ESPIRITUALIDADE DO “OUTRO MUNDO” NA
COSMOVISÃO TEOLÓGICA - O “OUTRO MUNDO” É POSSÍVEL? (I)
Pe.
Nicolau João Bakker *
Introdução:
O
muito comentado Fórum Social Mundial realizou, recentemente, sua 12ª edição.
Neste Fórum, todas as tendências políticas, ideológicas, ecológicas, teológicas
e pastorais anti-neoliberais se reúnem para, num grande evento universal de “dialogização
não-tutelada”, descobrir pistas na direção de uma “nova” sociedade, a sociedade
dos nossos sonhos. A grande pergunta que o Fórum se coloca é esta: o “outro
mundo” é possível?
A busca por um outro mundo ideal, na verdade, é tão
antiga quanto a própria humanidade. Podemos encontrar uma espécie de “dinâmica
evolutiva” em todas as culturas humanas. As religiões encarnam esta dinâmica e
tentam dar-lhe direção. No nosso assim denominado “mundo ocidental” é,
basicamente, a fé cristã que constitui a mola propulsora desta dinâmica. Hoje,
muitos estudiosos, especialmente nas regiões mais secularizadas, propõem a
exclusão total da religião da construção desta nova sociedade almejada.
Trata-se de um esforço inútil, pois qualquer ação que vise tornar o mundo
humanamente mais habitável é uma ação “religiosa”, ainda que não se queira
chamá-la assim.
Jesus
já percebia muito bem que a justiça do Reino era muito superior à concepção
limitada dos escribas e fariseus (Mt 5, 20). Ele via o Reino de Deus como que
“escondido no campo”, sempre “no meio de nós” e, ao mesmo tempo, “próximo”. Um
Reino que se torna visível até nos gestos humanos mais humildes, gestos nem
sempre encontrados na fé dos filhos e filhas de Israel.
Para
nós, cristãos/ãs, o “outro mundo” é possível quando concretizado na fidelidade
à Revelação e Tradição Cristãs. Acreditamos numa Mensagem que foi captada e
codificada pelo povo de Israel, vivenciada com perfeição por Jesus de Nazaré, e
transmitida fielmente até nós pelo magistério eclesiástico e, particularmente, pelos
nossos “mestres espirituais”. O “outro
mundo” que nós, cristãos/ãs, almejamos é o mesmo que Jesus almejava quando
dirigia sua prece ao Pai: “venha a nós o vosso Reino”. Um Reino que não é fruto
apenas de preces e discursos, mas, antes, de uma prática. Sem esta, a casa cai,
e é grande a sua ruína (Mt 7, 21-27).
Quando
Jesus explicita sua Mensagem através da Parábola do Bom Samaritano, retrata toda
a história de Israel: a opção de Javé pelos escravos, o compromisso da Aliança,
a realidade da Terra Prometida, a justiça pregada pelos profetas, e, ainda, o
sonho messiânico dos exilados da Babilônia. Apenas o amor samaritano constrói o
Reino que vem. São João fala de um novo céu e de uma nova terra, a Cidade Santa
das núpcias definitivas. Uma Cidade que dispensa a luz do sol, “pois a glória
de Deus a ilumina, e sua lâmpada é o Cordeiro” (Apoc 21, 23).
Esta
Mensagem central do cristianismo não vem expressa sempre da mesma forma. Nosso falar
reflete o nosso pensar, e o nosso pensar reflete, necessariamente, a realidade
em que vivemos. São Tomás de Aquino (†1274) já afirmava que o intelecto humano trabalha
a partir das impressões que vêm dos sentidos. A moderna teoria da cognição
também ressalta que o nosso sistema nervoso, que engloba todos os sentidos,
funciona como um “circuito circular fechado”. Nossa compreensão da realidade
não é direta. Tudo passa pelos sentidos.
Se
isto é verdade para as realidades deste mundo, quanto mais quando falamos das
realidades do “outro mundo”. Deus não nos fala, por assim dizer, “à viva voz”,
ou diretamente. A Mensagem de Deus nos vem através da leitura coletiva que
fazemos da nossa realidade. Não há outro caminho, nem para nós, nem para os
autores bíblicos, e nem para Jesus. O grande e insuspeito teólogo Karl Rahner,
ao falar da humanidade de Jesus, recomendava a “máxima radicalidade”.
Justamente porque a divindade de Jesus, como diz São Paulo na carta aos
filipenses, só nos aparece de forma verdadeira por meio de sua humanidade. A
“vida plena” que Jesus encarna passa pelo seu “aniquilamento” na cruz. Até para
Jesus foi difícil entender a vontade de Deus na realidade da sua crucificação.
É
preciso fazer distinção, portanto, entre a Mensagem que fica e a linguagem que
passa. Quando a realidade muda em profundidade muda também o modo de entender e
o modo de falar. A Tradição da Igreja existe exatamente na reinterpretação
contínua da mesma Mensagem original. O Concílio Vaticano II, em Dei Verbum Nos 8, 12 e 23, atesta
que a Revelação de Deus contida na Bíblia necessita ser reinterpretada sempre
de novo no decorrer da história.
O
presente artigo tem como objetivo mostrar que cada época tem seu próprio
entendimento e, conseqüentemente, também sua própria linguagem. E isso tem tudo
a ver com espiritualidade. Ainda que a Mensagem seja a mesma, em cada época a
vivência da fé, ou a espiritualidade, adquire uma nova configuração. Hoje
ouvimos falar, com muita freqüência, de modernidade e pós-modernidade. É claro
que houve então também uma pré-modernidade. Mas, o que isto significa, e o que
é exatamente essa tal de pós-modernidade? Depois virá a pós-pós? Pessoalmente
preferimos usar a palavra “cosmovisão”. Explicitemos logo esta palavra.
I
O que vem a ser “cosmovisão”?
Cosmovisão
é “um determinado modo de conceber Deus, o mundo e a própria existência
individual e coletiva”. Desde o início da consciência humana, há mais de
100.000 anos, apenas três cosmovisões guiaram o pensar e o agir da humanidade. Limitamo-nos
à cultura ocidental que, de forma muito determinante, configurou o rosto da nossa
Igreja e da nossa espiritualidade. A primeira cosmovisão, na fase pré-moderna,
é chamada a “teológica”. A segunda, a da modernidade, é a “antropológica”. E à
terceira damos o nome de “cosmovisão ecológica”. Qual a diferença entre estas
três cosmovisões? Cada uma delas tem um modo próprio de pensar, ou, uma
“lógica” própria.
A
primeira cosmovisão, a téo-lógica, que perpassa toda a história da humanidade
até, aproximadamente, o ano 1500, pode ser definida como “a concepção onde
Deus, ou o mundo das divindades, é a explicação de todas as coisas e de todos
os eventos”. A segunda cosmovisão, a antropo-lógica, que predomina de 1500 até
os meados do século XX, definimos como “a concepção onde o próprio ser humano,
em especial a razão humana, se transforma no argumento central do crer e do
agir”. E a terceira cosmovisão, a eco-lógica, que vem se impondo com força
crescente desde o início do século passado até hoje, pode ser definida como a
concepção onde o critério último do crer e do agir não é Deus, como na
cosmovisão teológica, nem a razão humana, como na cosmovisão antropológica, mas
“o todo” da criação ou – deixando a fé de lado – “o todo” da realidade. 1
No
presente artigo queremos falar sobre a feição da espiritualidade cristã dentro
da cosmovisão teológica. Em outras oportunidades poderemos, possivelmente,
falar da espiritualidade cristã nas cosmovisões antropológica e ecológica. As
diferenças são muito significativas e, quando não bem compreendidas, ocasionam
muita divisão nas comunidades cristãs. O que nos move a escrever é,
basicamente, uma preocupação pastoral. Um dos mais acirrados debates dentro da
Igreja, atualmente, diz respeito a duas propostas pastorais bastante
divergentes: uma se volta, decididamente, para a transformação das realidades “deste”
mundo, e a outra privilegia uma ação pastoral que se volta para as realidades
do “outro” mundo. Por trás das duas posturas se escondem duas místicas ou
espiritualidades. Cada uma é fruto de uma cosmovisão específica.
É
preciso alertar: as três cosmovisões acima citadas foram sucessivas na
história, mas, infelizmente para nós, as três, ainda hoje, “fazem a nossa
cabeça”. Não de forma igual. O que para alguns já é passado, para outros ainda
está muito presente. Especialmente diante da pergunta “o outro mundo é
possível?”, a cosmovisão que nos domina tem grande peso. Vamos ver, neste
artigo, como se apresenta o “outro mundo” na espiritualidade da cosmovisão
teológica. Que falem nossos “mestres espirituais”!
II
A “espiritualidade do outro mundo” no tempo dos Padres Apostólicos
A cosmovisão
teológica, como já observamos, não se iniciou com o cristianismo. Durante
milênios, ainda antes do surgimento das primeiras civilizações humanas em volta
do Mediterrâneo, as pequenas coletividades humanas não se sentiam donas do seu próprio
destino. Sentiam-se inteiramente dependentes das divindades. De modo geral não
encontramos nelas uma separação radical entre o profano e o sagrado. Antes,
toda a realidade é vista como que impregnada do sagrado. Sua cosmovisão é,
portanto, tipicamente “teo-lógica”.
Quando surge um poder político nas primeiras
civilizações, os reis sempre governam “em nome dos deuses”. Muitos
historiadores afirmam que as antigas “teocracias”, onde as divindades
governavam diretamente, se transformaram então em “hierocracias” onde as
divindades governam por meio de seus representantes. Vemos algo muito parecido
na história do povo de Israel.
Foram os filósofos pós-Socráticos da Grécia que, a partir
do ano 400 AC aproximadamente, pela primeira vez, opuseram este nosso mundo ao “outro”
mundo. Criaram o mundo do sagrado e o mundo do profano. O mundo do sagrado é
perfeito, divino, imortal e incorruptível. Já este mundo é imperfeito, mortal e
corruptível. O ser humano faz parte do mundo imperfeito, corruptível, mas com uma
exceção: a sua razão. Os gregos tinham uma grande veneração pela razão humana,
exatamente porque viam na razão um reflexo do mundo divino. Algo perfeito,
incorruptível e imortal. Os deuses guiam o ser humano mediante a razão. Quando
os cidadãos de Atenas, inspirados pelos filósofos, criam a tal da “democracia”
não pensam num simples “governo do povo”. Pensam numa sociedade governada pelos
deuses através da razão humana, cultivada por autênticos cidadãos. Não deixa de
ser uma cosmovisão bem teológica.
O modo de pensar e de falar dos Padres Apostólicos,
nossos primeiros mestres espirituais, é bem esta da cosmovisão grega: este
mundo corruptível nada vale; tudo deve ser feito para alcançar o “outro mundo”
incorruptível. Por isso podemos dizer que a primeira espiritualidade do
cristianismo é a “espiritualidade do outro mundo”. Quem, na Bíblia, melhor
reflete esta espiritualidade é São João, exatamente por ter tido maior
influência da filosofia grega. Já no Prólogo do seu Evangelho fala das “trevas”
e do “mundo” que não receberam Jesus. Depois faz Jesus dizer: “a carne para
nada serve” (Jo 6, 63). São palavras que constituem seu tema constante.
Da mesma forma como para João, também para os Padres
Apostólicos a vida neste mundo não passa de uma grande peregrinação em direção
ao outro, o definitivo. No primeiro documento pós-testamentário, a 2ª Epístola aos Coríntios do terceiro
sucessor de Pedro, Clemente Romano
(†101), lemos: “Vós sabeis, irmãos, que a estadia desta carne neste mundo é
depreciável e dura pouco; porém, a promessa de Cristo é grande e maravilhosa, a
saber, o repouso do Reino que vem e a vida eterna” (V). Pouco adiante diz:
“Esta época e a futura são inimigas. Uma fala de adultério, contaminação,
avareza e mentira; a outra se afasta destas coisas. Portanto, não podemos ser
amigos das duas; temos que dizer adeus a uma e ter amizade com a outra” (VI). Diz
a história que, poucos anos depois, Clemente é jogado ao mar com uma pedra no
pescoço. Em plena perseguição romana, a transitoriedade deste mundo era, de
fato, muito evidente.
Também
Santo Inácio de Antioquia (†110),
condenado às feras pelo imperador Trajano, manifesta total desprezo por este
mundo. A caminho do encontro com os leões escreve sete cartas. Na Carta aos Romanos, V 5, diz: “Fogo e
cruz, manadas de feras, quebradura de ossos, esquartejamentos, trituração do
corpo todo, os piores flagelos do diabo venham sobre mim, contanto que encontre
a Jesus Cristo”. Ao colega-bispo de Esmirna, Policarpo, aconselha ser um
“atleta de Deus”: “o prêmio é a incorruptibilidade e a vida eterna” (2).
O próprio São
Policarpo (†155), feito bispo pelo apóstolo João, quando colocado diante de
sua fogueira, diz ao oficial romano: “Há 86 anos sirvo a Cristo e nenhum mal
tenho recebido dele, como poderia eu blasfemar contra meu Rei e Salvador?”
Também para Policarpo, o valor maior não estava neste mundo, mas no outro.
Um retrato fiel da religiosidade popular desta época
encontramos no longo documento Pastor de
Hermas (aprox. 150). Composto por visões, mandamentos e parábolas, ressalta
a necessidade da penitência, em preparação ao outro mundo que vem. É a partir
da perspectiva da “Cidade Santa” que os cristãos aprendem a “habitar” nesta
terra estrangeira: “Vós, servos de Deus, sabeis que habitais em terra
estrangeira. De fato, vossa cidade acha-se longe desta cidade. Portanto, se
conheceis vossa cidade, aquela que deveis habitar, por que correis assim atrás
de campos, instalações luxuosas, palácios e mansões inúteis? Quem procura tais
coisas nesta cidade não espera retornar à sua própria cidade... Vigia,
portanto. Visto que moras em terra estrangeira, não reserves para ti senão o
estritamente necessário, e estejas pronto” (50).
Um elemento da maior importância a observar é que, por
mais que os Padres Apostólicos insistam na transitoriedade deste mundo e na
prioridade que deve ser dada ao outro, em nenhum momento deixam de insistir na
imperiosa necessidade da prática do amor desinteressado neste mundo. Este é
condição daquele. Para Santo Inácio, alguns são “moeda legítima cunhada por
Deus”, outros “moeda falsa cunhada pelo diabo” (Carta aos Magnésios, III, 5). Tudo depende da prática do amor. O mau
exemplo vem dos infiéis: “Não lhes importa o dever de caridade, nem fazem caso
da viúva e do órfão, nem do oprimido, nem do prisioneiro ou do liberto, nem do
que padece fome ou sede” (Carta aos
Esmirnenses, VI). O Pastor de Hermas, muito usado na catequese aos
catecúmenos, diz: “Vós que tendes muito, procurai os que têm fome, enquanto a
torre (= Igreja) não estiver terminada, porque, depois de terminada, ainda que
quisésseis fazer o bem, não teríeis mais ocasião” (17). Na cosmovisão
teológica, o grande critério de validação está sempre ligado a Deus ou ao mundo
do sagrado. O que é feito ao próximo é feito a Deus, nem que seja a simples oferta
de um copo de água.
III
A “espiritualidade do outro mundo” no tempo dos “Santos Padres”, gregos e
latinos
Quando termina o
tempo dos Padres Apostólicos e começa o tempo dos assim chamados “Santos
Padres”, gregos e latinos, a “espiritualidade do outro mundo” permanece. Para o
grande combatente dos gnósticos, São
Clemente de Alexandria (†215), o cristão é antes de tudo um “cidadão do
céu” (Estromata 7, 7). Os cristãos
ainda são os “excluídos” do Império Romano e as perseguições a eles continuam.
Em Pedagogo 9, 83, Clemente não perde
de vista a perspectiva do outro mundo: “Sim, Senhor, conduz-nos aos prados
férteis de tua justiça. Sim, Tu que és o nosso Pedagogo, sê o nosso Pastor, até
a tua montanha santa, até a Igreja que se eleva acima das nuvens”. Mas, em Pedagogo 3, 6, diz também: “Não é rico
aquele que possui e guarda, mas aquele que dá; e este dar, não o possuir, faz o
homem feliz”. Clemente sabe onde se encontra o “outro mundo”. Espera por sua
morte na Palestina, escondido da perseguição do imperador Sétimo Severo.
Também o combativo São
Cipriano de Cartago (†258) se guia claramente pela espiritualidade do outro
mundo: “São João nos exorta igualmente, em sua epístola, a cumprir a vontade do
Pai: não ameis o mundo, nem o que está no mundo. Se alguém ama o mundo, a
caridade do Pai não está nele. Pois tudo que está no mundo é concupiscência da
carne, concupiscência do mundo. O mundo passará, e igualmente a sua
concupiscência. Aquele, porém, que cumprir a vontade de Deus permanece
eternamente”. Cipriano ainda mantém a consciência de que o outro mundo virá “em
breve”. Em seu belo texto A Oração do
Senhor, observa: “O discípulo de Cristo, proibido de preocupar-se com o dia
de amanhã, pede apenas o alimento de cada dia. Aliás, seria estranho e contraditório
pedirmos que o Reino de Deus venha a nós em breve, e ao mesmo tempo cuidarmos
de viver no mundo mais longamente”.
Tanto Clemente quanto Cipriano são grandes combatentes
anti-heréticos. Na cosmovisão teológica todas as doutrinas se originam
diretamente em Deus, e quando Deus se comunica diretamente, nenhuma objeção é
válida. Não se justificam meias medidas, nada. Trata-se de uma cosmovisão de
grande beleza, mas também de grande vulnerabilidade. O fundamentalismo está
sempre à espreita. Por outro lado convoca a uma grande generosidade. Em A Unidade da Igreja Católica 26, 1, Cipriano
diz: “Parece mais enfraquecida a generosidade nas boas obras... Então vendiam
as suas casas e as suas propriedades e entregavam o preço aos apóstolos para
que fosse distribuído aos pobres: assim colocavam os tesouros no céu. Hoje nem
se dão os dízimos dos patrimônios e, enquanto o Senhor diz ‘vendei’, nós
preferimos comprar e possuir mais. Como entre nós murchou o vigor da fé!”
IV
A “espiritualidade do outro mundo” se transforma na “espiritualidade do
deserto”
Quando o imperador Constantino adota o Cristianismo em
313, e, mais ainda, quando Teodósio I faz do cristianismo a religião oficial do
Estado em 380, algo muito incisivo ocorre com a espiritualidade dos cristãos. O
que para muitos significou a vitória do cristianismo sobre uma religiosidade
pagã, na verdade significou a vitória do poder civil sobre o “poder” religioso.
Também os romanos viviam, profundamente, a cosmovisão teológica. Seus deuses
comandavam a vida social e a vida familiar. São os deuses que legitimam a ação
do Estado e cabe ao imperador defender a fé do império e impedir toda e
qualquer contestação.
Um
dos nossos erros mais comuns é julgar o passado com os critérios do presente. Julgando
a partir da realidade do passado é perfeitamente natural que os cristãos tenham
dado graças a Deus pelo fim das perseguições e pela oferta de apoio público. Como
conseqüência, porém, a partir do Séc. IV, são os imperadores cristãos – e os/as
mais influentes de sua Corte! - que irão nomear Patriarcas, convocar Concílios
e combater os hereges. Não se trata apenas de (ab)uso da religião pelo poder
civil. Na maioria dos casos é o poder civil atuando a partir de novos critérios
religiosos. É esta a característica própria da cosmovisão teológica.
Com tudo isto, porém, e a vinda de novos “cristãos” em
grande quantidade, a espiritualidade cristã perdeu muito de sua visibilidade
original. No Séc. IV, as turbulências políticas e religiosas se tornam muito
virulentas. A heresia do arianismo – onde Jesus é um ser criado – praticamente
rasga o mundo cristão. Para Constantino já se tratava de uma “epidemia”, e para
combatê-la convoca o Concílio de Nicéia (356). Nestes tempos de crise, três
grandes mestres espirituais dominam o cenário: São Pacômio (†348), Santo Antão (†356), e Santo Anastásio (†378).
Santo Antão é o primeiro que foge das confusões político-religiosas.
Aos vinte anos, diz a história, distribui seus volumosos bens entre os pobres
e, para não se contaminar com as ambigüidades deste mundo, monta seu eremitério
em pleno deserto do Egito. A “espiritualidade do outro mundo”, com seu gesto
original, transforma-se então na “espiritualidade do deserto”. Logo os
eremitérios serão muitos. Também São Pacômio, amigo de Antão, busca refúgio no
deserto. Prefere, no entanto, um estilo mais comunitário ou cenobítico. A
grande atração por esta nova forma de mística cristã – a mística monacal - ficou
logo comprovada. Ao morrer, Pacômio deixa três mil comunidades – masculinas e
femininas – espalhadas por todo o Egito!
No
Concílio de Nicéia, Santo Anastásio, Patriarca de Constantinopla desde 328, se
torna o grande defensor da divindade de Jesus. Contra o arianismo vence a tese
da “consubstancialidade”. Depois de Nicéia, quando o imperador Constâncio,
filho de Constantino, adota o arianismo, com grande apoio do bispo Eusébio de
Nicomédia, as disputas doutrinárias e políticas chegam ao auge. Anastásio é
exilado cinco vezes. Até o papa Libério (†366) é desterrado por mais de dois
anos, sendo substituído pelo antipapa Felix II.
Para
muitos historiadores foi a alma monacal de Anastásio que salvou o cristianismo
de então. Num dos seus exílios passa cinco anos com o amigo Antão no deserto.
Ao escrever depois A Vida de Santo Antão,
o que mais ressalta é a luta de Antão contra os demônios. No estilo alegórico
da época, os embates são hercúleos. Na cosmovisão teológica, o “outro mundo” é
povoado não apenas pelas forças do Bem, mas também pelas forças do Mal. A mais
rigorosa ascese ainda é pouco para resistir-lhes. É ou Deus ou o Demônio. Foram
Antão e Pacômio que inspiraram Anastásio para não perder de vista o “outro
mundo” em meio às turbulências doutrinárias e políticas do seu tempo.
Quem
imagina que a “espiritualidade do deserto” é totalmente alheia às realidades
deste mundo comete um equívoco muito sério. O grande teólogo e escritor São Basílio de Cesaréia (†379),
juntamente com seu amigo de infância, o teólogo e místico São Gregório Nanzianzeno (†389), – moravam na mesma rua e iam
juntos à escola e à igreja - elabora uma “regra ascética”, até hoje comum no
Oriente, que prioriza a fraternidade neste mundo. Até hospitais e escolas estão
na sua mira. Escreve Basílio: “Pertencem àquele que passa fome o pão que tu
guardas; àquele que está nu a capa que tu conservas nos teus guarda-vestidos;
àquele que está descalço os sapatos que apodrecem em tua casa; ao pobre o
dinheiro que tu tens guardado; assim, tu cometes tantas injustiças quantas as
pessoas às quais poderias dar”.
Da
mesma forma São Cirilo de Jerusalém
(†386) que pregava suas famosas 25 Catequeses
aos catecúmenos na porta da igreja do Santo Sepulcro. As referências ao “outro
mundo” são inúmeras. Porém, antes do primeiro dos seus três exílios houve uma
forte campanha de calúnias contra ele. Qual a acusação? Cirilo está vendendo as
propriedades da Igreja para ajudar os pobres! Onde há fumaça há fogo. Não deve
ter sido calúnia apenas. O outro mundo não é possível sem as “vestes brancas”
neste mundo.
Do
lado latino, num tempo em que a nobreza política já assume firmemente a causa
cristã, Santo Ambrósio de Milão (†397)
dá o tom na espiritualidade. De descendência nobre e muito bem formado, o
diplomático advogado, e catecúmeno, é aclamado bispo ainda sem ser batizado. Com
um discreto apoio de Teodósio recebe todos os sacramentos necessários numa
única semana. Em Ambrósio, o poder da Igreja e o poder de Deus quase se
confundem, algo muito próprio da cosmovisão teológica. Quando Teodósio, depois
de ordenar o “massacre de Tessalônica” (388) quer entrar na igreja, acompanhado
de toda a corte, Ambrósio o proíbe: boca que ordena massacres não recebe hóstia
consagrada! Só depois de confissão pública, o que ocorre no Natal de 390 quando
o imperador veste o saco roto da penitência. Humildemente Teodósio dirá depois
que Ambrósio o fez ver então pela primeira vez o que deve ser um bispo.
Ambrósio
se torna o grande defensor de Nicéia no Ocidente, além de contribuir com novos
hinos litúrgicos e – na opinião de Bento XVI – com a introdução da “lectio
divina”. Nas suas muitas obras, a virgindade é um tema preferido. Não está no
centro a abstenção sexual, mas a disponibilidade radical para o “outro mundo”.
A vida monacal vive dias de glória. Diz a história que as mães proibiam as
filhas de assistirem aos sermões de Ambrósio, apelidado “boca de mel”. Os
garbosos italianos não encontravam mais com quem casar e Ambrósio é acusado de
“depauperar” o império!
Também São João
Crisóstomo (†407) respira profundamente a espiritualidade do deserto onde
passou parte de sua juventude. Famoso pelas suas pregações nas igrejas de
Antioquia, onde recebe o apelido “boca de ouro”, João é feito Patriarca de
Constantinopla, em 397, por intermédio do imperador Arcádio. Logo retira o luxo
do palácio episcopal e inicia uma reforma do clero, já contaminado pelo
concubinato com as religiosas, além de cuidar de uma reforma litúrgica. Seu
grande amor ao outro mundo desperta nele uma grande dedicação a este. É tido
como fundador da Doutrina Social da Igreja por sua forte preocupação social. “O
pobre é um outro Cristo” costuma dizer. Sonha em fazer de Antioquia uma cidade
utópica, como nos Atos dos Apóstolos, com propriedade partilhada, uma Antioquia
sem pobres, de rosto cristão. Em Constantinopla amplia o número de hospitais e
casas de acolhimento. Critica a “moda-chique” das viúvas. A enciumada
imperatriz Eudóxia – ariana – consegue convencer o imperador que João “não sabe
harmonizar os interesses da Igreja com os do império”. No seu terceiro exílio,
João morre de exaustão. Todos os males foram causados pelo pecado, era sua
opinião. Na cosmovisão teológica, as causas são sempre religiosas.
O mais influente teólogo e místico dos Padres Latinos é,
sem dúvida, Santo Agostinho (†430).
Ex-professor de retórica e filosofia, uma vez convertido de sua vida dedicada
aos “desejos da carne”, como diria depois, fará da busca da verdade a grande
marca de sua vida. Impressionado pela leitura da Vida de Santo Antão faz do palácio episcopal seu monastério quando
é feito bispo de Hipona em 396. Escreve uma Regra Monástica que servirá de
orientação a muitas ordens religiosas. Maniqueísta de início, acaba adotando o
neoplatonismo. De grande influência é sua concepção antropológica: o ser
humano, filho de Adão, é um ser “decaído”, sempre à mercê da concupiscência.
Especialmente dentro de uma cosmovisão teológica, esta visão negativa da natureza
humana reforçará muito o desprezo cristão por este mundo. Em sua obra prima A Cidade de Deus Agostinho revela seu
grande amor ao outro mundo. A Cidade de Deus, nesta terra, deve prevalecer
sobre a Cidade dos Homens. Um governo civil forte, de índole religiosa, é a
solução. O “poder” religioso já “ameaça” o poder civil. Porém, o grande
critério da vida cristã, para este místico de missa e pregação diárias, é o
amor aos pobres. “O supérfluo do rico é propriedade dos pobres”, argumenta
Agostinho.
Quem tira todas as conseqüências da tese de Agostinho é o
papa Leão Magno (†461). A enorme
crise provocada pelas invasões bárbaras faz crescer o poder político papal. “O
cuidado da Igreja Universal deve convergir para a cátedra de Pedro, e nada...
deve ser separado de sua cabeça”, opina o papa. Sua ação, interna e
externamente, é extraordinária. Sua reforma pastoral uniformizadora é
oficializada no Concílio de Calcedônia (451), convocado ainda pelo imperador
Marciano. Externamente, para surpresa do mundo de então, o papa Leão consegue,
em 452, um acordo de paz com Alarico, rei dos Hunos. Um ano depois tenta o
mesmo com Genserico, rei dos Vândalos, mas sem sucesso. A imperatriz Eudóxia
mexeu os pauzinhos e Roma é saqueada. Entristecido, também o papa Leão atribui
todas as desgraças ao pecado. Como já observamos, na cosmovisão teológica não
contam as circunstâncias históricas ou as causas naturais. Apenas as forças
sobrenaturais – boas ou más – comandam o mundo.
Vemos aqui, pela primeira vez, uma clara cisão na
espiritualidade do mundo cristão: a Igreja-Instituição aposta na primazia de um
poder religioso; o povo cristão comum continua valorizando prioritariamente a
espiritualidade do deserto.
O grande místico Dionísio,
o “Areopagita” (†500), ocupa nestes tempos um lugar muito especial. Quando
a Igreja começa a chamar a si o poder sagrado – que compete a Deus -, Dionísio
se coloca a pergunta: quem é Deus? Em sua Teologia
Mística responde exaustivamente: Deus é o “além de tudo”; para alcançá-lo é
preciso “deixar para trás os sentidos e as operações do intelecto”; Deus
“transcende todo o ser e todo o conhecimento” e está “além de todas as
diferenças positivas e negativas” (cap. 1). É pelo “não-ver e não-saber que
alcançamos a verdadeira visão e conhecimento” (cap. 2). É preciso ir até “o
silêncio absoluto dos pensamentos e das palavras”; para, assim, chegar “Àquele
que está além de todas as abstrações” (cap. 3). Deus “não pode ser expresso ou
concebido”; “não tem semelhança nem diferença”, pois “não é espírito de acordo
com nosso pensamento” (cap. 5). Quando hoje ressurge um novo pensamento centralizador
na Igreja, não é de estranhar que saíram da penumbra também a “teologia
negativa” – S. Tomás de Aquino, que cita Dionísio mais de 1700 vezes, já dizia
que “de Deus não podemos saber o que é, mas apenas o que não é” – e a “via
apofática”, isto é, a aproximação a Deus sem apelar à percepção e à razão.
A espiritualidade do outro mundo se encerra, no Ocidente,
com a ação de São Bento de Núrsia (†547)
e Gregório Magno (†604). São Bento é
considerado o fundador do monaquismo ocidental. O próprio papa Gregório conta,
em seu Livro dos Diálogos, a vida de
São Bento. Iniciando como eremita na gruta de Subiaco, o ascético Bento acaba
formando pequenas comunidades de 12 monges, cada uma com um superior, sendo ele
mesmo o abade geral. Mais tarde, no Monte Cassino, elabora sua “Regra de São
Bento”. Na Idade Média, a famosa Ordem (beneditina) de Cluny, seguindo esta
inspiração original, chega a ter 17.000 mosteiros subordinados a ela! A “espiritualidade
popular” claramente se afasta das ambigüidades do poder. O papa Gregório pinta
a vida de São Bento de acordo com o imaginário religioso da época, cheio de
histórias edificantes de milagres e tentações do demônio, mas, na realidade,
Bento prioriza uma vida de oração. “Nada se oponha à obra de Deus”, no caso a
oração e a liturgia das horas. Não se trata, porém, de uma oração
inconseqüente: “O Senhor espera que nós respondamos, todo dia, com fatos a seus
santos ensinamentos”. Contemplação e ação, ora et labora!
O papa Gregório, monge beneditino, mas filho da nobreza e
ex-prefeito de Roma, apelidado “pai dos pobres”, anuncia sua missão na primeira
homilia depois de eleito: “elevar continuamente os espíritos à consideração das
realidades sobrenaturais, para então viver os acontecimentos temporais sob uma
perspectiva eterna”. Mãos à obra! O país está um caos total sob o ataque
constante dos lombardos. Escreve: “A terra está desolada e já não há quem a
cultive; poucos habitantes ainda ocupam as cidades. Estamos contemplando a que
extremo foi reduzida Roma, a mesma que outrora parecia ser a senhora do mundo!”
Sem imperador do lado ocidental, Gregório I se torna Gregório Magno quando
assume sua missão civil em nome da missão religiosa. Internamente desencadeia
sua “Reforma Gregoriana”: reforma pastoral, litúrgica e missionária.
Externamente arregimenta tropas, paga soldos e até financia bárbaros para
preservarem Roma. Implementa também programas sociais contra a fome que ronda
todas as casas. Habilmente consegue o apoio de Teodolinda, esposa do rei dos
lombardos, ganhando para o cristianismo toda a nação lombarda. Mas não esquece
o amigo Bento. Quando, em 592, o imperador bizantino proíbe seus soldados de
abraçarem a vida monástica, Gregório o adverte severamente: “antes morrer do
que ver a Igreja do apóstolo Pedro se degenerar nas minhas mãos!”
Do lado oriental, dando continuidade à espiritualidade do
outro mundo, ou do deserto, devem ser lembrados ainda os Padres gregos São João Clímaco (†649), autor da Escada do Paraiso, São Máximo (†662), o “último teólogo” da patrística grega, e São João Damasceno (†749). O “Clímaco”
descreve os 30 degraus que devem ser escalados para alcançar a espiritualidade
perfeita: muito jejum, penitência e combate aos desejos da carne, com lutas
ferozes contra o demônio. Mesmo assim, tirado de sua caverna e feito abade, não
esquece a missão neste mundo. Com o apoio do papa Gregório se dedica aos
desvalidos e constrói até “hospitais”. São Máximo, alto funcionário do
imperador Heráclio, uma vez monge, dedica a vida ao estudo da fé e deixa
diversos escritos teológicos, exegéticos e éticos. Escreve a primeira
“biografia” de Nossa Senhora e dá forte combate ao monofisismo e monotelismo,
as heresias do seu tempo. Condenado e exilado acaba sem a mão direita para
nunca mais se atrever a escrever. Já o “Damasceno”, ex-prefeito de Damasco, dá
seus bens aos pobres ao entrar, aos trinta anos, no mosteiro. Feito sacerdote,
convidado pelo Patriarca local, prega com rara beleza – seu apelido é “boca de
ouro” – nas igrejas de Jerusalém. Ao escrever sua Exposição da Fé Ortodoxa torna-se “o São Tomás do Oriente”. O
teólogo alemão Hans Urs Von Balthasar, amigo de Bento XVI, observou que João
praticava uma “teologia de joelhos”, isto em oposição à fria “teologia de
escritório” de muitos outros. Defende com ardor a veneração das imagens contra
a fortíssima onda de iconoclastia do seu tempo. Diz a história que, por ordem
do Califa, João, “o último Padre da Igreja do Oriente”, teve a mão direita
decepada. Ganhou o “outro mundo”, combatendo, como dizia, os “prazeres
venenosos deste mundo”.
V
A “espiritualidade popular” frente à “espiritualidade do poder” na Idade Média
A Igreja é a única instituição forte que sobrevive à
queda do Império Romano. No Oriente, onde o Império perdura até 1453, a
espiritualidade do deserto ainda sobrevive um bom tempo. São Teodoro, o “Estudita” (†826), filho da aristocracia, uma vez
monge, de tão ascético “dormia até em tábua”, diz a história. Inspira-se
diretamente nos “Padres do Deserto”. Feito sacerdote e abade enfrenta o
imperador Constantino VI na questão do “cisma adúltero”. Constantino quer
forçar um casamento ilegítimo com uma prima de Teodoro. Resultado: exílio. Com
as incursões dos árabes, Teodoro muda para o famoso mosteiro de Stoudion, o
qual chega a contar com mil monges! Representa a ala mais radical exigindo,
além de muita oração, muito trabalho. Contemplação não pode ser desculpa!
Grande defensor dos ícones enfrenta duas longas crises de iconoclastia. É
encarcerado, flagelado e exilado diversas vezes.
Também
São Simão, o “novo teólogo” (†1022),
segue a tradição oriental. Seus monges, em Stoudhion, vivem a tardia
prosperidade do império, mas Simão prefere o rigor ascético e é expulso.
Superior do pequeno mosteiro de Mamede, Simão, muito Cristocêntrico e
Espíritocêntrico, ensina que a ascese apenas serve para chegar à “iluminação”,
a experiência direta de Deus. Bento XVI chamou este “3º teólogo” do Oriente –
os primeiros são São João Evangelista e Gregório Nanzianzeno – de “o teólogo da
união mística com Deus”.
No Ocidente, após seu grande florescimento, a vida
monacal, lentamente, entra em decadência. A “espiritualidade do poder” que
vimos surgir nos papados de Leão Magno e Gregório Magno, na Idade Média, chega
ao auge. Especialmente os papas Gregório VII (†1085), Inocêncio III (†1216) e
Bonifácio VIII (†1303) exercem um forte poder civil em nome da espiritualidade
cristã. Esta “hierocracia papel” é fruto natural da cosmovisão teológica. Nela,
sob diversas formas, impera sempre o poder do sagrado. A Igreja da cristandade
é sua expressão máxima. Mas Deus, diria Dionísio, está acima de qualquer
projeto humano. Em meio ao povo comum, distante da Igreja-Instituição, a
espiritualidade do deserto, aos poucos, se transforma numa espiritualidade que
poderíamos chamar de “popular”. Ela tem menos raiz na Bíblia e não tem o
Cristocentrismo divinizado dos Santos Padres, nem sua inserção no mundo. Longe
da influência dos mosteiros e esquecido por um clero desinteressado, o povo
comum se vale do seu próprio sentimento religioso. Em parte “foge” do mundo
para se refugiar em Deus.
A
grande figura de São Pedro Damião
(†1072) representa bem o momento. De origem humilde e de vocação
contemplativa, vive uma vida de austeridade e penitência no mosteiro camaldulense
de Fonte Avellana. É firme, sábio e santo. Como abade escreve muitas biografias
dos santos para edificar seus monges. Entra em cena a ameaça do purgatório. “A
salvação da alma é de todos os negócios o mais importante”, diz. Sua grande
causa é contra a “simonia clerical”: a compra e venda de cargos, títulos, propriedades
e funções eclesiásticas. Virou moeda corrente. Roma está à mercê da casa
imperial da Alemanha que nomeia bispos e abades como afilhados políticos.
Damião escreve seu polêmico Livro de
Gomorra. Critica a falta de pobreza nos mosteiros. Lembra aos ricos
cardeais que S. Pedro e S. Paulo andavam descalços e eram magros! Liderados por
Cluny, os mosteiros beneditinos passam por grande reforma em toda Europa. Juntamente
com seu amigo, o influente Cardeal Hildebrando – o futuro papa Gregório VII! – também
Damião se lança a uma grande reforma do clero. Para Hildebrando, no entanto, a
salvação do mundo depende do poder da Igreja. Para Damião, apenas a vida
espiritual importa.
São Bernardo de Claraval (†1153) é a
figura mais expressiva do Séc. XII. Aos 22 anos entra no mosteiro de Cister, a
ala reformada de Cluny, arrastando consigo mais 30 entre familiares e amigos. Funda
depois o famoso mosteiro de Claraval que logo terá 700 monges. Os
cistercienses, na esteira da decadência de Cluny, florescem. Na morte de
Bernardo serão 345 mosteiros, dos quais 167 subordinados a Claraval. Bernardo
quer um “retorno a Deus” – e à S. Escritura e aos Santos Padres -, com pobreza
real e muita ação e contemplação. E sem privilégios dos senhores feudais! Diz: “Se
a pobreza não fosse um grande bem, J. Cristo não a teria escolhido para si”. E:
“A oração é mais forte que todos os demônios”.
Mas
Bernardo tem muita ascendência também nos altos escalões da Igreja e da
Sociedade. Escreve cinco livros sobre um bom governo papal e interfere
diretamente nos conflitos políticos da época. A Igreja vive o pavor da ameaça
árabe e as cruzadas são vistas como única opção. Matar e morrer por Cristo,
nestas circunstâncias, é uma glória, prega Bernardo com fervor. Faz até o rei
Louis VII e o imperador Conrado carregarem a cruz. Funda a Ordem dos Templários
só para esta tarefa. No imaginário popular da época, Bernardo se torna grande
santo e milagreiro. A devoção popular está em alta. Certa vez, ao saudar N.
Senhora, passando por sua imagem e, como sempre fazia, saudando-a com uma “Ave
Maria”, Bernardo ouve como resposta: “Ave Bernardo”.
As devoções populares florescem na medida em que a
Igreja-Instituição se mantém ocupada com a “espiritualidade do poder”. Na
Alemanha, Santa Hildegarda de Bingen
(†1179) e, depois, Santa Matilde de
Magdeburgo (†1285), Santa Matilde de Hackeborn (†1298) e Santa Gertrudes, a
Grande, (†1302) representam bem a nova e profunda espiritualidade popular. Na
vida da teóloga mística Hildegarda, beneditina, os temas “visões” e
“revelações” são comuns. “Aos três anos uma grande luz já incendiava minha
alma”, diz. Após fundar alguns novos mosteiros, aos 42 anos, diz: “uma voz do
céu mandava-me tudo dizer e escrever”. Depois, seu amigo Bernardo de Claraval,
consegue a aprovação papal para suas revelações. A fama da monja corre então toda
Europa. Expulsava demônios que nem os padres da abadia de Brauweisier conseguiam
expulsar!, diz a história. De fato, Hildegarda percorre a Europa contra as
investiduras eclesiásticas e pela reforma do clero. É a primeira teóloga a
pregar na catedral de Triers. Diz ao imperador Frederico II – que nomeou quatro
antipapas! -: “Sê vigilante... O Rei Supremo te olha!” E ao papa Anastácio IV:
“Por que não cortais pela raiz o mal que sufoca a erva boa?” Sua mística de
fundo, no entanto, é calcada nas emoções. O “amor divino” inspira seu coração.
A cultura religiosa feminina alcança seu nível mais alto
no mosteiro cisterciense de Helfta, Alemanha, com a vida das três “santas do
Sagrado Coração”. Santa Matilde de Magdeburgo grava suas “revelações” num livro:
“O Filho de Deus apareceu a mim. Tinha em suas mãos seu coração... difundia
seus raios por todos os lados... todas as graças que Deus continuamente derrama
sobre a humanidade brotam deste seu Coração”. Matilde de Hackeborn, do mesmo
mosteiro, escreve suas revelações no Livro
das Graças especiais. Para ela, Jesus não é apenas o homem das dores, mas antes
o Salvador glorificado em cujo coração encontramos refúgio e paz: “O Senhor
abriu a ferida do seu tenro Coração... uniu seu tenro Coração ao meu e lhe deu
toda a capacidade de contemplação, devoção e amor... tu me louvarás sempre pelo
meu Divino Coração”. Santa Gertrudes é tida como “a teóloga do Sagrado Coração”.
Muito bem formada, fala de suas revelações no Memorial da abundância da divina suavidade. Tudo, nela, tem ligação
com o cerne da vida monástica: a Liturgia das Horas, a Eucaristia e a Lectio
Divina. Sua Cristologia, unida a uma profunda Mariologia, é toda concentrada no
Coração de Jesus. A tradição cristã a viu como “a santa do dulcíssimo Coração
de Jesus”.
Encerramos nosso relato sobre a espiritualidade do outro
mundo dentro da cosmovisão teológica com a vida de São Francisco de Assis (†1226), Santa Clara de Assis (†1253)
e São Domingos de Gusmão (†1221).
Na Idade Média não encontramos mais o “em breve” da vinda do outro mundo. Na
Igreja-Instituição também não vemos o que era comum nos primeiros cristãos e nos
Santos Padres: encontrar Cristo na vida do pobre para merecer o outro mundo definitivo.
Nela, o Reino de Deus se confunde com o Reino da Igreja.
Não assim na espiritualidade popular. São Francisco de
Assis, em certo sentido, “tumultua” a Igreja-Instituição quando, para sua “fraternidade”,
pede a um papa assustado – na sua Regra chamada “primitiva” - uma conformidade
radical com os pobres. Descobriu que era isto o que Deus queria quando, em
revelação, lhe pediu para “consertar” a igreja de São Damião. Ao deixar suas
roupas, na presença do um bispo surpreso e um pai revoltado, casou com a
“senhora pobreza”, como diria depois. As praças das pequenas cidades medievais
vivem apinhadas de pobres, esquecidos tanto pela nobreza feudal quanto pela
burguesia comercial em ascensão, e até pelos mosteiros e o clero. Francisco não
quer privilégios para o clero, apenas “frades menores”, mendicantes sem pecúnia.
Nem sequer mulas para viajar.
Em
1212 corta os belos cabelos loiros de Clara. A filha da nobreza quer seguir seu
exemplo. Mais tarde Francisco ajuda a “Irmã Clara” a legalizar sua Ordem das
Clarissas. Quando volta do Oriente – quer ajudar na conversão dos sarracenos e
ajudar nas cruzadas – encontra sua comunidade desunida. Alguns querem ser
eremita, outros querem erudição, mais outros sonham com privilégios
eclesiásticos. Nada disto. Tem que ser como no Evangelho! Quando o papa Honório
III aprova, em 1223, a “Regra Bulada” – com as modificações exigidas –
Francisco obedece a contragosto. Sua espiritualidade é a popular da época.
Gosta de poema, música e encenação, com profunda mística cósmica, como Santa
Hildegarda. A Eucaristia e a Cruz de
Jesus estão no centro. É da Cruz que recebe os “estigmas”, os primeiros da
cristandade. Deste mundo Francisco não quis nada. Quis ser enterrado nu.
O
aristocrático espanhol Domingos de Gusmão segue os mesmos passos do amigo Francisco,
mas seus “dominicanos” devem estar mais voltados ao estudo. Quer homens muito
bem preparados para combater os “albigenses” do Sul da França e para as “santas
pregações” pelas ruas – e até pelas tabernas -, de dois em dois. Quando Honório
III aprova, em 1216, a Regra da “Ordem dos Frades Pregadores”, o trabalho
manual e a oração litúrgica são diminuídos. Urge a missão. Domingos quer também
muita democracia na Ordem.
Novos
sinos começam a bater na Igreja. Os “teólogos proto-humanistas de Paris”
propagam uma salvação menos limitada aos ditames da Igreja-Instituição. Os
muitos movimentos de piedade popular da época – como os albigenses – criam ares
anti-Igreja. O papa Gregório IX, em 1233, institui a Inquisição e conta com os
dominicanos para conter a maré. Mas será tarde. Uma nova cosmovisão – a
antropológica – está nascendo e porá tudo de pernas para o ar. Também a
espiritualidade. Para falar dela aguardaremos por outra oportunidade.
*Missionário
Verbita, presbítero, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou
sempre na pastoral prática: de 1965 a 1981 na pastoral rural do Vale do
Ribeira/SP, e, de 1981 a 1993, na pastoral urbana das Zonas Leste e Sul de São
Paulo. Entre 1983 e 1988 lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de
Teologia/SP). Entre 1994 e 2000 atuou
como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo
Limpo/São Paulo (CDHEP/CL), coordenando os programas de formação de lideranças
eclesiais e de combate à violência urbana De 2000 a 2008 foi auxiliar na
Pastoral e vereador, pelo PT, em Holambra/SP. Representa a CRB no Conselho
Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral
paroquial de Diadema/SP. Além de cartilhas populares publicou artigos pastorais
na REB e na Vida Pastoral.
Endereço
do autor: R. Juruá, 798 – Jd. Paineiras – 09932-220 Diadema SP.
Email: nijlbakker@hotmail.com
– Fone:
(11) 4091-7928
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Nota:
1)
Em Vida Pastoral Nos 278/279/281/282
(2011/12) pode ser encontrada uma descrição detalhada destas cosmovisões,
como também sua espiritualidade e perspectiva política correspondentes, tendo
em vista a indispensável renovação pastoral da Igreja.
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