A
VIOLÊNCIA: BÊNÇÃO OU MALDIÇÃO?
Pelo
Pe. Nicolau João Bakker*
São
Paulo
Síntese:
O autor inicia afirmando que a violência, independentemente da vontade humana,
faz parte da estrutura cósmica e, também, da estrutura bioquímica dos seres
vivos, entre os quais os humanos. A vida se caracteriza e se sustenta pelo
ininterrupto - e aos olhos humanos “violento” - processo do morrer e reviver,
em direção a sistemas de maior complexidade. Abordando, em seguida, o fenômeno
da consciência humana, e a inerente possibilidade da violência consciente e
premeditada, o autor percebe três desafios a serem enfrentados: 1) Dar conta da
“naturalidade” de muitas formas de violência; 2) Opor a “espiritualidade da
paz” à violência consciente; 3) Combater a pior de todas as violências: a
”violência sistêmica”. Finalmente são feitas algumas considerações pastorais
que ressaltam a necessidade de retomar, com mais força, a tradição profética da
Igreja Latino-americana, tendo em vista o combate à violência sistêmica.
Palavras-chave:
Violência “natural”. Violência consciente. Violência sistêmica. Igreja Profética.
Abstract: The author initially affirms that violence,
independently of human will, is part of the cosmic and the biochemical
structure of all living beings, including humans. Life is characterized and
sustained by non-interrupted – and in the human view “violent” – process of dying
and reliving, leading towards higher complexity. Sequentially, referring to the
phenomenon of human conscience and the inherent possibility of conscious and
premeditated violence, the author observes three goals to be faced: 1) To be
aware of the “naturalism” of many forms of violence; 2) To contest a
“spirituality of peace” in relation to conscious violence; 3) To counteract the
worst of all forms of violence: that is, “systemic violence”. Finally, the
author makes some pastoral considerations by emphasizing the need to recover
more firmly the prophetic tradition of the Latin-American Church, in view of
counteracting systemic violence.
Keywords: “Natural” violence. Conscious violence. Systemic
violence. Prophetic Church.
Introdução
Nós, seres
humanos, somos extremamente “pré-determinados” pelo nosso espaço e pelo nosso
tempo. Julgamos o nosso mundo a partir do local onde estamos inseridos, ou a
partir dos espaços onde estivemos inseridos e que ainda permanecem na nossa
memória. Pela comunicação humana, falada ou escrita, podemos inteirar-nos das
experiências vividas por outras pessoas, em outros lugares e em outros tempos,
mas, ainda assim, aquelas experiências “alheias” são acolhidas e “traduzidas” pelo
nosso cérebro sempre de forma “interpretativa”. Simplesmente não temos acesso
direto e objetivo ao mundo que nos envolve. Em sua importante obra A árvore do conhecimento, os
neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela demonstraram que
todo o “acoplamento” ao nosso exterior passa pelo sistema nervoso que age como
um “circuito fechado”.1 Vemos o nosso mundo, portanto, sempre de
forma subjetiva, e cada um/a de nós o vê a seu próprio modo.
No decorrer da Modernidade, os cientistas tentaram de
todas as formas chegar à “objetividade”. Foram efetuadas pesquisas em todos os
campos do saber, e inúmeras “verdades objetivas” foram proclamadas no decorrer
dos séculos. De fato, com base nas descobertas científicas realizadas,
construiu-se o mundo tecno-científico que está aí e que tanto nos fascina.
Desde o século passado, porém, a euforia científica sofreu sérios reveses. A
física quântica veio demonstrar que a realidade física é muito mais
“enigmática” do que se pensava. Em sua dimensão mais íntima, ela é matéria e,
ao mesmo tempo, uma onda de infinitas possibilidades. O próprio ato da
observação faz a onda “colapsar” para, então, por assim dizer, “mostrar a
cara”. Em muitos sentidos, o mundo que temos é tal como o concebemos. Mas,
quantos outros mundos poderíamos ter concebido e, mais, ter feito acontecer!?
Há algo de misterioso em tudo isso, e as grandes religiões mundiais estão aí
para desvendar o mistério e oferecer pistas de ação. Em nível mundial, uma nova
(e ao mesmo tempo muito antiga) sensibilidade se faz presente. Filósofos e cientistas
discutem o tema e alguns, como o especialista em alta energia, Fritjof Capra,
em O tão da física, estabelecem um
claro nexo entre a física moderna e a espiritualidade, especialmente a
oriental.2
Neste esforço de olhar para o nosso mundo, e
interpretá-lo, um dos grandes desafios é dar conta do problema da violência. De
onde ela vem, e porque ela existe? Se ela é inevitável, qual a melhor maneira
para enfrentá-la, e qual a luz que nos vem da mensagem cristã? Refletir sobre
isso é o objetivo deste artigo.
1. A incontornável presença da
“violência” cósmica
Quando falamos em “violência” cósmica, deveríamos
pensá-la sem a presença do ser humano, ou dos seres vivos. A própria palavra
está tão intimamente ligada à nossa sensibilidade humana que, sem esta, ela
perde simplesmente sua razão de existir. Apenas seres humanos, ou vivos, se
sentem “violados”. Fora disso, no grande cosmos, as coisas apenas são o que
são. Mas como somos obrigados a falar em linguagem humana, o uso da palavra
violência é inevitável. Antropomorficamente falando, não há nada mais violento
do que o próprio cosmos. Desde a violência total do Big Bang, bilhões de
galáxias e estrelas colidem entre si, reconfigurando permanentemente o universo
em expansão. Não existem mortes mais violentas, nem nascimentos mais
______________________________
1.
Maturana, Humberto; Varela, Francisco. A árvore do conhecimento. São Paulo: Psy
II, 1995.
2.
Capra, Fritjof. O tão da física. São Paulo: Cultrix, 1983.
surpreendentes. Nosso
sistema solar existe porque, em algum lugar perdido do espaço, a violenta
explosão de uma supernova possibilitou a sua existência. Tudo no universo está
em permanente movimento e transformação, governado pelas leis físicas básicas
da força nuclear fraca e forte, da força eletromagnética e da gravitacional.
Querendo ou não, e sem nos dar conta, fazemos parte desta grande engrenagem
cósmica. Habitamos o planeta Terra que gira em torno de seu próprio eixo a uma
velocidade de 1600 km por hora. Giramos em torno do sol a 108.000 km por hora.
Juntamente com nosso sistema solar giramos em torno do coração da Via Láctea a
830.000 km por hora. A Via Láctea vai ao encontro do aglomerado de Virgem a
900.000 km por hora, e todo este conjunto viaja para dentro do espaço a 2
milhões e 200.000 km por hora. Não fomos consultados se queremos embarcar, nem
sabemos do nosso destino. Sabemos apenas que, daqui a aproximadamente um bilhão
de anos, a energia que sustenta o sistema solar entrará na fase do seu colapso
final. Tirando os “vácuos” de todos os átomos do nosso corpo sobra apenas um
pozinho de matéria, invisível a olho nu. Este sobreviverá à grande explosão, e
então, a dança cósmica, conosco, continuará... até quando Deus quiser.
2. A “violência” bioquímica: só há
vida onde há morte
Sentimos a
morte, seja a nossa ou a dos outros, como uma grande violência, algo que sempre
nos assusta e do qual queremos ficar o mais distante possível. Pudéssemos
enclausurar o nosso sentimento e guardá-lo num recipiente à parte, veríamos
tudo com olhos diferentes. O espetáculo da vida depende da morte e só pode
prosperar onde esta está presente. Antigos filósofos, como Heráclito, já
percebiam que, em toda a realidade que nos envolve, tudo está sujeito a um
eterno fluir: “panta rei”. Também o pensamento oriental, como claramente
visível na espiritualidade budista, se aproxima muito desta visão: tudo passa,
tudo se transforma, e só é feliz quem sabe aceitar as coisas como elas são.
Trata-se de um contrassenso falar em “violência” biológica. A vida é feita do
interminável processo do morrer e renascer. Assim como no mundo físico, pela
força das leis naturais, tudo está interligado e tudo se transforma, assim
também, no mundo biológico, tudo está interconectado e tudo se transforma. O
movimento global, porém, não vai na direção da uniformidade, mas na da unidade
diferenciada. Existem as forças de atração e as de rejeição. Existem também as “bifurcações
evolutivas” imprevisíveis, além das influências multifacetadas do meio
ambiente, e, desta forma, a diversidade se estabelece. Mas não há vida sem
morte.
A origem da vida ainda é muito discutida, mas há
consensos. No planeta Terra, os elementos cósmicos em transformação, pelas
mesmas forças de atração e rejeição da natureza, possibilitaram o surgimentos
de pequenos e variados compostos bioquímicos, os quais, por sua vez, acabaram
formando “ciclos químicos” auto-sustentáveis e auto-replicantes. Em seu
instigante livro Ordem a partir do caos,
Ilya Prigogine e Isabelle Stengers demonstraram que estes pequenos sistemas
químicos, na verdade – como já observou o papa
Francisco na Laudato Si -, são
“sistemas abertos”, isto é, sistemas aptos a absorver mais energia e mais
matéria provenientes do meio ambiente e, assim, manter-se e, até, “evoluir”.3
O que chamamos de “violência”, aqui, na raiz, já está presente: alguns elementos químicos são “atraídos”,
outros “rejeitados”. Quando, há aproximadamente 3,8 bilhões de anos, os
primeiros “superciclos químicos”, com base em pequenos aminoácidos e
nucleotídeos, conseguiram “auto-replicar-se”, nasceu a primeira célula viva. A
matéria, apenas aparentemente “morta”, deu à luz a “vida”. Se a matéria comum
está incontornável e ininterruptamente sujeita ao processo da “entropia” e,
portanto, perder energia, a vida se caracteriza pelo processo contrário:
acumula energia, podendo crescer em sua complexidade e, desta forma, evoluir.
Mas não sem um permanente “morrer”. A replicação da célula, a “autopoiese” – há
algo “poético” no processo da vida - não é possível sem a consumação (ou
“morte”) da célula anterior (final
de frase eliminada). Evoluir para um ser vivo de maior complexidade não
é possível sem o desaparecimento (“morte”) do ser vivo anteriormente existente.
A violência do morrer, que o ser humano sente como “maldição”, na verdade é
pura “bênção”. As células bioquímicas, ao se desgastarem, deixam outras no
lugar. Seres vivos, ao se desgastarem, também deixam outros no lugar.
As primeiras células vivas se multiplicaram em grande
número, formando o “reino” das bactérias. Algumas com a espantosa capacidade de
se multiplicarem a cada vinte minutos. Sem sexo algum, usando apenas o
mecanismo da “transferência direta” dos genes, evoluíram, diversificaram-se e
criaram estratégias diferenciadas para enfrentar a violência do meio ambiente
cósmico em permanente transformação. É importante perceber que o processo da
vida, até aí, ainda não tem nada de refletido, racional ou consciente. “A
linguagem da vida não é a matemática, mas a bioquímica”, repetirá sempre a
grande especialista, Lynn Margulis.4 O processo é, em muitos
sentidos, “biofágico”, e, ao olhar humano, extremamente violento. As bactérias
se alimentam umas das outras. Na sua interação com o meio ambiente chegam a
destruí-lo, substituindo-o por outro. Quando, há 2,5 bilhões de anos, as
bactérias fotossintetizantes, carentes do escasso hidrogênio do ar,
desenvolveram a habilidade de captar o hidrogênio da água, liberando o oxigênio
na atmosfera, um episódio extremamente violento ocorreu. Com o oxigênio subindo
de 0,0001% para os atuais 21%, quase todas as formas de vida do planeta foram
envenenadas e exterminadas, e um novo processo evolutivo se iniciou. Pelo
mecanismo da “simbiogênese” – bactérias com habilidades diferentes, ao invés de
se alimentarem umas das outras, “fundem-se” umas às outras –, a vida deu origem
a células muito mais complexas, dotadas de cloroplastos e mitocôndrias, entre
outros. Surgiu assim o novo “reino” dos protistas. Quando os sistemas
unicelulares evoluíram para os sistemas multicelulares, dois novos “reinos” se
estabelecem: os cloroplastos fotossintéticos possibilitam o surgimento do reino
das plantas, e as mitocôndrias aeróbicas dão lugar ao reino dos animais. A
linguagem bioquímica da vida, no entanto, permanece a mesma: todas as células
se renovam permanentemente, em íntima simbiose com o meio ambiente. Do ar
captam o oxigênio e a indispensável energia solar, e da terra o indispensável
alimento (inclusive com os
___________________________________
3.
Prigogine,
I; Stengers, I. Order out of chaos.
New York: Bantam Books, 1984.
4.
Margulis,
L. Symbiotic Planet: a new kind of
evolution. New York: Basic Books, 1988.
diferentes sistemas se comendo uns aos outros).
3.
A
violência em perspectiva humana
e seus desafios
O ser humano, mesmo consciente, nunca deixou de ser filho
ou filha da terra que o gerou, isto é, continua sendo, também, um ser bioquímico. Quando, dentro do
reino dos animais, os primeiros animais “cordados” – ainda no fundo dos oceanos
- evoluíram para os anfíbios e estes para os répteis, um primitivo “sistema
nervoso” se desenvolveu. Os neurocientistas do nosso tempo falam das quatro
“camadas” do nosso cérebro atual. A camada mais antiga, o “paleocéfalo”, ainda
bem visível, é do tempo dos repteis. Quando os repteis evoluíram para os
mamíferos, uma nova camada, a do “mesocéfalo”, foi acrescentada. E quando, há
66 milhões de anos, um novo cataclismo cósmico pôs fim aos dinossauros, e da classe
dos pequenos mamíferos veio evoluindo a nova ordem dos primatas, uma terceira
camada, a do “neocéfalo”, veio fazer companhia. Este cérebro de primata ainda
exerce uma poderosa influência sobre nosso modo de pensar e nosso modo de agir
e, na realidade, - como nos dizem os especialistas - nos mantém “desadaptados”
para absorver as muitas e rápidas transformações “culturais” que começaram a
ocorrer quando, há apenas uns quatro milhões de anos, se desenvolveu a quarta e
última camada do cérebro, a do “córtex cerebral”, própria da família dos
“hominídeos”. Foi esta família que gerou o gênero homo e, depois, a espécie “sapiens”.5
3.1
Desafio nº 1: Perceber e dar conta da “naturalidade” da violência
O cosmos é violento por natureza. É feito de
raios e trovões e não há como escapar desta violência. Também a vida bioquímica
é violenta por natureza. Para se sustentar precisa, de alguma forma, avançar
sobre o meio ambiente, e, por mais que se esforce, não escapa do irrefreável
processo de degeneração, doença e morte. Desde que o processo evolutivo nos
brindou com a “consciência”, transformando animais em seres humanos, nós nos
rebelamos contra esta violência cósmica e bioquímica porque ela nos causa
“sofrimento”. Não apenas a nós, mas, em sentido metafórico, também aos animais e – por que não? – às
plantas. Não existe “limite” para este tipo de sofrimento. Pense, por exemplo,
no inimaginável sofrimento causado pelo provável meteorito que, há 245 milhões
de anos, pôs fim a mais de 50% de todas as formas vivas do planeta. Nada impede
de isto acontecer mais uma vez, ou, eventualmente, algo pior. Nós, como
cristãos/ãs, nos perguntamos: porque Deus fez o mundo deste jeito? Também os
ateus se perguntam: porque o cosmos está aí, deste jeito? O mais provável é que
a pergunta nunca terá resposta. Precisaríamos ser Deus para respondê-la. Apenas
a consciência humana fez com que a pergunta fosse feita. Por que surgiram,
nesta pequenina Terra, animais conscientes? Não é uma pergunta boba. Um dos atuais
mais afamados geneticistas – e um dos mais conhecidos “ateus militantes” –,
Richard Dawkins, observou que, para ele, “a consciência humana é o mistério mais
profundo da biologia moderna”.6
___________________________________
5.
Ornstein,
R; Ehrlich P. New World, New Mind.
Cambridge: ISHL, 1989.
6. Dawkins,
R. O gene egoísta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. pp. 126-127.
A
pergunta fica, portanto, no ar. Cabe às religiões oferecer meios de
enfrentamento. Todas as religiões lidam com o problema do sofrimento, inclusive
com o sofrimento causado pela violência cósmica ou bioquímica. O que as
religiões nos dizem? A mim, que sou pastoralista, e não cientista da religião, me parece que, com
relação, especificamente, à violência cósmica ou bioquímica, e seu consequente
sofrimento, uma das melhores
respostas vem do budismo. Buda, diz a história, meditou longamente
debaixo da árvore, dias a fio, até se sentir “iluminado”. Viu que o ser humano
é infinitamente pequeno e incapaz de fazer frente aos ritmos descompassados e
irreverentes do grande cosmos, ou de estancar o permanente aproximar-se da
morte biológica. Viu também que o maior sofrimento não vem da violência em si,
mas do incansável “desejo” do ser humano de ficar livre da ameaça e livre do
sofrimento. Desejo jamais atendido, pois a violência cósmica ou bioquímica é
implacável. A única solução é aceitar, interiormente, que as coisas são como
são e que “devem” ser como são. Eliminando do coração e da mente o desejo, a
violência cósmica ou bioquímica acontece da mesma forma, mas ela não mais
aprisiona, angustia ou desespera o ser humano. Este, agora, passa a ser parte da
grande evolução cósmica, ou da sempre surpreendente sinfonia da Vida, em
perfeita harmonia com o que der e vier.
3.2
Desafio 2: Opor a “espiritualidade da paz” à violência consciente
Apenas o ser
humano pode, consciente e livremente, rebelar-se contra o curso natural das
leis cósmicas e bioquímicas e, assim, aumentar ainda mais a “violência”
existente. Violências desnecessárias que não fazem sentido. Por puro egoísmo ou
ganância, um agricultor pode facilmente poluir a água que passa em seu sítio,
ou em sua fazenda, e, mesmo advertido e consciente, continuar a fazê-lo.
Ferindo, sem necessidade, a lei cósmica causa enorme dano (= violência) aos
moradores rio abaixo. Pelo mesmo egoísmo ou ganância, governos pouco
escrupulosos, mesmo quando advertidos por um organismo internacional de grande
prestígio científico, podem, consciente e deliberadamente, continuar dando
incentivo a indústrias altamente poluidoras por emissões de carbono. Uma violência
consciente irresponsável e desnecessária que pode, a longo prazo, ocasionar o
extermínio da própria vida no planeta. São inúmeras também as violências
desnecessárias em perspectiva bioquímica. Sistemas vivos, sejam humanos ou não,
são extremamente delicados. Qualquer transtorno bioquímico ou, nos humanos,
também psíquico, traz alguma forma de dor, sofrimento, doença ou morte. Como é
fácil o ser humano, consciente e deliberadamente, aumentar, desnecessariamente,
a carga de violência que já é inerente à existência! Violência individual e
social, não apenas por fumo, álcool, drogas ou alimentação inadequada, mas
também pela liberação descontrolada do ódio, da difamação, e da inveja. Em
última análise, todos os pecados são formas de violência. Na linguagem de Santo
Tomás de Aquino (†1274) são atentados deliberados contra a “lei natural” com a
qual o Criador contemplou o Cosmos e a Vida.
O
cristianismo, nesta perspectiva, oferece um ensinamento insuperável. A
violência consciente não pode ser combatida por nenhuma outra forma de
violência. Nas civilizações antigas, o mais comum - como diz claramente o
famoso “Código de Hamurabi” (1772 Ac.), gravado em pedra e guardado no museu de
Louvres, em Paris -, era o “olho por olho e dente por dente”. Muitos líderes religiosos,
conterrâneos de Jesus, ainda se deixavam guiar por esta diretriz, como tão bem narra
o Evangelho segundo Mateus (Mt 5,38). Nos nossos dias, para Mao-Tse-Tung, por exemplo, o poder de acabar com todas as
violências feitas ao povo, estava “no cano de uma arma”. Já para a filósofa,
Hannah Arendt, do cano de uma arma vem apenas a obediência e o imobilismo.7
A violência consciente só pode ser combatida por uma nova consciência, a que
usa a mão estendida da paz. Uma paz que não se contenta em perdoar, mas que
constrói novas relações humanas com as armas do amor e da misericórdia. Jesus
foi ao ponto de pedir oração pelos inimigos, e, na cruz, ofereceu perdão aos
que o crucificavam. Não serão as leis e as prisões que farão diminuir a violência
deliberada, mas apenas uma bem articulada espiritualidade, ou cultura, da paz.
3.3
Desafio 3: Combater a pior de todas as violências: a “violência sistêmica”
Desde Medellin, e o surgimento da teologia da libertação,
ouvimos falar em violência sistêmica ou “institucionalizada” (cf. DMd Paz, 2,
II). O foco da análise, normalmente, põe em destaque as violências provocadas
pelas estruturas sócio-políticas ou sócio-econômicas, presentes na sociedade. Falta
perceber melhor porque as sociedades são assim. A antropologia tradicional, por
longos séculos, viu e definiu o ser humano a partir de sua “mente”, colocando,
consequentemente, em grande relevo a sua consciência e a sua liberdade. Nesta
perspectiva, as violências são facilmente percebidas como frutos deliberados de
pessoas mal intencionadas ou, simplesmente, como pecado. Não há dúvida que
isso, frequentemente, ocorre, mas há algo mais profundo. A antropologia
moderna, mais do que a mente, destaca o “corpo”. Edgar Morin fala de uma
”brecha antropológica”.8 Com o desabrochar da consciência, o ser
humano se libertou cada vez mais dos ditames corporais, inatos e instintivos, e
embrenhou-se num mundo inteiramente novo, o da mente e da cultura. Apoiou-se,
porém, numa mente altamente ilusória. A mente, desligada do corpo – de sua
“raiz” bioquímica, cósmica e social – pode voar, livremente, em todas as
direções. De discurso em discurso, de tradição em tradição, pode vagar por
séculos comprando e vendendo ilusões. E isto com a maior boa vontade e
sinceridade do mundo.
Nos nossos dias está em grande evidência o persistente e
nefasto equívoco da economia liberal e/ou neoliberal. Talvez seja a fonte das
maiores violências praticadas no planeta. Na encíclica Laudato Si, o papa Francisco fala do problema mais de quarenta
vezes. O equívoco persiste ao ponto de um dos maiores especialistas (e
defensores) da atual economia liberal, Thomas Piketty, observar que “o sistema
enlouqueceu”.9 As grandes riquezas mundiais se concentram nas mãos
de um grupo cada vez menor de pessoas.10 O sistema não é somente
fruto de má vontade. Muito mais
7. Benedetti,
L.R. Vida Pastoral nº 24/2005. O
mundo da violência e a busca da paz.
8. Morin,
E. O enigma do homem. Jorge Zahar,
1979.
9. Piketty,
Th. O Capitalismo – no Século XXI.
Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca, 2014, p. 462.
é fruto da vontade de
“salvar” o mundo. Desde que Adam Smith (†1790) ofereceu ao mundo “A riqueza das nações, a fé no “mercado
livre” se tornou algo como um dogma. Recentemente, como observa Jung Mo Sung, a
própria diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine
Lagarde, ciente do problema, declarou sua fé no “capitalismo inclusivo”, a nova
proposta de salvação.11 Mas não existe salvação a partir de teorias
mentais em desconformidade com o corpo. Sob ponto de vista cósmico e
bioquímico, não há nada “livre”, nem no cosmos, nem nos seres humanos. Está
tudo harmonicamente interligado e interdependente. Ao quebrar um elo, qualquer
que seja, a violência desnecessária se instala e a morte se aproxima. Se a
violência se tornar “sistêmica”, como no caso da economia ou do descuido ecológico, os
estragos, ainda que involuntários, são incalculáveis.
A
Igreja está sujeita ao mesmo equívoco. Desta vez, sem dúvida, com a melhor das
boas vontades. Desde a filosofia grega, encarnada na teologia cristã dos
primeiros séculos, a Igreja ressaltou o valor do espírito (a “alma”) e não do
corpo. Houve uma longa espiritualidade de fuga do mundo (e do corpo) e, no
final da Idade Média, especialmente após o Concílio de Trento (1545/63), a
Igreja “blindou” o seu modo de pensar contra os avanços do protestantismo e da
modernidade. Três pilares marcaram esta blindagem, como afirmou o historiador
brasileiro, Riolando Azzi,: centralização, clericalização e espiritualização.12
O corpo ficou inteiramente à margem. Os modos de pensar e modos de falar das
culturas humanas tendem a perdurar por longos períodos porque expressam convicções
(mentais) consolidadas, e por serem “evidentes” passam a ser tradições
rotineiras irrefletidas. Quanto mais “sagradas” as convicções, mais
fundamentalisticamente serão perseguidas. Os equívocos apenas vêm à luz “a
posteriori”. Hoje, olhando para trás, a Igreja reconhece equívocos, confessados
de público: centralismo, clericalismo, espiritualismo, colonialismo,
patriarcalismo, e outros mais. A antropologia moderna, mais uma vez, vem em
socorro. O pensar humano é uma tarefa coletiva. É preciso dar o devido valor
também a outros modos de pensar e de agir. Outras tradições, outros povos,
outras culturas e religiões (pluralismo ético e religioso). Como foi grande a
violência sistêmica que, também a Igreja, inadvertidamente, cometeu sobre povos
e indivíduos!
4. Como enfrentar, pastoralmente, a violência?
Pessoalmente
tive o privilégio de trabalhar, por diversos anos, no Centro de Direitos
Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), São Paulo, sem dúvida um dos Centros mais
atuantes do Estado. O foco principal de sua atuação, desde o início
(1981), era precisamente o combate à violência. Embora atuando sempre em
equipe, coube a mim, por um bom tempo, a coordenação dos Programas: “formação
das__
_______________________________
10. Bakker,
N.J. Vida Pastoral nº 309/2016, pp.
03-12.
11.
Sung
J.M. REB nº 304/2016, pp. 95-96.
12. Azzi,
R. REB nº 262/2006. O Conc. Vat. II no contexto da Igreja e do
Mundo.
lideranças eclesiais”
(CEBs e Pastorais Sociais), e “combate à violência”. Uma das convicções mais
profundas que esta longa experiência me transmitiu foi exatamente esta: para a
Igreja, em perspectiva pastoral, o combate à violência sistêmica é muito mais
importante do que o combate às violências individuais. As violências
individuais são pequenas, e não há dúvida que a Igreja tem um importante papel
pastoral, tanto no acompanhamento dos autores quanto das vítimas. O principal,
porém, não é moralizar ou culpabilizar. É notório que Jesus, mais do que acusar
o pecador ou a pecadora, sempre apontou para o pecado. O que mais importa é
perceber que quase todas as violências individuais são fruto da violência
sistêmica, ou “do jeito de ser” da sociedade. Ninguém rouba ou mata porque
gosta. Ninguém machuca o outro por estar convencido/a de praticar uma boa ação.
Os seres humanos – como seres bioquímicos - “reagem” a uma ofensa ou a um mal
feito, assim como as plantas “reagem” crescendo em direção à luz quando
colocadas na sombra, ou como os animais que mordem quando ameaçados. Pessoas
conscientes agem conscientemente, é verdade. Não se trata de justificar, mas
não devemos esquecer que este
comportamento é, também, “da natureza”.
Tomemos o exemplo da droga, causa de uma das mais
frequentes e mais pesadas violências da vida urbana atual, seja diretamente, afetando
pessoas, ou então indiretamente por meio do tráfico organizado. Estamos aqui lidando
com uma violência sistêmica que gera as violências individuais e grupais. Está
assim, hoje, porque “o jeito de ser” da sociedade o favorece. Houve época em
que isto era impensável e, se acontecia, era algo muito raro. Por qual razão os
costumes mudam com o passar do tempo e, às vezes, temporariamente, para pior? A
mente individual é um reflexo da mente coletiva. É quase impossível ao
indivíduo desvencilhar-se dos modos de pensar, falar e agir da sociedade. A
“liberdade” (individual) conquistada pela Modernidade é fruto de uma mente que
se desligou de sua realidade corporal, social e cósmica. Na ânsia de voar livre,
a mente humana esqueceu de onde veio, isto é, da terra. Ao proclamar o mercado
livre esqueceu que, como dizia Mahatma Gandhi, “a terra tem o suficiente para
todos, mas não para a ganância de alguns”. Ao defender a liberdade de
pensamento não percebeu, como fazia Marx, que “o pensamento dominante costuma
ser o pensamento dos dominadores”. Ao derrubar a Bastilha, em Paris, e
proclamar os Direitos Humanos, não levou na devida consideração que, como diz a
sabedoria popular, “os direitos de uns terminam onde começam os direitos dos
outros”. E ao enaltecer a liberdade de imprensa não previu que ela pode resultar
em grandes conglomerados de comunicação, não a serviço da diversidade dos
muitos pensares, mas exatamente a serviço do seu contrário: a defesa do
pensamento único ou grupal. A mente humana, desligada do “corpo” (social e
ambiental), não produz “salvação”, mas ilusão. A bênção desaparece; fica apenas
a maldição.
Para enfrentar esta violência sistêmica, o Centro de
Direitos Humanos de Campo Limpo, em conjunto com a Paróquia Santos Mártires, do
Jd. Ângela, criou, em 1996, de forma suprapartidária e suprarreligiosa, o
“Fórum em Defesa da Vida contra a Violência”. Unindo as CEBs e as Pastorais
Sociais da Diocese, as escolas municipais e estaduais, e inúmeras organizações,
grandes e pequenas, da sociedade civil, foi possível constituir um fórum de
grande combatividade. Por meio dos seus representantes, mais de duzentas
entidades chegaram a participar regularmente das reuniões mensais. Autoridades
municipais e estaduais foram convocadas em diversas ocasiões, e significativos
resultados foram alcançados nas áreas de saúde, segurança, bem estar social e
educação. Das caminhadas anuais “Em Defesa da Vida e da Paz”, com grande
participação das escolas, chegaram a participar mais de 15.000 pessoas. No
encerramento das caminhadas, belos Atos Ecumênicos foram celebrados no
Cemitério São Luis, o cemitério do “triângulo da morte” onde, conforme
afirmação do administrador, “dos 25 a 30 enterros diários, 16 eram de morte
violenta”. Violência sistêmica tem tudo a ver também com a polícia. Foram inúmeras
as tentativas de mexer neste vespeiro. Representando o Fórum, cheguei a
participar, pessoalmente, da “II Missão Brasil / Canadá”, uma parceria entre a
USP e a Universidade de Toronto, visando o aperfeiçoamento da estrutura
policial do Estado. Durante quinze dias, em companhia das cúpulas estaduais do
Judiciário, Ministério Público, Polícia Civil e Polícia Militar, além dos
representantes universitários, tivemos uma série de encontros, sempre no mais
alto nível, com as Polícias de Toronto, Calgary, Vancouver e Ottawa. Voltamos
com a proposta do “policiamento comunitário”, até hoje a filosofia oficial –
embora muito mal conduzida – da Polícia Militar. O Governador Mário Covas
confiou o “Programa de Proteção a Testemunhas” (Provita/SP) aos cuidados do
CDHEP, e pudemos ajudar a instituir o Programa em quase todos os estados
brasileiros. É principalmente por meio deste Programa que são condenadas e
encarceradas quadrilhas de narcotraficantes e de policiais e políticos corruptos.
Nasceu neste Programa a legislação e a prática da “delação premiada”, hoje tão
em evidência no combate à corrupção sistêmica.
Porque trago aqui este pequeno relato das atividades do
CDHEP? É para lembrar que a Igreja Latino-americana, nas décadas de 1960 a
1990, criou um dinamismo pastoral invejável que não deveríamos desperdiçar. O
CDHEP nasceu como Comissão de Direitos Humanos da Diocese de Campo Limpo (então
Região Pastoral Itapecerica da Serra). Suas atividades não teriam sido
possíveis sem a formação e atuação de um número muito grande de leigos e leigas,
provenientes das CEBs e das Pastorais Sociais da Igreja. A equipe do CDHEP se
compunha quase exclusivamente de lideranças provenientes delas, e o forte
Movimento Popular da Região dependia em boa parte da animação das mesmas. Como
em muitos outros lugares, a Igreja demonstrava claramente sua vocação
profética. Hoje, o momento é outro. A violência sistêmica salta aos olhos, mas
a Igreja – sem desmerecer as louváveis exceções – voltou para a sacristia.
Devemos ouvir o apelo do papa Francisco e, novamente, “sair” para a rua. Vimos
acima que muitas aparentes “violências” na verdade são reflexos do mundo
cósmico e bioquímico de onde viemos. Estão mais para bênção do que para maldição,
pois, como acreditamos, foi assim que o Criador, em seu insondável mistério, o
quis. Maldição é a violência sistêmica, mantida, frequentemente de forma deliberada, por grupos
dominantes na sociedade. Que a Campanha da Fraternidade de 2018 nos
ajude a redescobrir a importância do enfrentamento pastoral desta multiforme violência
sistêmica.
Endereço
do autor:
Rua Duarte Leite, 143
Granja Julieta
04720-070 São Paulo SP
*Missionário
do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências
sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou
também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular, de Campo
Limpo (CDHEP/CL), coordenando o Programa de formação de lideranças eclesiais e
o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto
de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT,
no Município de Holambra, SP. Por muitos anos representou a CRB no Conselho
Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Nos últimos anos publica
regularmente artigos pastorais diversos em REB,
Vida Pastoral, Convergência, Grande Sinal, e Verbum. Para consulta aos artigos, acesse:
<artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>.
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