quinta-feira, 7 de julho de 2016

REB outubro de 2016: O "mensalão/petrolão" e a teologia pública no Brasil

O “mensalão/petrolão” e a teologia pública no Brasil
Pelo Pe. Nicolau João Bakker, svd
Diadema SP

Síntese: O presente artigo é fruto de uma preocupação angustiante: para onde irão as Igrejas do Brasil depois do inesperado susto do mensalão e do petrolão? Ao apoiar, ao menos parcialmente, um regime político “da Esquerda”, a Igreja errou ou acertou? Qual o caminho daqui para frente? Uma teologia pública deve limitar-se a discussões de cunho mais acadêmico, ou deve abrir pistas concretas no terreno sempre escorregadio das relações entre Igreja e esfera pública? O artigo inicia tecendo um quadro sintético da atual conjuntura política do país, apresentando, além dos fatos principais, também um ensaio interpretativo. Em seguida busca, no passado da tradição cristã, algumas lições que ainda hoje são significativas para uma teologia pública em fase de elaboração. Finalmente coloca o respeito à “religiosidade” humana como um fator de primordial importância para justificar a ação política em qualquer uma das esferas públicas.
Palavras-chave: Mensalão/Petrolão – Teologia Pública – Esfera pública “religiosa”
Abstract: The present article is the result of an agonizing concern: whereto will the brazilian churches go after the unexpected upheavel from the so-called “mensalão/monthly payment” and “petrolão/petrol payment”? In supporting, at least partially, a leftist political regime, did the church make a mistake or did it do well? From now on, which way to go is the issue? A public theology must limit itself to a more academic discussion or open up concrete roads in the slippery relations between church and the public sphere?  This article starts by offering a synthetic view of the national political situation at present, indicating not only the most significant facts, but also an iterpretive assay. As a sequence, we look at some lessons in the christian tradition of the past that may be significant nowadays for a public theology still in elaboration. Finally it puts the human religiosity as a factor of primordial importance to justify political action in the public sphere.
Keywords: “Mensalão/Petrolão” – Public theology – “Religious” public sphere

Introdução
            Há um bom tempo o Brasil passa pelo drama do “mensalão/petrolão” e suas múltiplas consequências. O que mais chama a atenção são as consequências políticas diretas, mas são igualmente significativas as consequências sociais. A política, como gestão da “polis” (cidade), envolve a sociedade toda e, direta ou indiretamente, acaba abrangendo todos os aspectos da vida humana. Seguindo os passos de Jesus, a Igreja se propõe oferecer “vida plena” (Jo 10,10) a todas as pessoas. Por isso, não pode ficar alheia à questão política. De fato nunca ficou. O nexo entre religião e política é umbilical. Desde os primórdios da humanidade, as religiões, institucionalizadas ou não, sempre marcaram em profundidade o viver, o conviver e até o sobreviver do ser humano. Não é de admirar que, em especial na religiosidade monoteísta, as teo e hierocracias marcaram e continuam marcando forte presença.1 Jesus iniciou sua vida pública anunciando a vinda do Reino de Deus (Mc 1,14-15). Ninguém mais duvida que é da terra que Jesus está falando. Relacionar a fé com a esfera pública é, portanto, um imperativo incontornável.
No mundo ocidental, a revolução francesa de 1789 simbolizou o início de uma separação radical entre Igreja e Estado. O processo histórico antes, durante e depois da ruptura não ocorreu sem fortes questionamentos de ambos os lados. Temos aí uma fonte muito rica em lições para o momento presente. O que pretendo fazer neste artigo é, em primeiro lugar, situar, de forma aproximada, o atual momento político brasileiro, profundamente caracterizado pelo assim chamado “mensalão/petrolão”. Uma espécie de análise de conjuntura sem nenhuma pretensão de ser a única possível. Em seguida tirarei algumas lições do passado que ainda hoje ajudam a iluminar o presente. Finalmente, mais do que entrar em discussões doutrinárias referentes à teologia política ou à teologia da libertação, gostaria de tecer algumas considerações pastorais sobre a fé cristã – e a religiosidade humana de modo geral - e sua relação com a esfera pública. A “teologia pública”, ainda incipiente no nosso país, encontra aí seu objeto específico de análise.

I O “MENSALÃO/PETROLÃO” E O QUE ESTÁ POR DETRÁS DO MESMO
1.1  Os fatos ainda em andamento
Antes do “petrolão” tivemos o “mensalão”. Ambos nascem da mesma fonte. A análise de suas águas já está bem avançada, mas ainda não está muito claro em que mar elas irão desaguar. Insinuações diversas de um esquema de corrupção comandado pelo PT foram se acumulando, entre as quais a misteriosa morte do prefeito Celso Daniel (2002) e a alegada “compra” de deputados do PTB pelo PT (2004).  Inicia-se uma guerra não declarada quando a revista Veja, em maio de 2005, escancara em sua capa: “O vídeo da corrupção em Brasília”. Há forte desconfiança de que não se trata de uma corrupção isolada na cúpula dos Correios. O acuado Deputado Federal, Roberto Jefferson (PTB), acusa a existência de um “mensalão”: membros da “base aliada” receberiam, periodicamente, cotas mensais para votarem a favor do governo. O comandante do esquema seria o Deputado Federal José Dirceu (PT). Aos poucos surge um clima de extrema desconfiança, particularmente com relação ao PT, e o clima se generaliza quando a mídia em geral entra pesadamente com apoio antecipado a toda e qualquer acusação. Um esforço concentrado do Ministério Público, da Polícia Federal, da Procuradoria Geral da República e do Supremo Tribunal Federal, com reflexos numa CPI Mista do Congresso (2005), desencadeia uma verdadeira caça às bruxas.
Suspeita especial recai sobre o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, acusado de estar por trás dos pagamentos. Quando reconhece ser o responsável por um esquema de “caixa dois” no valor de 39 milhões a favor do PT, obtidos por meio de “empréstimos” do empresário Marcos Valério – por um bom tempo este “valérioduto” não sai do noticiário -, porém, sem o aval da Direção Partidária, Delúbio acaba sendo expulso do partido por maioria de votos do Diretório Nacional. Ainda em 2005, numa reunião ministerial, Lula afirma: “Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis, indignado pelas revelações que chocam o país e sobre as quais eu não tinha qualquer conhecimento. Não tenho nenhuma vergonha de dizer que nós temos de pedir desculpas. O PT tem de pedir desculpas. O governo, onde errou, tem de pedir desculpas”. Em agosto de 2007, com Lula já reeleito, o Supremo Tribunal Federal inicia um processo contra os 40 acusados, pela Procuradoria Geral da República, de crimes como formação de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, gestão fraudulenta e evasão de divisas. Apenas em agosto de 2012 ocorre o julgamento dos réus. O então Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, chamou o “mensalão do PT” de “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”.
À essa altura, o país já se encontra enojado com o interminável noticiário de TV sobre o caso e os milhões envolvidos nas tramoias. Quando se tem a impressão que o pior passou e que a maré está a ponto de baixar, o caldo engrossa novamente, desta vez envolvendo bilhões. Em 17 de março de 2014, a Polícia Federal deslancha a “operação lava-jato”, logo batizada de “petrolão”, com inúmeros mandados de busca e apreensão, prisões temporárias e procedimentos instaurados. Mais de dez bilhões teriam sido desviados em “propinas” de empresas estatais, com destaque para a Petrobrás, e de outras grandes empresas entre as quais as principais construtoras. Pela primeira vez o país se dá conta do enorme poder de fogo do ainda recente recurso jurídico da “delação premiada”. Quem não delata não escapa das duras penas da lei. As “revelações” – muitas conduzidas a partir da cadeia - confirmam que não apenas as campanhas eleitorais do PT foram beneficiadas, mas, em geral, as campanhas de quase toda a base aliada. Torna-se claro também que as grandes empresas habituaram-se a “pagar por fora” alguma porcentagem dos seus vultosos contratos com o governo. É a “regra do jogo”, diz a novela. Mas será que tem alguém por trás do esquema? As raízes atávicas da sociedade estão em busca de um bode expiatório.
Em junho de 2013, enormes populações percorrem as ruas das cidades; vidros são quebrados e por toda parte fogos são acesos. “A culpa é do PT”, repete a grande mídia. A campanha eleitoral pelo governo central, em 2014, racha o país como nunca antes. Lula, no entanto, consegue emplacar um segundo governo Dilma, embora com uma vantagem mínima de votos. Com a economia mundial em fogo brando e a classe empresarial se queixando crescentemente do “estatismo” do PT, Dilma perde cada vez mais o apoio indispensável do Congresso e não consegue emplacar as reformas necessárias. Os investimentos escasseiam e a economia do país entra numa forte e prolongada recessão. A Polícia Federal e o Judiciário apertam cada vez mais o cerco a Lula e sua família, acusando-o de benefícios pessoais por meio de favores financeiros “não contabilizados”. Também Dilma não escapa de um cerco crescente. Não apenas no Congresso, mas no país inteiro a situação está caótica. Em junho de 2016, o Ministério Público Federal já aponta para a seguinte estatística: número de procedimentos instaurados: 1237; número de presos: 160; número de busca e apreensões: 608; acordos de delação premiada: 56; acordos de leniência: 5; acusações de improbidade administrativa: 7, contra 38 pessoas e 16 empresas, pedindo pagamento de 12,1 bilhões de reais. No momento em que escrevo (julho de 2016) ainda é imprevisível o resultado final. Certo parece, no entanto, que, mais do que visar a Dilma, provisoriamente afastada, o impeachment em andamento visa o PT e “a Esquerda”.
1.2 O papel do PT
Nas ciências sociais, as interpretações dos “fatos” são mais fluidas do que nas ciências exatas. Se, com muita frequência, é complicado analisar a mente de uma única pessoa – e até da nossa própria! -, quanto mais quando somos obrigados a julgar a “mente” de uma coletividade. É enormemente intrincada a rede das motivações individuais e grupais que orientam a vida política de uma nação. Além do mais existe sempre o problema institucional. Em todas as instituições podemos encontrar mazelas que, por se tornarem hábitos, nem sequer são percebidas ou, quando percebidas, as pessoas, individualmente ou mesmo em grupo, não têm o menor poder para extirpá-las ou modificá-las. A Igreja também as tem. É comum ouvirmos críticas de todos os lados e ninguém indica um remédio realmente eficaz. Qualquer sociedade tem na política uma de suas instituições mais fortes e significativas. A própria sobrevivência da coletividade depende dela! Com o passar do tempo, apesar da caótica transitoriedade dos fatos políticos sucessivos, cada sociedade adquire uma determinada “cultura política” que é própria, persistente e duradoura. Ela se sedimenta na consciência popular e quem se afasta dela dificilmente obterá sucesso na disputa eleitoral.
Não é possível fazer uma correta análise do momento político atual sem levar em conta a história do Partido dos Trabalhadores (PT). Os mais velhos entre nós ainda se lembram. O PT não nasceu no dia de sua fundação em 10 de fevereiro de 1980. O PT se forjou na década de 1970 e início de 1980, aglutinando seis forças renovadoras que mudaram em profundidade a sociedade brasileira: 1) a massa popular que, crescentemente, se posicionou pelo fim da ditadura militar (as “Diretas Já” de 1983/84); 2) parte da elite acadêmica que assumiu as causas populares, muito influenciada pela então amplamente discutida “teoria da dependência” (Fernando Henrique Cardozo à frente); 3) muitos bispos e boa parte da Igreja que, motivados pelo Vat. II e por Medellin e Puebla, também assumiram a causa popular (Teologia da Libertação, CEBs e Pastorais Sociais); 4) o operariado do ABCD que aderiu a um forte e combativo movimento sindical independente (CUT); 5) os muitos e diversificados “movimentos populares” que deram uma nova consciência política à população; 6) os diferentes grupos políticos radicais da clandestinidade que, depois, vieram abrigar-se dentro do PT.
É preciso dar uma atenção especial a esses grupos políticos radicais da clandestinidade. Faz parte desta radicalidade (com treinamento específico para isso) tomar a frente nas discussões, nas análises da conjuntura política e no levantamento das propostas. Os demais “entram na jogada”, embora nem sempre de coração. Com muita frequência os mais radicais são também os mais bem intencionados. No auge da ditadura militar muitos deles arriscaram (ou deram) a vida pelo bem do país. Pude vivenciar algo de perto, primeiro como padre na Diocese de Registro SP, observando atentamente a “guerrilha” no Vale do Ribeira, depois como professor de Teologia Pastoral numa Faculdade de Teologia em S. Paulo, quando costumava oferecer aos alunos uma espécie de radiografia da situação. Os radicais costumam ter também maior clareza de sua proposta política, frequentemente de orientação marxista e fortemente anticapitalista, além de um empenho muito maior em termos de dedicação à causa. Na clandestinidade, assaltos a bancos e sequestro de autoridades era algo considerado quase “sagrado”. Os sobreviventes da época, ainda hoje, ocupam lugares relevantes nos quadros do PT.
Para melhor compreensão reproduzo um retrato do Diretório Nacional do PT, oferecido em 2011 pela sua própria assessoria de imprensa e publicado no blog do jornalista Fernando Rodrigues. São, então, 9 as tendências com direito à vaga na Direção Nacional, de acordo com o peso democrático dos grupos: 1) A união das tendências CNB (construindo um novo Brasil), PTLM (partido de lutas e de massa) e NR (novos rumos), com o lema “O Partido que muda o Brasil”: 45 vagas; 2) A união das tendências Mensagem e Democracia Socialista, com o lema “Mensagem ao Partido”: 13 vagas; 3) A união das tendências Militância Socialista e Articulação da Esquerda, com o lema “Esquerda Socialista”: 8 vagas; 4) A tendência Movimento PT, com o lema “Movimento: partido para todos”: 8 vagas; 5) A união de integrantes da CNB de Minas e outras tendências locais, com o lema “Partido para todos”: 4 vagas; 6) A tendência O Trabalho, com o lema “Terra, Trabalho e Soberania”: 1 vaga; 7) Uma dissidência de O Trabalho, com o lema “Virar à Esquerda”: 1 vaga; 8) Chapa não ligada a tendências, com o lema “Contraponto”: 1 vaga. Total de vagas: 81. As lideranças mais expressivas indicadas são: pela CNB: Lula, Zé Dirceu, Dutra, Palocci, Luiz Dulci, Berzoini e Marco Maia; pela Mensagem: Tarso Genro, Jaques Wagner, José Eduardo Cardozo e Paulo Teixeira; pela Democracia Socialista: Miguel Rosseto, Guilherme Cassei, Afonso Lourenço, Raul Ponte e Ana Júlia Carepa; pelo Movimento PT: Maria do Rosário, Geraldo Magela, Arlindo Chinaglia e Fernando Ferro; pela Articulação da Esquerda: Iriny Lopes, Valter Pomar e Altemir Gregolim; pelo Partido de Luta e de Massa: Jilmar Tatto e Jorge Coelho; pela Novos Rumos: Marta Suplicy e Vaccarezza; pela Militância Socialista: Renato Simões e Gilney Viana; e pelo Trabalho: Markus Sokol e Serge Goulart (dissidente).    
Há um outro elemento que não se pode perder de vista: o “sistema político”, juridicamente consagrado, e os “caciques políticos” que mais se destacam dentro do sistema. Quem está do lado de fora dificilmente percebe o peso deste fator. Com três campanhas políticas nas costas, duas a vereador (com sucesso) e uma a prefeito (sem sucesso), pude verificar o quanto este fator é decisivo. Em qualquer município brasileiro, grande ou pequeno, quase nada dentro das agremiações partidárias acontece sem o aval de um número muito pequeno de lideranças. Esta liderança, via de regra, não é conquistada por meio de um efetivo trabalho de base junto à população, mas muito mais mediante um certo “prestígio” que resulta de melhores condições financeiras para distribuir benefícios à população (inclusive às candidaturas mais pobres dentro do próprio partido). Um certo “coronelismo” não está alheio à cultura popular e sobrevive até nas cidades, especialmente na seara política. Não há dúvida que a tradição petista, neste ponto, é mais positiva do que as demais, uma vez que muitas lideranças surgiram efetivamente das lutas populares. Mas na vida interna do partido, em quase todos os lugares, os caciques definem o jogo a ser jogado (inclusive na hora crucial das campanhas eleitorais).
Um último ponto que devo ressaltar é o papel da disputa ideológica. Esta é particularmente importante no caso do PT. Não dá para “interpretar” os fatos que correm sem fazer menção a ela. Embora discutível, especialmente no caso do sistema político brasileiro onde a “pertença” partidária é pouco programática, ainda vale a tradicional divisão do campo ideológico entre partidos “da Direita”, “da Esquerda” e “do Centro”. Propostas políticas existem aos milhares, mas querer encontrar em mais de trinta partidos uma ideologia própria que minimamente dê conta de traçar os rumos do país, é inútil. Trata-se de uma evidente fraqueza do sistema. É muito importante perceber que, no fundo no fundo, o divisor de águas é apenas um: maior ou menor presença do Estado na vida dos cidadãos (daí o bipartidarismo de alguns países, como nos EUA). Quem é “da Esquerda” opta pelo “Estado máximo”: controle total ou quase total sobre o mercado, a mídia, e a vida social em geral. Quem é “da Direita” entende que melhor seria um “Estado mínimo”: liberdade total, ou quase total, do mercado, da mídia e da vida social em geral. Já os “do Centro” opinam que nem tanto ao mar nem tanto à terra. Por motivos históricos, a disputa ideológica na Esquerda é muito mais pronunciada do que na Direita. O PT não é exceção. Grupos minoritários diversos – como vimos -, em nome de “teses teóricas” consideradas inquestionáveis, sempre se opuseram a uma maioria partidária mais preocupada com “práticas históricas” que estão dentro das viabilidades do momento. Lula e um grande número de lideranças sindicais, dos movimentos sociais (e da Igreja) estão claramente deste lado.
1.3 Um ensaio interpretativo
            O PSDB, na sua origem (1988), surgiu como partido “de Centro”, tendo entre suas lideranças figuras ilustres de grande destaque nacional. Sem dúvida não sem forte preocupação social. Uma destas figuras era Fernando Henrique Cardozo, conhecido no mundo acadêmico como ícone da Esquerda. Tive-o algumas vezes como professor na faculdade de Ciências Sociais. Ganhar uma eleição, na atual estrutura política brasileira, sem uma forte coligação partidária é praticamente inviável. Em busca da Presidência, tendo FHC como candidato, o ainda jovem PSDB teve que fazer uma opção: coligar-se pela Esquerda ou pela Direita. No jogo da disputa eleitoral, as belas teorias ou convicções do programa partidário costumam passar para o segundo plano. Impõe-se uma questão eminentemente prática: é ganhar ou perder. Nesta hora, muitos sapos são engolidos. Tendo muito maior proximidade com a academia do que com o campo popular (já ocupado pelo PT), e a cultura política popular ainda fortemente influenciada pelos partidos tradicionais, as chances eleitorais do PSDB indicavam uma coligação preferencial pela Direita. É o que foi feito. Em 1995, FHC dá início a seu governo. Com a Direita iniciou e com a Direita ficou. Certos fatos políticos são historicamente muito relevantes. Em política (democrática), devido ao papel central do Congresso, as coligações partidárias têm maior peso político do que os partidos individualmente. No contexto nacional, frequentemente em governança alternativa com o PT, o PSDB criou ares sempre mais à Direita. Os dois partidos se tornaram inimigos figadais. Não se pode negar aí também algo da cultura popular: uma vez Flamengo, sempre Flamengo.
            No PT, em termos de disputa eleitoral, as coisas não foram muito diferentes. As afinidades partidárias continuam existindo, mas faz-se coligação com quem permite ganhar o jogo. Existe uma diferença, porém, que é própria dos partidos da Esquerda: a disputa ideológica interna é muito mais acirrada. Se há um acordo mútuo sobre a necessidade de se buscar o “socialismo democrático”, mais ao encontro das necessidades populares (reforma agrária, políticas sociais, etc.), isto não significa que existe um acordo sobre qual socialismo e qual democracia. Desde o seu início, o PT se divide entre um campo majoritário, mais pragmático, e um conjunto minoritário de tendências mais radicais. A questão central de sempre: nada de apoio às políticas neoliberais tipo FHC; queremos um “Brasil para todos”! Algumas correntes mais radicais acabam sendo “expurgadas” do PT: o PSTU (1993), o PCO (1995) e o PSOL (2004). Outras lideranças expressivas, decepcionadas, vão para o PSB, o PTB, o PPS ou o PDT. Crescentemente, entre os mais bem intencionados, os mais éticos, e entre os ideologicamente mais convictos, surge uma crítica comum: o PT se tornou um partido de disputa eleitoral, igual aos outros!
            Tudo isso, em parte, é verdade, mas ainda não permite uma interpretação mais palatável para os fatos acima relatados. Para isso é preciso entender melhor o “pragmatismo” do campo majoritário. Este, com o devido respeito à diversidade das opiniões pessoais, se orienta pela seguinte convicção comum:  as belas teorias da esquerda radical no momento são inviáveis; o que realmente importa é manter, a qualquer custo, a hegemonia do PT para que as mudanças desejadas venham a ocorrer o mais depressa possível. E lá vem a “carta ao povo brasileiro” (junho de 2002), garantindo o respeito a todos os contratos (do capitalismo neoliberal); lá vêm os adiamentos sucessivos da Reforma Agrária (a Constituição exige desapropriação a preços de mercado), da Reforma Tributária (haja Congresso), da Reforma Política (haja Judiciário), etc., etc. Manter a hegemonia e garantir as próximas eleições, no entanto, continua a condição “sine qua non”. Para não entregar o país à sanha do capitalismo financeiro internacional, quase tudo é considerado válido. Mesmo a legislação existente, imposta pelas classes dirigentes capitalistas por ocasião do Congresso Constituinte de 1987/88 (com a força decisiva do então chamado “Centrão”), não pode ser levada muito a sério. Se a Direita sempre se valeu dos meios mais escusos para ganhar o jogo eleitoral (corrupção, caixa 2, controle da mídia, etc.), por quê não montar também um esquema igualmente eficaz, mas desta vez, justificadamente, a favor da Esquerda? Viva o povo brasileiro!
            Não são apenas as tendências minoritárias do PT que têm seus radicais. O campo majoritário também os tem. Poderíamos falar em “radicais ideológicos” e “radicais pragmáticos”. O “caixa 2” em campanhas eleitorais é uma prática quase universal (sempre foi). A justiça eleitoral é rigorosa na sua legislação (a cada quatro anos costuma vir um novo pacote de exigências), mas inteiramente ausente na fiscalização. Apenas as “formalidades legais” são examinadas nos cartórios após o período da disputa dita “democrática”. Habituadas a uma heroica resistência à ditadura na clandestinidade, algumas lideranças petistas (do campo majoritário), passando por cima da legalidade democrática conquistada, e tornando-se cada vez mais profissionais eleitorais partidários em vez de profissionais da inserção popular, começam a aperfeiçoar o tradicional esquema do caixa 2. Se as empresas estatais e as grandes empresas nacionais, que utilizam verbas públicas, têm a obrigação de servir ao povo brasileiro, qual o problema ético em tirar uma pequena parcela de seus grandes lucros a favor dos interesses populares que (somente) o PT defende? É esta a filosofia justificadora. A prática das coligações partidárias, porém, (não esqueçam: é um ganhar ou perder) exige que ministérios e secretarias sejam entregues aos partidos coligados “de porteira fechada”, isto é, com (quase) total liberdade de compor os diversos níveis de governo. Pessoas dispostas a agir na clandestinidade aí não faltam.            
Certos cânceres prosperam com a maior facilidade. Ainda mais que interessa também às grandes empresas manter sólidas “amizades” com quem lhes pode garantir (hoje ou no futuro) os contratos bilionários. Quanto mais estatismo, até melhor. Cada vez mais o (clandestino) “esquema dois” se torna regra e adquire tamanho monstruoso. Nem todos, porém, sabem da coisa. Há um zumzum que certos partidos abusam demais, mas é melhor ficar quieto (por amor à causa). Partidos não funcionam como empresas onde os controles são hierarquicamente estabelecidos. Na verdade, em política, já que a eleição está próxima, é um cada um (ou cada uma) por si. Nem o presidente (ou a presidenta) precisa saber de tudo. Sem dúvida sabem dos esquemas e dos rumores, mas cabe aos quadros partidários arcarem com suas responsabilidades.
 Há um último detalhe a ser colocado. Embora, partidariamente falando, a preocupação ética seja muito maior na Esquerda do que na Direita (o que, também, ainda vale para o PT atual), mesmo os políticos de viés popular não podem ser confundidos com uma comunidade de monges. Normalmente são pessoas bem formadas, têm uma família a cuidar, e trabalham com dedicação integral. Dificilmente encontraremos milhões em contas secretas no exterior, mas a tentação de levar, direta ou indiretamente, algumas vantagens pessoais ou familiares não deve ser descartada. A tentação, na política, está sempre por perto. Acontece até nas Igrejas, não é mesmo? Houve algum tipo de “pedalada” fiscal? Não duvido. A Lei de Responsabilidade Fiscal (do governo FHC!) não é uma leizinha qualquer. Na verdade a lei é do tamanho de um livro, eivado de severas exigências econômicas, todas juridicamente amarradas. O fervor ideológico da Esquerda tende a passar por cima de alguns limites, e as surpresas (econômicas) da realidade exigem medidas concretas e urgentes. Algum lapso é fácil de acontecer. Na verdade acontece a toda hora em todos os níveis de governo. Ao analisar as contas anuais de qualquer prefeitura, os Tribunais de Contas não se cansam de repetir, anualmente, uma longa lista de “ressalvas” acerca de tais deslizes. Mas quando a Direita se junta com o Centro não há chance para a Esquerda. Leis, principalmente quando editadas em códigos, possibilitam muitas interpretações. Algum golpe branco surgirá das nuvens. E assim deu o que deu. É este o meu ensaio interpretativo, a ser aperfeiçoado quando se abrir o último capítulo desta longa novela.

II TEOLOGIA PÚBLICA E AS LIÇÕES DO PASSADO
            Já observamos que a relação entre religião e política foi sempre umbilical, e não apenas no chamado mundo cristão ocidental. Quando, no mundo cristão, irrompeu a Modernidade com sua indisfarçável “devoção” ao método científico, firmou-se uma espécie de “mito explicativo”: a religiosidade humana passa por fases de conscientização, indo do nível mágico ao nível científico, com a superação gradativa dos graus intermediários. Uma vez no nível científico, qualquer religiosidade perderia sentido. A “sociologia científica” do filósofo francês Auguste Comte (†1875) – com sua “lei dos três estados” - já lançou os alicerces deste mito, mas muitos outros pensadores, frequentemente da vertente marxista, seguiram pelo mesmo caminho. São, de fato, muito diferentes as vivências religiosas das sociedades, e é difícil negar que também as pessoas passam por modos diferentes de entenderem e viverem a sua fé na medida em que avançam em idade, escolaridade e experiência de vida. Mas não parece existir nesta evolução uma espécie de “determinismo histórico” em direção ao ateísmo. Na nossa pós-modernidade, o “rumor de anjos”, citado pelo teólogo luterano Peter Berger, está de volta. A filosofia dos dias atuais recoloca a religião e a espiritualidade novamente em pauta. Desde a constatação do “indeterminismo quântico” de Werner Heisenberg (†1976) e as “bifurcações aleatórias” de Ilya Prigogine (†2003), o ser humano parece fazer sempre de novo, livre e autonomamente, sua escolha entre muitas opções possíveis. Em nenhum lugar, porém, a “Vida” evolui a partir do nada. Há sempre um passado e um “meio ambiente” que oferecem as (muitas) opções possíveis.2 Na busca, individual ou coletiva, por uma vida feliz, é das lições do passado e das possibilidades do momento que o ser humano constrói o seu futuro. Em cada momento, sua fé (valores e sentidos), é sua grande ferramenta. Na perspectiva de uma teologia pública, quais são para nós, filhos e filhas da fé abraâmica, as grandes lições do passado?
2.1  Deus tem lado político
Sejamos judeus, cristãos ou muçulmanos, acreditamos num Deus que “vê a miséria do seu povo” (Êx 3,7-9). Deus não apenas “vê”, mas decreta, sob severas ameaças, uma libertação da escravidão (Êx 3,19-20). No Egito, o poder político está clara e exclusivamente do lado do Faraó, mas Deus está do “outro lado”, do lado do povo oprimido. Deus monta até sua tenda em meio a este povo na travessia do deserto (Êx 33,7-11). Como sustentar que Deus não tem lado político? A Bíblia atribui o início desta fé a Abraão e sua família. Fica difícil traçar um perfil desta família quando os detalhes de sua história se escondem nas brumas do passado. Alguns pontos luminosos, contudo, sobrevivem na memória viva do povo. A partir de Abraão vem crescendo em meio às tribos semitas uma nova consciência religiosa: se existem outros deuses, perto de Javé não são nada. Deus é um só e, na verdade, não tolera outros deuses por perto. E o que faz este Deus ser diferente de todos os outros? Exatamente sua imensa e incondicional compaixão pelos membros do “seu” povo, em especial por aqueles ou aquelas que passam por injustiças e privações. No Antigo Testamento, esta fé é “sistematizada” na figura de Moisés. Se Deus está comprometido com seu povo, o povo deve estar comprometido com seu Deus, e não pode haver falha. Amar a Deus sobre tudo, mas também amar o próximo, pois é este o grande mandamento (Lv 19,17-18). No Alcorão, até o pobre refugiado, Ismael, filho da egípcia Agar, quase esquecido na tradição judaica (Gn cap. 16, 17 e 21), é reabilitado. Torna-se o grande pai dos povos do deserto. No Alcorão, também, como entre judeus e cristãos, a hospitalidade e o amor ao pobre são essenciais à fé. Nosso Deus comum – os nomes pouco importam – sem dúvida tem este “lado”.
            Não vamos aprofundar aqui cada ponto, mas o profetismo, na terra de Israel, representa o grito permanente contra o lado opressor dos diferentes reinados que se sucedem. Toda vez que o rei, ao invés de cuidar do povo como o pastor cuida de suas ovelhas – ou quando até as rouba do pobre, como bem lembrou o profeta Natan (2Sm 12,1-6) -, ele é, em nome do Deus da justiça, severamente condenado. Isso é altamente significativo para quem confronta postura religiosa e esfera pública. Quando o reino de Israel acaba e, no pós-exílio, a elite do judaísmo, premida pela ameaça estrangeira, se agarra à Lei e ao Templo, com um claro exagero legalista em prejuízo da preocupação com o pobre, é Jesus quem coloca novamente sobre si o manto de Isaías para lembrar ao povo – e aos governantes - de qual lado Deus está. O “ano das graças de Deus” não pode ficar no esquecimento (Lc 4,16-21). Jerusalém, a cidade dos governantes, se tornou a figueira seca e Jesus chora sobre ela (Lc 19,41-42). Por mais que o Deus de Jesus seja um Deus de misericórdia, em seu Reino não há lugar para cabritos; apenas para ovelhas (Mt 25,31-46). Julgando a partir dos livros sagrados de judeus, cristãos e muçulmanos, qualquer esfera pública tem a vontade divina – que se manifesta na vontade popular - por guia ou não se justifica. Deus nunca se esquecerá dos escravos do Egito.
2.2  Não se pactua com governos cujos deuses são pagãos
Nos primeiros tempos do cristianismo, os cristãos, como também os judeus, viviam numa espécie de “guetos religiosos”. A esmagadora presença e dominância do império romano não possibilitava qualquer tipo de “pacto”. A “pax romana” até incluía certa dose de tolerância frente às religiões dos povos dominados, mas, na verdade, ela, como “religião de Estado”, se sentia imensamente superior a todas as demais. Os cristãos até aceitavam “dar a César o que é de César”, mas jamais deixariam de “dar a Deus o que é de Deus”, ainda que César quisesse impor a sua vontade. Quem apresenta um belo retrato destas duas mentalidades radicalmente opostas é o especialista na área, Eduardo Hoornaert. Permitam-me expor algumas pinceladas do quadro que ele apresenta3: “Por ser um Deus que acompanha seu povo, o Deus de Jesus dispensa altares, templos e imagens, instrumentos pelos quais os romanos davam credibilidade e presença aos seus deuses. Em Octávio X, 5, o cético romano Cecílio pergunta aos cristãos: ‘Onde está este Deus se não tem templo, nem altar, nem imagem’?... Num processo de séculos, a especificidade da cidade romana, expressa no foro, é varrida do mapa e a basílica vai ocupando o lugar central, enfraquecendo a influência dos notáveis, dos senadores, da antiga elite... Neste regime imperial, o imperador é quem concede a graça ou a desgraça. Desta forma a basílica é ao mesmo tempo templo e palácio, exprime a união entre o religioso e o político... Os cristãos não aceitam esse tipo de liturgia: a nova Jerusalém simplesmente não tem templo, nem altar, nem basílica” (Ap 21,22).
São os filósofos romanos que melhor exprimem o que o império pensa sobre a “esquisita” religião dos cristãos. O mais destacado, o filósofo Celso (aprox. 175 d.C), citado por Hoornaert nas mesmas passagens do livro, diz: “Apareceu uma raça nova, nascida ontem, sem pátria, nem tradições, voltada contra todas as instituições religiosas e civis, perseguida pela justiça, universalmente qualificada de infame, mas que se gloria da execração geral: são os cristãos... Um punhado de gente simples, grosseira, perdida moralmente, que constitui a clientela ordinária dos embusteiros... Ignorantes, fechados, incultos e simples de espírito, almas vis e ignavos, escravos, mulheres pobres e crianças... tecelões de lã... sapateiros e calceteiros, gente de extrema ignorância e destituída de qualquer educação, que dizem maravilhas a mulheres e crianças que não têm mais juízo que eles mesmos”. O que chama a atenção de Celso é especialmente a falta de fé dos cristãos e, na verdade, o seu ateísmo: “(Os cristãos) são gente grosseira e impura... A sabedoria lhes é um mal e a loucura um bem... São inimigos dos ricos..., sectários que querem fazer grupinhos à parte e se separam da sociedade comum... adversários da cultura, que não querem fazer o que todo mundo faz... A aversão dos cristãos contra templos, altares e estátuas é como a marca e o sinal da união, secreta e misteriosa, entre eles, e sua recusa em participar das cerimônias religiosas repousa sobre um conceito errôneo sobre Deus.” O império e Deus se confundem. Diz Celso aos cristãos: “Apoiem o imperador, ajudem-no na defesa do direito,... Estejam ao lado dele..., tomem parte nas funções públicas para a salvaguarda das leis e a causa da piedade... Que mal pode haver em procurar a benevolência dos que receberam seu poder de Deus e em particular dos reis e poderosos desta terra? Que mal pode haver em cultivar o espírito?” Hoornaert termina seu retrato, dizendo: “Para Celso, pessoas como Jesus são da pior espécie. A prova cabal de que o cristianismo é subversivo está no seu ateísmo. Os cristãos não aceitam os deuses do estado e são, portanto, ateus”.
Há uma forte radicalidade – quase, poderíamos dizer, um forte fundamentalismo - na postura cristã frente aos deuses pagãos. Se, ainda hoje, queremos nos perguntar qual a relação entre a fé cristã e a esfera pública, esta lição do passado não pode ficar esquecida.
2.3  A secularidade como expressão não-institucional e não-religional da fé
As lições do passado são muitas, mas interessam-nos especialmente aquelas que, ainda hoje, abrem uma janela para melhor compreensão da relação entre religião e esfera pública. Não vivemos mais no longo tempo histórico em que se aceitava com certa naturalidade o papel dirigente da religião na sociedade. Se o próprio Deus caminha à frente dos exércitos, as batalhas costumam ser sangrentas, como de fato foram e continuam sendo onde esta mentalidade ainda impera. Os jihadistas – entre os outros e entre nós - que o digam. A Modernidade não caiu do céu como que por acaso. Ela veio como resposta ao muito joio sempre presente em meio ao trigo, como Jesus bem observou (Mt 13,24-30). O Concílio Vaticano II não deixou de perceber que “as sementes do Verbo” (Ad Gentes, 11) estão escondidas por aí, no coração do povo. Entre nós, elas deram origem ao mundo cristão, como também ao mundo judeu e ao muçulmano. Mas a semente que germina depende do chão onde ela foi lançada, depende do sol e da chuva, como também do lavrador que dela cuida. Nem sempre as sementes produzem colheitas boas (Mt 13,23). É o que acontece com as religiões que são expressões humanas – às vezes por demais humanas – das sementes que o Espírito espalha, copiosamente. Como é doloroso observar, com humildade, todos os males que a incontornável institucionalização da fé produziu no decorrer dos quase 4000 anos desde que Abraão saiu “de Ur dos caldeus” (Gn 11,31), em busca de um futuro mais feliz!
A Modernidade veio como resposta à cultura árabe que adotou um espírito guerreiro, embora Alá seja um Deus de paz; ao orgulho etnocêntrico do povo judeu, embora o Deus de Israel faça chover igualmente sobre bons e maus (Mt 5,45); veio especialmente como resposta a uma Igreja cristã que se proclamou a única dona da verdade, embora Jesus tenha dito que o Espírito sopra onde quer (Jo 3,5-10). Os arautos fundadores da Modernidade se proclamaram cansados das guerras religiosas sem fim, do fechamento arrogante e persistente da Igreja frente aos avanços da ciência, e da mão pesada de eclesiásticos querendo manter o domínio sobre as consciências individuais e coletivas. Com o passar do tempo, a Modernidade foi se afastando cada vez mais da fé, da religião e das Igrejas, até se declarar totalmente independente. Proclamou-se a separação total entre Igreja e Estado, como também a laicidade como o melhor caminho para decisões na esfera pública. Chegou-se a um consenso generalizado? Entendo que não. A nossa modernidade avançada levanta novas bandeiras, e a religiosidade está novamente em pauta. A “teologia pública” está em busca de uma nova sistematização.
A palavra “secularização” exprime bem o longo processo de separação entre Igreja e Estado. São muitas as análises feitas a respeito. Na perspectiva deste artigo gostaria de ressaltar uma aproximação que, a meu ver, tem um significado especial para o atual momento. Destaco a tese mais lembrada do filósofo, jurista e cientista da religião, Carl Schmitt (†1985). Em sua Teologia Política, cap. 3, afirma: “Todos os conceitos significativos da teoria moderna de Estado são conceitos teológicos secularizados”. São ou não são? Todas as concepções têm a marca da época. Observando a grande distância entre os benefícios sociais apregoados pelas “democracias liberais” de sua época e a escassa satisfação da população, decepcionada com as intermináveis disputas entre partidos, intelectuais, parlamentares, regiões, agremiações diversas, etc., Schmitt se convenceu que havia incompatibilidade entre o liberalismo e a autêntica vontade popular. O interesse público seria mais bem servido com governos fortes libertados das amarras legais do Estado de Direito. Pronto, com Hitler em ascensão, o polêmico político alemão foi logo apelidado de “jurista de Hitler” e “coveiro do liberalismo”. Schmitt, é verdade, nunca negou sua simpatia pelo nazismo, nem se desligou do partido do nacional-socialismo alemão, mas também nunca negou que sua opção de fundo era pelo respeito à “vontade popular”. Vemos aqui uma típica opção partidária da Direita com base numa intenção típica da Esquerda.
Observador atento da vida da Igreja tenho, com frequência, notado que algo muito parecido é bastante comum nas instituições religiosas. O discurso é da Esquerda, mas o voto e as simpatias vão para a Direita. No Brasil, um exemplo elucidativo ocorreu no início da ditadura militar quando o episcopado católico, majoritariamente, - e com o melhor das intenções - se posicionou a favor do golpe. Esta comum ambivalência entre intenções ou discursos e práticas políticas não é, contudo, própria da Igreja. Ela pode ser encontrada em qualquer lugar: na academia, no judiciário, nas boas organizações da sociedade civil e, também, nas classes privilegiadas. Em certo período da minha vida tive a oportunidade de trabalhar intensivamente junto a um grupo expressivo de empresários bem sucedidos, professores/as, e militantes sociais de uma classe bastante privilegiada. Poucas vezes encontrei um grupo tão preocupado com justiça social, e tão seriamente envolvido com uma efetiva recuperação ambiental.4 No entanto, que eu saiba, todos votavam no campo do “Centro/Direita”. O mesmo vale para a classe política. Sem dúvida há uma parcela que se encontra nela por pura malandragem, ou pela simples intenção de manter privilégios, mas a maioria dos políticos, mesmo entre os “da Direita”, estão aí para defender o que entendem ser os mais altos “valores” sociais (justiça social, bem-estar coletivo, equilíbrio ecológico, desenvolvimento agrícola, etc., etc.), e o que faz mais “sentido” na busca por um futuro melhor para o país. Todos esses “valores” que fazem “sentido”, exatamente por serem “valores” são todos eles profundamente “religiosos”. Embora em outro contexto histórico, creio que é nesta perspectiva que Schmitt afirmava que “todos os conceitos significativos da teoria moderna de Estado são conceitos teológicos secularizados”. A secularidade, na sua essência, não é a exclusão da fé; é, antes, a expressão secularizada e não-institucional da própria fé. Fé, religião e espiritualidade não constituem o monopólio das Igrejas. Trata-se de uma “constante antropológica”, dizem alguns.5

III DESAFIO DA TEOLOGIA PÚBLICA: RECUPERAR A FUNÇÃO PÚBLICA DA “RELIGIOSIDADE”
            A separação entre Igreja e Estado, no Brasil, veio relativamente tarde. Apenas com a proclamação da República, em 1889, o velho regime do Padroado foi descartado e o país começou a ser governado, oficialmente, por governos laicos. Uma simples “proclamação”, porém, não muda a realidade. Mudanças em profundidade são sempre fruto de longos processos históricos. Assim como um arraigado anticlericalismo já estava presente antes da criação da República, assim também um forte predomínio católico continuou presente depois dela. O divórcio entre Igreja e Estado se consolidou aos poucos. Perdendo parte de seu poder e visibilidade, a primeira opção preferencial da Igreja (Católica) do Brasil foi pela classe média, priorizando especialmente a educação. Afinal, quem tem as crianças e os jovens, assim se pensava, tem o futuro. Apesar da República – ou, talvez melhor, por causa dela -, a “romanização” da Igreja do Brasil estava a pleno vapor. Suas três características principais, na opinião do grande estudioso, Riolando Azzi, a centralização, a clericalização e a espiritualização, moldam os novos tempos.6 Novas Congregações Religiosas vêm para o Brasil e aumenta consideravelmente o clero estrangeiro. Não apenas nas escolas, mas também nas paróquias, mediante novos movimentos religiosos, as crianças e os jovens são catequizados no melhor do figurino ultramontano. O pobre, o povão, as classes menos privilegiadas não estão inteiramente fora do foco da Igreja – alguma forma assistencialista está quase sempre presente -, mas não fazem parte da opção preferencial. Existe por toda parte uma forte religiosidade popular, mas ela é olhada com desconfiança. Genericamente falando, a Igreja “se afina” com os mais bem de vida.
            O Concílio Vaticano II (1962/65) e a Conferência de Medellin (1968) trouxeram para a América Latina, e especialmente para o Brasil, mudanças profundas. A que mais mexeu com as entranhas da Igreja foi a opção preferencial pelos pobres. Uma guinada e tanto. Uma nova visão sobre a realidade brasileira – alimentada pela “teoria de dependência” – trouxe também uma nova teologia e novas posturas pastorais. A teologia da libertação, as CEBs e as Pastorais Sociais deram à Igreja do Brasil até um certo destaque internacional. Hoje, com a vantagem do olhar retrospectivo, percebemos melhor que a profundidade e o alcance das mudanças não foram tão amplas e profundas quanto se pensava. O conhecido analista social, Pedro Assis Ribeiro de Oliveira, nos lembrou recentemente que a “força” da Igreja – especialmente junto à “esfera pública” – não depende tanto do número de seus adeptos, mas principalmente de sua capacidade de criar um “clima ético” que empurra o país na direção das mudanças desejadas.7 Por algumas décadas até parecia que a Igreja era capaz de dar um novo rosto à sociedade brasileira. Em parte, de fato era. Mas impôs-se, desta vez de forma negativa, a força da centralização romana. Um novo episcopado e um novo clero reintroduziram o modelo clássico da Igreja, mais preocupada com sua vida interna e menos voltada para mudanças na esfera pública. Sem questionar as boas intenções, falta comprovar ser esta a proposta do Evangelho.
            A tese não encontra nenhuma simpatia na área das ciências sociais, uma vez que processos sociais não são idênticos em contextos sociais diferentes, mas o Brasil tradicionalmente “católico” parece passar por um processo muito parecido ao europeu: primeiramente uma forte “protestantinização” – de cor fortemente pentecostal entre nós – e depois uma tendência forte à secularização. Em muito pouco tempo, o pentecostalismo ocupou uma quarta parte do público tradicionalmente católico. Não se prevê uma diminuição rápida do processo. Na área onde atuo, os evangélicos, no meu cálculo – sem base em pesquisa – são cinco vezes mais fortes, tanto em número de praticantes quanto em empenho missionário. Os sinais de uma crescente secularização, especialmente nas áreas urbanas, são bem visíveis. Grande parte da população que veio do interior com alguma bagagem religiosa rompe com os costumes tradicionais. Não há mais povo ilhado ou intocado frente ao estilo de vida da Modernidade. “Destradicionalização” e “perda do sentido da autoridade” são duas de suas características mais citadas. As pertenças religiosas se tornam muito efêmeras. Ninguém deixa de lado suas convicções mais profundas, seus valores mais acalentados ou sua busca pessoal para encontrar o sentido das coisas, mas nenhuma Igreja “comanda” a vida das pessoas.
A classe média (e alta), agora escolarizada e, em parte, plenamente engajada na economia capitalista moderna, adotou uma cosmovisão muito mais laica. Em alguns momentos da vida social ainda aprecia, formalmente, as cerimônias da Igreja, mas lamenta que uma parte do clero agora deu de defender, politicamente, a causa popular. Já a classe pobre continua alimentando-se de uma religiosidade popular tradicional, mas agora de uma forma muito mais fluida, aberta à influência pentecostal dentro ou fora das comunidades católicas. Muitíssimas de suas lideranças, porém, que dedicaram boa parte da vida à “caminhada das CEBs”, ou às Pastorais Sociais, se sentem injustamente abandonadas e não se conformam com a assim denominada “volta à grande disciplina”. Para estas lideranças, a Igreja mantém sua opção preferencial pelos pobres e pela causa das classes populares, ou ela é infiel a Jesus Cristo e ao Evangelho. Muitos/as já não se sentem à vontade no atual contexto eclesial e, perdendo sua mística tradicional, se secularizam, por assim dizer, “a contragosto”. Contudo, também nas camadas populares comuns, a tendência secularizante é claramente visível. Nossa pergunta, novamente, é essa: nesse atual contexto sócio-político e religioso, qual a cara de uma teologia pública ajustada à realidade do momento?
3.1 Governos radicalmente laicos impossibilitam a autêntica democracia
            As democracias atuais, no mundo inteiro, perderam sua credibilidade. Não as democracias em si, mas o que foi feito delas. Não apenas os melhores analistas, mas o próprio povo percebe hoje que não passam de “fachadas”. Multidões cada vez maiores vão para as ruas empenhando faixas dizendo “vocês não nos representam”. Ou então a faixa “nós somos os 99%”. A insatisfação é generalizada. No Brasil, a revolta popular de junho de 2013 pela primeira vez demonstrou a força das redes sociais pondo na rua uma imensa “multidão não organizada”. O que aconteceu com as tão sonhadas liberdades democráticas? A influência das Igrejas foi afastada; a influência das elites econômicas entrou em seu lugar. Uma nova proposta salvadora veio substituir a antiga. Nenhum símbolo religioso falta à religião neoliberal, como muitos já mencionaram: a misteriosa presença de um Deus chamado mercado; bancos e supermercados - reclamando por uma frequência regular e fiel - substituem os antigos templos; empresários, como novos e bem formados sacerdotes, distribuem agora os valiosos e indispensáveis bens materiais; e há até a presença de uma central internacional com seus dicastérios, uma espécie de Vaticano leigo que julga qual o país que está no rumo certo e qual a doutrina econômica, única e certa, que não pode ser confrontada. O esforço, deve-se reconhecer, foi imenso, mas não funcionou. As belas fachadas escondem prédios em ruína. A máscara caiu.
            Se esta é a realidade internacional, o que dizer do Brasil? Porque ruiu como castelo de cartas uma proposta governamental que teve considerável apoio das Igrejas e do povo cristão? Porque a hegemonia petista falhou apesar dos reconhecidos avanços sociais? Não gostaria de simplificar demasiadamente as coisas, mas entendo que uma das principais razões foi a “laicidade” adotada como princípio de governo. A afirmação requer esclarecimento. Entendo que qualquer governo, hoje, deve ser laico, no sentido de não se deixar teleguiar por esta ou aquela Igreja, esta ou aquela religião. Fazendo isso deixaria de ser democrático, uma vez que hoje as opções religiosas são diversas. Mas existem convicções, valores e sentidos básicos que são comuns a todas as religiões. Eles podem ser encontrados, igualmente, nas pessoas que se declaram não-religiosas. Estes valores comuns se referem a conceitos e práticas que envolvem, entre outros: distribuição justa da riqueza, comportamento ético, preservação ecológica, oportunidades iguais para todos/as, atenção aos mais pobres, respeito aos direitos humanos, liberdade de consciência, etc. O esforço democrático existe exatamente na defesa destes interesses comuns contra as investidas de minorias privilegiadas. Qualquer governo que abandona ou deixa de lado estes interesses populares comuns – que, em sentido amplo, são sempre valores “religiosos” – encontrará, mais cedo ou mais tarde, forte rejeição. Ao abandonar sua tradicional proximidade com as reivindicações populares e priorizar fortemente um objetivo meramente partidário, faltando inclusive com a ética pública, o PT e sua coligação foram rejeitados pelo povo. Sua “laicidade” radical precipitou sua queda.
3.2 Apenas governos com “lado religioso” se justificam
O título deste tópico é propositadamente provocativo. Apresso-me a repetir que o “religioso” aqui deve ser entendido em seu sentido amplo, não-institucional  e até não-religional. Numa reflexão sobre teologia pública isso faz muito sentido. “Deus tem lado político” foi dito acima. Isso quer dizer: Deus estará sempre do lado de quem sofre qualquer forma de injustiça ou marginalização. Nos últimos tempos, tanto a teologia quanto a reflexão bíblica tem insistido na presença “imanente” de Deus, uma presença “interior” – não no sentido panteísta - às próprias “realidades terrestres”. Também o conceito de “Reino de Deus” tem sido melhor explicitado nesta perspectiva. Jesus, sem dúvida, não perdia de vista a expectativa escatológica, mas também não há dúvida que, antes de se concretizar no céu, o Reino deve ser concretizado na terra. Por isso, cada vez que uma política pública favorece a “vida plena para todos/as” (Jo 10,10), ela constrói o Reino e é, portanto, “religiosa”, ainda que não use o termo.  Neste sentido, “todos os conceitos da teoria moderna de Estado são conceitos teológicos secularizados”, diria C. Schmitt.
Durante um longo período o PT recebeu apoio de amplos setores das Igrejas. Hoje este apoio é bem mais discutível porque, com o passar do tempo, como vimos, o PT se afastou de sua raiz “religiosa”. Sem uma autocrítica muito forte será difícil recuperar o prestígio perdido. Por princípio, a Igreja não tem compromisso com partido algum. Sua missão é única e exclusivamente “religiosa”, sempre no sentido amplo acima referido. A Igreja não tem partido, mas tem “lado”. Creio ser este o ponto essencial da relação entre Igreja – também sob ponto de vista institucional – e a esfera pública. Por terem sido incondicionalmente fiéis a este “lado” político, quer dizer, ao lado dos escravos explorados e não ao lado dos faraós, os profetas de Israel, inclusive Jesus, foram todos rejeitados. Os primeiros cristãos, obstinadamente, se opuseram aos deuses pagãos – entre os quais Cézar – do império romano. Não pactuaram com o império, e assim o venceram. Apenas acolheram as benesses do império quando o imperador Constantino († 337) se colocou do lado deles – atribuindo a si o título de “bispo de fora” - e mais ainda depois quando Teodósio I, em 380, “oficializou” a fé dos cristãos.  Aí, pela primeira vez, a Igreja enfrentou o desafio de estar “do lado do poder”. E, com a melhor das intenções, equivocou-se quando, cada vez mais, atribuiu a si também o poder político.

Conclusão
É esta a eterna tentação dos mais bem intencionados, dos mais dedicados e dos mais aptos, isto é, das lideranças: assumir o poder em nome de todos e todas. Nesta perspectiva C. Schmitt até abençoou o nazismo, mas, a história comprova, desta forma não dá certo. Deus faz chover sobre bons e maus (Mt 5,45). Seu Espírito foi derramado sobre “toda a carne” (At 2,16-17). Buscar o bem comum faz parte da “lei natural” do ser humano, dizia São Tomás de Aquino (†1274). O papa Bento XVI falava de uma “gramática” inscrita no coração das pessoas. Trata-se de uma “constante antropológica”, afirmam outros. A própria “consciência” humana, biologicamente, aflorou como o mais aperfeiçoado mecanismo em defesa da felicidade, individual e coletiva. Ninguém, impunemente, passa por cima da “vontade popular”. Não existe apenas o trigo, é verdade, há também o joio, e sempre haverá. A tentação dos mais bem intencionados é querer arrancá-lo logo (Mt 13,28), ou mandar o fogo do céu sobre os maus, mas Jesus advertiu: “não façam isso” (Lc 9,54-55). Os maus precisam de tempo para que, interiormente e por vontade própria, se convertam. Deus pede paciência histórica. Cada vez que um grupo de “iluminados” toma o poder e passa por cima da vontade popular, um fracasso se aproxima. Não funcionou o “totalitarismo” eclesiástico, até hoje presente no Vaticano e no jihadismo religioso, nem o totalitarismo “da Esquerda” (seja russo, chinês ou cubano) e nem funcionará o totalitarismo neoliberal “da Direita”. É preciso dar vez ao Espírito, presente (apenas) no coração de todos/as que buscam o bem comum. Os/as bem intencionados/as, neste sentido, se encontram, politicamente, até “na Direita”, e não são poucos/as, embora tendam a agrupar-se mais “no Centro”. No momento histórico atual, a opção mais promissora – e talvez mais duradoura - para o PT e a Esquerda brasileira em geral seria tentar uma coligação unindo forças da Esquerda com forças do Centro. Tendo a simpatizar com essa ideia. Há poucos dias participei – a convite – do lançamento do “Comitê Diadema” da “Frente Brasil Popular”. Ecoam ali os gritos fortes de “fora Temer” e “golpe nunca mais”, mas também estão presentes os que não querem percorrer, mais uma vez, o mesmo caminho. A (sempre religiosa) ética popular deve estar acima dos interesses eleitorais. O que vai acontecer, somente o futuro dirá. Para os/as “da Igreja” apenas um caminho está aberto: governos sem “lado religioso” não se justificam.

1) Cf.: Vida Pastoral, jan./fev. de 2012, p. 10-23.
2) Cf.: Vida Pastoral, maio/junho de 2011, p. 8-23.
3) Eduardo Hoornaert, Os cristãos da terceira geração (100-130), Ed. Vozes, p. 114ss.
4) Cf. Vida Pastoral, nov./dez. de 2011, p. 21-35.
5) Erik Borgman, Metamorfosen – Over Religie en Moderne Cultuur , Uitg. Klement/Pelckmans, 2004, p. 65; e Edgar Morin/Anne Brigitte Kern, Terra-Pátria, Ed. Sulina, Porto Alegre, 1995, p. 60-62.
6) Riolando Azzi, REB, nº 262/2006.
7) Pedro Assis Ribeiro de Oliveira, REB, nº 266/2007

Nicolau João Bakker, svd*
R. Juruá, 798
Jardim Paineiras
09932-220 Diadema, SP/BRASIL
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>

*Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular, de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra, SP. Representou a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema, SP. Nos últimos anos publica regularmente artigos pastorais em: REB, Vida Pastoral, Verbum, Convergência e Grande Sinal.




            

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Grande Sinal, julho de 2012: Espiritualidade do "outro mundo" na cosmovisão teológica II

ESPIRITUALIDADE DO “OUTRO MUNDO” NA COSMOVISÃO TEOLÓGICA  -  O “OUTRO MUNDO” É POSSÍVEL? (I)
Pe. Nicolau João Bakker *





Introdução:
O muito comentado Fórum Social Mundial realizou, recentemente, sua 12ª edição. Neste Fórum, todas as tendências políticas, ideológicas, ecológicas, teológicas e pastorais anti-neoliberais se reúnem para, num grande evento universal de “dialogização não-tutelada”, descobrir pistas na direção de uma “nova” sociedade, a sociedade dos nossos sonhos. A grande pergunta que o Fórum se coloca é esta: o “outro mundo” é possível?
            A busca por um outro mundo ideal, na verdade, é tão antiga quanto a própria humanidade. Podemos encontrar uma espécie de “dinâmica evolutiva” em todas as culturas humanas. As religiões encarnam esta dinâmica e tentam dar-lhe direção. No nosso assim denominado “mundo ocidental” é, basicamente, a fé cristã que constitui a mola propulsora desta dinâmica. Hoje, muitos estudiosos, especialmente nas regiões mais secularizadas, propõem a exclusão total da religião da construção desta nova sociedade almejada. Trata-se de um esforço inútil, pois qualquer ação que vise tornar o mundo humanamente mais habitável é uma ação “religiosa”, ainda que não se queira chamá-la assim.
Jesus já percebia muito bem que a justiça do Reino era muito superior à concepção limitada dos escribas e fariseus (Mt 5, 20). Ele via o Reino de Deus como que “escondido no campo”, sempre “no meio de nós” e, ao mesmo tempo, “próximo”. Um Reino que se torna visível até nos gestos humanos mais humildes, gestos nem sempre encontrados na fé dos filhos e filhas de Israel.
Para nós, cristãos/ãs, o “outro mundo” é possível quando concretizado na fidelidade à Revelação e Tradição Cristãs. Acreditamos numa Mensagem que foi captada e codificada pelo povo de Israel, vivenciada com perfeição por Jesus de Nazaré, e transmitida fielmente até nós pelo magistério eclesiástico e, particularmente, pelos nossos “mestres espirituais”.  O “outro mundo” que nós, cristãos/ãs, almejamos é o mesmo que Jesus almejava quando dirigia sua prece ao Pai: “venha a nós o vosso Reino”. Um Reino que não é fruto apenas de preces e discursos, mas, antes, de uma prática. Sem esta, a casa cai, e é grande a sua ruína (Mt 7, 21-27).
Quando Jesus explicita sua Mensagem através da Parábola do Bom Samaritano, retrata toda a história de Israel: a opção de Javé pelos escravos, o compromisso da Aliança, a realidade da Terra Prometida, a justiça pregada pelos profetas, e, ainda, o sonho messiânico dos exilados da Babilônia. Apenas o amor samaritano constrói o Reino que vem. São João fala de um novo céu e de uma nova terra, a Cidade Santa das núpcias definitivas. Uma Cidade que dispensa a luz do sol, “pois a glória de Deus a ilumina, e sua lâmpada é o Cordeiro” (Apoc 21, 23).
Esta Mensagem central do cristianismo não vem expressa sempre da mesma forma. Nosso falar reflete o nosso pensar, e o nosso pensar reflete, necessariamente, a realidade em que vivemos. São Tomás de Aquino (†1274) já afirmava que o intelecto humano trabalha a partir das impressões que vêm dos sentidos. A moderna teoria da cognição também ressalta que o nosso sistema nervoso, que engloba todos os sentidos, funciona como um “circuito circular fechado”. Nossa compreensão da realidade não é direta. Tudo passa pelos sentidos.
Se isto é verdade para as realidades deste mundo, quanto mais quando falamos das realidades do “outro mundo”. Deus não nos fala, por assim dizer, “à viva voz”, ou diretamente. A Mensagem de Deus nos vem através da leitura coletiva que fazemos da nossa realidade. Não há outro caminho, nem para nós, nem para os autores bíblicos, e nem para Jesus. O grande e insuspeito teólogo Karl Rahner, ao falar da humanidade de Jesus, recomendava a “máxima radicalidade”. Justamente porque a divindade de Jesus, como diz São Paulo na carta aos filipenses, só nos aparece de forma verdadeira por meio de sua humanidade. A “vida plena” que Jesus encarna passa pelo seu “aniquilamento” na cruz. Até para Jesus foi difícil entender a vontade de Deus na realidade da sua crucificação.
É preciso fazer distinção, portanto, entre a Mensagem que fica e a linguagem que passa. Quando a realidade muda em profundidade muda também o modo de entender e o modo de falar. A Tradição da Igreja existe exatamente na reinterpretação contínua da mesma Mensagem original. O Concílio Vaticano II, em Dei Verbum Nos 8, 12 e 23, atesta que a Revelação de Deus contida na Bíblia necessita ser reinterpretada sempre de novo no decorrer da história.
O presente artigo tem como objetivo mostrar que cada época tem seu próprio entendimento e, conseqüentemente, também sua própria linguagem. E isso tem tudo a ver com espiritualidade. Ainda que a Mensagem seja a mesma, em cada época a vivência da fé, ou a espiritualidade, adquire uma nova configuração. Hoje ouvimos falar, com muita freqüência, de modernidade e pós-modernidade. É claro que houve então também uma pré-modernidade. Mas, o que isto significa, e o que é exatamente essa tal de pós-modernidade? Depois virá a pós-pós? Pessoalmente preferimos usar a palavra “cosmovisão”. Explicitemos logo esta palavra.
I O que vem a ser “cosmovisão”?
Cosmovisão é “um determinado modo de conceber Deus, o mundo e a própria existência individual e coletiva”. Desde o início da consciência humana, há mais de 100.000 anos, apenas três cosmovisões guiaram o pensar e o agir da humanidade. Limitamo-nos à cultura ocidental que, de forma muito determinante, configurou o rosto da nossa Igreja e da nossa espiritualidade. A primeira cosmovisão, na fase pré-moderna, é chamada a “teológica”. A segunda, a da modernidade, é a “antropológica”. E à terceira damos o nome de “cosmovisão ecológica”. Qual a diferença entre estas três cosmovisões? Cada uma delas tem um modo próprio de pensar, ou, uma “lógica” própria.
A primeira cosmovisão, a téo-lógica, que perpassa toda a história da humanidade até, aproximadamente, o ano 1500, pode ser definida como “a concepção onde Deus, ou o mundo das divindades, é a explicação de todas as coisas e de todos os eventos”. A segunda cosmovisão, a antropo-lógica, que predomina de 1500 até os meados do século XX, definimos como “a concepção onde o próprio ser humano, em especial a razão humana, se transforma no argumento central do crer e do agir”. E a terceira cosmovisão, a eco-lógica, que vem se impondo com força crescente desde o início do século passado até hoje, pode ser definida como a concepção onde o critério último do crer e do agir não é Deus, como na cosmovisão teológica, nem a razão humana, como na cosmovisão antropológica, mas “o todo” da criação ou – deixando a fé de lado – “o todo” da realidade. 1
No presente artigo queremos falar sobre a feição da espiritualidade cristã dentro da cosmovisão teológica. Em outras oportunidades poderemos, possivelmente, falar da espiritualidade cristã nas cosmovisões antropológica e ecológica. As diferenças são muito significativas e, quando não bem compreendidas, ocasionam muita divisão nas comunidades cristãs. O que nos move a escrever é, basicamente, uma preocupação pastoral. Um dos mais acirrados debates dentro da Igreja, atualmente, diz respeito a duas propostas pastorais bastante divergentes: uma se volta, decididamente, para a transformação das realidades “deste” mundo, e a outra privilegia uma ação pastoral que se volta para as realidades do “outro” mundo. Por trás das duas posturas se escondem duas místicas ou espiritualidades. Cada uma é fruto de uma cosmovisão específica.
É preciso alertar: as três cosmovisões acima citadas foram sucessivas na história, mas, infelizmente para nós, as três, ainda hoje, “fazem a nossa cabeça”. Não de forma igual. O que para alguns já é passado, para outros ainda está muito presente. Especialmente diante da pergunta “o outro mundo é possível?”, a cosmovisão que nos domina tem grande peso. Vamos ver, neste artigo, como se apresenta o “outro mundo” na espiritualidade da cosmovisão teológica. Que falem nossos “mestres espirituais”!
II A “espiritualidade do outro mundo” no tempo dos Padres Apostólicos
            A cosmovisão teológica, como já observamos, não se iniciou com o cristianismo. Durante milênios, ainda antes do surgimento das primeiras civilizações humanas em volta do Mediterrâneo, as pequenas coletividades humanas não se sentiam donas do seu próprio destino. Sentiam-se inteiramente dependentes das divindades. De modo geral não encontramos nelas uma separação radical entre o profano e o sagrado. Antes, toda a realidade é vista como que impregnada do sagrado. Sua cosmovisão é, portanto, tipicamente “teo-lógica”.
            Quando surge um poder político nas primeiras civilizações, os reis sempre governam “em nome dos deuses”. Muitos historiadores afirmam que as antigas “teocracias”, onde as divindades governavam diretamente, se transformaram então em “hierocracias” onde as divindades governam por meio de seus representantes. Vemos algo muito parecido na história do povo de Israel.
            Foram os filósofos pós-Socráticos da Grécia que, a partir do ano 400 AC aproximadamente, pela primeira vez, opuseram este nosso mundo ao “outro” mundo. Criaram o mundo do sagrado e o mundo do profano. O mundo do sagrado é perfeito, divino, imortal e incorruptível. Já este mundo é imperfeito, mortal e corruptível. O ser humano faz parte do mundo imperfeito, corruptível, mas com uma exceção: a sua razão. Os gregos tinham uma grande veneração pela razão humana, exatamente porque viam na razão um reflexo do mundo divino. Algo perfeito, incorruptível e imortal. Os deuses guiam o ser humano mediante a razão. Quando os cidadãos de Atenas, inspirados pelos filósofos, criam a tal da “democracia” não pensam num simples “governo do povo”. Pensam numa sociedade governada pelos deuses através da razão humana, cultivada por autênticos cidadãos. Não deixa de ser uma cosmovisão bem teológica.
            O modo de pensar e de falar dos Padres Apostólicos, nossos primeiros mestres espirituais, é bem esta da cosmovisão grega: este mundo corruptível nada vale; tudo deve ser feito para alcançar o “outro mundo” incorruptível. Por isso podemos dizer que a primeira espiritualidade do cristianismo é a “espiritualidade do outro mundo”. Quem, na Bíblia, melhor reflete esta espiritualidade é São João, exatamente por ter tido maior influência da filosofia grega. Já no Prólogo do seu Evangelho fala das “trevas” e do “mundo” que não receberam Jesus. Depois faz Jesus dizer: “a carne para nada serve” (Jo 6, 63). São palavras que constituem seu tema constante.
            Da mesma forma como para João, também para os Padres Apostólicos a vida neste mundo não passa de uma grande peregrinação em direção ao outro, o definitivo. No primeiro documento pós-testamentário, a 2ª Epístola aos Coríntios do terceiro sucessor de Pedro, Clemente Romano (†101), lemos: “Vós sabeis, irmãos, que a estadia desta carne neste mundo é depreciável e dura pouco; porém, a promessa de Cristo é grande e maravilhosa, a saber, o repouso do Reino que vem e a vida eterna” (V). Pouco adiante diz: “Esta época e a futura são inimigas. Uma fala de adultério, contaminação, avareza e mentira; a outra se afasta destas coisas. Portanto, não podemos ser amigos das duas; temos que dizer adeus a uma e ter amizade com a outra” (VI). Diz a história que, poucos anos depois, Clemente é jogado ao mar com uma pedra no pescoço. Em plena perseguição romana, a transitoriedade deste mundo era, de fato, muito evidente.
Também Santo Inácio de Antioquia (†110), condenado às feras pelo imperador Trajano, manifesta total desprezo por este mundo. A caminho do encontro com os leões escreve sete cartas. Na Carta aos Romanos, V 5, diz: “Fogo e cruz, manadas de feras, quebradura de ossos, esquartejamentos, trituração do corpo todo, os piores flagelos do diabo venham sobre mim, contanto que encontre a Jesus Cristo”. Ao colega-bispo de Esmirna, Policarpo, aconselha ser um “atleta de Deus”: “o prêmio é a incorruptibilidade e a vida eterna” (2).
 O próprio São Policarpo (†155), feito bispo pelo apóstolo João, quando colocado diante de sua fogueira, diz ao oficial romano: “Há 86 anos sirvo a Cristo e nenhum mal tenho recebido dele, como poderia eu blasfemar contra meu Rei e Salvador?” Também para Policarpo, o valor maior não estava neste mundo, mas no outro.
            Um retrato fiel da religiosidade popular desta época encontramos no longo documento Pastor de Hermas (aprox. 150). Composto por visões, mandamentos e parábolas, ressalta a necessidade da penitência, em preparação ao outro mundo que vem. É a partir da perspectiva da “Cidade Santa” que os cristãos aprendem a “habitar” nesta terra estrangeira: “Vós, servos de Deus, sabeis que habitais em terra estrangeira. De fato, vossa cidade acha-se longe desta cidade. Portanto, se conheceis vossa cidade, aquela que deveis habitar, por que correis assim atrás de campos, instalações luxuosas, palácios e mansões inúteis? Quem procura tais coisas nesta cidade não espera retornar à sua própria cidade... Vigia, portanto. Visto que moras em terra estrangeira, não reserves para ti senão o estritamente necessário, e estejas pronto”  (50).
            Um elemento da maior importância a observar é que, por mais que os Padres Apostólicos insistam na transitoriedade deste mundo e na prioridade que deve ser dada ao outro, em nenhum momento deixam de insistir na imperiosa necessidade da prática do amor desinteressado neste mundo. Este é condição daquele. Para Santo Inácio, alguns são “moeda legítima cunhada por Deus”, outros “moeda falsa cunhada pelo diabo” (Carta aos Magnésios, III, 5). Tudo depende da prática do amor. O mau exemplo vem dos infiéis: “Não lhes importa o dever de caridade, nem fazem caso da viúva e do órfão, nem do oprimido, nem do prisioneiro ou do liberto, nem do que padece fome ou sede” (Carta aos Esmirnenses, VI). O Pastor de Hermas, muito usado na catequese aos catecúmenos, diz: “Vós que tendes muito, procurai os que têm fome, enquanto a torre (= Igreja) não estiver terminada, porque, depois de terminada, ainda que quisésseis fazer o bem, não teríeis mais ocasião” (17). Na cosmovisão teológica, o grande critério de validação está sempre ligado a Deus ou ao mundo do sagrado. O que é feito ao próximo é feito a Deus, nem que seja a simples oferta de um copo de água.
III A “espiritualidade do outro mundo” no tempo dos “Santos Padres”, gregos e latinos
            Quando termina o tempo dos Padres Apostólicos e começa o tempo dos assim chamados “Santos Padres”, gregos e latinos, a “espiritualidade do outro mundo” permanece. Para o grande combatente dos gnósticos, São Clemente de Alexandria (†215), o cristão é antes de tudo um “cidadão do céu” (Estromata 7, 7). Os cristãos ainda são os “excluídos” do Império Romano e as perseguições a eles continuam. Em Pedagogo 9, 83, Clemente não perde de vista a perspectiva do outro mundo: “Sim, Senhor, conduz-nos aos prados férteis de tua justiça. Sim, Tu que és o nosso Pedagogo, sê o nosso Pastor, até a tua montanha santa, até a Igreja que se eleva acima das nuvens”. Mas, em Pedagogo 3, 6, diz também: “Não é rico aquele que possui e guarda, mas aquele que dá; e este dar, não o possuir, faz o homem feliz”. Clemente sabe onde se encontra o “outro mundo”. Espera por sua morte na Palestina, escondido da perseguição do imperador Sétimo Severo.
            Também o combativo São Cipriano de Cartago (†258) se guia claramente pela espiritualidade do outro mundo: “São João nos exorta igualmente, em sua epístola, a cumprir a vontade do Pai: não ameis o mundo, nem o que está no mundo. Se alguém ama o mundo, a caridade do Pai não está nele. Pois tudo que está no mundo é concupiscência da carne, concupiscência do mundo. O mundo passará, e igualmente a sua concupiscência. Aquele, porém, que cumprir a vontade de Deus permanece eternamente”. Cipriano ainda mantém a consciência de que o outro mundo virá “em breve”. Em seu belo texto A Oração do Senhor, observa: “O discípulo de Cristo, proibido de preocupar-se com o dia de amanhã, pede apenas o alimento de cada dia. Aliás, seria estranho e contraditório pedirmos que o Reino de Deus venha a nós em breve, e ao mesmo tempo cuidarmos de viver no mundo mais longamente”.
            Tanto Clemente quanto Cipriano são grandes combatentes anti-heréticos. Na cosmovisão teológica todas as doutrinas se originam diretamente em Deus, e quando Deus se comunica diretamente, nenhuma objeção é válida. Não se justificam meias medidas, nada. Trata-se de uma cosmovisão de grande beleza, mas também de grande vulnerabilidade. O fundamentalismo está sempre à espreita. Por outro lado convoca a uma grande generosidade. Em A Unidade da Igreja Católica 26, 1, Cipriano diz: “Parece mais enfraquecida a generosidade nas boas obras... Então vendiam as suas casas e as suas propriedades e entregavam o preço aos apóstolos para que fosse distribuído aos pobres: assim colocavam os tesouros no céu. Hoje nem se dão os dízimos dos patrimônios e, enquanto o Senhor diz ‘vendei’, nós preferimos comprar e possuir mais. Como entre nós murchou o vigor da fé!”
IV A “espiritualidade do outro mundo” se transforma na “espiritualidade do deserto”
            Quando o imperador Constantino adota o Cristianismo em 313, e, mais ainda, quando Teodósio I faz do cristianismo a religião oficial do Estado em 380, algo muito incisivo ocorre com a espiritualidade dos cristãos. O que para muitos significou a vitória do cristianismo sobre uma religiosidade pagã, na verdade significou a vitória do poder civil sobre o “poder” religioso. Também os romanos viviam, profundamente, a cosmovisão teológica. Seus deuses comandavam a vida social e a vida familiar. São os deuses que legitimam a ação do Estado e cabe ao imperador defender a fé do império e impedir toda e qualquer contestação.
Um dos nossos erros mais comuns é julgar o passado com os critérios do presente. Julgando a partir da realidade do passado é perfeitamente natural que os cristãos tenham dado graças a Deus pelo fim das perseguições e pela oferta de apoio público. Como conseqüência, porém, a partir do Séc. IV, são os imperadores cristãos – e os/as mais influentes de sua Corte! - que irão nomear Patriarcas, convocar Concílios e combater os hereges. Não se trata apenas de (ab)uso da religião pelo poder civil. Na maioria dos casos é o poder civil atuando a partir de novos critérios religiosos. É esta a característica própria da cosmovisão teológica.
            Com tudo isto, porém, e a vinda de novos “cristãos” em grande quantidade, a espiritualidade cristã perdeu muito de sua visibilidade original. No Séc. IV, as turbulências políticas e religiosas se tornam muito virulentas. A heresia do arianismo – onde Jesus é um ser criado – praticamente rasga o mundo cristão. Para Constantino já se tratava de uma “epidemia”, e para combatê-la convoca o Concílio de Nicéia (356). Nestes tempos de crise, três grandes mestres espirituais dominam o cenário: São Pacômio (†348), Santo Antão (†356), e Santo Anastásio (†378).
            Santo Antão é o primeiro que foge das confusões político-religiosas. Aos vinte anos, diz a história, distribui seus volumosos bens entre os pobres e, para não se contaminar com as ambigüidades deste mundo, monta seu eremitério em pleno deserto do Egito. A “espiritualidade do outro mundo”, com seu gesto original, transforma-se então na “espiritualidade do deserto”. Logo os eremitérios serão muitos. Também São Pacômio, amigo de Antão, busca refúgio no deserto. Prefere, no entanto, um estilo mais comunitário ou cenobítico. A grande atração por esta nova forma de mística cristã – a mística monacal - ficou logo comprovada. Ao morrer, Pacômio deixa três mil comunidades – masculinas e femininas – espalhadas por todo o Egito!
No Concílio de Nicéia, Santo Anastásio, Patriarca de Constantinopla desde 328, se torna o grande defensor da divindade de Jesus. Contra o arianismo vence a tese da “consubstancialidade”. Depois de Nicéia, quando o imperador Constâncio, filho de Constantino, adota o arianismo, com grande apoio do bispo Eusébio de Nicomédia, as disputas doutrinárias e políticas chegam ao auge. Anastásio é exilado cinco vezes. Até o papa Libério (†366) é desterrado por mais de dois anos, sendo substituído pelo antipapa Felix II.
Para muitos historiadores foi a alma monacal de Anastásio que salvou o cristianismo de então. Num dos seus exílios passa cinco anos com o amigo Antão no deserto. Ao escrever depois A Vida de Santo Antão, o que mais ressalta é a luta de Antão contra os demônios. No estilo alegórico da época, os embates são hercúleos. Na cosmovisão teológica, o “outro mundo” é povoado não apenas pelas forças do Bem, mas também pelas forças do Mal. A mais rigorosa ascese ainda é pouco para resistir-lhes. É ou Deus ou o Demônio. Foram Antão e Pacômio que inspiraram Anastásio para não perder de vista o “outro mundo” em meio às turbulências doutrinárias e políticas do seu tempo.
Quem imagina que a “espiritualidade do deserto” é totalmente alheia às realidades deste mundo comete um equívoco muito sério. O grande teólogo e escritor São Basílio de Cesaréia (†379), juntamente com seu amigo de infância, o teólogo e místico São Gregório Nanzianzeno (†389), – moravam na mesma rua e iam juntos à escola e à igreja - elabora uma “regra ascética”, até hoje comum no Oriente, que prioriza a fraternidade neste mundo. Até hospitais e escolas estão na sua mira. Escreve Basílio: “Pertencem àquele que passa fome o pão que tu guardas; àquele que está nu a capa que tu conservas nos teus guarda-vestidos; àquele que está descalço os sapatos que apodrecem em tua casa; ao pobre o dinheiro que tu tens guardado; assim, tu cometes tantas injustiças quantas as pessoas às quais poderias dar”.
Da mesma forma São Cirilo de Jerusalém (†386) que pregava suas famosas 25 Catequeses aos catecúmenos na porta da igreja do Santo Sepulcro. As referências ao “outro mundo” são inúmeras. Porém, antes do primeiro dos seus três exílios houve uma forte campanha de calúnias contra ele. Qual a acusação? Cirilo está vendendo as propriedades da Igreja para ajudar os pobres! Onde há fumaça há fogo. Não deve ter sido calúnia apenas. O outro mundo não é possível sem as “vestes brancas” neste mundo.
Do lado latino, num tempo em que a nobreza política já assume firmemente a causa cristã, Santo Ambrósio de Milão (†397) dá o tom na espiritualidade. De descendência nobre e muito bem formado, o diplomático advogado, e catecúmeno, é aclamado bispo ainda sem ser batizado. Com um discreto apoio de Teodósio recebe todos os sacramentos necessários numa única semana. Em Ambrósio, o poder da Igreja e o poder de Deus quase se confundem, algo muito próprio da cosmovisão teológica. Quando Teodósio, depois de ordenar o “massacre de Tessalônica” (388) quer entrar na igreja, acompanhado de toda a corte, Ambrósio o proíbe: boca que ordena massacres não recebe hóstia consagrada! Só depois de confissão pública, o que ocorre no Natal de 390 quando o imperador veste o saco roto da penitência. Humildemente Teodósio dirá depois que Ambrósio o fez ver então pela primeira vez o que deve ser um bispo.
Ambrósio se torna o grande defensor de Nicéia no Ocidente, além de contribuir com novos hinos litúrgicos e – na opinião de Bento XVI – com a introdução da “lectio divina”. Nas suas muitas obras, a virgindade é um tema preferido. Não está no centro a abstenção sexual, mas a disponibilidade radical para o “outro mundo”. A vida monacal vive dias de glória. Diz a história que as mães proibiam as filhas de assistirem aos sermões de Ambrósio, apelidado “boca de mel”. Os garbosos italianos não encontravam mais com quem casar e Ambrósio é acusado de “depauperar” o império!  
            Também São João Crisóstomo (†407) respira profundamente a espiritualidade do deserto onde passou parte de sua juventude. Famoso pelas suas pregações nas igrejas de Antioquia, onde recebe o apelido “boca de ouro”, João é feito Patriarca de Constantinopla, em 397, por intermédio do imperador Arcádio. Logo retira o luxo do palácio episcopal e inicia uma reforma do clero, já contaminado pelo concubinato com as religiosas, além de cuidar de uma reforma litúrgica. Seu grande amor ao outro mundo desperta nele uma grande dedicação a este. É tido como fundador da Doutrina Social da Igreja por sua forte preocupação social. “O pobre é um outro Cristo” costuma dizer. Sonha em fazer de Antioquia uma cidade utópica, como nos Atos dos Apóstolos, com propriedade partilhada, uma Antioquia sem pobres, de rosto cristão. Em Constantinopla amplia o número de hospitais e casas de acolhimento. Critica a “moda-chique” das viúvas. A enciumada imperatriz Eudóxia – ariana – consegue convencer o imperador que João “não sabe harmonizar os interesses da Igreja com os do império”. No seu terceiro exílio, João morre de exaustão. Todos os males foram causados pelo pecado, era sua opinião. Na cosmovisão teológica, as causas são sempre religiosas.
            O mais influente teólogo e místico dos Padres Latinos é, sem dúvida, Santo Agostinho (†430). Ex-professor de retórica e filosofia, uma vez convertido de sua vida dedicada aos “desejos da carne”, como diria depois, fará da busca da verdade a grande marca de sua vida. Impressionado pela leitura da Vida de Santo Antão faz do palácio episcopal seu monastério quando é feito bispo de Hipona em 396. Escreve uma Regra Monástica que servirá de orientação a muitas ordens religiosas. Maniqueísta de início, acaba adotando o neoplatonismo. De grande influência é sua concepção antropológica: o ser humano, filho de Adão, é um ser “decaído”, sempre à mercê da concupiscência. Especialmente dentro de uma cosmovisão teológica, esta visão negativa da natureza humana reforçará muito o desprezo cristão por este mundo. Em sua obra prima A Cidade de Deus Agostinho revela seu grande amor ao outro mundo. A Cidade de Deus, nesta terra, deve prevalecer sobre a Cidade dos Homens. Um governo civil forte, de índole religiosa, é a solução. O “poder” religioso já “ameaça” o poder civil. Porém, o grande critério da vida cristã, para este místico de missa e pregação diárias, é o amor aos pobres. “O supérfluo do rico é propriedade dos pobres”, argumenta Agostinho.
            Quem tira todas as conseqüências da tese de Agostinho é o papa Leão Magno (†461). A enorme crise provocada pelas invasões bárbaras faz crescer o poder político papal. “O cuidado da Igreja Universal deve convergir para a cátedra de Pedro, e nada... deve ser separado de sua cabeça”, opina o papa. Sua ação, interna e externamente, é extraordinária. Sua reforma pastoral uniformizadora é oficializada no Concílio de Calcedônia (451), convocado ainda pelo imperador Marciano. Externamente, para surpresa do mundo de então, o papa Leão consegue, em 452, um acordo de paz com Alarico, rei dos Hunos. Um ano depois tenta o mesmo com Genserico, rei dos Vândalos, mas sem sucesso. A imperatriz Eudóxia mexeu os pauzinhos e Roma é saqueada. Entristecido, também o papa Leão atribui todas as desgraças ao pecado. Como já observamos, na cosmovisão teológica não contam as circunstâncias históricas ou as causas naturais. Apenas as forças sobrenaturais – boas ou más – comandam o mundo.
            Vemos aqui, pela primeira vez, uma clara cisão na espiritualidade do mundo cristão: a Igreja-Instituição aposta na primazia de um poder religioso; o povo cristão comum continua valorizando prioritariamente a espiritualidade do deserto.
            O grande místico Dionísio, o “Areopagita” (†500), ocupa nestes tempos um lugar muito especial. Quando a Igreja começa a chamar a si o poder sagrado – que compete a Deus -, Dionísio se coloca a pergunta: quem é Deus? Em sua Teologia Mística responde exaustivamente: Deus é o “além de tudo”; para alcançá-lo é preciso “deixar para trás os sentidos e as operações do intelecto”; Deus “transcende todo o ser e todo o conhecimento” e está “além de todas as diferenças positivas e negativas” (cap. 1). É pelo “não-ver e não-saber que alcançamos a verdadeira visão e conhecimento” (cap. 2). É preciso ir até “o silêncio absoluto dos pensamentos e das palavras”; para, assim, chegar “Àquele que está além de todas as abstrações” (cap. 3). Deus “não pode ser expresso ou concebido”; “não tem semelhança nem diferença”, pois “não é espírito de acordo com nosso pensamento” (cap. 5). Quando hoje ressurge um novo pensamento centralizador na Igreja, não é de estranhar que saíram da penumbra também a “teologia negativa” – S. Tomás de Aquino, que cita Dionísio mais de 1700 vezes, já dizia que “de Deus não podemos saber o que é, mas apenas o que não é” – e a “via apofática”, isto é, a aproximação a Deus sem apelar à percepção e à razão.
            A espiritualidade do outro mundo se encerra, no Ocidente, com a ação de São Bento de Núrsia (†547) e Gregório Magno (†604). São Bento é considerado o fundador do monaquismo ocidental. O próprio papa Gregório conta, em seu Livro dos Diálogos, a vida de São Bento. Iniciando como eremita na gruta de Subiaco, o ascético Bento acaba formando pequenas comunidades de 12 monges, cada uma com um superior, sendo ele mesmo o abade geral. Mais tarde, no Monte Cassino, elabora sua “Regra de São Bento”. Na Idade Média, a famosa Ordem (beneditina) de Cluny, seguindo esta inspiração original, chega a ter 17.000 mosteiros subordinados a ela! A “espiritualidade popular” claramente se afasta das ambigüidades do poder. O papa Gregório pinta a vida de São Bento de acordo com o imaginário religioso da época, cheio de histórias edificantes de milagres e tentações do demônio, mas, na realidade, Bento prioriza uma vida de oração. “Nada se oponha à obra de Deus”, no caso a oração e a liturgia das horas. Não se trata, porém, de uma oração inconseqüente: “O Senhor espera que nós respondamos, todo dia, com fatos a seus santos ensinamentos”. Contemplação e ação, ora et labora! 
            O papa Gregório, monge beneditino, mas filho da nobreza e ex-prefeito de Roma, apelidado “pai dos pobres”, anuncia sua missão na primeira homilia depois de eleito: “elevar continuamente os espíritos à consideração das realidades sobrenaturais, para então viver os acontecimentos temporais sob uma perspectiva eterna”. Mãos à obra! O país está um caos total sob o ataque constante dos lombardos. Escreve: “A terra está desolada e já não há quem a cultive; poucos habitantes ainda ocupam as cidades. Estamos contemplando a que extremo foi reduzida Roma, a mesma que outrora parecia ser a senhora do mundo!” Sem imperador do lado ocidental, Gregório I se torna Gregório Magno quando assume sua missão civil em nome da missão religiosa. Internamente desencadeia sua “Reforma Gregoriana”: reforma pastoral, litúrgica e missionária. Externamente arregimenta tropas, paga soldos e até financia bárbaros para preservarem Roma. Implementa também programas sociais contra a fome que ronda todas as casas. Habilmente consegue o apoio de Teodolinda, esposa do rei dos lombardos, ganhando para o cristianismo toda a nação lombarda. Mas não esquece o amigo Bento. Quando, em 592, o imperador bizantino proíbe seus soldados de abraçarem a vida monástica, Gregório o adverte severamente: “antes morrer do que ver a Igreja do apóstolo Pedro se degenerar nas minhas mãos!”
            Do lado oriental, dando continuidade à espiritualidade do outro mundo, ou do deserto, devem ser lembrados ainda os Padres gregos São João Clímaco (†649), autor da Escada do Paraiso, São Máximo (†662), o “último teólogo” da patrística grega, e São João Damasceno (†749). O “Clímaco” descreve os 30 degraus que devem ser escalados para alcançar a espiritualidade perfeita: muito jejum, penitência e combate aos desejos da carne, com lutas ferozes contra o demônio. Mesmo assim, tirado de sua caverna e feito abade, não esquece a missão neste mundo. Com o apoio do papa Gregório se dedica aos desvalidos e constrói até “hospitais”. São Máximo, alto funcionário do imperador Heráclio, uma vez monge, dedica a vida ao estudo da fé e deixa diversos escritos teológicos, exegéticos e éticos. Escreve a primeira “biografia” de Nossa Senhora e dá forte combate ao monofisismo e monotelismo, as heresias do seu tempo. Condenado e exilado acaba sem a mão direita para nunca mais se atrever a escrever. Já o “Damasceno”, ex-prefeito de Damasco, dá seus bens aos pobres ao entrar, aos trinta anos, no mosteiro. Feito sacerdote, convidado pelo Patriarca local, prega com rara beleza – seu apelido é “boca de ouro” – nas igrejas de Jerusalém. Ao escrever sua Exposição da Fé Ortodoxa torna-se “o São Tomás do Oriente”. O teólogo alemão Hans Urs Von Balthasar, amigo de Bento XVI, observou que João praticava uma “teologia de joelhos”, isto em oposição à fria “teologia de escritório” de muitos outros. Defende com ardor a veneração das imagens contra a fortíssima onda de iconoclastia do seu tempo. Diz a história que, por ordem do Califa, João, “o último Padre da Igreja do Oriente”, teve a mão direita decepada. Ganhou o “outro mundo”, combatendo, como dizia, os “prazeres venenosos deste mundo”.
V A “espiritualidade popular” frente à “espiritualidade do poder” na Idade Média
            A Igreja é a única instituição forte que sobrevive à queda do Império Romano. No Oriente, onde o Império perdura até 1453, a espiritualidade do deserto ainda sobrevive um bom tempo. São Teodoro, o “Estudita” (†826), filho da aristocracia, uma vez monge, de tão ascético “dormia até em tábua”, diz a história. Inspira-se diretamente nos “Padres do Deserto”. Feito sacerdote e abade enfrenta o imperador Constantino VI na questão do “cisma adúltero”. Constantino quer forçar um casamento ilegítimo com uma prima de Teodoro. Resultado: exílio. Com as incursões dos árabes, Teodoro muda para o famoso mosteiro de Stoudion, o qual chega a contar com mil monges! Representa a ala mais radical exigindo, além de muita oração, muito trabalho. Contemplação não pode ser desculpa! Grande defensor dos ícones enfrenta duas longas crises de iconoclastia. É encarcerado, flagelado e exilado diversas vezes.
Também São Simão, o “novo teólogo” (†1022), segue a tradição oriental. Seus monges, em Stoudhion, vivem a tardia prosperidade do império, mas Simão prefere o rigor ascético e é expulso. Superior do pequeno mosteiro de Mamede, Simão, muito Cristocêntrico e Espíritocêntrico, ensina que a ascese apenas serve para chegar à “iluminação”, a experiência direta de Deus. Bento XVI chamou este “3º teólogo” do Oriente – os primeiros são São João Evangelista e Gregório Nanzianzeno – de “o teólogo da união mística com Deus”.
            No Ocidente, após seu grande florescimento, a vida monacal, lentamente, entra em decadência. A “espiritualidade do poder” que vimos surgir nos papados de Leão Magno e Gregório Magno, na Idade Média, chega ao auge. Especialmente os papas Gregório VII (†1085), Inocêncio III (†1216) e Bonifácio VIII (†1303) exercem um forte poder civil em nome da espiritualidade cristã. Esta “hierocracia papel” é fruto natural da cosmovisão teológica. Nela, sob diversas formas, impera sempre o poder do sagrado. A Igreja da cristandade é sua expressão máxima. Mas Deus, diria Dionísio, está acima de qualquer projeto humano. Em meio ao povo comum, distante da Igreja-Instituição, a espiritualidade do deserto, aos poucos, se transforma numa espiritualidade que poderíamos chamar de “popular”. Ela tem menos raiz na Bíblia e não tem o Cristocentrismo divinizado dos Santos Padres, nem sua inserção no mundo. Longe da influência dos mosteiros e esquecido por um clero desinteressado, o povo comum se vale do seu próprio sentimento religioso. Em parte “foge” do mundo para se refugiar em Deus.
A grande figura de São Pedro Damião (†1072) representa bem o momento. De origem humilde e de vocação contemplativa, vive uma vida de austeridade e penitência no mosteiro camaldulense de Fonte Avellana. É firme, sábio e santo. Como abade escreve muitas biografias dos santos para edificar seus monges. Entra em cena a ameaça do purgatório. “A salvação da alma é de todos os negócios o mais importante”, diz. Sua grande causa é contra a “simonia clerical”: a compra e venda de cargos, títulos, propriedades e funções eclesiásticas. Virou moeda corrente. Roma está à mercê da casa imperial da Alemanha que nomeia bispos e abades como afilhados políticos. Damião escreve seu polêmico Livro de Gomorra. Critica a falta de pobreza nos mosteiros. Lembra aos ricos cardeais que S. Pedro e S. Paulo andavam descalços e eram magros! Liderados por Cluny, os mosteiros beneditinos passam por grande reforma em toda Europa. Juntamente com seu amigo, o influente Cardeal Hildebrando – o futuro papa Gregório VII! – também Damião se lança a uma grande reforma do clero. Para Hildebrando, no entanto, a salvação do mundo depende do poder da Igreja. Para Damião, apenas a vida espiritual importa.
             São Bernardo de Claraval (†1153) é a figura mais expressiva do Séc. XII. Aos 22 anos entra no mosteiro de Cister, a ala reformada de Cluny, arrastando consigo mais 30 entre familiares e amigos. Funda depois o famoso mosteiro de Claraval que logo terá 700 monges. Os cistercienses, na esteira da decadência de Cluny, florescem. Na morte de Bernardo serão 345 mosteiros, dos quais 167 subordinados a Claraval. Bernardo quer um “retorno a Deus” – e à S. Escritura e aos Santos Padres -, com pobreza real e muita ação e contemplação. E sem privilégios dos senhores feudais! Diz: “Se a pobreza não fosse um grande bem, J. Cristo não a teria escolhido para si”. E: “A oração é mais forte que todos os demônios”.
Mas Bernardo tem muita ascendência também nos altos escalões da Igreja e da Sociedade. Escreve cinco livros sobre um bom governo papal e interfere diretamente nos conflitos políticos da época. A Igreja vive o pavor da ameaça árabe e as cruzadas são vistas como única opção. Matar e morrer por Cristo, nestas circunstâncias, é uma glória, prega Bernardo com fervor. Faz até o rei Louis VII e o imperador Conrado carregarem a cruz. Funda a Ordem dos Templários só para esta tarefa. No imaginário popular da época, Bernardo se torna grande santo e milagreiro. A devoção popular está em alta. Certa vez, ao saudar N. Senhora, passando por sua imagem e, como sempre fazia, saudando-a com uma “Ave Maria”, Bernardo ouve como resposta: “Ave Bernardo”.
            As devoções populares florescem na medida em que a Igreja-Instituição se mantém ocupada com a “espiritualidade do poder”. Na Alemanha, Santa Hildegarda de Bingen (†1179) e, depois, Santa Matilde de Magdeburgo (†1285), Santa Matilde de Hackeborn (†1298) e Santa Gertrudes, a Grande, (†1302) representam bem a nova e profunda espiritualidade popular. Na vida da teóloga mística Hildegarda, beneditina, os temas “visões” e “revelações” são comuns. “Aos três anos uma grande luz já incendiava minha alma”, diz. Após fundar alguns novos mosteiros, aos 42 anos, diz: “uma voz do céu mandava-me tudo dizer e escrever”. Depois, seu amigo Bernardo de Claraval, consegue a aprovação papal para suas revelações. A fama da monja corre então toda Europa. Expulsava demônios que nem os padres da abadia de Brauweisier conseguiam expulsar!, diz a história. De fato, Hildegarda percorre a Europa contra as investiduras eclesiásticas e pela reforma do clero. É a primeira teóloga a pregar na catedral de Triers. Diz ao imperador Frederico II – que nomeou quatro antipapas! -: “Sê vigilante... O Rei Supremo te olha!” E ao papa Anastácio IV: “Por que não cortais pela raiz o mal que sufoca a erva boa?” Sua mística de fundo, no entanto, é calcada nas emoções. O “amor divino” inspira seu coração.
            A cultura religiosa feminina alcança seu nível mais alto no mosteiro cisterciense de Helfta, Alemanha, com a vida das três “santas do Sagrado Coração”. Santa Matilde de Magdeburgo grava suas “revelações” num livro: “O Filho de Deus apareceu a mim. Tinha em suas mãos seu coração... difundia seus raios por todos os lados... todas as graças que Deus continuamente derrama sobre a humanidade brotam deste seu Coração”. Matilde de Hackeborn, do mesmo mosteiro, escreve suas revelações no Livro das Graças especiais. Para ela, Jesus não é apenas o homem das dores, mas antes o Salvador glorificado em cujo coração encontramos refúgio e paz: “O Senhor abriu a ferida do seu tenro Coração... uniu seu tenro Coração ao meu e lhe deu toda a capacidade de contemplação, devoção e amor... tu me louvarás sempre pelo meu Divino Coração”. Santa Gertrudes é tida como “a teóloga do Sagrado Coração”. Muito bem formada, fala de suas revelações no Memorial da abundância da divina suavidade. Tudo, nela, tem ligação com o cerne da vida monástica: a Liturgia das Horas, a Eucaristia e a Lectio Divina. Sua Cristologia, unida a uma profunda Mariologia, é toda concentrada no Coração de Jesus. A tradição cristã a viu como “a santa do dulcíssimo Coração de Jesus”.
            Encerramos nosso relato sobre a espiritualidade do outro mundo dentro da cosmovisão teológica com a vida de São Francisco de Assis (†1226), Santa Clara de Assis (†1253) e São Domingos de Gusmão (†1221). Na Idade Média não encontramos mais o “em breve” da vinda do outro mundo. Na Igreja-Instituição também não vemos o que era comum nos primeiros cristãos e nos Santos Padres: encontrar Cristo na vida do pobre para merecer o outro mundo definitivo. Nela, o Reino de Deus se confunde com o Reino da Igreja.
            Não assim na espiritualidade popular. São Francisco de Assis, em certo sentido, “tumultua” a Igreja-Instituição quando, para sua “fraternidade”, pede a um papa assustado – na sua Regra chamada “primitiva” - uma conformidade radical com os pobres. Descobriu que era isto o que Deus queria quando, em revelação, lhe pediu para “consertar” a igreja de São Damião. Ao deixar suas roupas, na presença do um bispo surpreso e um pai revoltado, casou com a “senhora pobreza”, como diria depois. As praças das pequenas cidades medievais vivem apinhadas de pobres, esquecidos tanto pela nobreza feudal quanto pela burguesia comercial em ascensão, e até pelos mosteiros e o clero. Francisco não quer privilégios para o clero, apenas “frades menores”, mendicantes sem pecúnia. Nem sequer mulas para viajar.
Em 1212 corta os belos cabelos loiros de Clara. A filha da nobreza quer seguir seu exemplo. Mais tarde Francisco ajuda a “Irmã Clara” a legalizar sua Ordem das Clarissas. Quando volta do Oriente – quer ajudar na conversão dos sarracenos e ajudar nas cruzadas – encontra sua comunidade desunida. Alguns querem ser eremita, outros querem erudição, mais outros sonham com privilégios eclesiásticos. Nada disto. Tem que ser como no Evangelho! Quando o papa Honório III aprova, em 1223, a “Regra Bulada” – com as modificações exigidas – Francisco obedece a contragosto. Sua espiritualidade é a popular da época. Gosta de poema, música e encenação, com profunda mística cósmica, como Santa Hildegarda.  A Eucaristia e a Cruz de Jesus estão no centro. É da Cruz que recebe os “estigmas”, os primeiros da cristandade. Deste mundo Francisco não quis nada. Quis ser enterrado nu.
O aristocrático espanhol Domingos de Gusmão segue os mesmos passos do amigo Francisco, mas seus “dominicanos” devem estar mais voltados ao estudo. Quer homens muito bem preparados para combater os “albigenses” do Sul da França e para as “santas pregações” pelas ruas – e até pelas tabernas -, de dois em dois. Quando Honório III aprova, em 1216, a Regra da “Ordem dos Frades Pregadores”, o trabalho manual e a oração litúrgica são diminuídos. Urge a missão. Domingos quer também muita democracia na Ordem.
Novos sinos começam a bater na Igreja. Os “teólogos proto-humanistas de Paris” propagam uma salvação menos limitada aos ditames da Igreja-Instituição. Os muitos movimentos de piedade popular da época – como os albigenses – criam ares anti-Igreja. O papa Gregório IX, em 1233, institui a Inquisição e conta com os dominicanos para conter a maré. Mas será tarde. Uma nova cosmovisão – a antropológica – está nascendo e porá tudo de pernas para o ar. Também a espiritualidade. Para falar dela aguardaremos por outra oportunidade.
*Missionário Verbita, presbítero, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática: de 1965 a 1981 na pastoral rural do Vale do Ribeira/SP, e, de 1981 a 1993, na pastoral urbana das Zonas Leste e Sul de São Paulo. Entre 1983 e 1988 lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP).  Entre 1994 e 2000 atuou como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo/São Paulo (CDHEP/CL), coordenando os programas de formação de lideranças eclesiais e de combate à violência urbana De 2000 a 2008 foi auxiliar na Pastoral e vereador, pelo PT, em Holambra/SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente atua na pastoral paroquial de Diadema/SP. Além de cartilhas populares publicou artigos pastorais na REB e na Vida Pastoral.
Endereço do autor: R. Juruá, 798 – Jd. Paineiras – 09932-220 Diadema SP. Email: nijlbakker@hotmail.com –  Fone: (11) 4091-7928
Para consulta aos artigos do autor, acessar: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>
Nota: 1) Em Vida Pastoral Nos 278/279/281/282 (2011/12) pode ser encontrada uma descrição detalhada destas cosmovisões, como também sua espiritualidade e perspectiva política correspondentes, tendo em vista a indispensável renovação pastoral da Igreja.