segunda-feira, 16 de agosto de 2021
quarta-feira, 7 de julho de 2021
A publicar: A estranha mente humana e os desafios pastorais daí decorrentes
A
ESTRANHA MENTE HUMANA E OS DESAFIOS PASTORAIS DAÍ DECORRENTES
Nicolau João Bakker, svd*
São Paulo SP
Síntese: O presente artigo ressalta a crescente
importância da neurociência para uma adequada análise pastoral. A neurociência
ainda se encontra em plena elaboração, mas já vão surgindo pistas mais
consensuais que abrem perspectivas significativas para uma abordagem pastoral
enriquecedora. Consideramos particularmente instigantes os aportes dos autores
Paul R. Ehrlich (biólogo/ecólogo) e Robert E. Ornstein (psicólogo da mente), em
New World, New Mind: Moving Towards
Conscious Evolution. Na primeira parte do artigo abordamos a evolução
histórica do cérebro humano e sua natural pré-disposição para diversas formas
de “ilusão”. Na segunda parte vemos como estas diferentes formas de ilusão podem
nos levar facilmente a uma ação pastoral equivocada.
Palavras-chave: Neurociência. Evolução cerebral.
Ilusões mentais. Mismatched mind (mente “desadaptada”). Ilusões
pastorais.
Abstract:
This article highlights the growing importance of neuroscience for a
deeper pastoral analysis . Neuroscience is still in the making, but some
consensual clues are emerging that open up the meaningful perspectives for an
enriching pastoral approach. The author considers promising contributions from
authors like Paul R. Ehrlich (biologist/ecologist) and Robert E. Ornstein
(psychologist of the mind) in New World,
New Mind: Moving Towards Conscious Evolution. In the first part of the
article the author discusses the historical evolution of the human brain and
its natural pre-disposition for various forms of “illusion”. In the second part
we see how these different forms of illusion can easily lead us to a wrong
pastoral approach.
Keywords:
Neuroscience. Brain evolution. Mental illusions. Mismatched mind.
Pastoral illusions.
Introdução:
Subir ao topo do Monte Everest desafiou
muita gente, mas poucas pessoas chegaram lá. O desconhecido, ou o muito
difícil, parece atrair e amedrontar ao mesmo tempo. Bons livros e bons filmes
de aventura sempre fazem sucesso, especialmente entre o público masculino.
Quando viajamos e chegamos, pela primeira vez, a uma terra que, desde os tempos
de criança, consideramos longínqua e estranha, somos tomados por um sentimento
de grande admiração. Ficamos “deslumbrados” com sua beleza, sua feição rara ou
única, sua excentricidade enfim. Há poucos anos vimos o filme “Xingu” sobre os
irmãos Villas-Bôas. Subimos com eles rios desconhecidos da selva amazônica.
Basta imaginar o momento: uma rústica canoa, deslizando suave e silenciosamente
sobre um rio estreito de águas, ora escuras ora mais claras, margeadas por uma
floresta densa e impenetrável, cheia de mistérios; no ar um silêncio ameaçador,
recortado vez por outra pelo grito assustador de um pássaro raro. Em cada curva
do rio uma nova e angustiante expectativa: uma flecha mortífera, .... ou uma
nova acolhida de paz. Nervos à flor da pele, a cada braçada do remo.
É exatamente assim que foi formada a
nossa mente, milhões de anos atrás. Vivemos nosso dia a dia imaginando nossa
mente como algo que, em todos os tempos, foi sempre igual. Um recurso
importantíssimo que nos eleva acima de qualquer outro ser vivo e que nos
capacita a julgar entre o certo e o errado, o belo e o feio, o bem e o mal. Desde
que a ciência antropológica se colocou como pergunta fundamental quem é mesmo
este ser humano de tão variadas tradições, o foco principal foi sempre sua
mente, sua cultura, seu saber local e sua visão de mundo. Apenas nas últimas
décadas, a antropologia se deu conta que o ser humano é muito mais do que
mente; é antes de tudo corpo. Na verdade é mente/corpo numa só unidade. Uma
unidade que chamamos “vida”. É comum também imaginar nossa mente como habitante
ilustre do cérebro. Nascer sem cérebro significaria não ser gente. Na verdade,
o cérebro não é nada mais que o processador final das incontáveis impressões sensoriais
colhidas pelo nosso sistema nervoso que se estende por ramificações sem fim, até
a última célula viva do nosso corpo. Um
corpo, como dissemos, formado há milhões, muitos milhões de anos atrás.
O primeiro diminuto cérebro se
formou, há mais de 450 milhões de anos, na linhagem, no “filo”, dos animais
“cordados”1. Eles nadavam nos oceanos antes de dar origem aos
anfíbios cujos descendentes – nossos parentes “próximos” - se estabeleceram definitivamente
na terra. A “mente” destes cordados já era esperta como a dos seus
antecessores, os primeiros animais aquáticos e, antes ainda, como a dos protistas
ou das primeiras bactérias2. Todos “sabiam” perfeitamente reagir ao
meio ambiente, à salinidade da água, ao excesso de cálcio no mar, à luz e ao
calor do sol, à alimentação escassa ou abundante. Muito antes de o primeiro
“sistema nervoso” se formar, a vida já era sábia. A vida surgiu das entranhas
da terra, ou da água, porque no interior da própria matéria - onde tudo é
inter-relacionado e inter-dependente -, a vida está presente3. Com
os olhos da fé podemos descobrir, em toda a matéria, as “pegadas” do Criador. Num
processo ininterrupto de complexidades crescentes4, a vida deu
origem – recentemente – a uma mente que, pela primeira vez, criou consciência
de si mesma, a mente humana. Com ela surgiu a advertência de Moisés: ou
escolhemos a bênção, ou a maldição (Dt 11, 26-28). Nossa mente, contudo, não é
uma máquina perfeita. Na verdade, ela é altamente “ilusória”. Captar este
aspecto é de vital importância para a caminhada pastoral da Igreja. Daí a razão
de ser deste artigo.
I As
“ilusões” da mente
O mundo em que vivemos possui uma
complexidade cada vez maior. Os próprios governos locais já não governam, pois
a realidade global se impõe. A confiança nos sistemas democráticos cresceu
substancialmente nos últimos séculos, mas hoje se percebe que, mesmo nas
democracias mais avançadas, o povo já não apita mais nada. Não tem domínio
suficiente sobre a intrincada engrenagem técnico-científica que está no
comando. Um dos grandes filósofos da atualidade, o alemão Hans Jonas, observa
que não é mais a mente humana que governa, mas a máquina. A tecno-“logia”
substitui a ideo-“logia”5. Neste mundo novo, a Igreja se tornou um
corpo estranho. Uma voz no deserto. No entanto, - é esta a nossa convicção -,
ela guarda consigo a sabedoria ancestral que é capaz de redimir a modernidade.
Para recuperar sua voz, a Igreja não deve, obstinadamente, opor-se a ela. Deve,
antes, entendê-la e ser sua luz. Para isto, um dos requisitos mais importantes
é entender melhor a própria mente humana. Em especial as suas “ilusões”:
A) A ilusão do “sapiens”
A mente que mais nos ilude é a que
está mais próxima de nós, isto é, a do “homo sapiens”. Este ser que se
autodenominou de “sábio” surgiu muito recentemente, há apenas uns 150.000 anos,
um nada diante dos 3.8 bilhões de anos em que a vida existe sobre a face da
Terra. Nosso cérebro, dizem os entendidos, consiste de quatro andares. O
primeiro e mais antigo andar, o “paleocéfalo”, é ainda do tempo dos répteis,
que substituíram os anfíbios 250 milhões de anos atrás. O segundo andar, o
“mesocéfalo”, herdamos dos primeiros mamíferos que descenderam dos “répteis de
tronco primitivo”, há 200 milhões de anos. O terceiro andar, o “neocéfalo”, foi
construído no tempo dos mamíferos superiores e seus descendentes, os primatas.
Estes últimos surgiram logo depois do grande cataclisma que deu fim aos
dinossauros, há 65 milhões de anos. O quarto e último andar, o cérebro da
grande “massa neocortical”, se desenvolveu no decorrer do processo de
“hominização” ou “conscientização”, iniciado com a “família dos hominídeos”, 4
milhões de anos atrás, e que, passando pelos diferentes tipos do “gênero homo”,
desembocou na atual espécie “sapiens”. A ciência insiste: não somos superiores
ou melhores, mas apenas diferentes. Somos, porém, os únicos que “têm
consciência” das diferenças. Aos olhos da fé, o raciocínio muda: se Deus nos
deu consciência, somos responsáveis. Podemos destruir a vida no planeta, ou
levá-la à plenitude. Mas eis o nosso grande tormento: as “ilusões” estão sempre
por perto.
Os antropólogos nos alertam: na
medida em que o processo da hominização foi avançando, o comportamento
inconsciente, genético, ou instintivo, ficou cada vez mais empurrado para trás,
dando lugar ao comportamento livre e consciente das diferentes culturas
humanas. Cada cultura humana estabelece seu próprio modo de pensar, falar e
agir, transmitido de pais para filhos, dos mais velhos aos mais novos, do
passado para o presente. Surge, desta forma, a assim denominada “brecha
antropológica”6: com a hominização, o imperativo do padrão genético
é substituído pelo imperativo da escolha. E não há nada na consciência humana
que garanta a escolha certa. Para nós, cristãos, a Revelação orienta, a razão
individual ajuda, a coletiva ainda mais. São Tomás de Aquino (†1274) fez desta
constatação um dos fundamentos de sua teologia, mas, no frigir dos ovos, cada
escolha representa uma opção entre muitas possíveis. A história da humanidade
comprova: o futuro da humanidade depende de um permanente corrigir das “ilusões”,
individuais e coletivas, da mente humana. A consciência humana, já dizia o
jesuíta Teilhard de Chardin (†1955), está em processo de aperfeiçoamento, em “evolução”.
Trata-se, afirma ele, de um processo de “amorização” ou de “cristificação”. Uma
visão, não da ciência, mas da fé.
B) A ilusão do mundo estável
Por mais que esta brecha
antropológica possa nos atormentar ou iludir, a moderna mente humana continua
sofrendo uma poderosa influência também dos demais andares do cérebro, em
especial do terceiro. E aí voltamos para a nossa rústica canoa que continua
deslizando sobre o estreito rio que serpenteia pela floresta tropical. Ou melhor,
voltamos nossa atenção para os canoeiros que estão “com os nervos à flor da
pele a cada braçada do remo”. Quem nos explica este quadro? Precisamos lembrar
que, muito antes de o neocórtex do sapiens começar a se desenvolver, a
“sociedade” dos primatas e hominídeos que nos antecederam era uma sociedade extremamente
estável. Cheia de perigos e imprevistos, mas sempre, por dezenas e dezenas de
milhões de anos, a mesma. Os animais primatas viviam em nichos ecológicos
sujeitos às mais diversas intempéries, mas seus sistemas nervosos não
precisavam adaptar-se, continuamente, a novos modos de pensar, falar e agir,
como ocorre com as permanentes mudanças culturais dos atuais seres humanos. O
primata que está dentro de nós é do tipo tradicional. Comporta-se sempre da
mesma forma. Vive na sua árvore preferida, ou vaga pela floresta que lhe é
familiar, alimentando-se como de costume, e fazendo amor de acordo com os
padrões estabelecidos. Mas, sempre muito alerta, como o canoeiro que, por um
instante, interrompe as braçadas do remo. Não se ouve mais o toque ocasional do
remo no casco da canoa. O silêncio é total. A qualquer momento o imprevisto
pode ocorrer. A “mente” é forjada pelo meio ambiente; um recurso criado pela
natureza para viver, conviver e sobreviver melhor. Em especial ao adentrar um
novo território é preciso ficar muito atento ao menor estalar de um graveto.
Pode ser uma nova presa .... ou a bocarra de um felino, .... ou então, a flecha
mortífera trazendo o fim.
C) A ilusão da “percepção seletiva”
Dizem que, por ocasião do Concílio
Vaticano II, os tradicionalistas eram maioria, e os progressistas minoria.
Ainda assim, de modo geral, os progressistas (temporariamente!) venceram porque
tinham maior clareza de sua proposta. Este fato histórico simboliza o que é
comum na história humana: ela não muda facilmente, mas muda. Ela não muda
facilmente porque nosso sistema nervoso está adaptado ao que é familiar, e não
ao que é novo. Nossa “percepção”, por exemplo, é extremamente seletiva. Não
percebemos o mundo como ele é na realidade, porque nosso sistema nervoso
evoluiu para detectar apenas uma pequena parte da realidade e para ignorar o
resto. Não fosse assim, ficaríamos neuróticos. Não ouvimos os sons que os
morcegos ouvem, não vemos o que a águia vê, nem nos damos conta dos cheiros que
orientam tão bem os cães da rua. Nós simplesmente não vemos o que não interessa
ver. Num grande shopping, a mulher vê o que o homem não vê, e a criança
descobre o que os pais não descobririam nem que passassem dez vezes pelo mesmo
corredor. Nossa sobrevivência exigiu uma “atenção seletiva”. O estalo do
graveto é muito mais importante do que os sons costumeiros da floresta. Em meio
a milhares de informações sensoriais disponíveis, o nosso sistema nervoso capta
apenas os “significados” familiares, não os desconhecidos. A recente mente
“sábia” tende até a fabricar significados quando na verdade não existem. Deitados
na relva víamos passar as nuvens do céu e descobríamos nelas as figuras mais
engraçadas. Passava o palco da nossa vida familiar .... e o dos nossos sonhos e
fantasias. Como nos tempos de criança, as fantasias nos acompanham sempre.
Quando adultos as transformamos em utopias. Homo sapiens, mente sábia. O
imaginário humano é multiforme. Por trás, contudo, está sempre o impulso
primário do primata que vive dentro de nós: queremos simplesmente viver,
conviver e sobreviver melhor.
D) A ilusão do momentâneo
Há um outro aspecto da mente que
merece ser destacado: apenas as “mudanças dramáticas” a impressionam. Milhares
de mortes comuns ao nosso redor, ou milhões num continente distante, não nos
atingem tanto quanto o vizinho que acaba de ser acidentado em frente à nossa
casa. Apenas as tragédias nos põem em ação. O sistema nervoso do primata dentro
de nós foi adaptado para o local e o momentâneo, não para o que acontece do
outro lado, nem para o que pode acontecer depois. A primeira impressão que
colhemos de uma pessoa impressiona mais do que as posteriores. Uma “nova”
notícia de TV prende nossa atenção, não as de sempre. Por mais importantes que sejam,
as impressões que chegam aos nossos sentidos todos os dias da mesma forma nos
deixam indiferentes. Elas não possuíam significado algum quando estava em
construção o terceiro andar do nosso cérebro. A sombra repentina na entrada da
caverna sim. Mas, o que antes era solução, hoje representa perigo. Hoje, numa
perspectiva pastoral, justamente os efeitos imperceptíveis são os mais significativos,
como iremos ver. Os muito afamados biólogos, ecologistas e psicólogos da mente,
Paul R. Ehrlich e Robert Ornstein, cujo livro “New World, New Mind” (Novo
Mundo, Nova Mente) parcialmente nos inspira neste artigo, costumam citar a
historinha do “cozimento da rã”7. Colocada numa chaleira sobre
brasas acesas, o sistema nervoso da rã não perceberá o lento aquecer da água e
irá morrer sem se dar conta. O homo sapiens guarda consigo esta estranha
herança. Se seu meio ambiente familiar é uma caatinga, uma favela ou um lixão,
ele se conforma e sobrevive sem reclamar. A mais leve ofensa pessoal e
momentânea, porém, o coloca imediatamente de prontidão. Se o autor insistir, saia
de perto.
E) A ilusão tribal
Há mais: nossa mente se formou
“desadaptada” à vida infernal da modernidade. Ela foi feita para se dar bem em
pequenos agrupamentos humanos, não em multidões. Rejeitamos pessoas estranhas
ao nosso grupo, à nossa cor, ou ao nosso jeito. Não votamos em pessoas que
podem conduzir-nos ao desconhecido. No decorrer de muitos milhões de anos, os
primatas sobreviviam em pequenos bandos. Por alguns milhões de anos, os
hominídeos, caçadores e coletores, conviviam em grupos reduzidos, defendendo
seus territórios. Quem está habituado a viver numa metrópole não percebe mais o
quanto nos é estranha esta realidade. Apenas há 10.000 anos surgiram as
primeiras e pequenas “civilizações” humanas em volta do mediterrâneo. Milhões
de anos foram necessários para juntar o primeiro bilhão de pessoas. De um para
sete bilhões levou apenas um século e meio. Para os próximos dois bilhões
bastarão algumas décadas. O homo sapiens criou um mundo que ele mesmo é incapaz
de entender. Sua mente, sua “mismatched mind” (mente “desadaptada”) diria
Ornstein, simplesmente não está a altura dos novos desafios. As mutações
genéticas levam milhões de anos, as “mutações” culturais apenas meses. Por mais
que nos adaptemos à modernidade, ela não nos liberta da nossa alma tribal.
Podemos, vez por outra, fazer um discurso magnânimo sobre o futuro da
humanidade, mas o que, verdadeiramente, nos tira do sofá não são as causas
humanitárias, mas o sucesso do nosso time de futebol, o asfalto da nossa rua,
ou (quando muito) o evento especial da nossa comunidade. Na maioria dos casos bastam
os simples encontros de amigos. O que importa é o pequeno grupo. O mundo se
dane.
II As
“ilusões” na ação pastoral da Igreja
Tal a mente, tal o mundo. Esse o ponto
de vista tradicional. Também podemos dizer: tal o mundo, tal a mente. Existe
uma íntima inter-relação entre ambos. Um dos mais destacados antropólogos
modernos, o francês Edgar Morin, não se cansa de dizer: mente e mundo se
“co-produzem”. No decorrer do processo da hominização, a mente do sapiens não
nasceu antes do mundo e da cultura do sapiens. Nem existia o mundo do sapiens
antes da sua mente. Ambos se fizeram juntos, em relação mútua, ao longo de um
processo que levou milhões de anos. A tradição bíblica, muito influenciada pela
filosofia e cultura gregas, deram à Igreja uma outra concepção de mente. Uma
mente acima do mundo. Imaginando-se possuidora, sem mais nem menos, de verdades
eternas, a Igreja até se apresentou ao mundo como única guardiã exclusiva de
todas as mentes sadias. Foi uma ilusão. O Vat.II teve que penitenciar-se dela.
Algo parecido ocorreu no tempo de Jesus. A cultura religiosa do judaísmo tinha
se afastado um bocado da inspiração original do Código da Aliança. Esta foi
retomada por Jesus, não sem pagar caro por isso. A ação pastoral da Igreja está
sujeita às mesmas ilusões. Uma coisa é nossa “mística” original (de Jesus),
outra a sua expressão cultural temporária. Vejamos:
A) A ilusão da renovação apressada
Muito fiel ao espírito da Cúria Romana,
o cardeal Siri, por ocasião do Concílio Vat. II, dizia que a Igreja levaria
cinqüenta anos para consertar o que o papa João XXIII estragou em cinco. O
fato, muito comentado, criou ares de anedota. Agora que os cinqüenta anos se
passaram, a anedota, ao que parece, criou ares de profecia. As labaredas do
fogo renovador são bem mais modestas. Muitos incendiários se tornaram
bombeiros. A tradição eclesial retoma força. Os progressistas prendem o fôlego
e se perguntam: o que vai dar desta nova conjuntura? Um rufar de tambores de
guerra parece vir do horizonte. Espiritualmente e pastoralmente, qual a postura
mais conveniente? Julgar o passado sempre foi bem mais fácil do que julgar o
presente, mas, o que, com certeza, não devemos esquecer, é que, como dissemos
acima, o animal que vive dentro de nós é do tipo tradicional. Esquecer isso
leva a muita ilusão pastoral.
Religião talvez seja a mais antiga e mais
profunda raiz do ser humano. Muito antes de as primeiras religiões se
institucionalizarem com o advento das primeiras civilizações, os primitivos
agrupamentos humanos dos caçadores e coletores já eram religiosos. Os mais
antigos achados arqueológicos o comprovam. As gravuras e desenhos nas cavernas
também. Com o despertar da consciência humana, o homo sapiens se descobriu
inteiramente dependente de forças sobre as quais não tinha nenhum controle. Nem
havia como explicá-las. Sua natural e indomável ânsia biológica para viver,
conviver e sobreviver da melhor forma possível – em meio às muitas e
inevitáveis desgraças e desventuras de sua própria contingência histórica e
biológica – o levaram, espontaneamente, a obter não apenas consolo, mas também
novas energias e um novo “sentido” a partir da crença no além. Há milhões de
anos, o ser humano, muito mais do que um ser racional, é um ser místico. Um ser
aberto ao que lhe transcende. Um devoto. Nós, cristãos, nos sentimos
privilegiados porque, através de Jesus, e da Revelação, tivemos mais fácil
acesso às graças divinas, mas não devemos alimentar um “mito de superioridade”,
como nos aconselhou o teólogo oriental (Sri Lanka), Tissa Balasuriya (†2013).
Deus continua um mistério, muito acima de qualquer conhecimento humano. Todos
os seres humanos, até os mais descrentes, sabem que o sentido pleno desta vida
não se encontra aqui na terra. Está em algum “campo escondido” (Mt 13, 44), em
algum lugar mais adiante, no “além”. Todas as religiões estão em busca deste
além. Muitas delas o chamam de “Deus” ou de “Divindade”. Mas, as crenças se
consolidaram sempre no decorrer de milênios. Alguém ainda acredita que este ser
humano pode mudar sua crença da noite para o dia?
B) A ilusão do discurso racional
Preservar a mística e a
religiosidade do povo é uma preocupação vital para qualquer projeto pastoral. Porém,
a modernidade dos últimos séculos se caracteriza por um processo avassalador de
racionalização que, - de forma equivocada -, se opôs à mística. Em todas as
religiões existem inúmeras expressões religiosas que, de fato, são apenas resquícios
do passado; manifestações culturais transitórias ou simplesmente mágicas; ritos
do passado que já não oferecem mais apoio real para quem busca um sentido para
a vida presente. Nesta perspectiva, o processo de racionalização é mais do que
bem-vindo; é necessário. Livra o ser humano de uma bagagem desnecessária. Mas,
já diziam os antigos: com a água do banho não se deve jogar também a criança
para fora da janela. Nenhuma razão pode desfazer a razão da mística. Esta não
vai contra a razão humana, ela vai além dela. Ela oferece ao ser humano uma
motivação que não se sujeita à racionalização. Ela o conduz para além de si
mesmo, e para além da fragilidade e contingências humanas, em busca do que está
no horizonte. Algo misterioso que o impele a ir em busca do outro ou da outra. Em
busca da alteridade, com respeito e compaixão, com um amor desinteressado
enfim. Sempre de novo é preciso lembrar que esta mística é tão antiga quanto o
próprio ser humano. Por isso não se abre facilmente à renovação. A Igreja
precisa de renovação. Os tempos são outros. A pastoral precisa renovar-se, sem
dúvida. Vivemos num “outro mundo”. A modernidade busca, ansiosamente, por um
novo “sentido”. Mas não basta oferecer apenas um discurso. Precisamos oferecer
uma nova mística. Muita ação pastoral dá com os burros n´água porque pretende
motivar as pessoas apenas com o discurso racional. É água sobre pedra.
C) A ilusão do retrovisor
Ocasionalmente observamos os programas
televisivos da Igreja Católica. Uma Igreja presente na mídia, sem dúvida, é um
mecanismo pastoral poderoso. As iniciativas merecem mais do que palmas.
Infelizmente, porém, todos os programas que temos visto apelam apenas ao
passado. Ainda assim, cumprem uma tarefa fundamental: alimentam a mística
popular. Atraem multidões exatamente por isso. Na perspectiva do respeito aos
direitos humanos diríamos: em primeiro lugar, nós da Igreja, devemos respeitar
o direito do povo a uma mística. Devemos oferecer um alimento espiritual que a
sustente e que satisfaz. Mas não podemos esquecer que toda mística se reveste
de uma determinada expressão cultural que varia de povo para povo, de religião
para religião, e também de época para época. Como a religiosidade de um povo
tem sempre uma raiz milenar, é uma ilusão – já o vimos – esperar que ela mude
substancialmente num curto lapso de tempo. Cem anos é muito pouco. No entanto,
também é fato incontestável que o mundo ou a sociedade em que vivemos hoje muda
mais profundamente em cinqüenta anos do que nos mil anteriores. A tradição
judaico-cristã tem quatro mil anos, e se construiu sobre um substrato religioso
de quatro milhões de anos. O desafio pastoral é respeitar nossa tradição
mística, sem perder de vista o mundo inteiramente diferente que está a nossa
frente. Olhar apenas pelo retrovisor dará em acidente na certa. Não arquiteta,
respeitosamente, a mística da qual o povo sentirá falta no futuro. Muitos já
sentem esta falta hoje. Olhemos para o que está ocorrendo na Europa com o
processo de secularização. Em apenas cinqüenta anos, igrejas superlotadas se
transformaram em igrejas vazias. Todas à venda. A população continua buscando
inspiração, “sentido”, mas não o encontra mais na Igreja tradicional. Não
surgiu em tempo uma mística alternativa para um mundo inteiramente renovado. O
ideal seria que as televisões católicas abrissem espaço para liturgias
alternativas nesta linha. Os bispos das áreas metropolitanas deveriam
incentivá-las. É grande o número de pessoas que estariam prontas para
organizá-las. Hoje estas pessoas se sentem um tanto quanto abandonadas. Na
década de 1990 pudemos participar de um encontro nacional de ONG´s promovido
pelo Banco Mundial. Aproximadamente duzentas lideranças das mais diversas
organizações – sociais, ecológicas, educacionais, etc. – da sociedade civil
estavam presentes. A certa altura do evento perguntamos quantos dos/as
presentes tiveram sua inspiração original na Igreja. Quase a metade levantou a
mão. Sem dúvida uma bela safra das CEB´s. Hoje, as lideranças do “outro mundo
possível”, quando se fala da Igreja, dão de ombros. Sinal do que está por vir.
O processo de secularização é irrefreável na medida em que se assentar a
mentalidade urbana, aliada a uma escolarização generalizada. O momento para
agir, pastoralmente, é agora.
D) A “ilusão da chaleira”
Coitada da rã. Sem se dar conta
acabou cozida, lembram? Pois é exatamente isso que acontece com a pastoral
quando ela não percebe em tempo as mudanças do mundo a sua volta. Isso é muito
fácil de acontecer, uma vez que nosso sistema nervoso, que nem o da rã, foi
feito para um mundo estável. O linguajar e a liturgia da Igreja, as fórmulas
doutrinárias, os códigos morais e canônicos, tudo é resultado de séculos de tradição.
Tudo respira o tempo de uma era cristã de poucos questionamentos. E de uma sociedade
que mudava muito lentamente. Apenas no Conc. Vat. II deu-se início ao “aggiornamento”.
E isso em resposta a um mundo já em acelerado processo de mudança. O papa João
XXIII abriu o Concílio dizendo que “uma coisa é a doutrina, outra sua
formulação”. Os “sinais do tempo presente” adquiriram um novo peso na
hermenêutica teológica. Em vez de ficar presa ao passado, a Igreja se voltou
para o presente e encarou o futuro. Porém, já o dissemos, nossa genética não
mudou. Sentimo-nos muito bem quando tudo fica como está. O povo costuma enfrentar
a doença do momento com o remédio do passado. No mundo como um todo estamos no
auge de uma explosão populacional jamais vista e a Igreja-Instituição, tranqüilamente,
continua defendendo os mesmos princípios morais familiares de quando as
famílias tinham, em média, dez filhos por casal. Anticoncepcionais ou camisinha
nunca! O planeta Terra, com extrema rapidez, se aproxima de um abismo colossal.
Caberia à Igreja estar na linha de frente para salvar a Criação que – assim
acreditamos - recebemos das mãos de Deus. Mas não está. A Instituição como tal,
neste item, não exerce voz profética. Sua Doutrina Social passa ao largo da
verdadeira causa, localizada no processo produtivo e na ilusão do consumo
desenfreado. Nossas pastorais são quase todas intra-eclesiais. Não percebemos o
lento aquecer da água. Vivemos a “ilusão da chaleira”.
Conclusão
Poderíamos apontar para outras ilusões
pastorais, mas bastam as que apontamos. O objetivo deste artigo é apenas
alertar para a necessidade de a Igreja, na sua ação pastoral, dar maior atenção
a uma realidade um tanto desprestigiada, a da própria mente. Os
neurocientistas, nas últimas décadas, têm ressaltado aspectos surpreendentes, dos
quais o mais importante é a inaptidão da mente humana ao mundo moderno. Por
isso, mais do que em qualquer outra época, a mente deve ser treinada e educada,
não domesticada, como tão bem intuía Paulo Freire, mas “conscientizada”. O
processo da “hominização” ainda não terminou. É até possível que esteja apenas em
seu início. Juntamente com a escola, a Igreja tem, neste campo, um papel
preponderante. A mente humana não foi feita para mudanças rápidas, ela se
formou, como vimos, quando o ler e escrever nem sequer era imaginado. Mas a
experiência já demonstrou que, uma vez conscientizado, o ser humano aceita
mudar seu comportamento, ainda que lhe seja difícil.
Um novo mundo exige uma nova
consciência. A pastoral da Igreja Católica ainda investe muito no mundo das
crianças. Muito mais importante é investir no mundo dos jovens e dos adultos.
As crianças seguirão seus passos, como é da natureza. Por mais que seja preciso
respeitar o ritmo próprio de conscientização da religiosidade popular, não
basta manter simplesmente as tradições. Muitas delas, como dissemos,
representam apenas uma mera pertença institucional, uma bagagem cultural que em
nada ajuda para alimentar a mística original do cristianismo. A mente humana
tende a sacralizar o passado, mas o passado se foi. O essencial agora é ensinar
o que é essencial em todas as religiões: nossa igualdade fundamental, a
fraternidade universal, nossa responsabilidade comum frente ao futuro, e nosso
cuidado respeitoso com o planeta que nos acolhe. Tudo isso exige priorizar o
que o ser humano tem de mais profundo e mais precioso dentro de si: sua
mística, isto é, sua abertura ao que lhe transcende.
1)
MARGULIS, LYNN. Symbiotic
Planet: a new view of evolution, New York: Basic Books, 1988.
2)
MARGULIS,
LYNN; SAGAN DORION. Microcosmos. São Paulo: Cultrix,
2002.
3)
MOROWITZ, HAROLD J. Beginnings of cellular life. New Haven; London: Yale University
Press, 1992.
4)
PRIGOGINE, ILYA; STENGERS, ISABELLE. Order out of chaos. New York: Bantam
Books, 1984.
5) JONAS, HANS. O princípio da vida. Petrópolis: Vozes, 2004.
6) MORIN, EDGAR. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
7)
ORNSTEIR R. E..; EHRLICH P. R. New world, new mind: a new view of conscious evolution. Cambridge,
ISHK, 1989.
Endereço do autor: R. Verbo
Divino, 993
Casa José Freinademetz
04719-001Chácara Stº Antonio - São Paulo SP.
Email: nijlbakker@hotmail.com
*Missionário do Verbo Divino,
sacerdote, formado em teologia, filosofia e ciências sociais. Atuou sempre na
pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo atuou no Centro de Direitos
Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o programa de
formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou
Teologia Pastoral no Itesp (Instituto de Teologia / SP). Durante oito anos foi
auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra SP. Por
muitos anos representou a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) no
programa estadual de Proteção a Testemunhas (Provita / SP). Ultimamente atuou
na Paróquia Santo Arnaldo Janssen, Diadema SP. Acesso aos artigos do autor em
<artigospadrenicolausvd.blogspot.com>