terça-feira, 5 de junho de 2018

REB: outubro 2017, A violência: bênção ou maldição?


A VIOLÊNCIA: BÊNÇÃO OU MALDIÇÃO?
Pelo Pe. Nicolau João Bakker*
São Paulo
Síntese: O autor inicia afirmando que a violência, independentemente da vontade humana, faz parte da estrutura cósmica e, também, da estrutura bioquímica dos seres vivos, entre os quais os humanos. A vida se caracteriza e se sustenta pelo ininterrupto - e aos olhos humanos “violento” - processo do morrer e reviver, em direção a sistemas de maior complexidade. Abordando, em seguida, o fenômeno da consciência humana, e a inerente possibilidade da violência consciente e premeditada, o autor percebe três desafios a serem enfrentados: 1) Dar conta da “naturalidade” de muitas formas de violência; 2) Opor a “espiritualidade da paz” à violência consciente; 3) Combater a pior de todas as violências: a ”violência sistêmica”. Finalmente são feitas algumas considerações pastorais que ressaltam a necessidade de retomar, com mais força, a tradição profética da Igreja Latino-americana, tendo em vista o combate à violência sistêmica.
Palavras-chave: Violência “natural”. Violência consciente. Violência sistêmica. Igreja Profética.
Abstract: The author initially affirms that violence, independently of human will, is part of the cosmic and the biochemical structure of all living beings, including humans. Life is characterized and sustained by non-interrupted – and in the human view “violent” – process of dying and reliving, leading towards higher complexity. Sequentially, referring to the phenomenon of human conscience and the inherent possibility of conscious and premeditated violence, the author observes three goals to be faced: 1) To be aware of the “naturalism” of many forms of violence; 2) To contest a “spirituality of peace” in relation to conscious violence; 3) To counteract the worst of all forms of violence: that is, “systemic violence”. Finally, the author makes some pastoral considerations by emphasizing the need to recover more firmly the prophetic tradition of the Latin-American Church, in view of counteracting systemic violence.
Keywords: “Natural” violence. Conscious violence. Systemic violence. Prophetic Church.   

Introdução
            Nós, seres humanos, somos extremamente “pré-determinados” pelo nosso espaço e pelo nosso tempo. Julgamos o nosso mundo a partir do local onde estamos inseridos, ou a partir dos espaços onde estivemos inseridos e que ainda permanecem na nossa memória. Pela comunicação humana, falada ou escrita, podemos inteirar-nos das experiências vividas por outras pessoas, em outros lugares e em outros tempos, mas, ainda assim, aquelas experiências “alheias” são acolhidas e “traduzidas” pelo nosso cérebro sempre de forma “interpretativa”. Simplesmente não temos acesso direto e objetivo ao mundo que nos envolve. Em sua importante obra A árvore do conhecimento, os neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela demonstraram que todo o “acoplamento” ao nosso exterior passa pelo sistema nervoso que age como um “circuito fechado”.1 Vemos o nosso mundo, portanto, sempre de forma subjetiva, e cada um/a de nós o vê a seu próprio modo.
            No decorrer da Modernidade, os cientistas tentaram de todas as formas chegar à “objetividade”. Foram efetuadas pesquisas em todos os campos do saber, e inúmeras “verdades objetivas” foram proclamadas no decorrer dos séculos. De fato, com base nas descobertas científicas realizadas, construiu-se o mundo tecno-científico que está aí e que tanto nos fascina. Desde o século passado, porém, a euforia científica sofreu sérios reveses. A física quântica veio demonstrar que a realidade física é muito mais “enigmática” do que se pensava. Em sua dimensão mais íntima, ela é matéria e, ao mesmo tempo, uma onda de infinitas possibilidades. O próprio ato da observação faz a onda “colapsar” para, então, por assim dizer, “mostrar a cara”. Em muitos sentidos, o mundo que temos é tal como o concebemos. Mas, quantos outros mundos poderíamos ter concebido e, mais, ter feito acontecer!? Há algo de misterioso em tudo isso, e as grandes religiões mundiais estão aí para desvendar o mistério e oferecer pistas de ação. Em nível mundial, uma nova (e ao mesmo tempo muito antiga) sensibilidade se faz presente. Filósofos e cientistas discutem o tema e alguns, como o especialista em alta energia, Fritjof Capra, em O tão da física, estabelecem um claro nexo entre a física moderna e a espiritualidade, especialmente a oriental.2
            Neste esforço de olhar para o nosso mundo, e interpretá-lo, um dos grandes desafios é dar conta do problema da violência. De onde ela vem, e porque ela existe? Se ela é inevitável, qual a melhor maneira para enfrentá-la, e qual a luz que nos vem da mensagem cristã? Refletir sobre isso é o objetivo deste artigo.

1.      A incontornável presença da “violência” cósmica
            Quando falamos em “violência” cósmica, deveríamos pensá-la sem a presença do ser humano, ou dos seres vivos. A própria palavra está tão intimamente ligada à nossa sensibilidade humana que, sem esta, ela perde simplesmente sua razão de existir. Apenas seres humanos, ou vivos, se sentem “violados”. Fora disso, no grande cosmos, as coisas apenas são o que são. Mas como somos obrigados a falar em linguagem humana, o uso da palavra violência é inevitável. Antropomorficamente falando, não há nada mais violento do que o próprio cosmos. Desde a violência total do Big Bang, bilhões de galáxias e estrelas colidem entre si, reconfigurando permanentemente o universo em expansão. Não existem mortes mais violentas, nem nascimentos mais
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1.       Maturana, Humberto; Varela, Francisco. A árvore do conhecimento. São Paulo: Psy II, 1995.
2.       Capra, Fritjof. O tão da física. São Paulo: Cultrix, 1983.
surpreendentes. Nosso sistema solar existe porque, em algum lugar perdido do espaço, a violenta explosão de uma supernova possibilitou a sua existência. Tudo no universo está em permanente movimento e transformação, governado pelas leis físicas básicas da força nuclear fraca e forte, da força eletromagnética e da gravitacional. Querendo ou não, e sem nos dar conta, fazemos parte desta grande engrenagem cósmica. Habitamos o planeta Terra que gira em torno de seu próprio eixo a uma velocidade de 1600 km por hora. Giramos em torno do sol a 108.000 km por hora. Juntamente com nosso sistema solar giramos em torno do coração da Via Láctea a 830.000 km por hora. A Via Láctea vai ao encontro do aglomerado de Virgem a 900.000 km por hora, e todo este conjunto viaja para dentro do espaço a 2 milhões e 200.000 km por hora. Não fomos consultados se queremos embarcar, nem sabemos do nosso destino. Sabemos apenas que, daqui a aproximadamente um bilhão de anos, a energia que sustenta o sistema solar entrará na fase do seu colapso final. Tirando os “vácuos” de todos os átomos do nosso corpo sobra apenas um pozinho de matéria, invisível a olho nu. Este sobreviverá à grande explosão, e então, a dança cósmica, conosco, continuará... até quando Deus quiser.

2.      A “violência” bioquímica: só há vida onde há morte
            Sentimos a morte, seja a nossa ou a dos outros, como uma grande violência, algo que sempre nos assusta e do qual queremos ficar o mais distante possível. Pudéssemos enclausurar o nosso sentimento e guardá-lo num recipiente à parte, veríamos tudo com olhos diferentes. O espetáculo da vida depende da morte e só pode prosperar onde esta está presente. Antigos filósofos, como Heráclito, já percebiam que, em toda a realidade que nos envolve, tudo está sujeito a um eterno fluir: “panta rei”. Também o pensamento oriental, como claramente visível na espiritualidade budista, se aproxima muito desta visão: tudo passa, tudo se transforma, e só é feliz quem sabe aceitar as coisas como elas são. Trata-se de um contrassenso falar em “violência” biológica. A vida é feita do interminável processo do morrer e renascer. Assim como no mundo físico, pela força das leis naturais, tudo está interligado e tudo se transforma, assim também, no mundo biológico, tudo está interconectado e tudo se transforma. O movimento global, porém, não vai na direção da uniformidade, mas na da unidade diferenciada. Existem as forças de atração e as de rejeição. Existem também as “bifurcações evolutivas” imprevisíveis, além das influências multifacetadas do meio ambiente, e, desta forma, a diversidade se estabelece. Mas não há vida sem morte.
            A origem da vida ainda é muito discutida, mas há consensos. No planeta Terra, os elementos cósmicos em transformação, pelas mesmas forças de atração e rejeição da natureza, possibilitaram o surgimentos de pequenos e variados compostos bioquímicos, os quais, por sua vez, acabaram formando “ciclos químicos” auto-sustentáveis e auto-replicantes. Em seu instigante livro Ordem a partir do caos, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers demonstraram que estes pequenos sistemas químicos, na verdade – como já observou o papa Francisco na Laudato Si -, são “sistemas abertos”, isto é, sistemas aptos a absorver mais energia e mais matéria provenientes do meio ambiente e, assim, manter-se e, até, “evoluir”.3 O que chamamos de “violência”, aqui, na raiz, já está presente:  alguns elementos químicos são “atraídos”, outros “rejeitados”. Quando, há aproximadamente 3,8 bilhões de anos, os primeiros “superciclos químicos”, com base em pequenos aminoácidos e nucleotídeos, conseguiram “auto-replicar-se”, nasceu a primeira célula viva. A matéria, apenas aparentemente “morta”, deu à luz a “vida”. Se a matéria comum está incontornável e ininterruptamente sujeita ao processo da “entropia” e, portanto, perder energia, a vida se caracteriza pelo processo contrário: acumula energia, podendo crescer em sua complexidade e, desta forma, evoluir. Mas não sem um permanente “morrer”. A replicação da célula, a “autopoiese” – há algo “poético” no processo da vida - não é possível sem a consumação (ou “morte”) da célula anterior (final de frase eliminada). Evoluir para um ser vivo de maior complexidade não é possível sem o desaparecimento (“morte”) do ser vivo anteriormente existente. A violência do morrer, que o ser humano sente como “maldição”, na verdade é pura “bênção”. As células bioquímicas, ao se desgastarem, deixam outras no lugar. Seres vivos, ao se desgastarem, também deixam outros no lugar.
            As primeiras células vivas se multiplicaram em grande número, formando o “reino” das bactérias. Algumas com a espantosa capacidade de se multiplicarem a cada vinte minutos. Sem sexo algum, usando apenas o mecanismo da “transferência direta” dos genes, evoluíram, diversificaram-se e criaram estratégias diferenciadas para enfrentar a violência do meio ambiente cósmico em permanente transformação. É importante perceber que o processo da vida, até aí, ainda não tem nada de refletido, racional ou consciente. “A linguagem da vida não é a matemática, mas a bioquímica”, repetirá sempre a grande especialista, Lynn Margulis.4 O processo é, em muitos sentidos, “biofágico”, e, ao olhar humano, extremamente violento. As bactérias se alimentam umas das outras. Na sua interação com o meio ambiente chegam a destruí-lo, substituindo-o por outro. Quando, há 2,5 bilhões de anos, as bactérias fotossintetizantes, carentes do escasso hidrogênio do ar, desenvolveram a habilidade de captar o hidrogênio da água, liberando o oxigênio na atmosfera, um episódio extremamente violento ocorreu. Com o oxigênio subindo de 0,0001% para os atuais 21%, quase todas as formas de vida do planeta foram envenenadas e exterminadas, e um novo processo evolutivo se iniciou. Pelo mecanismo da “simbiogênese” – bactérias com habilidades diferentes, ao invés de se alimentarem umas das outras, “fundem-se” umas às outras –, a vida deu origem a células muito mais complexas, dotadas de cloroplastos e mitocôndrias, entre outros. Surgiu assim o novo “reino” dos protistas. Quando os sistemas unicelulares evoluíram para os sistemas multicelulares, dois novos “reinos” se estabelecem: os cloroplastos fotossintéticos possibilitam o surgimento do reino das plantas, e as mitocôndrias aeróbicas dão lugar ao reino dos animais. A linguagem bioquímica da vida, no entanto, permanece a mesma: todas as células se renovam permanentemente, em íntima simbiose com o meio ambiente. Do ar captam o oxigênio e a indispensável energia solar, e da terra o indispensável alimento (inclusive com os
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3.       Prigogine, I; Stengers, I. Order out of chaos. New York: Bantam Books, 1984.
4.       Margulis, L. Symbiotic Planet: a new kind of evolution. New York: Basic Books, 1988.

diferentes sistemas se comendo uns aos outros).

3.      A violência em perspectiva humana e seus desafios
            O ser humano, mesmo consciente, nunca deixou de ser filho ou filha da terra que o gerou, isto é, continua sendo, também, um ser bioquímico. Quando, dentro do reino dos animais, os primeiros animais “cordados” – ainda no fundo dos oceanos - evoluíram para os anfíbios e estes para os répteis, um primitivo “sistema nervoso” se desenvolveu. Os neurocientistas do nosso tempo falam das quatro “camadas” do nosso cérebro atual. A camada mais antiga, o “paleocéfalo”, ainda bem visível, é do tempo dos repteis. Quando os repteis evoluíram para os mamíferos, uma nova camada, a do “mesocéfalo”, foi acrescentada. E quando, há 66 milhões de anos, um novo cataclismo cósmico pôs fim aos dinossauros, e da classe dos pequenos mamíferos veio evoluindo a nova ordem dos primatas, uma terceira camada, a do “neocéfalo”, veio fazer companhia. Este cérebro de primata ainda exerce uma poderosa influência sobre nosso modo de pensar e nosso modo de agir e, na realidade, - como nos dizem os especialistas - nos mantém “desadaptados” para absorver as muitas e rápidas transformações “culturais” que começaram a ocorrer quando, há apenas uns quatro milhões de anos, se desenvolveu a quarta e última camada do cérebro, a do “córtex cerebral”, própria da família dos “hominídeos”. Foi esta família que gerou o gênero homo e, depois, a espécie “sapiens”.5
3.1 Desafio nº 1: Perceber e dar conta da “naturalidade” da violência
             O cosmos é violento por natureza. É feito de raios e trovões e não há como escapar desta violência. Também a vida bioquímica é violenta por natureza. Para se sustentar precisa, de alguma forma, avançar sobre o meio ambiente, e, por mais que se esforce, não escapa do irrefreável processo de degeneração, doença e morte. Desde que o processo evolutivo nos brindou com a “consciência”, transformando animais em seres humanos, nós nos rebelamos contra esta violência cósmica e bioquímica porque ela nos causa “sofrimento”. Não apenas a nós, mas, em sentido metafórico, também aos animais e – por que não? – às plantas. Não existe “limite” para este tipo de sofrimento. Pense, por exemplo, no inimaginável sofrimento causado pelo provável meteorito que, há 245 milhões de anos, pôs fim a mais de 50% de todas as formas vivas do planeta. Nada impede de isto acontecer mais uma vez, ou, eventualmente, algo pior. Nós, como cristãos/ãs, nos perguntamos: porque Deus fez o mundo deste jeito? Também os ateus se perguntam: porque o cosmos está aí, deste jeito? O mais provável é que a pergunta nunca terá resposta. Precisaríamos ser Deus para respondê-la. Apenas a consciência humana fez com que a pergunta fosse feita. Por que surgiram, nesta pequenina Terra, animais conscientes? Não é uma pergunta boba. Um dos atuais mais afamados geneticistas – e um dos mais conhecidos “ateus militantes” –, Richard Dawkins, observou que, para ele, “a consciência humana é o mistério mais profundo da biologia moderna”.6  
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5.       Ornstein, R; Ehrlich P. New World, New Mind. Cambridge: ISHL, 1989.
6.       Dawkins, R. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 126-127.
            A pergunta fica, portanto, no ar. Cabe às religiões oferecer meios de enfrentamento. Todas as religiões lidam com o problema do sofrimento, inclusive com o sofrimento causado pela violência cósmica ou bioquímica. O que as religiões nos dizem? A mim, que sou pastoralista, e não cientista da religião, me parece que, com relação, especificamente, à violência cósmica ou bioquímica, e seu consequente sofrimento, uma das melhores respostas vem do budismo. Buda, diz a história, meditou longamente debaixo da árvore, dias a fio, até se sentir “iluminado”. Viu que o ser humano é infinitamente pequeno e incapaz de fazer frente aos ritmos descompassados e irreverentes do grande cosmos, ou de estancar o permanente aproximar-se da morte biológica. Viu também que o maior sofrimento não vem da violência em si, mas do incansável “desejo” do ser humano de ficar livre da ameaça e livre do sofrimento. Desejo jamais atendido, pois a violência cósmica ou bioquímica é implacável. A única solução é aceitar, interiormente, que as coisas são como são e que “devem” ser como são. Eliminando do coração e da mente o desejo, a violência cósmica ou bioquímica acontece da mesma forma, mas ela não mais aprisiona, angustia ou desespera o ser humano. Este, agora, passa a ser parte da grande evolução cósmica, ou da sempre surpreendente sinfonia da Vida, em perfeita harmonia com o que der e vier.
3.2 Desafio 2: Opor a “espiritualidade da paz” à violência consciente
            Apenas o ser humano pode, consciente e livremente, rebelar-se contra o curso natural das leis cósmicas e bioquímicas e, assim, aumentar ainda mais a “violência” existente. Violências desnecessárias que não fazem sentido. Por puro egoísmo ou ganância, um agricultor pode facilmente poluir a água que passa em seu sítio, ou em sua fazenda, e, mesmo advertido e consciente, continuar a fazê-lo. Ferindo, sem necessidade, a lei cósmica causa enorme dano (= violência) aos moradores rio abaixo. Pelo mesmo egoísmo ou ganância, governos pouco escrupulosos, mesmo quando advertidos por um organismo internacional de grande prestígio científico, podem, consciente e deliberadamente, continuar dando incentivo a indústrias altamente poluidoras por emissões de carbono. Uma violência consciente irresponsável e desnecessária que pode, a longo prazo, ocasionar o extermínio da própria vida no planeta. São inúmeras também as violências desnecessárias em perspectiva bioquímica. Sistemas vivos, sejam humanos ou não, são extremamente delicados. Qualquer transtorno bioquímico ou, nos humanos, também psíquico, traz alguma forma de dor, sofrimento, doença ou morte. Como é fácil o ser humano, consciente e deliberadamente, aumentar, desnecessariamente, a carga de violência que já é inerente à existência! Violência individual e social, não apenas por fumo, álcool, drogas ou alimentação inadequada, mas também pela liberação descontrolada do ódio, da difamação, e da inveja. Em última análise, todos os pecados são formas de violência. Na linguagem de Santo Tomás de Aquino (†1274) são atentados deliberados contra a “lei natural” com a qual o Criador contemplou o Cosmos e a Vida.
            O cristianismo, nesta perspectiva, oferece um ensinamento insuperável. A violência consciente não pode ser combatida por nenhuma outra forma de violência. Nas civilizações antigas, o mais comum - como diz claramente o famoso “Código de Hamurabi” (1772 Ac.), gravado em pedra e guardado no museu de Louvres, em Paris -, era o “olho por olho e dente por dente”. Muitos líderes religiosos, conterrâneos de Jesus, ainda se deixavam guiar por esta diretriz, como tão bem narra o Evangelho segundo Mateus (Mt 5,38). Nos nossos dias, para Mao-Tse-Tung, por exemplo, o poder de acabar com todas as violências feitas ao povo, estava “no cano de uma arma”. Já para a filósofa, Hannah Arendt, do cano de uma arma vem apenas a obediência e o imobilismo.7 A violência consciente só pode ser combatida por uma nova consciência, a que usa a mão estendida da paz. Uma paz que não se contenta em perdoar, mas que constrói novas relações humanas com as armas do amor e da misericórdia. Jesus foi ao ponto de pedir oração pelos inimigos, e, na cruz, ofereceu perdão aos que o crucificavam. Não serão as leis e as prisões que farão diminuir a violência deliberada, mas apenas uma bem articulada espiritualidade, ou cultura, da paz.
3.3 Desafio 3: Combater a pior de todas as violências: a “violência sistêmica”
            Desde Medellin, e o surgimento da teologia da libertação, ouvimos falar em violência sistêmica ou “institucionalizada” (cf. DMd Paz, 2, II). O foco da análise, normalmente, põe em destaque as violências provocadas pelas estruturas sócio-políticas ou sócio-econômicas, presentes na sociedade. Falta perceber melhor porque as sociedades são assim. A antropologia tradicional, por longos séculos, viu e definiu o ser humano a partir de sua “mente”, colocando, consequentemente, em grande relevo a sua consciência e a sua liberdade. Nesta perspectiva, as violências são facilmente percebidas como frutos deliberados de pessoas mal intencionadas ou, simplesmente, como pecado. Não há dúvida que isso, frequentemente, ocorre, mas há algo mais profundo. A antropologia moderna, mais do que a mente, destaca o “corpo”. Edgar Morin fala de uma ”brecha antropológica”.8 Com o desabrochar da consciência, o ser humano se libertou cada vez mais dos ditames corporais, inatos e instintivos, e embrenhou-se num mundo inteiramente novo, o da mente e da cultura. Apoiou-se, porém, numa mente altamente ilusória. A mente, desligada do corpo – de sua “raiz” bioquímica, cósmica e social – pode voar, livremente, em todas as direções. De discurso em discurso, de tradição em tradição, pode vagar por séculos comprando e vendendo ilusões. E isto com a maior boa vontade e sinceridade do mundo.
            Nos nossos dias está em grande evidência o persistente e nefasto equívoco da economia liberal e/ou neoliberal. Talvez seja a fonte das maiores violências praticadas no planeta. Na encíclica Laudato Si, o papa Francisco fala do problema mais de quarenta vezes. O equívoco persiste ao ponto de um dos maiores especialistas (e defensores) da atual economia liberal, Thomas Piketty, observar que “o sistema enlouqueceu”.9 As grandes riquezas mundiais se concentram nas mãos de um grupo cada vez menor de pessoas.10 O sistema não é somente fruto de má vontade. Muito mais
7.       Benedetti, L.R. Vida Pastoral nº 24/2005. O mundo da violência e a busca da paz.
8.       Morin, E. O enigma do homem. Jorge Zahar, 1979.
9.       Piketty, Th. O Capitalismo – no Século XXI. Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca, 2014, p. 462.
é fruto da vontade de “salvar” o mundo. Desde que Adam Smith (†1790) ofereceu ao mundo “A riqueza das nações, a fé no “mercado livre” se tornou algo como um dogma. Recentemente, como observa Jung Mo Sung, a própria diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, ciente do problema, declarou sua fé no “capitalismo inclusivo”, a nova proposta de salvação.11 Mas não existe salvação a partir de teorias mentais em desconformidade com o corpo. Sob ponto de vista cósmico e bioquímico, não há nada “livre”, nem no cosmos, nem nos seres humanos. Está tudo harmonicamente interligado e interdependente. Ao quebrar um elo, qualquer que seja, a violência desnecessária se instala e a morte se aproxima. Se a violência se tornar “sistêmica”, como no caso da economia ou do descuido ecológico, os estragos, ainda que involuntários, são incalculáveis.
                A Igreja está sujeita ao mesmo equívoco. Desta vez, sem dúvida, com a melhor das boas vontades. Desde a filosofia grega, encarnada na teologia cristã dos primeiros séculos, a Igreja ressaltou o valor do espírito (a “alma”) e não do corpo. Houve uma longa espiritualidade de fuga do mundo (e do corpo) e, no final da Idade Média, especialmente após o Concílio de Trento (1545/63), a Igreja “blindou” o seu modo de pensar contra os avanços do protestantismo e da modernidade. Três pilares marcaram esta blindagem, como afirmou o historiador brasileiro, Riolando Azzi,: centralização, clericalização e espiritualização.12 O corpo ficou inteiramente à margem. Os modos de pensar e modos de falar das culturas humanas tendem a perdurar por longos períodos porque expressam convicções (mentais) consolidadas, e por serem “evidentes” passam a ser tradições rotineiras irrefletidas. Quanto mais “sagradas” as convicções, mais fundamentalisticamente serão perseguidas. Os equívocos apenas vêm à luz “a posteriori”. Hoje, olhando para trás, a Igreja reconhece equívocos, confessados de público: centralismo, clericalismo, espiritualismo, colonialismo, patriarcalismo, e outros mais. A antropologia moderna, mais uma vez, vem em socorro. O pensar humano é uma tarefa coletiva. É preciso dar o devido valor também a outros modos de pensar e de agir. Outras tradições, outros povos, outras culturas e religiões (pluralismo ético e religioso). Como foi grande a violência sistêmica que, também a Igreja, inadvertidamente, cometeu sobre povos e indivíduos!
4.      Como enfrentar, pastoralmente, a violência?
            Pessoalmente tive o privilégio de trabalhar, por diversos anos, no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), São Paulo, sem dúvida um dos Centros mais atuantes do Estado. O foco principal de sua atuação, desde o início (1981), era precisamente o combate à violência. Embora atuando sempre em equipe, coube a mim, por um bom tempo, a coordenação dos Programas: “formação das__
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10.    Bakker, N.J. Vida Pastoral nº 309/2016, pp. 03-12.
11.    Sung J.M. REB nº 304/2016, pp. 95-96.
12.    Azzi, R. REB nº 262/2006. O Conc. Vat. II no contexto da Igreja e do Mundo.
lideranças eclesiais” (CEBs e Pastorais Sociais), e “combate à violência”. Uma das convicções mais profundas que esta longa experiência me transmitiu foi exatamente esta: para a Igreja, em perspectiva pastoral, o combate à violência sistêmica é muito mais importante do que o combate às violências individuais. As violências individuais são pequenas, e não há dúvida que a Igreja tem um importante papel pastoral, tanto no acompanhamento dos autores quanto das vítimas. O principal, porém, não é moralizar ou culpabilizar. É notório que Jesus, mais do que acusar o pecador ou a pecadora, sempre apontou para o pecado. O que mais importa é perceber que quase todas as violências individuais são fruto da violência sistêmica, ou “do jeito de ser” da sociedade. Ninguém rouba ou mata porque gosta. Ninguém machuca o outro por estar convencido/a de praticar uma boa ação. Os seres humanos – como seres bioquímicos - “reagem” a uma ofensa ou a um mal feito, assim como as plantas “reagem” crescendo em direção à luz quando colocadas na sombra, ou como os animais que mordem quando ameaçados. Pessoas conscientes agem conscientemente, é verdade. Não se trata de justificar, mas não devemos esquecer que este comportamento é, também, “da natureza”.
            Tomemos o exemplo da droga, causa de uma das mais frequentes e mais pesadas violências da vida urbana atual, seja diretamente, afetando pessoas, ou então indiretamente por meio do tráfico organizado. Estamos aqui lidando com uma violência sistêmica que gera as violências individuais e grupais. Está assim, hoje, porque “o jeito de ser” da sociedade o favorece. Houve época em que isto era impensável e, se acontecia, era algo muito raro. Por qual razão os costumes mudam com o passar do tempo e, às vezes, temporariamente, para pior? A mente individual é um reflexo da mente coletiva. É quase impossível ao indivíduo desvencilhar-se dos modos de pensar, falar e agir da sociedade. A “liberdade” (individual) conquistada pela Modernidade é fruto de uma mente que se desligou de sua realidade corporal, social e cósmica. Na ânsia de voar livre, a mente humana esqueceu de onde veio, isto é, da terra. Ao proclamar o mercado livre esqueceu que, como dizia Mahatma Gandhi, “a terra tem o suficiente para todos, mas não para a ganância de alguns”. Ao defender a liberdade de pensamento não percebeu, como fazia Marx, que “o pensamento dominante costuma ser o pensamento dos dominadores”. Ao derrubar a Bastilha, em Paris, e proclamar os Direitos Humanos, não levou na devida consideração que, como diz a sabedoria popular, “os direitos de uns terminam onde começam os direitos dos outros”. E ao enaltecer a liberdade de imprensa não previu que ela pode resultar em grandes conglomerados de comunicação, não a serviço da diversidade dos muitos pensares, mas exatamente a serviço do seu contrário: a defesa do pensamento único ou grupal. A mente humana, desligada do “corpo” (social e ambiental), não produz “salvação”, mas ilusão. A bênção desaparece; fica apenas a maldição.
            Para enfrentar esta violência sistêmica, o Centro de Direitos Humanos de Campo Limpo, em conjunto com a Paróquia Santos Mártires, do Jd. Ângela, criou, em 1996, de forma suprapartidária e suprarreligiosa, o “Fórum em Defesa da Vida contra a Violência”. Unindo as CEBs e as Pastorais Sociais da Diocese, as escolas municipais e estaduais, e inúmeras organizações, grandes e pequenas, da sociedade civil, foi possível constituir um fórum de grande combatividade. Por meio dos seus representantes, mais de duzentas entidades chegaram a participar regularmente das reuniões mensais. Autoridades municipais e estaduais foram convocadas em diversas ocasiões, e significativos resultados foram alcançados nas áreas de saúde, segurança, bem estar social e educação. Das caminhadas anuais “Em Defesa da Vida e da Paz”, com grande participação das escolas, chegaram a participar mais de 15.000 pessoas. No encerramento das caminhadas, belos Atos Ecumênicos foram celebrados no Cemitério São Luis, o cemitério do “triângulo da morte” onde, conforme afirmação do administrador, “dos 25 a 30 enterros diários, 16 eram de morte violenta”. Violência sistêmica tem tudo a ver também com a polícia. Foram inúmeras as tentativas de mexer neste vespeiro. Representando o Fórum, cheguei a participar, pessoalmente, da “II Missão Brasil / Canadá”, uma parceria entre a USP e a Universidade de Toronto, visando o aperfeiçoamento da estrutura policial do Estado. Durante quinze dias, em companhia das cúpulas estaduais do Judiciário, Ministério Público, Polícia Civil e Polícia Militar, além dos representantes universitários, tivemos uma série de encontros, sempre no mais alto nível, com as Polícias de Toronto, Calgary, Vancouver e Ottawa. Voltamos com a proposta do “policiamento comunitário”, até hoje a filosofia oficial – embora muito mal conduzida – da Polícia Militar. O Governador Mário Covas confiou o “Programa de Proteção a Testemunhas” (Provita/SP) aos cuidados do CDHEP, e pudemos ajudar a instituir o Programa em quase todos os estados brasileiros. É principalmente por meio deste Programa que são condenadas e encarceradas quadrilhas de narcotraficantes e de policiais e políticos corruptos. Nasceu neste Programa a legislação e a prática da “delação premiada”, hoje tão em evidência no combate à corrupção sistêmica.
            Porque trago aqui este pequeno relato das atividades do CDHEP? É para lembrar que a Igreja Latino-americana, nas décadas de 1960 a 1990, criou um dinamismo pastoral invejável que não deveríamos desperdiçar. O CDHEP nasceu como Comissão de Direitos Humanos da Diocese de Campo Limpo (então Região Pastoral Itapecerica da Serra). Suas atividades não teriam sido possíveis sem a formação e atuação de um número muito grande de leigos e leigas, provenientes das CEBs e das Pastorais Sociais da Igreja. A equipe do CDHEP se compunha quase exclusivamente de lideranças provenientes delas, e o forte Movimento Popular da Região dependia em boa parte da animação das mesmas. Como em muitos outros lugares, a Igreja demonstrava claramente sua vocação profética. Hoje, o momento é outro. A violência sistêmica salta aos olhos, mas a Igreja – sem desmerecer as louváveis exceções – voltou para a sacristia. Devemos ouvir o apelo do papa Francisco e, novamente, “sair” para a rua. Vimos acima que muitas aparentes “violências” na verdade são reflexos do mundo cósmico e bioquímico de onde viemos. Estão mais para bênção do que para maldição, pois, como acreditamos, foi assim que o Criador, em seu insondável mistério, o quis. Maldição é a violência sistêmica, mantida, frequentemente de forma deliberada, por   grupos dominantes na sociedade. Que a Campanha da Fraternidade de 2018 nos ajude a redescobrir a importância do enfrentamento pastoral desta multiforme violência sistêmica.
Endereço do autor:
Rua Duarte Leite, 143
Granja Julieta
04720-070 São Paulo SP

*Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular, de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o Programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no Município de Holambra, SP. Por muitos anos representou a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Nos últimos anos publica regularmente artigos pastorais diversos em REB, Vida Pastoral, Convergência, Grande Sinal, e Verbum. Para consulta aos artigos, acesse: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>.                                                                                                                     

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