam. Milhares de mortes comuns ao nosso redor, ou milhões num continente distante, não nos atingem tanto quanto o vizinho que acaba de ser acidentado em frente à nossa casa. Apenas as tragédias nos põem em ação. O sistema nervoso do primata dentro de nós foi adaptado para o local e o momentâneo, não para o que acontece do outro lado, nem para o que pode acontecer depois. A primeira impressão que colhemos de uma pessoa impressiona mais do que as posteriores. Uma “nova” notícia de TV prende nossa atenção, não as de sempre. Por mais importantes que sejam, as impressões que chegam aos nossos sentidos todos os dias da mesma forma nos deixam indiferentes. Elas não possuíam significado algum quando estava em construção o terceiro andar do nosso cérebro. A sombra repentina na entrada da caverna sim. Mas, o que antes era solução, hoje representa perigo. Hoje, numa perspectiva pastoral, justamente os efeitos imperceptíveis são os mais significativos, como iremos ver. Os muito afamados biólogos, ecologistas e psicólogos da mente, Paul R. Ehrlich e Robert Ornstein, cujo livro “New World, New Mind” (Novo Mundo, Nova Mente) parcialmente nos inspira neste artigo, costumam citar a historinha do “cozimento da rã”7. Colocada numa chaleira sobre brasas acesas, o sistema nervoso da rã não perceberá o lento aquecer da água e irá morrer sem se dar conta. O homo sapiens guarda consigo esta estranha herança. Se seu meio ambiente familiar é uma caatinga, uma favela ou um lixão, ele se conforma e sobrevive sem reclamar. A mais leve ofensa pessoal e momentânea, porém, o coloca imediatamente de prontidão. Se o autor insistir, saia de perto.

E) A ilusão tribal

            Há mais: nossa mente se formou “desadaptada” à vida infernal da modernidade. Ela foi feita para se dar bem em pequenos agrupamentos humanos, não em multidões. Rejeitamos pessoas estranhas ao nosso grupo, à nossa cor, ou ao nosso jeito. Não votamos em pessoas que podem conduzir-nos ao desconhecido. No decorrer de muitos milhões de anos, os primatas sobreviviam em pequenos bandos. Por alguns milhões de anos, os hominídeos, caçadores e coletores, conviviam em grupos reduzidos, defendendo seus territórios. Quem está habituado a viver numa metrópole não percebe mais o quanto nos é estranha esta realidade. Apenas há 10.000 anos surgiram as primeiras e pequenas “civilizações” humanas em volta do mediterrâneo. Milhões de anos foram necessários para juntar o primeiro bilhão de pessoas. De um para sete bilhões levou apenas um século e meio. Para os próximos dois bilhões bastarão algumas décadas. O homo sapiens criou um mundo que ele mesmo é incapaz de entender. Sua mente, sua “mismatched mind” (mente “desadaptada”) diria Ornstein, simplesmente não está a altura dos novos desafios. As mutações genéticas levam milhões de anos, as “mutações” culturais apenas meses. Por mais que nos adaptemos à modernidade, ela não nos liberta da nossa alma tribal. Podemos, vez por outra, fazer um discurso magnânimo sobre o futuro da humanidade, mas o que, verdadeiramente, nos tira do sofá não são as causas humanitárias, mas o sucesso do nosso time de futebol, o asfalto da nossa rua, ou (quando muito) o evento especial da nossa comunidade. Na maioria dos casos bastam os simples encontros de amigos. O que importa é o pequeno grupo. O mundo se dane.

 

II As “ilusões” na ação pastoral da Igreja

            Tal a mente, tal o mundo. Esse o ponto de vista tradicional. Também podemos dizer: tal o mundo, tal a mente. Existe uma íntima inter-relação entre ambos. Um dos mais destacados antropólogos modernos, o francês Edgar Morin, não se cansa de dizer: mente e mundo se “co-produzem”. No decorrer do processo da hominização, a mente do sapiens não nasceu antes do mundo e da cultura do sapiens. Nem existia o mundo do sapiens antes da sua mente. Ambos se fizeram juntos, em relação mútua, ao longo de um processo que levou milhões de anos. A tradição bíblica, muito influenciada pela filosofia e cultura gregas, deram à Igreja uma outra concepção de mente. Uma mente acima do mundo. Imaginando-se possuidora, sem mais nem menos, de verdades eternas, a Igreja até se apresentou ao mundo como única guardiã exclusiva de todas as mentes sadias. Foi uma ilusão. O Vat.II teve que penitenciar-se dela. Algo parecido ocorreu no tempo de Jesus. A cultura religiosa do judaísmo tinha se afastado um bocado da inspiração original do Código da Aliança. Esta foi retomada por Jesus, não sem pagar caro por isso. A ação pastoral da Igreja está sujeita às mesmas ilusões. Uma coisa é nossa “mística” original (de Jesus), outra a sua expressão cultural temporária. Vejamos:

A) A ilusão da renovação apressada

            Muito fiel ao espírito da Cúria Romana, o cardeal Siri, por ocasião do Concílio Vat. II, dizia que a Igreja levaria cinqüenta anos para consertar o que o papa João XXIII estragou em cinco. O fato, muito comentado, criou ares de anedota. Agora que os cinqüenta anos se passaram, a anedota, ao que parece, criou ares de profecia. As labaredas do fogo renovador são bem mais modestas. Muitos incendiários se tornaram bombeiros. A tradição eclesial retoma força. Os progressistas prendem o fôlego e se perguntam: o que vai dar desta nova conjuntura? Um rufar de tambores de guerra parece vir do horizonte. Espiritualmente e pastoralmente, qual a postura mais conveniente? Julgar o passado sempre foi bem mais fácil do que julgar o presente, mas, o que, com certeza, não devemos esquecer, é que, como dissemos acima, o animal que vive dentro de nós é do tipo tradicional. Esquecer isso leva a muita ilusão pastoral.

Religião talvez seja a mais antiga e mais profunda raiz do ser humano. Muito antes de as primeiras religiões se institucionalizarem com o advento das primeiras civilizações, os primitivos agrupamentos humanos dos caçadores e coletores já eram religiosos. Os mais antigos achados arqueológicos o comprovam. As gravuras e desenhos nas cavernas também. Com o despertar da consciência humana, o homo sapiens se descobriu inteiramente dependente de forças sobre as quais não tinha nenhum controle. Nem havia como explicá-las. Sua natural e indomável ânsia biológica para viver, conviver e sobreviver da melhor forma possível – em meio às muitas e inevitáveis desgraças e desventuras de sua própria contingência histórica e biológica – o levaram, espontaneamente, a obter não apenas consolo, mas também novas energias e um novo “sentido” a partir da crença no além. Há milhões de anos, o ser humano, muito mais do que um ser racional, é um ser místico. Um ser aberto ao que lhe transcende. Um devoto. Nós, cristãos, nos sentimos privilegiados porque, através de Jesus, e da Revelação, tivemos mais fácil acesso às graças divinas, mas não devemos alimentar um “mito de superioridade”, como nos aconselhou o teólogo oriental (Sri Lanka), Tissa Balasuriya (†2013). Deus continua um mistério, muito acima de qualquer conhecimento humano. Todos os seres humanos, até os mais descrentes, sabem que o sentido pleno desta vida não se encontra aqui na terra. Está em algum “campo escondido” (Mt 13, 44), em algum lugar mais adiante, no “além”. Todas as religiões estão em busca deste além. Muitas delas o chamam de “Deus” ou de “Divindade”. Mas, as crenças se consolidaram sempre no decorrer de milênios. Alguém ainda acredita que este ser humano pode mudar sua crença da noite para o dia?

B) A ilusão do discurso racional

            Preservar a mística e a religiosidade do povo é uma preocupação vital para qualquer projeto pastoral. Porém, a modernidade dos últimos séculos se caracteriza por um processo avassalador de racionalização que, - de forma equivocada -, se opôs à mística. Em todas as religiões existem inúmeras expressões religiosas que, de fato, são apenas resquícios do passado; manifestações culturais transitórias ou simplesmente mágicas; ritos do passado que já não oferecem mais apoio real para quem busca um sentido para a vida presente. Nesta perspectiva, o processo de racionalização é mais do que bem-vindo; é necessário. Livra o ser humano de uma bagagem desnecessária. Mas, já diziam os antigos: com a água do banho não se deve jogar também a criança para fora da janela. Nenhuma razão pode desfazer a razão da mística. Esta não vai contra a razão humana, ela vai além dela. Ela oferece ao ser humano uma motivação que não se sujeita à racionalização. Ela o conduz para além de si mesmo, e para além da fragilidade e contingências humanas, em busca do que está no horizonte. Algo misterioso que o impele a ir em busca do outro ou da outra. Em busca da alteridade, com respeito e compaixão, com um amor desinteressado enfim. Sempre de novo é preciso lembrar que esta mística é tão antiga quanto o próprio ser humano. Por isso não se abre facilmente à renovação. A Igreja precisa de renovação. Os tempos são outros. A pastoral precisa renovar-se, sem dúvida. Vivemos num “outro mundo”. A modernidade busca, ansiosamente, por um novo “sentido”. Mas não basta oferecer apenas um discurso. Precisamos oferecer uma nova mística. Muita ação pastoral dá com os burros n´água porque pretende motivar as pessoas apenas com o discurso racional. É água sobre pedra.

C) A ilusão do retrovisor

            Ocasionalmente observamos os programas televisivos da Igreja Católica. Uma Igreja presente na mídia, sem dúvida, é um mecanismo pastoral poderoso. As iniciativas merecem mais do que palmas. Infelizmente, porém, todos os programas que temos visto apelam apenas ao passado. Ainda assim, cumprem uma tarefa fundamental: alimentam a mística popular. Atraem multidões exatamente por isso. Na perspectiva do respeito aos direitos humanos diríamos: em primeiro lugar, nós da Igreja, devemos respeitar o direito do povo a uma mística. Devemos oferecer um alimento espiritual que a sustente e que satisfaz. Mas não podemos esquecer que toda mística se reveste de uma determinada expressão cultural que varia de povo para povo, de religião para religião, e também de época para época. Como a religiosidade de um povo tem sempre uma raiz milenar, é uma ilusão – já o vimos – esperar que ela mude substancialmente num curto lapso de tempo. Cem anos é muito pouco. No entanto, também é fato incontestável que o mundo ou a sociedade em que vivemos hoje muda mais profundamente em cinqüenta anos do que nos mil anteriores. A tradição judaico-cristã tem quatro mil anos, e se construiu sobre um substrato religioso de quatro milhões de anos. O desafio pastoral é respeitar nossa tradição mística, sem perder de vista o mundo inteiramente diferente que está a nossa frente. Olhar apenas pelo retrovisor dará em acidente na certa. Não arquiteta, respeitosamente, a mística da qual o povo sentirá falta no futuro. Muitos já sentem esta falta hoje. Olhemos para o que está ocorrendo na Europa com o processo de secularização. Em apenas cinqüenta anos, igrejas superlotadas se transformaram em igrejas vazias. Todas à venda. A população continua buscando inspiração, “sentido”, mas não o encontra mais na Igreja tradicional. Não surgiu em tempo uma mística alternativa para um mundo inteiramente renovado. O ideal seria que as televisões católicas abrissem espaço para liturgias alternativas nesta linha. Os bispos das áreas metropolitanas deveriam incentivá-las. É grande o número de pessoas que estariam prontas para organizá-las. Hoje estas pessoas se sentem um tanto quanto abandonadas. Na década de 1990 pudemos participar de um encontro nacional de ONG´s promovido pelo Banco Mundial. Aproximadamente duzentas lideranças das mais diversas organizações – sociais, ecológicas, educacionais, etc. – da sociedade civil estavam presentes. A certa altura do evento perguntamos quantos dos/as presentes tiveram sua inspiração original na Igreja. Quase a metade levantou a mão. Sem dúvida uma bela safra das CEB´s. Hoje, as lideranças do “outro mundo possível”, quando se fala da Igreja, dão de ombros. Sinal do que está por vir. O processo de secularização é irrefreável na medida em que se assentar a mentalidade urbana, aliada a uma escolarização generalizada. O momento para agir, pastoralmente, é agora.

D) A “ilusão da chaleira”

            Coitada da rã. Sem se dar conta acabou cozida, lembram? Pois é exatamente isso que acontece com a pastoral quando ela não percebe em tempo as mudanças do mundo a sua volta. Isso é muito fácil de acontecer, uma vez que nosso sistema nervoso, que nem o da rã, foi feito para um mundo estável. O linguajar e a liturgia da Igreja, as fórmulas doutrinárias, os códigos morais e canônicos, tudo é resultado de séculos de tradição. Tudo respira o tempo de uma era cristã de poucos questionamentos. E de uma sociedade que mudava muito lentamente. Apenas no Conc. Vat. II deu-se início ao “aggiornamento”. E isso em resposta a um mundo já em acelerado processo de mudança. O papa João XXIII abriu o Concílio dizendo que “uma coisa é a doutrina, outra sua formulação”. Os “sinais do tempo presente” adquiriram um novo peso na hermenêutica teológica. Em vez de ficar presa ao passado, a Igreja se voltou para o presente e encarou o futuro. Porém, já o dissemos, nossa genética não mudou. Sentimo-nos muito bem quando tudo fica como está. O povo costuma enfrentar a doença do momento com o remédio do passado. No mundo como um todo estamos no auge de uma explosão populacional jamais vista e a Igreja-Instituição, tranqüilamente, continua defendendo os mesmos princípios morais familiares de quando as famílias tinham, em média, dez filhos por casal. Anticoncepcionais ou camisinha nunca! O planeta Terra, com extrema rapidez, se aproxima de um abismo colossal. Caberia à Igreja estar na linha de frente para salvar a Criação que – assim acreditamos - recebemos das mãos de Deus. Mas não está. A Instituição como tal, neste item, não exerce voz profética. Sua Doutrina Social passa ao largo da verdadeira causa, localizada no processo produtivo e na ilusão do consumo desenfreado. Nossas pastorais são quase todas intra-eclesiais. Não percebemos o lento aquecer da água. Vivemos a “ilusão da chaleira”.

 

Conclusão

            Poderíamos apontar para outras ilusões pastorais, mas bastam as que apontamos. O objetivo deste artigo é apenas alertar para a necessidade de a Igreja, na sua ação pastoral, dar maior atenção a uma realidade um tanto desprestigiada, a da própria mente. Os neurocientistas, nas últimas décadas, têm ressaltado aspectos surpreendentes, dos quais o mais importante é a inaptidão da mente humana ao mundo moderno. Por isso, mais do que em qualquer outra época, a mente deve ser treinada e educada, não domesticada, como tão bem intuía Paulo Freire, mas “conscientizada”. O processo da “hominização” ainda não terminou. É até possível que esteja apenas em seu início. Juntamente com a escola, a Igreja tem, neste campo, um papel preponderante. A mente humana não foi feita para mudanças rápidas, ela se formou, como vimos, quando o ler e escrever nem sequer era imaginado. Mas a experiência já demonstrou que, uma vez conscientizado, o ser humano aceita mudar seu comportamento, ainda que lhe seja difícil.

Um novo mundo exige uma nova consciência. A pastoral da Igreja Católica ainda investe muito no mundo das crianças. Muito mais importante é investir no mundo dos jovens e dos adultos. As crianças seguirão seus passos, como é da natureza. Por mais que seja preciso respeitar o ritmo próprio de conscientização da religiosidade popular, não basta manter simplesmente as tradições. Muitas delas, como dissemos, representam apenas uma mera pertença institucional, uma bagagem cultural que em nada ajuda para alimentar a mística original do cristianismo. A mente humana tende a sacralizar o passado, mas o passado se foi. O essencial agora é ensinar o que é essencial em todas as religiões: nossa igualdade fundamental, a fraternidade universal, nossa responsabilidade comum frente ao futuro, e nosso cuidado respeitoso com o planeta que nos acolhe. Tudo isso exige priorizar o que o ser humano tem de mais profundo e mais precioso dentro de si: sua mística, isto é, sua abertura ao que lhe transcende.

 

1)      MARGULIS, LYNN. Symbiotic Planet: a new view of evolution, New York: Basic Books, 1988.

2)      MARGULIS, LYNN; SAGAN DORION. Microcosmos. São Paulo: Cultrix, 2002.

3)      MOROWITZ, HAROLD J. Beginnings of cellular life. New Haven; London: Yale University Press, 1992.

4)      PRIGOGINE, ILYA; STENGERS, ISABELLE. Order out of chaos. New York: Bantam Books, 1984.

5)      JONAS, HANS. O princípio da vida. Petrópolis: Vozes, 2004.

6)      MORIN, EDGAR. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

7)      ORNSTEIR R. E..; EHRLICH P. R. New world, new mind: a new view of conscious evolution. Cambridge, ISHK, 1989.

 

Endereço do autor: R. Verbo Divino, 993

Casa José Freinademetz

04719-001Chácara Stº Antonio -  São Paulo SP.

Email: nijlbakker@hotmail.com

 

*Missionário do Verbo Divino, sacerdote, formado em teologia, filosofia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo atuou no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Itesp (Instituto de Teologia / SP). Durante oito anos foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Por muitos anos representou a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) no programa estadual de Proteção a Testemunhas (Provita / SP). Ultimamente atuou na Paróquia Santo Arnaldo Janssen, Diadema SP. Acesso aos artigos do autor em <artigospadrenicolausvd.blogspot.com>

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Verbum 59/2018: Maio de 1968: O sonho que não vingou


MAIO DE 1968: O SONHO QUE NÃO VINGOU
Nicolau João Bakker, SVD*
                O presente artigo não pretende apresentar uma análise acadêmica dos históricos acontecimentos de Paris, e da França em geral, no mês de maio de 1968. Mesmo fazendo referência a fatos, sob ponto de vista sociológico e político importantes para aquele momento, nossa intenção é apenas colocá-los em sua perspectiva pastoral: o que significaram para a ação concreta da Igreja na época em que pegaram de surpresa a maioria dos analistas, e o que ainda podem significar para a ação pastoral da Igreja hoje.
Introdução
            Quando a TV brasileira, em maio de 1968, trouxe as primeiras imagens das impressionantes “barricadas de Paris”, nós, padres jovens “do outro lado do mundo”, ficamos surpresos, mas os fatos não nos pegaram inteiramente desprevenidos. Por aqui estávamos então em plena ditadura militar. Com os meios de comunição fortemente censurados não era fácil captar os eventos nas suas devidas proporções. Na época, eu fazia parte da relativamente pequena, mas crescente, faixa do clero que se colocava em aberta oposição ao governo militar. Este governo fazia questão de apresentar os acontecimentos de Paris como mais uma prova dos avanços comunistas no mundo inteiro. O “terrorismo internacional” estaria também contaminando o pacífico povo brasileiro, e estava mais do que na hora de o governo militar – a “reserva moral” da nação – impor um breque a esta nefasta ameaça.
            Muita gente da Igreja ficou, de fato, assustada, não apenas com a ameaça comunista, mas também com o “descalabro moral” em curso. Onde se viu aquele comportamento hippie, aquela loucura jovem do rock and roll, e agora aquelas mulheres “moderninhas” jogando seus soutiens nas fogueiras em plena rua! A tal da Modernidade trouxe mesmo a barbárie! Entre nós, embora em graus bem menores, os mesmos fenômenos de Paris se repetiram. A América Latina sempre preservou fortes laços com a cultura europeia. Estudar na Sorbonne significava, também para a elite brasileira, o “top” em termos de status social e intelectual. Nossa juventude universitária, em certa medida, vivia o clima de Paris, mas a imensa maioria da população brasileira nem se dava conta do que realmente estava acontecendo. Naquela altura, eu fazia minhas primeiras experiências pastorais no Vale do Ribeira, a região mais pobre do Estado de São Paulo, por alguns especialistas apelidada de “inferno verde” por seu clima quente e úmido e suas matas fechadas muito parecidas com a Amazônia. Na beirada dos rios acompanhava as comunidades “caiçaras” – de descendência indígena – e me perguntava: que tipo de pastoral devo fazer aqui para ela estar em concordância com as exigências conciliares?  
I Lembranças do inferno
            Visitando os povoados ribeirinhos, pouco ou nada percebia das mudanças em curso. Voltando, porém, à casa paroquial, na pequena cidade litorânea de Iguape, havia a televisão e os jornais. Havia também a renomada Revista Eclesiástica Brasileira (REB), de circulação nacional, onde os mais destacados teólogos e biblistas da Am. Latina manifestavam sua opinião, em geral clamando por “renovação”. E havia ainda algum livro que, ocasionalmente, me caía às mãos. Desde o noviciado e a filosofia, feitos no Verbo Divino, na Bélgica, a “Nova Teologia” europeia havia grudado na minha alma. Schillebeeckx já estava em destaque e ecos cada vez mais fortes vinham da “Escola de Saulchoir”, dos dominicanos franceses Congar, Marie-Dominique Chenu, e outros. Diante dos votos precisava tomar uma decisão. Não queria dedicar minha vida a uma Igreja parecida com um prédio velho caindo aos pedaços. Após o 18º dia do famoso “retiro de trinta dias”, de Santo Inácio, fomos todos falar com nosso mestre espiritual: “Chega, assim não dá. Queremos outra coisa!” E não terminamos o retiro. Habituei-me a “meditar” então a partir do que os melhores teólogos daquele tempo tinham a oferecer. Até hoje mantenho o mesmo hábito com absoluta fidelidade. O “inferno” pode ser dos mais brabos, mas é preciso manter o foco no mundo a ser salvo.
               Éramos então como aqueles jovens católicos do Quartier Latin, em Paris, que, em maio de 1968, ocuparam a igreja e disseram ao pároco: “Chega de missa; não basta a língua vernácula, queremos debater o país que queremos!” Fiz a teologia em São Paulo, pois minha família emigrou para o Brasil em 1958 e eu, em 1960, segui atrás. Organizamos naquela metrópole, - meio clandestinamente, pois a tradicional disciplina germânica ainda imperava -, o “II Congresso dos Estudantes de Teologia da cidade de São Paulo”. Também nós queríamos uma outra Igreja, mais popular, mais pé no chão, e mais voltada para a sociedade ao redor. Assim como os milhares de estudantes franceses que clamaram por profundas mudanças na educação, e os dez milhões de trabalhadores que, no mês de maio, ocuparam ruas e fábricas, assim nós também clamamos por mudanças profundas na Igreja e na Sociedade. Certo dia, já atuando como padre no tal “inferno verde”, um padre holandês, já mais idoso, na reunião mensal da região pastoral – hoje a Diocese de Registro SP – nos disse: “Proponho a gente se reunir, todo mês, por um dia inteiro, nós, padres, irmãs e leigos; o Concílio propõe grandes mudanças, e jamais vamos avançar sem uma forte pastoral de conjunto”. Hoje, olhando para trás, reconhecemos: foi a partir deste dia que começou a surgir, no Vale do Ribeira, a talvez primeira Diocese brasileira inteiramente estruturada em pequenas unidades que, poucos anos depois, seriam chamadas “Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)”. O céu e o inferno têm afinidade com a mesma lógica teológica!
II Sonhos da juventude
            Não creio que o levante popular francês, com reflexos no mundo inteiro, tenha tido aquele significado profundo – e único – que muitos pensadores lhe atribuem. Ainda hoje, alguns dos nossos teólogos veem nele o “momento axial” que pôs fim à Modernidade e deu início à Pós-Modernidade. Em parte, para Europa, talvez seja. Acontece, porém, que os mesmos fenômenos, de tempos em tempos, se repetem em todos os países. As grandes utopias da Modernidade teriam morrido juntamente com Martin Luther King e Che Guevara (1967), e com o levante de Paris. Será? A irrefreável onda de secularização pôs fim à espiritualidade humana e à utopia da “salvação celeste” prometida pelo cristianismo? Não parece. Novas espiritualidades pipocam em todos os cantos. A utopia da “salvação terrestre”, prometida pelo marxismo, acabou com a queda do muro de Berlim? Também não parece. Morreram Marx, Mao Tse Tung e Fidel Castro (quase), mas grande parte da juventude e da intelectualidade mundial (e cristã) continua apostando num futuro socialista, sem predomínio do capital, e o atual ateísmo militante está aí com sua promessa de mais outra salvação terrestre. Finalmente, do outro lado, a utopia capitalista com sua fé no progresso, na tecnologia, e na “riqueza das nações”, prometida por Adam Smith (†1790), ela está morta? Tudo menos isto. Ainda recentemente, Christine Lagarde, atual Diretora do Fundo Monetário Internacional, apregoou sua fé no “capitalismo inclusivo”, a nova face “humana” do mesmo sistema antropo e eco-fágico que de tão longa data conhecemos. Não, as utopias não morreram. Os sonhos humanos continuam e continuarão presentes. Deles, os protestos juvenis e as canções dos artistas da “contracultura” são sua expressão mais palpável.
            O que de tudo isso repercutiu entre nós, pobres mortais do “terceiro mundo”? Para captar melhor o momento histórico e adequar a nossa pastoral do Vale do Ribeira ao que a Igreja pós-Medellín exigia de nós, fui estudar ciências sociais com os jesuítas em São Paulo. Aprofundei-me na então muito em voga “teoria da dependência” da qual o Documento da Conferência Episcopal de Medellín (1968) foi um indisfarçado eco. Diziam os economistas da “Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe” (CEPAL), criada pela ONU em 1945, que os países “periféricos” do terceiro mundo giravam, como numa roda, em volta dos países desenvolvidos “centrais”, numa eterna e firmemente consolidada “dependência” econômica, política e cultural, sem chance para qualquer desenvolvimento autônomo. Era preciso sacudir este jugo e tomar as rédeas do desenvolvimento nas próprias mãos! A Igreja da América Latina, incentivada pelo Vaticano II e por Medellín, e empurrada também pela forte renovação teológica e bíblica europeia, com base nesta teoria, elaborou então, pela primeira vez na história, sua teologia própria, a da “libertação”. Jesus, em nome do Deus da Misericórdia, veio oferecer “Vida Plena” ao mundo, o “Reinado do Pai”, feito de relações justas e fraternas entre pessoas e povos; uma teologia embebida de espiritualidade, com opção preferencial pelos pobres e marginalizados. Surgiram assim as milhares de CEBs, e, nelas, as dezenas de milhares de “grupos de rua”, confrontando a Palavra de Deus com a realidade vivida. Surgiram assim também as inúmeras “Pastorais Sociais” que, em seu conjunto, deram à Igreja do continente um rosto muito próprio.
            Maio de ´68 não foi o estopim do nosso entusiasmo pastoral nas doze paróquias do Vale do Ribeira – nove das quais sob responsabilidade Verbita – onde então atuávamos, mas que o fortaleceu, isto sim. Os eventos de Paris foram fruto de um clima mundial já pré-existente. Havia a sensação generalizada que algo novo precisava e iria acontecer.  O que, no meu entender, mais pesava na balança não eram as maiores liberdades individuais            , reivindicadas por todos, mas principalmente a consciência de um contexto social e político sem perspectiva iminente de solução. Sonho e pesadelo se mesclavam. O economista francês, Thomas Piketty, em seu recentemente lançado livro O Capital – no Século XXI, acaba de demonstrar, por meio de tabelas praticamente incontestáveis, que, mesmo nos tão decantados “Trinta Anos Gloriosos” dos países desenvolvidos (1945-1975), os 50% mais pobres da população não tiveram acesso à farta mesa do rico, da qual o pobre Lázaro apenas recebia migalhas. O que sacudiu Paris e o mundo foram, antes de tudo, os trabalhadores explorados. Pelos cálculos, em 20 de maio, 10 milhões de franceses estavam em greve geral. Enquanto, em junho de ´68, a “Primavera de Praga” florescia, - Dubcek, contra o stalinismo, prometia dar ao socialismo uma “face humana” -, em Rio de Janeiro aconteceu a histórica “passeata dos 100.000”, o primeiro levante massivo contra a opressão militar. Pouco depois, porém, em outubro, 1200 estudantes, realizando o 30º Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), foram presos em Ibiúna SP e a repressão se fortalecia, fechando o Congresso. Sonhos humanos nunca se concretizam da noite para o dia. Enquanto isso, no Vale do Ribeira, organizamos nossas “batidas” pastorais: sem levar em conta fronteiras paroquiais e eventuais ciúmes clericais, fomos todos – padres, irmãs e leigos/as – visitar os bairros periféricos das cidades e também os núcleos mais distantes nas matas fechadas, visitando, no decorrer de três dias, as casas e as roças, aonde o povo estivesse, e propúnhamos iniciar uma nova CEB, com leigos e leigas assumindo as diversas tarefas, entre as quais o culto dominical, com momentos certos para refletir, a partir da prática de Jesus, a realidade local, regional e nacional. Coisas parecidas aconteciam em todo o Brasil. Em toda a América Latina, a Igreja foi contaminada por um sonho juvenil.
III A volta à realidade
            Depois da bebedeira vem a ressaca. Paris nos deixou uma eterna lição. Quando a efervescência social, na França, estava no auge, o frustrado Presidente De Gaulle, conforme relato do embaixador americano, teria dito: “O jogo acabou; em poucos dias os comunistas estarão no poder”. Enquanto isso, entre os muitos intelectuais marxistas, o pensamento era outro. Apenas um mês antes dos acontecimentos, o “grande marxista”, Ernest Mandel, analisando a conjuntura política do momento, afirmava em Londres: “Nada vai acontecer; os trabalhadores franceses estão aburguesados e americanizados”. Na realidade, os dirigentes do Partido Comunista Francês e da Confederação Geral dos Trabalhadores – todos comodamente encastelados em suas burocracias oficiais – torciam pelo fim das greves. Estava-se, então, no auge da economia capitalista pós-guerra e muitas categorias de trabalhadores se beneficiavam dela. O movimento popular, de fato, evanesceu tão rápido quanto começou. Em maio, De Gaulle se viu diante da necessidade de dissolver a Assembleia Nacional e, um mês depois, nas novas eleições marcadas, ele saiu mais fortalecido do que nunca! Sonhos são apenas sonhos. Para torná-los realidade, um imenso e prolongado esforço coletivo – espiritual e político – se faz necessário.
            Algo muito parecido aconteceu conosco aqui no Brasil (e no mundo em geral). Na tradição cultural do mundo ocidental, tanto na judaico-cristã quanto na islâmica, religião e política, Igreja e Sociedade, estão mutuamente implicadas, e não há como separá-las. Quanto mais a Igreja “fugir” do mundo, mais ela colabora para manter o status quo em que se encontra. No auge do governo militar, em pleno “milagre econômico” da década de 1970, tanto a Igreja quanto a Sociedade, cada uma a seu modo, sonhavam com uma “nova sociedade”, sem exclusão social. Após esforços coletivos prolongados, lideranças religiosas, sindicais, universitárias e populares, em 2003, conseguiram emplacar, pela primeira vez na história do país, um governo popular, elegendo o Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Foi a concretização de um sonho efêmero. Mudou a governança política, mas não o frágil sistema político do país, consolidado após  longa história de coronelismo político (cede-se o anel para não perder o dedo). Já em 2016, a elite nacional retomou as rédeas nas mãos mediante um mal disfarçado golpe parlamentar.
            Tudo isso ocorreu não sem a colaboração indireta da Igreja. Desde a década de 1980 sentimos por aqui a mão pesada da Cúria Romana. Nossos bispos-profeta morreram e não foram substituídos. A teologia da libertação foi duramente criticada, embora o Papa João Paulo II, em 1986, após forte apelo dos bispos brasileiros, ainda se viu forçado a declará-la “não apenas útil, mas também necessária”. Uma nova orientação foi imposta aos seminários de teologia. Senti-o na pele quando dava minhas aulas de Teologia Pastoral. Hoje, a maioria dos padres não incentiva mais a histórica “caminhada das CEBs”. Também nossas pastorais sociais estão ao Deus dará. Nas nossas Províncias Verbitas, o quadro não é muito diferente. Nossos muitos missionários estrangeiros, vindos da Indonésia, da Índia e da África, conhecem o belo momento histórico pelo qual a Igreja brasileira passou, mas não o “vivenciaram” no dia a dia. Em geral acostumados com uma configuração eclesial mais tradicional, não se sentem motivados a ir por aquele caminho, ou têm maior dificuldade para implementá-lo. Será este o ponto fraco da nossa tão decantada “interculturalidade”? Não basta a boa convivência comunitária; impõe-se também uma real inserção na proposta pastoral da Igreja Local. Seja como for, fato é que, também por aqui, como em Paris, o sonho não vingou e “voltamos à realidade”.
Por que o sonho não vingou?
            Talvez este modo de ver seja radical demais. Sonhos, se não se realizam hoje podem realizar-se amanhã. Interpretar fatos históricos não é uma tarefa simples. Acostumados à nossa tradicional lógica binária, tendemos a querer encontrar explicações simples ou únicas para realidades complexas. A nova consciência da interdisciplinaridade das últimas décadas nos ajudou a ver que, diante das pequenas e grandes realidades que nos envolvem, especialmente quando se trata da “teia da Vida”, impõem-se as abordagens múltiplas. Durante mais de dois milênios impôs-se a nós a “antropologia cultural”. O ser humano, dizia Aristóteles, se distingue por sua alma racional. Na tradição semítica, o ser humano é animado pelo sopro do espírito divino. Séculos de gnosticismo e maniqueísmo, além de “escolasticismo”, deram ao ser humano uma alma “racional” separada do corpo. E haja racionalismo e idealismo. O “cogito, ergo sum” de Descartes veio apenas reforçar a tendência. Faltou o “novo olhar”, tão insistentemente reclamado por Teilhard de Chardin (†1955). O ser humano não é apenas razão e é preciso dar maior atenção à nossa origem física e bioquímica. O antropólogo francês, Edgar Morin, tem falado de uma “brecha antropológica”. O recente novo cérebro – o “córtex cerebral” – do “homo sapiens” fez com que perdêssemos cada vez mais o nosso comportamento natural e instintivo. Nosso atual cérebro nos possibilitou “criar asas” e, voando por cima da realidade, imaginar e criar os mais diferentes mundos culturais. Frequentemente chamamos de real o que, na verdade, é uma fantasia. Apenas agora, dando mais valor ao que poderíamos chamar de “antropologia bioquímica”, descobrimos, como recentemente o Papa Francisco nos lembrou, que “tudo está interligado”.
            Sonhar, fantasiar, ou imaginar um mundo ilusório, é fácil. Lidar com o mundo real é bem mais difícil. Estamos sempre diante de contextos complexos, alimentados permanentemente por múltiplas causas. Cada sociedade humana, como também cada ser humano, é uma “teia de ralações”, uma rede interconectada de múltiplos nós. Não se concerta o indivíduo sem concertar a sociedade, nem salvamos a sociedade sem salvar o meio ambiente que a sustenta. Se está tudo interligado é no todo que devemos mexer. E esta é a nossa grande dificuldade. Estamos todos presos, basicamente, a uma ação local. Só nos resta esperar (e agir) até que as múltiplas consciências locais possibilitem a mudança global. A vida levou quase quatro bilhões de anos para chegar onde chegou. Não é um pouco ingênuo ou ilusório esperar em grandes revoluções da noite para o dia?
            A tão falada “Revolução Francesa”, a de 1789, foi tão revolucionária assim? O mundo foi mesmo inundado de fraternidade, liberdade e igualdade? E a Revolução Russa de 1917, ela realmente abriu a porta do paraíso à classe operária? Todos sonhos que não vingaram, como não vingou o sonho do levante de Paris. O livro de Robert E. Ornstein e Paul Ehrlich New World New Mind: Moving Toward Conscious Evolution, nos alertou para um dado muitas vezes esquecido. Debaixo da quarta e última camada do nosso cérebro, a do córtex cerebral, existe uma terceira camada que ainda influi poderosamente sobre o comportamento humano. Trata-se do cérebro dos primatas. Não sujeitos a mudanças culturais, os primatas, durante 60 milhões de anos, viviam sempre do mesmo jeito. Adaptados ao seu nicho ecológico, viviam sempre nas mesmas árvores. Alimentavam-se, procriavam e mantinham sua estratificação social sempre da mesma forma. Em fim, mantinham, às vezes a ferro e fogo, os seus territórios e as suas “tradições”. Esse primata ainda vive em todos nós. É difícil sair da nossa zona de conforto. Ficamos felizes quando tudo fica como está. Vejam a nossa dificuldade. Perguntaram ao renomado teólogo peruano, Gustavo Gutiérrez, se não achava necessário um “Vaticano III”. “Que antes se cumpra o Vaticano II”, respondeu. As revoluções com as quais sonhamos acontecem, mas não sem um longo (muito longo) e árduo trabalho coletivo. Maio de 1968 foi um sonho. O nosso dia a dia, coletivo, um dia há de concretizá-lo.
Conclusão
            Aqui entre nós, na América Latina, o clima geral do momento não se compara com a euforia pós-Medellín. Está mais para o que um jornalista francês observou poucos meses após o elétrico maio de 1968: “os franceses estão morrendo de tédio”. Ainda assim, o trem não parou e novos sonhos estão surgindo. Nossos teólogos e biblistas, em nenhum momento, assumiram o que, no Brasil, foi chamado de “A volta à Grande Disciplina” (J.B. Libânio). Na verdade, o foco da teologia da libertação apenas se ampliou. Depois de absorver melhor o papel central da subjetividade humana (as questões culturais, do gênero, etc.), acabou assumindo em sua plenitude também a questão ecológica. Neste momento, a esperança maior, a meu ver, está depositada na reflexão do expressivo grupo de teólogos e biblistas que propõem unir a teologia latino-americana da libertação com a teologia mundial do pluralismo religioso. A Comissão Teológica da “Associação dos teólogos e teólogas do Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT)”, sob a coordenação de José Maria Vigil, Luiza Tomita e Marcelo Barros, lançou recentemente a série de cinco livros, intitulada “Pelos muitos caminhos de Deus”.  As “sementes” do Verbo, das quais Ad Gentes falava, se transformaram em belíssimas flores. Da própria antropologia humana brotam as irreprimíveis e riquíssimas espiritualidades que, em seu conjunto, oferecem as melhoras esperanças de futuro. Pelo destaque que os livros merecem vou citá-los, nas suas edições sucessivas: 1) Pelos muitos caminhos de Deus: Desafios do Pluralismo Religioso e Teologia da Libertação; 2) Pluralismo e Libertação: Por uma Teologia Latino-Americana Pluralista a partir da fé cristã; 3) Teologia Latino-Americana Pluralista da Libertação; 4) Teologia Pluralista Libertadora Intercontinental; 5) Para uma Teologia Planetária. 
            Os sonhos da humanidade nunca são uniformes. Nas ruas de Paris se encontravam os anarquistas radicais da esquerda, entre os quais o estudante Daniel Cohn-Bendit, então em grande destaque. Mas havia também os ultra-radicais da direita, além das inúmeras matizes intermediárias. Até hoje é assim, em todos os países. Quem levará este mundo ao paraíso, à “Nova Jerusalém” do Apocalipse de São João? Provavelmente estes sonhos, estas utopias humanas, nunca se concretizarão em sua totalidade. Ainda assim, são da maior importância. As utopias nos indicam por qual caminho seguir e elas fornecem a indispensável energia para não desanimar da longa peregrinação. Acima de tudo, elas indicam os avanços pastorais a serem feitos para que se concretize o Reinado do Pai, ou a “Vida Plena” sonhada por Jesus.

*Nasceu na Holanda, em 1939. Fez noviciado e filosofia na Bélgica, e teologia e ciências sociais em São Paulo, Brasil. Sua atuação principal esteve sempre ligada à pastoral prática, rural e urbana. Por muitos anos atuou também no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), em São Paulo, e deu aulas de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia dos religiosos (ITESP/SP). De 2001 a 2008 atuou na política, como vereador, no Município de Holambra-SP. Nos últimos anos tem trabalhado na paróquia svd, em Diadema SP. Escreve regularmente em revistas pastorais de circulação nacional, além de prestar assessorias diversas às CEBs e às Pastorais Sociais. Acesso aos artigos em artigospadrenicolausvd@blogspot.com;  E-mail: nijlbakker@hotmail.com

Studia Inst. Missiologici 2018: Missão SVD na realidade "glocal", bras. e lat. americ.


A MISSÃO SVD NA REALIDADE “GLOCAL”, BRASILEIRA E LATINO-AMERICANA
Pe. Nicolau João Bakker, svd – Brasil Centro

Introdução
            A missão svd, no Brasil (e na Am. Latina) de hoje, não pode ser retratada corretamente sem um breve olhar retrospectivo. Os primeiros missionários svd aportaram aqui em 1895. Em pouco tempo, muitos outros se juntaram a eles. Com certa naturalidade trouxeram com eles a mentalidade missionária que era comum na Europa, no final do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX. Não estava presente ainda o conceito da ”inculturação” e, menos ainda, a concepção teológica da “opção pelos pobres”. Sob ponto de vista pastoral, a Igreja do Brasil vivia, na primeira metade do século passado, o clima eclesial típico da “romanização”. Desde o Concílio de Trento (1545/63) e o lançamento posterior da “contra-reforma católica”, a Igreja de Roma se deixou guiar, como afirmou o grande historiador eclesiástico brasileiro, Riolando Azzi, por três princípios básicos: centralização, doutrinação e clericalização. Pela “implantatio ecclesiae”, as “terras de missão” precisavam ser cristianizadas. Missionários e missionárias vieram em grande número para “converter” os povos pagãos e, assim, como também pensava Arnold Janssen, “levar as almas todas para o céu”.
            A “globalização católica” que ocorreu, nas terras latino-americanas, muito mais do que ser um “implante” era, na verdade, um “transplante”. Transplantou-se o modelo eclesial europeu. Quando chegaram por aqui os primeiros missionários verbitas, os colonos europeus já estavam por toda parte. O que restou da população indígena original havia se refugiado nas distantes florestas do interior, e, nas cidades e pequenas vilas, florescia uma típica “religiosidade popular brasileira”, fruto em grande parte da colonização inicial portuguesa. Com um clero extremamente escasso, quem sustentava a religiosidade popular eram as irmandades religiosas leigas. Com o fortalecimento da romanização, estas antigas irmandades foram sendo substituídas pelas “pias sociedades”, todas elas comandadas pelo clero. Os missionários verbitas foram assumindo paróquias, uma a uma, dando seguimento a este modelo pastoral, frequentemente dando preferência às paróquias das colonizações estrangeiras. Fazia parte do esforço romanizador também a preocupação com a educação da juventude. Não seria possível cristianizar o país sem a cristianização dos jovens, em especial os da classe média urbana, vista como o futuro do país. Por isso, em muitas cidades, os verbitas deram início a grandes centros de educação, até hoje de expressivo prestígio nacional.

1.      A MISSÃO SVD NA PASTORAL PÓS-CONCILIAR
            Quando, em novembro de 1964, a nova comissão conciliar que preparava o documento sobre as missões, decidiu criar uma subcomissão de cinco membros – assessorada por cinco teólogos, entre os quais Yves Congar e Joseph Ratzinger - para acolher as reflexões conciliares e elaborar um novo ante-projeto, nosso Geral, Pe. João Schütte, estava entre eles. Sua influência foi decisiva. Após dois períodos de quinze dias de trabalho intensivo, na residência de verão do generalado svd, em Nemi, o próprio Pe. Schütte apresentou o ante-projeto na Aula Conciliar, o qual recebeu a maior aprovação de todos os documentos conciliares: 2394 a favor e apenas 5 contra. Com algumas novas emendas, o documento – Ad Gentes - foi promulgado por Paulo VI no dia 7 de dezembro de 1965. O conceito geográfico de missão – na comissão conciliar, o Prefeito da Propaganda Fide, cardeal Agagianian, e até o progressista, Yves Congar, ainda o defendiam – foi abandonado e a expressão “implantatio ecclesiae” é usada com reservas. A própria Igreja, por natureza, é missão, em qualquer lugar do mundo. Todo o eclesiocentrismo é evitado. A Igreja é instrumento do Verbo, a serviço do mundo. E, de forma surpreendente, o documento reconhece que as “sementes do Verbo”, embora “adormecidas”, já estão presentes em todas as religiões (nº 11), pois “o Espírito Santo já atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado” (nº  4).
1.1 O surgimento das CEBs e das Pastorais Sociais
            A “recepção”, deste e dos demais documentos conciliares, pelos bispos latino-americanos foi excepcional, embora muito dependente de algumas lideranças extraordinárias, entre as quais o brasileiro, Dom Helder Câmara. Este estava entre os principais articuladores do “Pacto das Catacumbas”, assinado, em 16/11/1965, por 42 bispos, dando início à assim denominada “Igreja dos Pobres”. De modo geral, a América Latina vivia então um clima de grande inquietação social. A forte e crescente “globalização econômica” foi por muitos percebida como a “globalização da pobreza”. Em muitos países do continente, em oposição à articulação das forças populares, nos sindicatos, nos movimentos sociais e nos movimentos estudantis, com apoio de intelectuais “orgânicos” das universidades e das Igrejas, surgiram as ditaduras militares, em aliança com as elites econômicas nacionais. Como estudantes de teologia, em São Paulo, pudemos acompanhar de perto a movimentação. Como estudante de ciências sociais, poucos anos depois, pude adquirir uma melhor compreensão dos fatos. O grande grito da época era pelas “reformas de base”. Entre elas se propunha, em primeiro lugar, uma efetiva “reforma agrária” para estancar o assustador “êxodo rural” e impor um freio ao avanço do agrobusiness sobre a tradicional agricultura familiar. Propunha-se também uma “reforma urbana” para integrar melhor as imensas periferias abandonadas às benesses das políticas públicas. Na euforia do recém-descoberto “planejamento estatal”, o Presidente brasileiro, Juscelino Kubitschek (1956/61), prometeu fazer “50 anos em 5”, mas, enquanto isso, nas universidades latino-americanas, nascia a famosa “teoria da dependência”: a globalização nada mais é do que uma imensa periferia mundial girando, numa eterna dependência econômica e política, em torno de um centro dominador que dita todas as regras.
            Com forte apoio do episcopado brasileiro, realizou-se, na cidade de Medellin, em 1968, a mais do que afamada “II Conferência Episcopal Latino-americana”. Muito bem assessorada por teólogos de destaque, a Conferência adaptou o Vaticano II à situação real do continente, tendo em vista a realidade acima mencionada. Nunca mais surgiu um documento de tal envergadura. Com grande fidelidade à Gaudium et Spes, fez-se uma acurada leitura dos “sinais do tempo” e, com muito respeito às “realidades terrestres”, nasceu a proposta de uma Igreja renovada. Não uma Igreja de feição hierárquica, mas uma “Igreja-Povo”, de rosto latino-americano, emergindo “a partir das bases”. O documento de Medellin usa, pela primeira vez, a expressão “Comunidade de Base”, rebatizada, oficialmente, em Comunidade Eclesial de Base (CEB) na III Conferência, em Puebla (1979). Em oposição à “globalização romana”, caracterizada por paróquias centralizadas, clericalizadas e doutrinadas, Medellin propõe a paróquia “descentralizada”, por meio da criação das Comunidades de Base, “desclericalizada”, por meio de maior autonomia e protagonismo leigos, e “des-doutrinada” por meio de uma nova pedagogia pastoral: cada Comunidade se subdivide em pequenos grupos que se reúnem regularmente para confrontar a Palavra de Deus com os desafios reais da vida de cada dia, em especial a situação de exclusão social.
            As quatro Regiões SVD (Centro, Sul, Norte e Extremo Norte), no Brasil, se encaixaram perfeitamente no modelo proposto. Apoiadas pelo incentivo permanente dos excelentes planejamentos pastorais quadrianuais da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), as Comunidades Eclesiais de Base surgiram por toda parte. As paróquias se descentralizaram com o surgimento das CEBs nos bairros e nas vilas; se desclericalizaram porque os leigos e as leigas, em co-responsabilidade com os padres, foram assumindo a coordenação e a animação das mais diferentes frentes de trabalho; e se des-doutrinaram porque, por meio dos grupos bíblicos, o tradicional ensinamento, imposto de cima para baixo, foi substituído pelo lento, mas muito mais autônomo, processo de amadurecimento pessoal (e comunitário)l na fé. Enviado, em 1965, a minha primeira paróquia no Vale do Ribeira, a região mais pobre do Estado de São Paulo, hoje a Diocese de Registro, tive o privilégio de participar intensivamente deste processo. Das 12 paróquias da atual Diocese, 10 estavam sob a batuta dos missionários verbitas. Com um extraordinário entrosamento, raramente visto, entre padres, irmãs religiosas, e leigos/as, aos poucos, a Diocese inteira foi se estruturando no “modelo CEBs”. Chegamos a inventar nossa metodologia própria, chamada de “batida”. Sem olhar divisas paroquiais chegamos a visitar – padres, irmãs e leigos/as -, no decorrer de três dias, a população local, nas casas e nas roças, ou aonde estivesse, e, dividindo-nos em grupos, à noite, trocamos ideias sobre uma possível “caminhada de CEB” naquele lugar. Na terceira noite, os grupos se reuniam num mesmo local para tomar uma decisão coletiva. Em caso positivo, as primeiras atividades já eram organizadas. Surgiram assim inúmeras novas Comunidades. Na grande metrópole de São Paulo (20 milhões de habitantes!), como nas quatro Regiões SVD em geral, os padres verbitas, pelos mais diferentes caminhos, perseguiram o mesmo objetivo, também com excelente resultado. Sem dúvida, tempos de uma nova “Igreja em construção”. Todos reconhecem: a SVD fez bonito! A missão “ad gentes” se cumpriu.
            O conceito de CEB, na América Latina, está intimamente ligado ao conceito de “Pastoral Social”. Do caldeirão fervente da “Nova Teologia” pré-conciliar, da longamente discutida e combatida proposta de Gaudium et Spes no decorrer do Concílio, de Medellin, e da nova concepção de Igreja e Missão, mas, mais ainda, da própria convivência com os excluídos e marginalizados do continente latino-americano, nasceu a Teologia da Libertação com sua “opção preferencial pelos pobres”. Juntamente com ela, como fruto da convivência com o povo pobre, nasceu uma nova leitura bíblica, não apenas histórico-crítica, mas também, digamos, “presencial-profética”. Pela amplamente divulgada “leitura popular da bíblia”, a Igreja Latino-americana aprendeu que “tudo é política, mas a política não é tudo”. Apenas uma atitude pastoral “transformadora” é capaz de romper a camisa de força da dependência econômica e política globalizada e – em fidelidade ao Reino de Deus pregado por Jesus - oferecer ao povo um horizonte de esperança. Com base nesta “espiritualidade libertadora” surgiram pastorais sociais das mais diversas cores. No Vale do Ribeira vimos nascer a, até hoje, importante “pastoral operária”. Com apoio de lideranças nacionais, como Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio, fomos incentivando os grupos de alfabetização e os cursos para lavradores. Surgiram as lutas populares contra as barragens e contra as grilagens de terras. Nasceu a pastoral dos pescadores, a luta pela preservação da mata atlântica e contra as usinas nucleares. Verbitas ajudaram a defender os quilombolas e os pequenos núcleos indígenas restantes. Em fim, todo um elenco de “pastorais sociais”. Na cidade de São Paulo, e em muitos outros lugares, não foi diferente. Inseridos numa “Igreja em renovação”, os verbitas se esmeraram na oposição ao regime militar, na defesa dos direitos humanos, no incentivo aos movimentos sociais, e na formação de novas lideranças. Tudo isso sempre em nome e em conjunto com a “caminhada das CEBs”. CEBs e Pastorais Sociais são irmãs gêmeas. “CEBs é o novo modo de ser Igreja”, costumava-se dizer.
1.2 No enfoque da globalização
Todo este empenho pastoral tem a ver com “globalização”? Tem, sim, e muito. Desde há muito tempo, o continente latino-americano é um continente globalizado. Povos europeus e árabes vieram para cá em grande número e acabaram, sob ponto de vista cultural, estabelecendo um certo clima generalizado de paz e boa convivência. Sob ponto de vista social, porém, a análise é outra. Indígenas e “afro-descendentes” (no Brasil, 50% da população!), foram empurrados para as margens, dando origem à reação pastoral acima esboçada. Entre nós, muito mais do que a imigração foi a migração das últimas décadas que desafiou a missão da Igreja. No Brasil, por exemplo, a população urbana aumentou de 30% em 1937 para 85% em 2017!  Sair da vida rural para uma moderna vida urbana, geralmente envolvendo distâncias de centenas ou milhares de quilômetros, com ou sem a família, é tão impactante quanto mudar para o outro lado do globo! Nosso colega, S. M. Michael svd, observa (cf. em 2.a) que a globalização é a marca do nosso tempo, uma marca, porém, que não pode ser corretamente analisada sem um ajuste conveniente das lentes. A “cultura relativística” da nossa sociedade pós-moderna, ele diz (cf. em 3.iii), mexe com os próprios “fundamentos” da sociedade humana. Um “individualismo exagerado” fragmenta os laços familiares e o comprometimento com os “laços sociais e institucionais”, entre os quais os religiosos. Perde-se de vista até o próprio “sentido” da vida humana (cf. em 4.a). Hoje, o individualismo ocidental, pelos mecanismos da globalização, atinge o mundo todo. Conclui S. M. Michael (cf. em 5.) que nosso discipulado missionário requer uma forte dose de “discernimento” para fazer as escolhas certas, tendo em vista o mundo que está à nossa frente. Na América Latina optamos pelo caminho das CEBs, até hoje considerado o melhor caminho para enfrentar os desafios mencionados. Seja na cidade, onde a modernidade avançada age com mais força, ou no distante  interior, onde o novo clima cultural penetra com vigor crescente, o bom observador pode constatá-lo facilmente. É na CEB que o indivíduo “desenraizado” encontra um novo ambiente familiar e social onde suas carências antropológicas são atendidas plenamente, e onde, lentamente, elabora um novo “sentido” para sua existência.
“Processos locais têm consequências globais”, diz nosso outro colega, Philip Gibbs (cf. em 1.). A reflexão – aprofundada e permanente – sobre a realidade “local” (Am. Latina) fez nascer não apenas as CEBs com suas pastorais sociais, mas também uma nova teologia, de feição particular, a “teologia da libertação”. Esta teologia, apesar das contestações, correu o mundo (Cf. Gibbs 9.). Ela se “glocalizou”, podemos dizer. Não se trata de “uma teoria a mais”; trata-se de um novo modo de agir. Não novo no sentido do jamais visto. Na verdade, ela se parece com a práxis pastoral dos Santos Padres do início da Igreja. Pense, por exemplo, na famosa “Basilíada” de São Basílio de Cesareia (379). Se os teólogos da Capadócia se preocupavam, antes de tudo, com o pobre em seu estado de penúria, os teólogos da libertação se preocupam, antes de tudo, com o pobre em sua situação “estrutural” de opressão. De uma conotação mais assistencialista se passa a uma conotação mais política. No mundo globalizado, diz Gibbs (cf. em 2. e 3.), não basta mais a simples participação popular nas democracias locais; a globalização traz novos desafios para a condução política do processo democrático em nível internacional. Também nosso confrade, Christian Tauchner, lembra que nossas “pós-democracias” são profundamente desafiadas pelo fator “conhecimento”, privilégio dos poucos que comandam os processos tecnológicos, especialmente os “digitais”, colocando à margem os processos democráticos tradicionais (Cf. em “information society”). “A cultura dominante”, já dizia Marx, “costuma ser a cultura dos dominadores”. Nossa convivência íntima com as pastorais sociais, no decorrer das últimas décadas, deixou mais claro qual o nosso desafio básico: a grande dificuldade não é entender, teológica e espiritualmente, que a Igreja deve se preocupar com os excluídos e marginalizados; a dificuldade maior está na correta compreensão das causas (“estruturais”, cf. Gibbs 3. e 4.) da exclusão, e na coragem profética de enfrentá-las pastoralmente. Isso requer um eterno “nadar contra a maré”, uma vez que a cultura dominante, presente também nas tradições religiosas, e propagada pelos mais modernos meios de comunicação, não costuma revelar a face oculta do sistema. “Com a expansão do capitalismo e da economia neoliberal, ajudados pelas corporações internacionais de comunicação, nós temos uma permanente exportação global da cultura “ocidental”, diz Gibbs (cf. em 7.). Muitos representantes das nossas CEBs e Pastorais Sociais costumam participar do “Fórum Social Mundial”. Será que, nas nossas províncias svd, ainda hoje, a JUPIC está significativamente presente? Ou vamos permitir que a “globalização cultural” seja feita exclusivamente pelas Igrejas Pentecostais e Neopentecostais (Gibbs 8.)? 

2.      A MISSÃO SVD NO CONTEXTO PASTORAL DAS ÚLTIMAS DÉCADAS
            Até aqui falei da missão svd no contexto pastoral latino-americano e brasileiro, enfocando mais o período pós-Vaticano II e pós-Medellin. Para o bem da verdade, este não é o único período a ser ressaltado. Não é segredo para ninguém que a teologia da libertação, e o seu rosto mais visível nas CEBs e nas Pastorais Sociais, nunca foram bem aceitos pela Cúria Romana. Em 1984, o documento da Santa Sé, Libertatis Nuntius, condenou diversos aspectos desta teologia e, embora suavizada pelo documento Libertatis Coscientia, de 1986, e pela carta do papa João Paulo II à CNBB, chamando-a de “não só oportuna, mas útil e necessária”, muitas críticas da ala mais conservadora da Igreja permaneceram. Convivendo com alguns estudantes de teologia numa das nossas paróquias, na distante periferia da cidade de São Paulo, em 1985, fomos surpreendidos pelo “silêncio imposto” ao teólogo brasileiro Leonardo Boff. As inúmeras lideranças leigas das CEBs e das Pastorais Sociais ficaram indignadas. Por iniciativa de um dos estudantes, enviamos, entre outros ao Núncio Apostólico, um cartão postal que mostrava Boff com a boca tampada por um pano vermelho. “É hora de gritar e não de calar”, dizia o cartão. O Núncio Apostólico reclamou, mas nosso bispo, o amável Dom Luciano Mendes de Almeida SJ, que dormia sempre com um batalhão de pobres em frente à sua porta, sendo Secretário Geral da CNBB, nos entendeu muito bem. Não se pode calar a voz profética da Igreja. Mas eram, então, os primeiros sinais da “volta à grande disciplina”, como tão bem observou o eminente teólogo e pastoralista brasileiro, João Batista Libânio SJ. Como professor de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia dos Religiosos (ITESP), em São Paulo, senti o aperto bem de perto. Alguns emissários de Roma vieram verificar quais os “manuais” que usávamos. Uma nova disciplina foi imposta aos seminários e a imensa Arquidiocese de São Paulo, dirigida pelo grande defensor dos Direitos Humanos, Dom Paulo Evaristo Arns, foi subdividida em diversas dioceses independentes. Fim da nossa tradicional e bem planejada “pastoral de conjunto”. Na nomeação dos novos bispos, até hoje, os critérios da Cúria Romana se tornaram muito mais rígidos. Nuvens no horizonte para uma Igreja que dava seus primeiros passos rumo à Igreja “una, santa, católica e apostólica”, mas dentro do princípio conciliar de uma “colegialidade partilhada”.
2.1 O desafio das nossas “dimensões prioritárias”
            Apesar da camisa de força, imposta à pastoral latino-americana a partir da década de 1980, a missão svd, por um bom tempo ainda, se mostrou bastante vibrante. Como Congregação Missionária, as diferentes Regiões SVD tentaram definir com maior clareza qual a sua missão específica na Igreja e na sociedade. Aos poucos foram se estabelecendo as quatro prioridades que, até hoje, orientam as Províncias. Falarei, mais especificamente, da Província Centro do Brasil, por conhecê-la mais de perto. Já em 1979 surgiu a “VERBO FILMES”, tendo em vista a prioridade “comunicação”. Em poucos anos, ganhou destaque nacional, lançando um impressionante número de valiosos instrumentos pastorais de comunicação, entre os quais filmes de longa e curta duração. Até hoje alimenta, de forma permanente e atualizada, os diversos grupos e pastorais da Igreja, com destaque para os muitos leigos e leigas que dedicam a vida às CEBs, às Pastorais Sociais, e à caminhada de uma Igreja autenticamente libertadora. Ainda que não se use o nome, dificilmente algum aspecto da “glocalização” em andamento fica sem a devida atenção. Para a prioridade “Bíblia” nasceu, em 1987, o “CENTRO BÍBLICO VERBO”, também alcançando rapidamente destaque nacional. Uma incansável equipe se dedica à organização de grande variedade de cursos, além de publicações, sempre fiel ao objetivo original da “leitura popular da bíblia”, refletindo a Palavra de Deus a partir do contexto de sua origem, e dentro do contexto da realidade atual. Um instrumento valiosíssimo para os milhares de grupos bíblicos brasileiros que encontram nesta dinâmica grupal um antídoto contra o individualismo da cidade moderna globalizada, e contra a falta de consciência crítica, impingida pela cultura ocidental midiatizada, secularizada, fragmentada e consumista. A terceira prioridade, a da “ANIMAÇÃO MISSIONÁRIA”, também sempre esteve presente, ora de uma forma mais visível, ora de forma mais discreta. Não possuindo uma “sede” e agindo de forma mais difusa, nas paróquias, ela, na verdade, se faz presente em todas as atividades pastorais dos membros da Província.
            Quero destacar, de forma especial, a prioridade “JUPIC” (Justiça, Paz e Integridade da Criação). No meu modo particular de entender, a JUPIC é a prioridade das prioridades, especialmente na Am. Latina. Se as outras prioridades são “meios” que favorecem uma atuação mais eficaz, mais fiel ao Evangelho, a JUPIC é a essência da própria ação evangelizadora da Igreja. Vejo a Igreja como o grande instrumento – Schillebeeckx falava de um “sacramento”, um sinal – que Deus usa para que o mundo progrida em direção à paz, à justiça, à fraternidade e ao bem viver, com inclusão do equilíbrio ecológico. Sem atuação na linha JUPIC, a Igreja perde a sua própria razão de ser. Já falei das muitas atividades JUPIC no Vale do Ribeira, na cidade de São Paulo, e em outras Regiões, frequentemente por iniciativa particular. Na década de 1990, a prioridade JUPIC se tornou mais visível em nível das nossas províncias religiosas. Em conjunto com as Servas do Espírito Santo, organizamos, de dois em dois anos, as “Semanas Latino-americanas JUPIC”: S. Paulo/Brasil: 1992; Puerto Rico/Argentina: 1994; Ypacaraí/Paraguai: 1994; Santiago/Chile: 1996; Cochabamba/Bolívia: 1998. Nos anos intermediários foram as “Semanas Nacionais JUPIC”: São Paulo/Brasil: 1995; Ponta Grossa/Brasil: 1997; Borda do Campo/Brasil: 1999; Barra Mansa/Brasil: 2001. Em todos estes encontros de formação e animação, que costumavam reunir em torno de 50 ou mais das melhores lideranças, entre padres, irmãs e leigos/as, os resultados foram excelentes. Para a formação tivemos sempre as melhores assessorias possíveis, tanto em nível nacional quanto em nível internacional. A animação JUPIC nas Províncias dependia em muito destes encontros. Na preparação da “V Semana Latino-americana JUPIC”, infelizmente, esta forte dinâmica JUPIC foi interrompida por entraves burocráticos. Nas Províncias dos Verbitas, estava-se em busca de um fortalecimento pan-americano. O novo coordenador pan-americano, Pe. Sérgio Cerna, pouco ligado à questão JUPIC, cancelou o encontro e os provinciais verbitas mandaram esperar pela nomeação de um coordenador pan-americano para a prioridade JUPIC, o que nunca aconteceu. A força espontânea que veio “de baixo” foi podada pela força institucional que veio “de cima”. É a briga tradicional entre instituição e missão. Quem perde, normalmente, é a missão.
2.2 O momento atual
Sob ponto de vista da globalização econômica e política, o momento atual, na América Latina e no Brasil, é de grande preocupação, e até de certo desalento. O que acontece no “centro” do mundo ocidental (EUA/Europa) continua afetando fortemente a “periferia” latino-americana. O liberalismo econômico, mais global do que nunca, apesar da crise de 2008, de tal maneira se “monopolizou”, que até um dos seus atuais mais expressivos representantes, o economista francês, Thomas Piketty (em seu livro O Capital - do Século XXI), observa que “o sistema enlouqueceu”. Os seus contundentes gráficos e tabelas demonstram que, com a introdução do neoliberalismo, o acúmulo capitalista tende a superar a própria realidade pré-Marx. Menos de 1% da população mundial possui mais de 50% da riqueza mundial. Verdade é que a oposição popular nas ruas também cresce. “Nós somos os 99%”, dizem os cartazes em Nova York. “Onde está o nosso pão e nosso emprego”, perguntam as ruas de Atenas, Lisboa, Roma e Madrid. O que é comum na Europa, começa a se repetir na Am. Latina: governos trabalhistas e liberais se revezam, mas o sistema não muda. Muitos países árabes e africanos estão em frangalhos e o número de “sobrantes” aumenta. Aonde encontrar esperança? A minha está na própria antropologia humana: somos parte da “Vida”, e a vida evolui de forma aleatória, mas não sem um nexo com as possibilidades pré-existentes. Também a consciência humana, lentamente, “se globaliza”. A flecha do tempo vai no rumo da “complexidade crescente”, e não no rumo da autodestruição. S. Paulo já o dizia: são as “dores do parto”. O desalento do momento, no entanto, é grande.
Também na Igreja, pois ela respira o mesmo ar. Entre nós, as CEBs, nas últimas décadas, estão pedindo socorro. Os bispos foram sumindo dos vibrantes encontros nacionais. Nossa última e significativa “V Conferência Episcopal Latino-americana”, em Aparecida SP (2007), representou um certo alívio. A parte do documento final que incentivava as CEBs, contudo, foi, entre todas, a parte mais “censurada” por Roma. Foi eliminada, inclusive, a frase que afirmava serem as CEBs “obra do Espírito Santo”. De modo geral, nas Dioceses, as CEBs não são mais “o novo modo de ser Igreja”, mas uma vertente pastoral qualquer em meio a muitas outras. Mesmo em muitas das nossas paróquias verbitas, a “dinâmica CEB” deixou de existir. O mesmo aconteceu às Pastorais Sociais. As poucas que ficaram apresentam, em geral, um caráter mais assistencialista. Se, em 1985, uma pesquisa universitária em S. Paulo ainda indicava os estudantes de teologia como “os militantes mais combativos” nas lutas sociais, os de hoje – sem se darem conta - estão muito pouco presentes. O clima eclesial é bem outro. O poder institucional é mais forte do que o poder das boas vontades. A “romanização” está de volta, com as mesmas características de sempre: centralização, doutrinação e clericalização. Com uma ressalva: desde o início do pontificado do papa Francisco, vemos os primeiros sinais de recuperação, tanto na sociedade civil quanto na Igreja.                                                                                 
Conclusão
“As Igrejas locais são chamadas a serem uma presença profética junto aos migrantes, em defesa de seus direitos e dignidade”, diz nosso confrade, G. Lazar, na conclusão de sua reflexão. Observa ele também – citando Jehu Hanciles - que Deus não se revela a partir dos poderes do “centro”, mas a partir da “periferia”. Nós, Verbitas e Servas, na Am. Latina e no Brasil, vivemos na periferia e ouvimos “o clamor do povo” (Êx 2:23-24). O fator “migração”, em perspectiva pastoral, faz parte do nosso dia a dia. A teologia da libertação surgiu como resposta aos clamores deste povo, e é dela que nasceram nossas CEBs e Pastorais Sociais. Limitei-me a falar mais delas, pois é nossa contribuição específica à grande missão verbita no mundo. Estamos cientes que, mais importante do que olhar com saudade para nosso passado, é encarar com fé e coragem o mundo que vem ao nosso encontro. A Teologia da Libertação continua evoluindo. Se, inicialmente, a ênfase maior estava voltada para as transformações sociais, já na década de 1990 se tornou muito visível a preocupação com os aspectos culturais, tanto do ser humano quanto da sociedade. A questão do gênero, por exemplo, ficou mais do que evidente. Hoje, um dos focos principais desta teologia é a questão ambiental. Amadureceu a concepção de que “tudo está interligado”, conceito que o papa Francisco repete trinta vezes em sua Encíclica Laudato Si. Parabenizamos o nosso confrade, Anthony Le Duc, por tão bem ressaltar “as preocupações ecológicas na nossa era de globalização” (cf. o título de sua contribuição). Creio que também o “nosso” footprint – como instituição missionária, dentro da Vida Religiosa Ativa - está acima da capacidade do planeta de suportá-lo.... e acima daquilo que nos identifica com “os pobres”. Penso que cabe ao Capítulo Geral repensar mais concretamente esta questão.
Como último ponto gostaria de ressaltar a conexão entre globalização e a, entre nós verbitas, tão elogiada interculturalidade. Aqui entre nós, a comissão teológica da “Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo” (ASETT), lançou uma série de cinco livros (série: “pelos muitos caminhos de Deus”), unindo a teologia da libertação latino-americana à teologia mundial do “pluralismo religioso”. Um avanço mais do que bem vindo. A globalização econômica, com suas inerentes consequências políticas e culturais, chegará à exaustão, não por rejeitar esta ou aquela religião, mas por rejeitar a religiosidade humana como tal. Há inúmeros pontos comuns à religiosidade humana, e estes brotam da própria essência antropológica. A globalização cultural ocidental (secularizada), ou qualquer outra, estará fadada ao fracasso caso não respeitar esta religiosidade. Com aproximações diversas, nossos confrades abordam este importante enfoque em suas reflexões: Le Duc (cf. “religious contribution”); Lazar (cf. “Migration as Spiritual Experience”, e “Migration: Missiological Perspective”); Michael (Cf. 4.a, 4.b e conclusão); e Gibbs (Cf. 8). Nossa interculturalidade religiosa verbita, neste sentido, é de exemplar importância. Mas há de se ressaltar também o lado preocupante. Ninguém de nós, indo a um outro continente, consegue “desvestir-se” de sua roupagem cultural original. Podemos compreender, e até “adotar”, uma nova cultura ou tradição religiosa, mas esta nunca será o nosso “eu”, formado na infância e adolescência. Apenas um descomunal esforço nos permite “captar” de verdade e “nos dar bem” na nova religiosidade encontrada. O atual “desalento”, perceptível em diversos segmentos das Províncias SVD, como acima comentei, não é apenas fruto do novo contexto pastoral em geral. É também fruto dos muitos confrades da Indonésia, Índia e África – e dos estrangeiros em geral – que não “vivenciaram” o nascer da teologia da libertação e seu “rosto latino-americano”, mais visível nas CEBs e nas Pastorais Sociais. Espontaneamente “se dão bem” com, e se limitam mais facilmente, ao tradicional modelo romano que, de modo uniforme, foi aplicado ao mundo inteiro e que é da nossa infância. Ainda que haja a maior boa vontade do mundo para adotar o “jeito latino-americano” de fazer pastoral, os limites culturais de origem criam, de fato, um forte obstáculo. Impõe-se uma formação inicial e permanente muito bem elaborada e acompanhada, em cada Província ou Região, para fazer frente a este desafio. Entre nós falha visivelmente. Seria importante o Capítulo Geral criar mecanismos adequados para que os frequentes apelos feitos neste sentido não fiquem “soltos no ar”.