quarta-feira, 7 de julho de 2021

A publicar: A estranha mente humana e os desafios pastorais daí decorrentes

 

A ESTRANHA MENTE HUMANA E OS DESAFIOS PASTORAIS DAÍ DECORRENTES

Nicolau João Bakker, svd*

São Paulo SP

 

Síntese: O presente artigo ressalta a crescente importância da neurociência para uma adequada análise pastoral. A neurociência ainda se encontra em plena elaboração, mas já vão surgindo pistas mais consensuais que abrem perspectivas significativas para uma abordagem pastoral enriquecedora. Consideramos particularmente instigantes os aportes dos autores Paul R. Ehrlich (biólogo/ecólogo) e Robert E. Ornstein (psicólogo da mente), em New World, New Mind: Moving Towards Conscious Evolution. Na primeira parte do artigo abordamos a evolução histórica do cérebro humano e sua natural pré-disposição para diversas formas de “ilusão”. Na segunda parte vemos como estas diferentes formas de ilusão podem nos levar facilmente a uma ação pastoral equivocada.

Palavras-chave: Neurociência. Evolução cerebral. Ilusões mentais. Mismatched mind (mente “desadaptada”). Ilusões pastorais.

Abstract: This article highlights the growing importance of neuroscience for a deeper pastoral analysis . Neuroscience is still in the making, but some consensual clues are emerging that open up the meaningful perspectives for an enriching pastoral approach. The author considers promising contributions from authors like Paul R. Ehrlich (biologist/ecologist) and Robert E. Ornstein (psychologist of the mind) in New World, New Mind: Moving Towards Conscious Evolution. In the first part of the article the author discusses the historical evolution of the human brain and its natural pre-disposition for various forms of “illusion”. In the second part we see how these different forms of illusion can easily lead us to a wrong pastoral approach.

Keywords: Neuroscience. Brain evolution. Mental illusions. Mismatched mind. Pastoral illusions.

 

Introdução:

            Subir ao topo do Monte Everest desafiou muita gente, mas poucas pessoas chegaram lá. O desconhecido, ou o muito difícil, parece atrair e amedrontar ao mesmo tempo. Bons livros e bons filmes de aventura sempre fazem sucesso, especialmente entre o público masculino. Quando viajamos e chegamos, pela primeira vez, a uma terra que, desde os tempos de criança, consideramos longínqua e estranha, somos tomados por um sentimento de grande admiração. Ficamos “deslumbrados” com sua beleza, sua feição rara ou única, sua excentricidade enfim. Há poucos anos vimos o filme “Xingu” sobre os irmãos Villas-Bôas. Subimos com eles rios desconhecidos da selva amazônica. Basta imaginar o momento: uma rústica canoa, deslizando suave e silenciosamente sobre um rio estreito de águas, ora escuras ora mais claras, margeadas por uma floresta densa e impenetrável, cheia de mistérios; no ar um silêncio ameaçador, recortado vez por outra pelo grito assustador de um pássaro raro. Em cada curva do rio uma nova e angustiante expectativa: uma flecha mortífera, .... ou uma nova acolhida de paz. Nervos à flor da pele, a cada braçada do remo.

            É exatamente assim que foi formada a nossa mente, milhões de anos atrás. Vivemos nosso dia a dia imaginando nossa mente como algo que, em todos os tempos, foi sempre igual. Um recurso importantíssimo que nos eleva acima de qualquer outro ser vivo e que nos capacita a julgar entre o certo e o errado, o belo e o feio, o bem e o mal. Desde que a ciência antropológica se colocou como pergunta fundamental quem é mesmo este ser humano de tão variadas tradições, o foco principal foi sempre sua mente, sua cultura, seu saber local e sua visão de mundo. Apenas nas últimas décadas, a antropologia se deu conta que o ser humano é muito mais do que mente; é antes de tudo corpo. Na verdade é mente/corpo numa só unidade. Uma unidade que chamamos “vida”. É comum também imaginar nossa mente como habitante ilustre do cérebro. Nascer sem cérebro significaria não ser gente. Na verdade, o cérebro não é nada mais que o processador final das incontáveis impressões sensoriais colhidas pelo nosso sistema nervoso que se estende por ramificações sem fim, até a última célula viva do nosso corpo.  Um corpo, como dissemos, formado há milhões, muitos milhões de anos atrás.

            O primeiro diminuto cérebro se formou, há mais de 450 milhões de anos, na linhagem, no “filo”, dos animais “cordados”1. Eles nadavam nos oceanos antes de dar origem aos anfíbios cujos descendentes – nossos parentes “próximos” - se estabeleceram definitivamente na terra. A “mente” destes cordados já era esperta como a dos seus antecessores, os primeiros animais aquáticos e, antes ainda, como a dos protistas ou das primeiras bactérias2. Todos “sabiam” perfeitamente reagir ao meio ambiente, à salinidade da água, ao excesso de cálcio no mar, à luz e ao calor do sol, à alimentação escassa ou abundante. Muito antes de o primeiro “sistema nervoso” se formar, a vida já era sábia. A vida surgiu das entranhas da terra, ou da água, porque no interior da própria matéria - onde tudo é inter-relacionado e inter-dependente -, a vida está presente3. Com os olhos da fé podemos descobrir, em toda a matéria, as “pegadas” do Criador. Num processo ininterrupto de complexidades crescentes4, a vida deu origem – recentemente – a uma mente que, pela primeira vez, criou consciência de si mesma, a mente humana. Com ela surgiu a advertência de Moisés: ou escolhemos a bênção, ou a maldição (Dt 11, 26-28). Nossa mente, contudo, não é uma máquina perfeita. Na verdade, ela é altamente “ilusória”. Captar este aspecto é de vital importância para a caminhada pastoral da Igreja. Daí a razão de ser deste artigo.

 

I As “ilusões” da mente

            O mundo em que vivemos possui uma complexidade cada vez maior. Os próprios governos locais já não governam, pois a realidade global se impõe. A confiança nos sistemas democráticos cresceu substancialmente nos últimos séculos, mas hoje se percebe que, mesmo nas democracias mais avançadas, o povo já não apita mais nada. Não tem domínio suficiente sobre a intrincada engrenagem técnico-científica que está no comando. Um dos grandes filósofos da atualidade, o alemão Hans Jonas, observa que não é mais a mente humana que governa, mas a máquina. A tecno-“logia” substitui a ideo-“logia”5. Neste mundo novo, a Igreja se tornou um corpo estranho. Uma voz no deserto. No entanto, - é esta a nossa convicção -, ela guarda consigo a sabedoria ancestral que é capaz de redimir a modernidade. Para recuperar sua voz, a Igreja não deve, obstinadamente, opor-se a ela. Deve, antes, entendê-la e ser sua luz. Para isto, um dos requisitos mais importantes é entender melhor a própria mente humana. Em especial as suas “ilusões”:

A) A ilusão do “sapiens”

            A mente que mais nos ilude é a que está mais próxima de nós, isto é, a do “homo sapiens”. Este ser que se autodenominou de “sábio” surgiu muito recentemente, há apenas uns 150.000 anos, um nada diante dos 3.8 bilhões de anos em que a vida existe sobre a face da Terra. Nosso cérebro, dizem os entendidos, consiste de quatro andares. O primeiro e mais antigo andar, o “paleocéfalo”, é ainda do tempo dos répteis, que substituíram os anfíbios 250 milhões de anos atrás. O segundo andar, o “mesocéfalo”, herdamos dos primeiros mamíferos que descenderam dos “répteis de tronco primitivo”, há 200 milhões de anos. O terceiro andar, o “neocéfalo”, foi construído no tempo dos mamíferos superiores e seus descendentes, os primatas. Estes últimos surgiram logo depois do grande cataclisma que deu fim aos dinossauros, há 65 milhões de anos. O quarto e último andar, o cérebro da grande “massa neocortical”, se desenvolveu no decorrer do processo de “hominização” ou “conscientização”, iniciado com a “família dos hominídeos”, 4 milhões de anos atrás, e que, passando pelos diferentes tipos do “gênero homo”, desembocou na atual espécie “sapiens”. A ciência insiste: não somos superiores ou melhores, mas apenas diferentes. Somos, porém, os únicos que “têm consciência” das diferenças. Aos olhos da fé, o raciocínio muda: se Deus nos deu consciência, somos responsáveis. Podemos destruir a vida no planeta, ou levá-la à plenitude. Mas eis o nosso grande tormento: as “ilusões” estão sempre por perto.

            Os antropólogos nos alertam: na medida em que o processo da hominização foi avançando, o comportamento inconsciente, genético, ou instintivo, ficou cada vez mais empurrado para trás, dando lugar ao comportamento livre e consciente das diferentes culturas humanas. Cada cultura humana estabelece seu próprio modo de pensar, falar e agir, transmitido de pais para filhos, dos mais velhos aos mais novos, do passado para o presente. Surge, desta forma, a assim denominada “brecha antropológica”6: com a hominização, o imperativo do padrão genético é substituído pelo imperativo da escolha. E não há nada na consciência humana que garanta a escolha certa. Para nós, cristãos, a Revelação orienta, a razão individual ajuda, a coletiva ainda mais. São Tomás de Aquino (†1274) fez desta constatação um dos fundamentos de sua teologia, mas, no frigir dos ovos, cada escolha representa uma opção entre muitas possíveis. A história da humanidade comprova: o futuro da humanidade depende de um permanente corrigir das “ilusões”, individuais e coletivas, da mente humana. A consciência humana, já dizia o jesuíta Teilhard de Chardin (†1955), está em processo de aperfeiçoamento, em “evolução”. Trata-se, afirma ele, de um processo de “amorização” ou de “cristificação”. Uma visão, não da ciência, mas da fé.

B) A ilusão do mundo estável

            Por mais que esta brecha antropológica possa nos atormentar ou iludir, a moderna mente humana continua sofrendo uma poderosa influência também dos demais andares do cérebro, em especial do terceiro. E aí voltamos para a nossa rústica canoa que continua deslizando sobre o estreito rio que serpenteia pela floresta tropical. Ou melhor, voltamos nossa atenção para os canoeiros que estão “com os nervos à flor da pele a cada braçada do remo”. Quem nos explica este quadro? Precisamos lembrar que, muito antes de o neocórtex do sapiens começar a se desenvolver, a “sociedade” dos primatas e hominídeos que nos antecederam era uma sociedade extremamente estável. Cheia de perigos e imprevistos, mas sempre, por dezenas e dezenas de milhões de anos, a mesma. Os animais primatas viviam em nichos ecológicos sujeitos às mais diversas intempéries, mas seus sistemas nervosos não precisavam adaptar-se, continuamente, a novos modos de pensar, falar e agir, como ocorre com as permanentes mudanças culturais dos atuais seres humanos. O primata que está dentro de nós é do tipo tradicional. Comporta-se sempre da mesma forma. Vive na sua árvore preferida, ou vaga pela floresta que lhe é familiar, alimentando-se como de costume, e fazendo amor de acordo com os padrões estabelecidos. Mas, sempre muito alerta, como o canoeiro que, por um instante, interrompe as braçadas do remo. Não se ouve mais o toque ocasional do remo no casco da canoa. O silêncio é total. A qualquer momento o imprevisto pode ocorrer. A “mente” é forjada pelo meio ambiente; um recurso criado pela natureza para viver, conviver e sobreviver melhor. Em especial ao adentrar um novo território é preciso ficar muito atento ao menor estalar de um graveto. Pode ser uma nova presa .... ou a bocarra de um felino, .... ou então, a flecha mortífera trazendo o fim.

C) A ilusão da “percepção seletiva”

            Dizem que, por ocasião do Concílio Vaticano II, os tradicionalistas eram maioria, e os progressistas minoria. Ainda assim, de modo geral, os progressistas (temporariamente!) venceram porque tinham maior clareza de sua proposta. Este fato histórico simboliza o que é comum na história humana: ela não muda facilmente, mas muda. Ela não muda facilmente porque nosso sistema nervoso está adaptado ao que é familiar, e não ao que é novo. Nossa “percepção”, por exemplo, é extremamente seletiva. Não percebemos o mundo como ele é na realidade, porque nosso sistema nervoso evoluiu para detectar apenas uma pequena parte da realidade e para ignorar o resto. Não fosse assim, ficaríamos neuróticos. Não ouvimos os sons que os morcegos ouvem, não vemos o que a águia vê, nem nos damos conta dos cheiros que orientam tão bem os cães da rua. Nós simplesmente não vemos o que não interessa ver. Num grande shopping, a mulher vê o que o homem não vê, e a criança descobre o que os pais não descobririam nem que passassem dez vezes pelo mesmo corredor. Nossa sobrevivência exigiu uma “atenção seletiva”. O estalo do graveto é muito mais importante do que os sons costumeiros da floresta. Em meio a milhares de informações sensoriais disponíveis, o nosso sistema nervoso capta apenas os “significados” familiares, não os desconhecidos. A recente mente “sábia” tende até a fabricar significados quando na verdade não existem. Deitados na relva víamos passar as nuvens do céu e descobríamos nelas as figuras mais engraçadas. Passava o palco da nossa vida familiar .... e o dos nossos sonhos e fantasias. Como nos tempos de criança, as fantasias nos acompanham sempre. Quando adultos as transformamos em utopias. Homo sapiens, mente sábia. O imaginário humano é multiforme. Por trás, contudo, está sempre o impulso primário do primata que vive dentro de nós: queremos simplesmente viver, conviver e sobreviver melhor.

D) A ilusão do momentâneo

            Há um outro aspecto da mente que merece ser destacado: apenas as “mudanças dramáticas” a impressionam. Milhares de mortes comuns ao nosso redor, ou milhões num continente distante, não nos atingem tanto quanto o vizinho que acaba de ser acidentado em frente à nossa casa. Apenas as tragédias nos põem em ação. O sistema nervoso do primata dentro de nós foi adaptado para o local e o momentâneo, não para o que acontece do outro lado, nem para o que pode acontecer depois. A primeira impressão que colhemos de uma pessoa impressiona mais do que as posteriores. Uma “nova” notícia de TV prende nossa atenção, não as de sempre. Por mais importantes que sejam, as impressões que chegam aos nossos sentidos todos os dias da mesma forma nos deixam indiferentes. Elas não possuíam significado algum quando estava em construção o terceiro andar do nosso cérebro. A sombra repentina na entrada da caverna sim. Mas, o que antes era solução, hoje representa perigo. Hoje, numa perspectiva pastoral, justamente os efeitos imperceptíveis são os mais significativos, como iremos ver. Os muito afamados biólogos, ecologistas e psicólogos da mente, Paul R. Ehrlich e Robert Ornstein, cujo livro “New World, New Mind” (Novo Mundo, Nova Mente) parcialmente nos inspira neste artigo, costumam citar a historinha do “cozimento da rã”7. Colocada numa chaleira sobre brasas acesas, o sistema nervoso da rã não perceberá o lento aquecer da água e irá morrer sem se dar conta. O homo sapiens guarda consigo esta estranha herança. Se seu meio ambiente familiar é uma caatinga, uma favela ou um lixão, ele se conforma e sobrevive sem reclamar. A mais leve ofensa pessoal e momentânea, porém, o coloca imediatamente de prontidão. Se o autor insistir, saia de perto.

E) A ilusão tribal

            Há mais: nossa mente se formou “desadaptada” à vida infernal da modernidade. Ela foi feita para se dar bem em pequenos agrupamentos humanos, não em multidões. Rejeitamos pessoas estranhas ao nosso grupo, à nossa cor, ou ao nosso jeito. Não votamos em pessoas que podem conduzir-nos ao desconhecido. No decorrer de muitos milhões de anos, os primatas sobreviviam em pequenos bandos. Por alguns milhões de anos, os hominídeos, caçadores e coletores, conviviam em grupos reduzidos, defendendo seus territórios. Quem está habituado a viver numa metrópole não percebe mais o quanto nos é estranha esta realidade. Apenas há 10.000 anos surgiram as primeiras e pequenas “civilizações” humanas em volta do mediterrâneo. Milhões de anos foram necessários para juntar o primeiro bilhão de pessoas. De um para sete bilhões levou apenas um século e meio. Para os próximos dois bilhões bastarão algumas décadas. O homo sapiens criou um mundo que ele mesmo é incapaz de entender. Sua mente, sua “mismatched mind” (mente “desadaptada”) diria Ornstein, simplesmente não está a altura dos novos desafios. As mutações genéticas levam milhões de anos, as “mutações” culturais apenas meses. Por mais que nos adaptemos à modernidade, ela não nos liberta da nossa alma tribal. Podemos, vez por outra, fazer um discurso magnânimo sobre o futuro da humanidade, mas o que, verdadeiramente, nos tira do sofá não são as causas humanitárias, mas o sucesso do nosso time de futebol, o asfalto da nossa rua, ou (quando muito) o evento especial da nossa comunidade. Na maioria dos casos bastam os simples encontros de amigos. O que importa é o pequeno grupo. O mundo se dane.

 

II As “ilusões” na ação pastoral da Igreja

            Tal a mente, tal o mundo. Esse o ponto de vista tradicional. Também podemos dizer: tal o mundo, tal a mente. Existe uma íntima inter-relação entre ambos. Um dos mais destacados antropólogos modernos, o francês Edgar Morin, não se cansa de dizer: mente e mundo se “co-produzem”. No decorrer do processo da hominização, a mente do sapiens não nasceu antes do mundo e da cultura do sapiens. Nem existia o mundo do sapiens antes da sua mente. Ambos se fizeram juntos, em relação mútua, ao longo de um processo que levou milhões de anos. A tradição bíblica, muito influenciada pela filosofia e cultura gregas, deram à Igreja uma outra concepção de mente. Uma mente acima do mundo. Imaginando-se possuidora, sem mais nem menos, de verdades eternas, a Igreja até se apresentou ao mundo como única guardiã exclusiva de todas as mentes sadias. Foi uma ilusão. O Vat.II teve que penitenciar-se dela. Algo parecido ocorreu no tempo de Jesus. A cultura religiosa do judaísmo tinha se afastado um bocado da inspiração original do Código da Aliança. Esta foi retomada por Jesus, não sem pagar caro por isso. A ação pastoral da Igreja está sujeita às mesmas ilusões. Uma coisa é nossa “mística” original (de Jesus), outra a sua expressão cultural temporária. Vejamos:

A) A ilusão da renovação apressada

            Muito fiel ao espírito da Cúria Romana, o cardeal Siri, por ocasião do Concílio Vat. II, dizia que a Igreja levaria cinqüenta anos para consertar o que o papa João XXIII estragou em cinco. O fato, muito comentado, criou ares de anedota. Agora que os cinqüenta anos se passaram, a anedota, ao que parece, criou ares de profecia. As labaredas do fogo renovador são bem mais modestas. Muitos incendiários se tornaram bombeiros. A tradição eclesial retoma força. Os progressistas prendem o fôlego e se perguntam: o que vai dar desta nova conjuntura? Um rufar de tambores de guerra parece vir do horizonte. Espiritualmente e pastoralmente, qual a postura mais conveniente? Julgar o passado sempre foi bem mais fácil do que julgar o presente, mas, o que, com certeza, não devemos esquecer, é que, como dissemos acima, o animal que vive dentro de nós é do tipo tradicional. Esquecer isso leva a muita ilusão pastoral.

Religião talvez seja a mais antiga e mais profunda raiz do ser humano. Muito antes de as primeiras religiões se institucionalizarem com o advento das primeiras civilizações, os primitivos agrupamentos humanos dos caçadores e coletores já eram religiosos. Os mais antigos achados arqueológicos o comprovam. As gravuras e desenhos nas cavernas também. Com o despertar da consciência humana, o homo sapiens se descobriu inteiramente dependente de forças sobre as quais não tinha nenhum controle. Nem havia como explicá-las. Sua natural e indomável ânsia biológica para viver, conviver e sobreviver da melhor forma possível – em meio às muitas e inevitáveis desgraças e desventuras de sua própria contingência histórica e biológica – o levaram, espontaneamente, a obter não apenas consolo, mas também novas energias e um novo “sentido” a partir da crença no além. Há milhões de anos, o ser humano, muito mais do que um ser racional, é um ser místico. Um ser aberto ao que lhe transcende. Um devoto. Nós, cristãos, nos sentimos privilegiados porque, através de Jesus, e da Revelação, tivemos mais fácil acesso às graças divinas, mas não devemos alimentar um “mito de superioridade”, como nos aconselhou o teólogo oriental (Sri Lanka), Tissa Balasuriya (†2013). Deus continua um mistério, muito acima de qualquer conhecimento humano. Todos os seres humanos, até os mais descrentes, sabem que o sentido pleno desta vida não se encontra aqui na terra. Está em algum “campo escondido” (Mt 13, 44), em algum lugar mais adiante, no “além”. Todas as religiões estão em busca deste além. Muitas delas o chamam de “Deus” ou de “Divindade”. Mas, as crenças se consolidaram sempre no decorrer de milênios. Alguém ainda acredita que este ser humano pode mudar sua crença da noite para o dia?

B) A ilusão do discurso racional

            Preservar a mística e a religiosidade do povo é uma preocupação vital para qualquer projeto pastoral. Porém, a modernidade dos últimos séculos se caracteriza por um processo avassalador de racionalização que, - de forma equivocada -, se opôs à mística. Em todas as religiões existem inúmeras expressões religiosas que, de fato, são apenas resquícios do passado; manifestações culturais transitórias ou simplesmente mágicas; ritos do passado que já não oferecem mais apoio real para quem busca um sentido para a vida presente. Nesta perspectiva, o processo de racionalização é mais do que bem-vindo; é necessário. Livra o ser humano de uma bagagem desnecessária. Mas, já diziam os antigos: com a água do banho não se deve jogar também a criança para fora da janela. Nenhuma razão pode desfazer a razão da mística. Esta não vai contra a razão humana, ela vai além dela. Ela oferece ao ser humano uma motivação que não se sujeita à racionalização. Ela o conduz para além de si mesmo, e para além da fragilidade e contingências humanas, em busca do que está no horizonte. Algo misterioso que o impele a ir em busca do outro ou da outra. Em busca da alteridade, com respeito e compaixão, com um amor desinteressado enfim. Sempre de novo é preciso lembrar que esta mística é tão antiga quanto o próprio ser humano. Por isso não se abre facilmente à renovação. A Igreja precisa de renovação. Os tempos são outros. A pastoral precisa renovar-se, sem dúvida. Vivemos num “outro mundo”. A modernidade busca, ansiosamente, por um novo “sentido”. Mas não basta oferecer apenas um discurso. Precisamos oferecer uma nova mística. Muita ação pastoral dá com os burros n´água porque pretende motivar as pessoas apenas com o discurso racional. É água sobre pedra.

C) A ilusão do retrovisor

            Ocasionalmente observamos os programas televisivos da Igreja Católica. Uma Igreja presente na mídia, sem dúvida, é um mecanismo pastoral poderoso. As iniciativas merecem mais do que palmas. Infelizmente, porém, todos os programas que temos visto apelam apenas ao passado. Ainda assim, cumprem uma tarefa fundamental: alimentam a mística popular. Atraem multidões exatamente por isso. Na perspectiva do respeito aos direitos humanos diríamos: em primeiro lugar, nós da Igreja, devemos respeitar o direito do povo a uma mística. Devemos oferecer um alimento espiritual que a sustente e que satisfaz. Mas não podemos esquecer que toda mística se reveste de uma determinada expressão cultural que varia de povo para povo, de religião para religião, e também de época para época. Como a religiosidade de um povo tem sempre uma raiz milenar, é uma ilusão – já o vimos – esperar que ela mude substancialmente num curto lapso de tempo. Cem anos é muito pouco. No entanto, também é fato incontestável que o mundo ou a sociedade em que vivemos hoje muda mais profundamente em cinqüenta anos do que nos mil anteriores. A tradição judaico-cristã tem quatro mil anos, e se construiu sobre um substrato religioso de quatro milhões de anos. O desafio pastoral é respeitar nossa tradição mística, sem perder de vista o mundo inteiramente diferente que está a nossa frente. Olhar apenas pelo retrovisor dará em acidente na certa. Não arquiteta, respeitosamente, a mística da qual o povo sentirá falta no futuro. Muitos já sentem esta falta hoje. Olhemos para o que está ocorrendo na Europa com o processo de secularização. Em apenas cinqüenta anos, igrejas superlotadas se transformaram em igrejas vazias. Todas à venda. A população continua buscando inspiração, “sentido”, mas não o encontra mais na Igreja tradicional. Não surgiu em tempo uma mística alternativa para um mundo inteiramente renovado. O ideal seria que as televisões católicas abrissem espaço para liturgias alternativas nesta linha. Os bispos das áreas metropolitanas deveriam incentivá-las. É grande o número de pessoas que estariam prontas para organizá-las. Hoje estas pessoas se sentem um tanto quanto abandonadas. Na década de 1990 pudemos participar de um encontro nacional de ONG´s promovido pelo Banco Mundial. Aproximadamente duzentas lideranças das mais diversas organizações – sociais, ecológicas, educacionais, etc. – da sociedade civil estavam presentes. A certa altura do evento perguntamos quantos dos/as presentes tiveram sua inspiração original na Igreja. Quase a metade levantou a mão. Sem dúvida uma bela safra das CEB´s. Hoje, as lideranças do “outro mundo possível”, quando se fala da Igreja, dão de ombros. Sinal do que está por vir. O processo de secularização é irrefreável na medida em que se assentar a mentalidade urbana, aliada a uma escolarização generalizada. O momento para agir, pastoralmente, é agora.

D) A “ilusão da chaleira”

            Coitada da rã. Sem se dar conta acabou cozida, lembram? Pois é exatamente isso que acontece com a pastoral quando ela não percebe em tempo as mudanças do mundo a sua volta. Isso é muito fácil de acontecer, uma vez que nosso sistema nervoso, que nem o da rã, foi feito para um mundo estável. O linguajar e a liturgia da Igreja, as fórmulas doutrinárias, os códigos morais e canônicos, tudo é resultado de séculos de tradição. Tudo respira o tempo de uma era cristã de poucos questionamentos. E de uma sociedade que mudava muito lentamente. Apenas no Conc. Vat. II deu-se início ao “aggiornamento”. E isso em resposta a um mundo já em acelerado processo de mudança. O papa João XXIII abriu o Concílio dizendo que “uma coisa é a doutrina, outra sua formulação”. Os “sinais do tempo presente” adquiriram um novo peso na hermenêutica teológica. Em vez de ficar presa ao passado, a Igreja se voltou para o presente e encarou o futuro. Porém, já o dissemos, nossa genética não mudou. Sentimo-nos muito bem quando tudo fica como está. O povo costuma enfrentar a doença do momento com o remédio do passado. No mundo como um todo estamos no auge de uma explosão populacional jamais vista e a Igreja-Instituição, tranqüilamente, continua defendendo os mesmos princípios morais familiares de quando as famílias tinham, em média, dez filhos por casal. Anticoncepcionais ou camisinha nunca! O planeta Terra, com extrema rapidez, se aproxima de um abismo colossal. Caberia à Igreja estar na linha de frente para salvar a Criação que – assim acreditamos - recebemos das mãos de Deus. Mas não está. A Instituição como tal, neste item, não exerce voz profética. Sua Doutrina Social passa ao largo da verdadeira causa, localizada no processo produtivo e na ilusão do consumo desenfreado. Nossas pastorais são quase todas intra-eclesiais. Não percebemos o lento aquecer da água. Vivemos a “ilusão da chaleira”.

 

Conclusão

            Poderíamos apontar para outras ilusões pastorais, mas bastam as que apontamos. O objetivo deste artigo é apenas alertar para a necessidade de a Igreja, na sua ação pastoral, dar maior atenção a uma realidade um tanto desprestigiada, a da própria mente. Os neurocientistas, nas últimas décadas, têm ressaltado aspectos surpreendentes, dos quais o mais importante é a inaptidão da mente humana ao mundo moderno. Por isso, mais do que em qualquer outra época, a mente deve ser treinada e educada, não domesticada, como tão bem intuía Paulo Freire, mas “conscientizada”. O processo da “hominização” ainda não terminou. É até possível que esteja apenas em seu início. Juntamente com a escola, a Igreja tem, neste campo, um papel preponderante. A mente humana não foi feita para mudanças rápidas, ela se formou, como vimos, quando o ler e escrever nem sequer era imaginado. Mas a experiência já demonstrou que, uma vez conscientizado, o ser humano aceita mudar seu comportamento, ainda que lhe seja difícil.

Um novo mundo exige uma nova consciência. A pastoral da Igreja Católica ainda investe muito no mundo das crianças. Muito mais importante é investir no mundo dos jovens e dos adultos. As crianças seguirão seus passos, como é da natureza. Por mais que seja preciso respeitar o ritmo próprio de conscientização da religiosidade popular, não basta manter simplesmente as tradições. Muitas delas, como dissemos, representam apenas uma mera pertença institucional, uma bagagem cultural que em nada ajuda para alimentar a mística original do cristianismo. A mente humana tende a sacralizar o passado, mas o passado se foi. O essencial agora é ensinar o que é essencial em todas as religiões: nossa igualdade fundamental, a fraternidade universal, nossa responsabilidade comum frente ao futuro, e nosso cuidado respeitoso com o planeta que nos acolhe. Tudo isso exige priorizar o que o ser humano tem de mais profundo e mais precioso dentro de si: sua mística, isto é, sua abertura ao que lhe transcende.

 

1)      MARGULIS, LYNN. Symbiotic Planet: a new view of evolution, New York: Basic Books, 1988.

2)      MARGULIS, LYNN; SAGAN DORION. Microcosmos. São Paulo: Cultrix, 2002.

3)      MOROWITZ, HAROLD J. Beginnings of cellular life. New Haven; London: Yale University Press, 1992.

4)      PRIGOGINE, ILYA; STENGERS, ISABELLE. Order out of chaos. New York: Bantam Books, 1984.

5)      JONAS, HANS. O princípio da vida. Petrópolis: Vozes, 2004.

6)      MORIN, EDGAR. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

7)      ORNSTEIR R. E..; EHRLICH P. R. New world, new mind: a new view of conscious evolution. Cambridge, ISHK, 1989.

 

Endereço do autor: R. Verbo Divino, 993

Casa José Freinademetz

04719-001Chácara Stº Antonio -  São Paulo SP.

Email: nijlbakker@hotmail.com

 

*Missionário do Verbo Divino, sacerdote, formado em teologia, filosofia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo atuou no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Itesp (Instituto de Teologia / SP). Durante oito anos foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Por muitos anos representou a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) no programa estadual de Proteção a Testemunhas (Provita / SP). Ultimamente atuou na Paróquia Santo Arnaldo Janssen, Diadema SP. Acesso aos artigos do autor em <artigospadrenicolausvd.blogspot.com>