terça-feira, 5 de junho de 2018

REB: outubro 2017, A violência: bênção ou maldição?


A VIOLÊNCIA: BÊNÇÃO OU MALDIÇÃO?
Pelo Pe. Nicolau João Bakker*
São Paulo
Síntese: O autor inicia afirmando que a violência, independentemente da vontade humana, faz parte da estrutura cósmica e, também, da estrutura bioquímica dos seres vivos, entre os quais os humanos. A vida se caracteriza e se sustenta pelo ininterrupto - e aos olhos humanos “violento” - processo do morrer e reviver, em direção a sistemas de maior complexidade. Abordando, em seguida, o fenômeno da consciência humana, e a inerente possibilidade da violência consciente e premeditada, o autor percebe três desafios a serem enfrentados: 1) Dar conta da “naturalidade” de muitas formas de violência; 2) Opor a “espiritualidade da paz” à violência consciente; 3) Combater a pior de todas as violências: a ”violência sistêmica”. Finalmente são feitas algumas considerações pastorais que ressaltam a necessidade de retomar, com mais força, a tradição profética da Igreja Latino-americana, tendo em vista o combate à violência sistêmica.
Palavras-chave: Violência “natural”. Violência consciente. Violência sistêmica. Igreja Profética.
Abstract: The author initially affirms that violence, independently of human will, is part of the cosmic and the biochemical structure of all living beings, including humans. Life is characterized and sustained by non-interrupted – and in the human view “violent” – process of dying and reliving, leading towards higher complexity. Sequentially, referring to the phenomenon of human conscience and the inherent possibility of conscious and premeditated violence, the author observes three goals to be faced: 1) To be aware of the “naturalism” of many forms of violence; 2) To contest a “spirituality of peace” in relation to conscious violence; 3) To counteract the worst of all forms of violence: that is, “systemic violence”. Finally, the author makes some pastoral considerations by emphasizing the need to recover more firmly the prophetic tradition of the Latin-American Church, in view of counteracting systemic violence.
Keywords: “Natural” violence. Conscious violence. Systemic violence. Prophetic Church.   

Introdução
            Nós, seres humanos, somos extremamente “pré-determinados” pelo nosso espaço e pelo nosso tempo. Julgamos o nosso mundo a partir do local onde estamos inseridos, ou a partir dos espaços onde estivemos inseridos e que ainda permanecem na nossa memória. Pela comunicação humana, falada ou escrita, podemos inteirar-nos das experiências vividas por outras pessoas, em outros lugares e em outros tempos, mas, ainda assim, aquelas experiências “alheias” são acolhidas e “traduzidas” pelo nosso cérebro sempre de forma “interpretativa”. Simplesmente não temos acesso direto e objetivo ao mundo que nos envolve. Em sua importante obra A árvore do conhecimento, os neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela demonstraram que todo o “acoplamento” ao nosso exterior passa pelo sistema nervoso que age como um “circuito fechado”.1 Vemos o nosso mundo, portanto, sempre de forma subjetiva, e cada um/a de nós o vê a seu próprio modo.
            No decorrer da Modernidade, os cientistas tentaram de todas as formas chegar à “objetividade”. Foram efetuadas pesquisas em todos os campos do saber, e inúmeras “verdades objetivas” foram proclamadas no decorrer dos séculos. De fato, com base nas descobertas científicas realizadas, construiu-se o mundo tecno-científico que está aí e que tanto nos fascina. Desde o século passado, porém, a euforia científica sofreu sérios reveses. A física quântica veio demonstrar que a realidade física é muito mais “enigmática” do que se pensava. Em sua dimensão mais íntima, ela é matéria e, ao mesmo tempo, uma onda de infinitas possibilidades. O próprio ato da observação faz a onda “colapsar” para, então, por assim dizer, “mostrar a cara”. Em muitos sentidos, o mundo que temos é tal como o concebemos. Mas, quantos outros mundos poderíamos ter concebido e, mais, ter feito acontecer!? Há algo de misterioso em tudo isso, e as grandes religiões mundiais estão aí para desvendar o mistério e oferecer pistas de ação. Em nível mundial, uma nova (e ao mesmo tempo muito antiga) sensibilidade se faz presente. Filósofos e cientistas discutem o tema e alguns, como o especialista em alta energia, Fritjof Capra, em O tão da física, estabelecem um claro nexo entre a física moderna e a espiritualidade, especialmente a oriental.2
            Neste esforço de olhar para o nosso mundo, e interpretá-lo, um dos grandes desafios é dar conta do problema da violência. De onde ela vem, e porque ela existe? Se ela é inevitável, qual a melhor maneira para enfrentá-la, e qual a luz que nos vem da mensagem cristã? Refletir sobre isso é o objetivo deste artigo.

1.      A incontornável presença da “violência” cósmica
            Quando falamos em “violência” cósmica, deveríamos pensá-la sem a presença do ser humano, ou dos seres vivos. A própria palavra está tão intimamente ligada à nossa sensibilidade humana que, sem esta, ela perde simplesmente sua razão de existir. Apenas seres humanos, ou vivos, se sentem “violados”. Fora disso, no grande cosmos, as coisas apenas são o que são. Mas como somos obrigados a falar em linguagem humana, o uso da palavra violência é inevitável. Antropomorficamente falando, não há nada mais violento do que o próprio cosmos. Desde a violência total do Big Bang, bilhões de galáxias e estrelas colidem entre si, reconfigurando permanentemente o universo em expansão. Não existem mortes mais violentas, nem nascimentos mais
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1.       Maturana, Humberto; Varela, Francisco. A árvore do conhecimento. São Paulo: Psy II, 1995.
2.       Capra, Fritjof. O tão da física. São Paulo: Cultrix, 1983.
surpreendentes. Nosso sistema solar existe porque, em algum lugar perdido do espaço, a violenta explosão de uma supernova possibilitou a sua existência. Tudo no universo está em permanente movimento e transformação, governado pelas leis físicas básicas da força nuclear fraca e forte, da força eletromagnética e da gravitacional. Querendo ou não, e sem nos dar conta, fazemos parte desta grande engrenagem cósmica. Habitamos o planeta Terra que gira em torno de seu próprio eixo a uma velocidade de 1600 km por hora. Giramos em torno do sol a 108.000 km por hora. Juntamente com nosso sistema solar giramos em torno do coração da Via Láctea a 830.000 km por hora. A Via Láctea vai ao encontro do aglomerado de Virgem a 900.000 km por hora, e todo este conjunto viaja para dentro do espaço a 2 milhões e 200.000 km por hora. Não fomos consultados se queremos embarcar, nem sabemos do nosso destino. Sabemos apenas que, daqui a aproximadamente um bilhão de anos, a energia que sustenta o sistema solar entrará na fase do seu colapso final. Tirando os “vácuos” de todos os átomos do nosso corpo sobra apenas um pozinho de matéria, invisível a olho nu. Este sobreviverá à grande explosão, e então, a dança cósmica, conosco, continuará... até quando Deus quiser.

2.      A “violência” bioquímica: só há vida onde há morte
            Sentimos a morte, seja a nossa ou a dos outros, como uma grande violência, algo que sempre nos assusta e do qual queremos ficar o mais distante possível. Pudéssemos enclausurar o nosso sentimento e guardá-lo num recipiente à parte, veríamos tudo com olhos diferentes. O espetáculo da vida depende da morte e só pode prosperar onde esta está presente. Antigos filósofos, como Heráclito, já percebiam que, em toda a realidade que nos envolve, tudo está sujeito a um eterno fluir: “panta rei”. Também o pensamento oriental, como claramente visível na espiritualidade budista, se aproxima muito desta visão: tudo passa, tudo se transforma, e só é feliz quem sabe aceitar as coisas como elas são. Trata-se de um contrassenso falar em “violência” biológica. A vida é feita do interminável processo do morrer e renascer. Assim como no mundo físico, pela força das leis naturais, tudo está interligado e tudo se transforma, assim também, no mundo biológico, tudo está interconectado e tudo se transforma. O movimento global, porém, não vai na direção da uniformidade, mas na da unidade diferenciada. Existem as forças de atração e as de rejeição. Existem também as “bifurcações evolutivas” imprevisíveis, além das influências multifacetadas do meio ambiente, e, desta forma, a diversidade se estabelece. Mas não há vida sem morte.
            A origem da vida ainda é muito discutida, mas há consensos. No planeta Terra, os elementos cósmicos em transformação, pelas mesmas forças de atração e rejeição da natureza, possibilitaram o surgimentos de pequenos e variados compostos bioquímicos, os quais, por sua vez, acabaram formando “ciclos químicos” auto-sustentáveis e auto-replicantes. Em seu instigante livro Ordem a partir do caos, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers demonstraram que estes pequenos sistemas químicos, na verdade – como já observou o papa Francisco na Laudato Si -, são “sistemas abertos”, isto é, sistemas aptos a absorver mais energia e mais matéria provenientes do meio ambiente e, assim, manter-se e, até, “evoluir”.3 O que chamamos de “violência”, aqui, na raiz, já está presente:  alguns elementos químicos são “atraídos”, outros “rejeitados”. Quando, há aproximadamente 3,8 bilhões de anos, os primeiros “superciclos químicos”, com base em pequenos aminoácidos e nucleotídeos, conseguiram “auto-replicar-se”, nasceu a primeira célula viva. A matéria, apenas aparentemente “morta”, deu à luz a “vida”. Se a matéria comum está incontornável e ininterruptamente sujeita ao processo da “entropia” e, portanto, perder energia, a vida se caracteriza pelo processo contrário: acumula energia, podendo crescer em sua complexidade e, desta forma, evoluir. Mas não sem um permanente “morrer”. A replicação da célula, a “autopoiese” – há algo “poético” no processo da vida - não é possível sem a consumação (ou “morte”) da célula anterior (final de frase eliminada). Evoluir para um ser vivo de maior complexidade não é possível sem o desaparecimento (“morte”) do ser vivo anteriormente existente. A violência do morrer, que o ser humano sente como “maldição”, na verdade é pura “bênção”. As células bioquímicas, ao se desgastarem, deixam outras no lugar. Seres vivos, ao se desgastarem, também deixam outros no lugar.
            As primeiras células vivas se multiplicaram em grande número, formando o “reino” das bactérias. Algumas com a espantosa capacidade de se multiplicarem a cada vinte minutos. Sem sexo algum, usando apenas o mecanismo da “transferência direta” dos genes, evoluíram, diversificaram-se e criaram estratégias diferenciadas para enfrentar a violência do meio ambiente cósmico em permanente transformação. É importante perceber que o processo da vida, até aí, ainda não tem nada de refletido, racional ou consciente. “A linguagem da vida não é a matemática, mas a bioquímica”, repetirá sempre a grande especialista, Lynn Margulis.4 O processo é, em muitos sentidos, “biofágico”, e, ao olhar humano, extremamente violento. As bactérias se alimentam umas das outras. Na sua interação com o meio ambiente chegam a destruí-lo, substituindo-o por outro. Quando, há 2,5 bilhões de anos, as bactérias fotossintetizantes, carentes do escasso hidrogênio do ar, desenvolveram a habilidade de captar o hidrogênio da água, liberando o oxigênio na atmosfera, um episódio extremamente violento ocorreu. Com o oxigênio subindo de 0,0001% para os atuais 21%, quase todas as formas de vida do planeta foram envenenadas e exterminadas, e um novo processo evolutivo se iniciou. Pelo mecanismo da “simbiogênese” – bactérias com habilidades diferentes, ao invés de se alimentarem umas das outras, “fundem-se” umas às outras –, a vida deu origem a células muito mais complexas, dotadas de cloroplastos e mitocôndrias, entre outros. Surgiu assim o novo “reino” dos protistas. Quando os sistemas unicelulares evoluíram para os sistemas multicelulares, dois novos “reinos” se estabelecem: os cloroplastos fotossintéticos possibilitam o surgimento do reino das plantas, e as mitocôndrias aeróbicas dão lugar ao reino dos animais. A linguagem bioquímica da vida, no entanto, permanece a mesma: todas as células se renovam permanentemente, em íntima simbiose com o meio ambiente. Do ar captam o oxigênio e a indispensável energia solar, e da terra o indispensável alimento (inclusive com os
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3.       Prigogine, I; Stengers, I. Order out of chaos. New York: Bantam Books, 1984.
4.       Margulis, L. Symbiotic Planet: a new kind of evolution. New York: Basic Books, 1988.

diferentes sistemas se comendo uns aos outros).

3.      A violência em perspectiva humana e seus desafios
            O ser humano, mesmo consciente, nunca deixou de ser filho ou filha da terra que o gerou, isto é, continua sendo, também, um ser bioquímico. Quando, dentro do reino dos animais, os primeiros animais “cordados” – ainda no fundo dos oceanos - evoluíram para os anfíbios e estes para os répteis, um primitivo “sistema nervoso” se desenvolveu. Os neurocientistas do nosso tempo falam das quatro “camadas” do nosso cérebro atual. A camada mais antiga, o “paleocéfalo”, ainda bem visível, é do tempo dos repteis. Quando os repteis evoluíram para os mamíferos, uma nova camada, a do “mesocéfalo”, foi acrescentada. E quando, há 66 milhões de anos, um novo cataclismo cósmico pôs fim aos dinossauros, e da classe dos pequenos mamíferos veio evoluindo a nova ordem dos primatas, uma terceira camada, a do “neocéfalo”, veio fazer companhia. Este cérebro de primata ainda exerce uma poderosa influência sobre nosso modo de pensar e nosso modo de agir e, na realidade, - como nos dizem os especialistas - nos mantém “desadaptados” para absorver as muitas e rápidas transformações “culturais” que começaram a ocorrer quando, há apenas uns quatro milhões de anos, se desenvolveu a quarta e última camada do cérebro, a do “córtex cerebral”, própria da família dos “hominídeos”. Foi esta família que gerou o gênero homo e, depois, a espécie “sapiens”.5
3.1 Desafio nº 1: Perceber e dar conta da “naturalidade” da violência
             O cosmos é violento por natureza. É feito de raios e trovões e não há como escapar desta violência. Também a vida bioquímica é violenta por natureza. Para se sustentar precisa, de alguma forma, avançar sobre o meio ambiente, e, por mais que se esforce, não escapa do irrefreável processo de degeneração, doença e morte. Desde que o processo evolutivo nos brindou com a “consciência”, transformando animais em seres humanos, nós nos rebelamos contra esta violência cósmica e bioquímica porque ela nos causa “sofrimento”. Não apenas a nós, mas, em sentido metafórico, também aos animais e – por que não? – às plantas. Não existe “limite” para este tipo de sofrimento. Pense, por exemplo, no inimaginável sofrimento causado pelo provável meteorito que, há 245 milhões de anos, pôs fim a mais de 50% de todas as formas vivas do planeta. Nada impede de isto acontecer mais uma vez, ou, eventualmente, algo pior. Nós, como cristãos/ãs, nos perguntamos: porque Deus fez o mundo deste jeito? Também os ateus se perguntam: porque o cosmos está aí, deste jeito? O mais provável é que a pergunta nunca terá resposta. Precisaríamos ser Deus para respondê-la. Apenas a consciência humana fez com que a pergunta fosse feita. Por que surgiram, nesta pequenina Terra, animais conscientes? Não é uma pergunta boba. Um dos atuais mais afamados geneticistas – e um dos mais conhecidos “ateus militantes” –, Richard Dawkins, observou que, para ele, “a consciência humana é o mistério mais profundo da biologia moderna”.6  
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5.       Ornstein, R; Ehrlich P. New World, New Mind. Cambridge: ISHL, 1989.
6.       Dawkins, R. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 126-127.
            A pergunta fica, portanto, no ar. Cabe às religiões oferecer meios de enfrentamento. Todas as religiões lidam com o problema do sofrimento, inclusive com o sofrimento causado pela violência cósmica ou bioquímica. O que as religiões nos dizem? A mim, que sou pastoralista, e não cientista da religião, me parece que, com relação, especificamente, à violência cósmica ou bioquímica, e seu consequente sofrimento, uma das melhores respostas vem do budismo. Buda, diz a história, meditou longamente debaixo da árvore, dias a fio, até se sentir “iluminado”. Viu que o ser humano é infinitamente pequeno e incapaz de fazer frente aos ritmos descompassados e irreverentes do grande cosmos, ou de estancar o permanente aproximar-se da morte biológica. Viu também que o maior sofrimento não vem da violência em si, mas do incansável “desejo” do ser humano de ficar livre da ameaça e livre do sofrimento. Desejo jamais atendido, pois a violência cósmica ou bioquímica é implacável. A única solução é aceitar, interiormente, que as coisas são como são e que “devem” ser como são. Eliminando do coração e da mente o desejo, a violência cósmica ou bioquímica acontece da mesma forma, mas ela não mais aprisiona, angustia ou desespera o ser humano. Este, agora, passa a ser parte da grande evolução cósmica, ou da sempre surpreendente sinfonia da Vida, em perfeita harmonia com o que der e vier.
3.2 Desafio 2: Opor a “espiritualidade da paz” à violência consciente
            Apenas o ser humano pode, consciente e livremente, rebelar-se contra o curso natural das leis cósmicas e bioquímicas e, assim, aumentar ainda mais a “violência” existente. Violências desnecessárias que não fazem sentido. Por puro egoísmo ou ganância, um agricultor pode facilmente poluir a água que passa em seu sítio, ou em sua fazenda, e, mesmo advertido e consciente, continuar a fazê-lo. Ferindo, sem necessidade, a lei cósmica causa enorme dano (= violência) aos moradores rio abaixo. Pelo mesmo egoísmo ou ganância, governos pouco escrupulosos, mesmo quando advertidos por um organismo internacional de grande prestígio científico, podem, consciente e deliberadamente, continuar dando incentivo a indústrias altamente poluidoras por emissões de carbono. Uma violência consciente irresponsável e desnecessária que pode, a longo prazo, ocasionar o extermínio da própria vida no planeta. São inúmeras também as violências desnecessárias em perspectiva bioquímica. Sistemas vivos, sejam humanos ou não, são extremamente delicados. Qualquer transtorno bioquímico ou, nos humanos, também psíquico, traz alguma forma de dor, sofrimento, doença ou morte. Como é fácil o ser humano, consciente e deliberadamente, aumentar, desnecessariamente, a carga de violência que já é inerente à existência! Violência individual e social, não apenas por fumo, álcool, drogas ou alimentação inadequada, mas também pela liberação descontrolada do ódio, da difamação, e da inveja. Em última análise, todos os pecados são formas de violência. Na linguagem de Santo Tomás de Aquino (†1274) são atentados deliberados contra a “lei natural” com a qual o Criador contemplou o Cosmos e a Vida.
            O cristianismo, nesta perspectiva, oferece um ensinamento insuperável. A violência consciente não pode ser combatida por nenhuma outra forma de violência. Nas civilizações antigas, o mais comum - como diz claramente o famoso “Código de Hamurabi” (1772 Ac.), gravado em pedra e guardado no museu de Louvres, em Paris -, era o “olho por olho e dente por dente”. Muitos líderes religiosos, conterrâneos de Jesus, ainda se deixavam guiar por esta diretriz, como tão bem narra o Evangelho segundo Mateus (Mt 5,38). Nos nossos dias, para Mao-Tse-Tung, por exemplo, o poder de acabar com todas as violências feitas ao povo, estava “no cano de uma arma”. Já para a filósofa, Hannah Arendt, do cano de uma arma vem apenas a obediência e o imobilismo.7 A violência consciente só pode ser combatida por uma nova consciência, a que usa a mão estendida da paz. Uma paz que não se contenta em perdoar, mas que constrói novas relações humanas com as armas do amor e da misericórdia. Jesus foi ao ponto de pedir oração pelos inimigos, e, na cruz, ofereceu perdão aos que o crucificavam. Não serão as leis e as prisões que farão diminuir a violência deliberada, mas apenas uma bem articulada espiritualidade, ou cultura, da paz.
3.3 Desafio 3: Combater a pior de todas as violências: a “violência sistêmica”
            Desde Medellin, e o surgimento da teologia da libertação, ouvimos falar em violência sistêmica ou “institucionalizada” (cf. DMd Paz, 2, II). O foco da análise, normalmente, põe em destaque as violências provocadas pelas estruturas sócio-políticas ou sócio-econômicas, presentes na sociedade. Falta perceber melhor porque as sociedades são assim. A antropologia tradicional, por longos séculos, viu e definiu o ser humano a partir de sua “mente”, colocando, consequentemente, em grande relevo a sua consciência e a sua liberdade. Nesta perspectiva, as violências são facilmente percebidas como frutos deliberados de pessoas mal intencionadas ou, simplesmente, como pecado. Não há dúvida que isso, frequentemente, ocorre, mas há algo mais profundo. A antropologia moderna, mais do que a mente, destaca o “corpo”. Edgar Morin fala de uma ”brecha antropológica”.8 Com o desabrochar da consciência, o ser humano se libertou cada vez mais dos ditames corporais, inatos e instintivos, e embrenhou-se num mundo inteiramente novo, o da mente e da cultura. Apoiou-se, porém, numa mente altamente ilusória. A mente, desligada do corpo – de sua “raiz” bioquímica, cósmica e social – pode voar, livremente, em todas as direções. De discurso em discurso, de tradição em tradição, pode vagar por séculos comprando e vendendo ilusões. E isto com a maior boa vontade e sinceridade do mundo.
            Nos nossos dias está em grande evidência o persistente e nefasto equívoco da economia liberal e/ou neoliberal. Talvez seja a fonte das maiores violências praticadas no planeta. Na encíclica Laudato Si, o papa Francisco fala do problema mais de quarenta vezes. O equívoco persiste ao ponto de um dos maiores especialistas (e defensores) da atual economia liberal, Thomas Piketty, observar que “o sistema enlouqueceu”.9 As grandes riquezas mundiais se concentram nas mãos de um grupo cada vez menor de pessoas.10 O sistema não é somente fruto de má vontade. Muito mais
7.       Benedetti, L.R. Vida Pastoral nº 24/2005. O mundo da violência e a busca da paz.
8.       Morin, E. O enigma do homem. Jorge Zahar, 1979.
9.       Piketty, Th. O Capitalismo – no Século XXI. Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca, 2014, p. 462.
é fruto da vontade de “salvar” o mundo. Desde que Adam Smith (†1790) ofereceu ao mundo “A riqueza das nações, a fé no “mercado livre” se tornou algo como um dogma. Recentemente, como observa Jung Mo Sung, a própria diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, ciente do problema, declarou sua fé no “capitalismo inclusivo”, a nova proposta de salvação.11 Mas não existe salvação a partir de teorias mentais em desconformidade com o corpo. Sob ponto de vista cósmico e bioquímico, não há nada “livre”, nem no cosmos, nem nos seres humanos. Está tudo harmonicamente interligado e interdependente. Ao quebrar um elo, qualquer que seja, a violência desnecessária se instala e a morte se aproxima. Se a violência se tornar “sistêmica”, como no caso da economia ou do descuido ecológico, os estragos, ainda que involuntários, são incalculáveis.
                A Igreja está sujeita ao mesmo equívoco. Desta vez, sem dúvida, com a melhor das boas vontades. Desde a filosofia grega, encarnada na teologia cristã dos primeiros séculos, a Igreja ressaltou o valor do espírito (a “alma”) e não do corpo. Houve uma longa espiritualidade de fuga do mundo (e do corpo) e, no final da Idade Média, especialmente após o Concílio de Trento (1545/63), a Igreja “blindou” o seu modo de pensar contra os avanços do protestantismo e da modernidade. Três pilares marcaram esta blindagem, como afirmou o historiador brasileiro, Riolando Azzi,: centralização, clericalização e espiritualização.12 O corpo ficou inteiramente à margem. Os modos de pensar e modos de falar das culturas humanas tendem a perdurar por longos períodos porque expressam convicções (mentais) consolidadas, e por serem “evidentes” passam a ser tradições rotineiras irrefletidas. Quanto mais “sagradas” as convicções, mais fundamentalisticamente serão perseguidas. Os equívocos apenas vêm à luz “a posteriori”. Hoje, olhando para trás, a Igreja reconhece equívocos, confessados de público: centralismo, clericalismo, espiritualismo, colonialismo, patriarcalismo, e outros mais. A antropologia moderna, mais uma vez, vem em socorro. O pensar humano é uma tarefa coletiva. É preciso dar o devido valor também a outros modos de pensar e de agir. Outras tradições, outros povos, outras culturas e religiões (pluralismo ético e religioso). Como foi grande a violência sistêmica que, também a Igreja, inadvertidamente, cometeu sobre povos e indivíduos!
4.      Como enfrentar, pastoralmente, a violência?
            Pessoalmente tive o privilégio de trabalhar, por diversos anos, no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL), São Paulo, sem dúvida um dos Centros mais atuantes do Estado. O foco principal de sua atuação, desde o início (1981), era precisamente o combate à violência. Embora atuando sempre em equipe, coube a mim, por um bom tempo, a coordenação dos Programas: “formação das__
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10.    Bakker, N.J. Vida Pastoral nº 309/2016, pp. 03-12.
11.    Sung J.M. REB nº 304/2016, pp. 95-96.
12.    Azzi, R. REB nº 262/2006. O Conc. Vat. II no contexto da Igreja e do Mundo.
lideranças eclesiais” (CEBs e Pastorais Sociais), e “combate à violência”. Uma das convicções mais profundas que esta longa experiência me transmitiu foi exatamente esta: para a Igreja, em perspectiva pastoral, o combate à violência sistêmica é muito mais importante do que o combate às violências individuais. As violências individuais são pequenas, e não há dúvida que a Igreja tem um importante papel pastoral, tanto no acompanhamento dos autores quanto das vítimas. O principal, porém, não é moralizar ou culpabilizar. É notório que Jesus, mais do que acusar o pecador ou a pecadora, sempre apontou para o pecado. O que mais importa é perceber que quase todas as violências individuais são fruto da violência sistêmica, ou “do jeito de ser” da sociedade. Ninguém rouba ou mata porque gosta. Ninguém machuca o outro por estar convencido/a de praticar uma boa ação. Os seres humanos – como seres bioquímicos - “reagem” a uma ofensa ou a um mal feito, assim como as plantas “reagem” crescendo em direção à luz quando colocadas na sombra, ou como os animais que mordem quando ameaçados. Pessoas conscientes agem conscientemente, é verdade. Não se trata de justificar, mas não devemos esquecer que este comportamento é, também, “da natureza”.
            Tomemos o exemplo da droga, causa de uma das mais frequentes e mais pesadas violências da vida urbana atual, seja diretamente, afetando pessoas, ou então indiretamente por meio do tráfico organizado. Estamos aqui lidando com uma violência sistêmica que gera as violências individuais e grupais. Está assim, hoje, porque “o jeito de ser” da sociedade o favorece. Houve época em que isto era impensável e, se acontecia, era algo muito raro. Por qual razão os costumes mudam com o passar do tempo e, às vezes, temporariamente, para pior? A mente individual é um reflexo da mente coletiva. É quase impossível ao indivíduo desvencilhar-se dos modos de pensar, falar e agir da sociedade. A “liberdade” (individual) conquistada pela Modernidade é fruto de uma mente que se desligou de sua realidade corporal, social e cósmica. Na ânsia de voar livre, a mente humana esqueceu de onde veio, isto é, da terra. Ao proclamar o mercado livre esqueceu que, como dizia Mahatma Gandhi, “a terra tem o suficiente para todos, mas não para a ganância de alguns”. Ao defender a liberdade de pensamento não percebeu, como fazia Marx, que “o pensamento dominante costuma ser o pensamento dos dominadores”. Ao derrubar a Bastilha, em Paris, e proclamar os Direitos Humanos, não levou na devida consideração que, como diz a sabedoria popular, “os direitos de uns terminam onde começam os direitos dos outros”. E ao enaltecer a liberdade de imprensa não previu que ela pode resultar em grandes conglomerados de comunicação, não a serviço da diversidade dos muitos pensares, mas exatamente a serviço do seu contrário: a defesa do pensamento único ou grupal. A mente humana, desligada do “corpo” (social e ambiental), não produz “salvação”, mas ilusão. A bênção desaparece; fica apenas a maldição.
            Para enfrentar esta violência sistêmica, o Centro de Direitos Humanos de Campo Limpo, em conjunto com a Paróquia Santos Mártires, do Jd. Ângela, criou, em 1996, de forma suprapartidária e suprarreligiosa, o “Fórum em Defesa da Vida contra a Violência”. Unindo as CEBs e as Pastorais Sociais da Diocese, as escolas municipais e estaduais, e inúmeras organizações, grandes e pequenas, da sociedade civil, foi possível constituir um fórum de grande combatividade. Por meio dos seus representantes, mais de duzentas entidades chegaram a participar regularmente das reuniões mensais. Autoridades municipais e estaduais foram convocadas em diversas ocasiões, e significativos resultados foram alcançados nas áreas de saúde, segurança, bem estar social e educação. Das caminhadas anuais “Em Defesa da Vida e da Paz”, com grande participação das escolas, chegaram a participar mais de 15.000 pessoas. No encerramento das caminhadas, belos Atos Ecumênicos foram celebrados no Cemitério São Luis, o cemitério do “triângulo da morte” onde, conforme afirmação do administrador, “dos 25 a 30 enterros diários, 16 eram de morte violenta”. Violência sistêmica tem tudo a ver também com a polícia. Foram inúmeras as tentativas de mexer neste vespeiro. Representando o Fórum, cheguei a participar, pessoalmente, da “II Missão Brasil / Canadá”, uma parceria entre a USP e a Universidade de Toronto, visando o aperfeiçoamento da estrutura policial do Estado. Durante quinze dias, em companhia das cúpulas estaduais do Judiciário, Ministério Público, Polícia Civil e Polícia Militar, além dos representantes universitários, tivemos uma série de encontros, sempre no mais alto nível, com as Polícias de Toronto, Calgary, Vancouver e Ottawa. Voltamos com a proposta do “policiamento comunitário”, até hoje a filosofia oficial – embora muito mal conduzida – da Polícia Militar. O Governador Mário Covas confiou o “Programa de Proteção a Testemunhas” (Provita/SP) aos cuidados do CDHEP, e pudemos ajudar a instituir o Programa em quase todos os estados brasileiros. É principalmente por meio deste Programa que são condenadas e encarceradas quadrilhas de narcotraficantes e de policiais e políticos corruptos. Nasceu neste Programa a legislação e a prática da “delação premiada”, hoje tão em evidência no combate à corrupção sistêmica.
            Porque trago aqui este pequeno relato das atividades do CDHEP? É para lembrar que a Igreja Latino-americana, nas décadas de 1960 a 1990, criou um dinamismo pastoral invejável que não deveríamos desperdiçar. O CDHEP nasceu como Comissão de Direitos Humanos da Diocese de Campo Limpo (então Região Pastoral Itapecerica da Serra). Suas atividades não teriam sido possíveis sem a formação e atuação de um número muito grande de leigos e leigas, provenientes das CEBs e das Pastorais Sociais da Igreja. A equipe do CDHEP se compunha quase exclusivamente de lideranças provenientes delas, e o forte Movimento Popular da Região dependia em boa parte da animação das mesmas. Como em muitos outros lugares, a Igreja demonstrava claramente sua vocação profética. Hoje, o momento é outro. A violência sistêmica salta aos olhos, mas a Igreja – sem desmerecer as louváveis exceções – voltou para a sacristia. Devemos ouvir o apelo do papa Francisco e, novamente, “sair” para a rua. Vimos acima que muitas aparentes “violências” na verdade são reflexos do mundo cósmico e bioquímico de onde viemos. Estão mais para bênção do que para maldição, pois, como acreditamos, foi assim que o Criador, em seu insondável mistério, o quis. Maldição é a violência sistêmica, mantida, frequentemente de forma deliberada, por   grupos dominantes na sociedade. Que a Campanha da Fraternidade de 2018 nos ajude a redescobrir a importância do enfrentamento pastoral desta multiforme violência sistêmica.
Endereço do autor:
Rua Duarte Leite, 143
Granja Julieta
04720-070 São Paulo SP

*Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em filosofia, teologia e ciências sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Em São Paulo, atuou também como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular, de Campo Limpo (CDHEP/CL), coordenando o Programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008 foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no Município de Holambra, SP. Por muitos anos representou a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Nos últimos anos publica regularmente artigos pastorais diversos em REB, Vida Pastoral, Convergência, Grande Sinal, e Verbum. Para consulta aos artigos, acesse: <artigospadrenicolausvd.blogspot.com.br>.                                                                                                                     

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Curso Verão 2018: Política: "a forma mais sublime de fraternidade". Eis a nossa vocação.


POLÍTICA: “A FORMA MAIS SUBLIME DA FRATERNIDADE”
EIS A NOSSA VOCAÇÃO

Nicolau João Bakker1

INTRODUÇÃO
            Quem por primeiro afirmou que a política é “a forma mais sublime da fraternidade” foi, parece-me, o papa Pio XI (†1939). Depois dele, quase todos os papas se manifestaram da mesma forma. Qual a razão deste grande destaque dado à política na fé cristã? É porque o cristianismo não é uma religião de louvor e adoração apenas. É muito mais uma religião de “fazer a vontade do Pai que está nos céus”. Não basta clamar “Senhor, Senhor”, disse Jesus (Mt 7,21). Mais correto ainda seria dizer que a melhor forma de louvar e adorar é justamente a prática de amar os nossos semelhantes, em especial os que vivem na prostração, no sofrimento ou na opressão. É assim que ensinaram e agiram os profetas e o próprio Jesus.
            Qual o objetivo da política? Todas as democracias ocidentais se baseiam, em última instância, no conceito grego de “cidadania”: o direito e o dever dos cidadãos de cuidar da polis (cidade). Se os gregos ainda excluíam desta cidadania as mulheres, os escravos e as classes populares em geral, hoje as legislações modernas, ao menos em princípio, concedem o direito de cidadania – o direito “político” – a todos os habitantes do país. Todos podem e devem promover, do melhor modo possível, o bem de seu local de moradia, de sua cidade e do seu país. Será que é diferente nos países não ocidentais? Se formos olhar com atenção para a enorme variedade de culturas africanas, asiáticas, ou mesmo para as nossas indígenas, vamos perceber que em todas elas reina alguma forma de ”cidadania política”: quem governa deve governar para o bem de todos e quem
1Nicolau João Bakker é padre, religioso, Missionário do Verbo Divino (svd). É formado em filosofia, teologia e ciências sociais, com pré-especialização em economia. Dedicou a maior parte de sua vida à pastoral paroquial: no Vale do Ribeira, na periferia paulista, e, ultimamente, em Diadema. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP. Atuou como educador popular no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, São Paulo (CDHEP/CL). Foi vereador em Holambra SP, de 2001 a 2008. Nos últimos anos escreve regularmente nas revistas Vida Pastoral, REB, e Convergência.
é governado deve levar em conta não apenas seus interesses pessoais, mas também os interesses coletivos.
            Fraternidade e cidadania são, portanto, como que os dois lados da mesma moeda, ou então, são duas formas de falar da mesma coisa. Nas instituições religiosas se fala em fraternidade, nas instituições seculares em cidadania. Nenhuma coletividade humana deixa de ter alguma configuração política onde interesses pessoais e coletivos são culturalmente balanceados. A antropologia moderna ajuda a compreender isso melhor. Somos claramente descendentes dos assim chamados “animais gregários”. Juntamo-nos em grupos para lutar, juntos, por nossos interesses. Não apenas por interesses mesquinhos, mas também por nossos sonhos e ideais, em fim, por tudo aquilo em que acreditamos. A história da humanidade é uma história de lutas tribais, guerras fratricidas e combates violentos para superar antagonismos de classe, cor, gênero, nacionalidade e tantas outras coisas mais. Mas é também a história das mãos que se unem para construir um futuro comum melhor, um futuro de paz, justiça e fraternidade. Repare que cada um e cada uma de nós costuma fazer isso em pequena escala, no lugar onde vivemos. Formamos grupos para tudo, na vizinhança, no bairro, na escola, na Igreja, ou, simplesmente, com nossos companheiros e companheiras de profissão, de esporte e lazer, ou de um hobby qualquer. Conviver juntos e lutar por aquilo em que mais acreditamos é simplesmente da nossa essência. É o sangue que corre nas nossas veias.
            Cuidar do bem comum – da polis, isto é, fazendo “política” - é, portanto, a “vocação” de todo ser humano. Neste pequeno capítulo vamos analisar isso melhor, vendo em primeiro lugar qual o conteúdo político da missão dos profetas e de Jesus; depois veremos como a vocação política do ser humano se dá em sociedades tipicamente religiosas, ou seculares; finalmente colocarei em destaque minha própria vocação política, como padre e religioso, e a vocação política dos cristãos em geral.
I A VOCAÇÃO PROFÉTICA E SEU CONTEÚDO POLÍTICO
            Moisés é um dos mais claros exemplos de como o profetismo, na história de Israel, está inseparavelmente ligado ao contexto político em que se origina. Ao ler a passagem da vocação e da missão de Moisés (Êx 3,1-22) não pode haver nenhuma dúvida quanto a isso. Moisés se encontra no deserto, fugido e escondido do faraó do Egito, quando o Deus dos antepassados apela a ele. O Deus que está acima de todos os nomes, mas que “ouve os gemidos” dos escravizados, o chama (vocação = chamado) a deixar sua covardia de lado e a libertar seus irmãos da escravidão. Um chamado ao mesmo tempo religioso (crer) e político (agir). O que Deus pede é algo humanamente impossível. Não existe pessoa mais poderosa do que o faraó do Egito. Seu império depende dos escravos. A história, escrita séculos depois do ocorrido, sem dúvida foi “enfeitada” de diversas formas, mas isso apenas dramatiza ou ressalta a mensagem principal: Moisés, de fato, pela força da fé, alcança o politicamente impossível. A partir deste fato histórico, a fé judaica, cristã e islâmica nunca mais irá separar a fé de seu imperativo libertador.
            Samuel vive em outra época. A ameaça da opressão agora vem dos filisteus. Os costumes tribais, a liberdade conquistada, a equidade na partilha das terras, os governos autônomos das lideranças tribais, e até a própria fé em JHWH estão em perigo. Percebendo a força e o “sucesso” dos reinados à sua volta, o povo clama por algo igual. Querem um rei, um rei que governe em nome de JHWH. Qual o problema? O que a memória histórica guardou da missão profética de Samuel? Seria bom reler o que disse o assessor bíblico do CEBI, do Regional Nordeste II da CNBB e da CRB, Dom Sebastião Armando Gameleira Soares, no livro do curso de verão de 2016 (p. 63):
Samuel é apresentado como o homem lúcido que, no seio da crise, faz ver o limite onde               esbarram as soluções humanas, a ambiguidade e a impossibilidade radical dos projetos humanos. Era preciso escolher um rei como condição de sobrevivência. Só que essa solução seria ela mesma o germe da “morte” e da tragédia do povo. Na verdade, reconhecer e aceitar um poder sobre o povo é legitimar a opressão. E nada mais contrário à fé javista (cf. Dt 17,14-20). Só JHWH é rei. E desse fundamental artigo de fé nasce a luta pela liberdade e a vigilância subversiva sobre o poder (cf. 1Sm 8; Jz 8,22-27; 9,1-21; Dt 5,6-7).
Para Samuel, como para todos os profetas, o verdadeiro culto a Deus é permitir que JHWH governe. A missão religiosa é ao mesmo tempo política. Assim como muitos outros “videntes” da época tribal, Samuel previu o quanto os reinados dos homens ficariam devendo a JHWH por não darem atenção “aos gemidos do povo”.
            O profeta Amós sentiu na pele os desmandos dos reinados humanos. No século VIII a.C., o Reino do Norte, já, politicamente, separado do Reino do Sul, vive um surto de prosperidade, O luxo, na cidade de Samaria, se opõe à miséria entre a população camponesa. A política do reinado, pressionada pelo poder dos assírios, se opõe frontalmente aos compromissos da Aliança e aos mandamentos de JHWH. O vaqueiro e cultivador de sicômoros, Amós, se sente tomado pelo Espírito de JHWH e se rebela. Acusa tanto a tradição dos santuários de Israel quanto as tradições injustas da corte do rei Jeroboão. Revoltado, anuncia seu fim. Por tudo isso é expulso do meio das lideranças religiosas e políticas do santuário de Betel. O pequenino livrinho de Amós é um forte grito contra uma falsa religiosidade e uma falsa política. Não são apenas os dirigentes que erram por “amontoarem opressão e rapina em seus palácios” (Am 3,10). Também o povo “multiplica os seus pecados” porque “de manhã oferecem seus sacrifícios e ao terceiro dia seus dízimos; queimam pão fermentado como sacrifício de louvor... mas não se voltaram a mim” (Am 4,4-6). Todos devem praticar a justiça de JHWH que liberta os cativos e espoliados. É esta a única política admissível e a única religiosidade aceitável.
            Também Isaías, o maior de todos os profetas antigos, se rebela contra a política demasiadamente humana dos governantes. Em vez de confiarem em JHWH, confiam sempre nas suas alianças estratégicas com as potências estrangeiras, para assim se defenderem da ameaça crescente do grande império assírio. Por causa da infidelidade do povo a JHWH, o Reino do Norte já foi tomado pelos assírios em 721 a.C. O futuro do Reino do Sul também não é nada promissor. “Com efeito, Jerusalém tropeçou, Judá caiu, porque suas palavras e seus atos são contra JHWH” (Is 3,8). Isaías aponta, com realismo mordaz, para os abusos das elites que “juntam casa com casa, e amontoam campo sobre campo”,... porém, “as casas serão reduzidas à ruína”... ”Ai dos que madrugam cedo para correr atrás de bebidas fortes... mas para os feitos de JHWH não têm um olhar sequer”... “Ai dos que absolvem o ímpio mediante suborno e negam ao justo a sua justiça”... “Por esta razão... seus cadáveres jazem no meio das ruas como lixo” (Is 5,8-25).. Também a religiosidade do povo, opina Isaías, está equivocada. “Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios?, diz JHWH. Estou farto de holocausto de carneiros e da gordura de bezerros cevados... Basta de trazer-me oferendas vãs... Ainda que multipliqueis a oração, não vos ouvirei. Vossas mãos estão cheias de sangue... Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva! Então, sim, poderemos discutir, diz JHWH” (Is 1,11-18).  São idolátricas as religiões ritualistas e alienantes. Mas, existe uma certeza: a justiça de Deus não falhará. porque, algum dia, “um ramo sairá do tronco de Jessé... e a terra estará cheia do conhecimento de JHWH” (Is 11,1-9). O mais “messiânico” de todos os profetas é Isaías. Virá o dia em que o próprio JHWH irá reinar sobre a terra. Um descendente de Davi fará reinar sobre a terra a paz e a justiça.
            O povo aclamou Jesus como “o filho de Davi”, e o próprio Jesus se apresentou em Nazaré como o novo Isaías: “O Espírito de JHWH está sobre mim” (Is 61,1; Lc 4,18). Para Jesus, “completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). Jesus pode e deve ser visto como a mais perfeita expressão da tradição profética. Rejeita com ardor a falsa religiosidade apresentada pelas lideranças religiosas do seu tempo. Observa não querer mudar nem uma vírgula sequer da antiga Lei e dos Profetas, mas apenas dar-lhes “pleno cumprimento”. A autêntica fidelidade a JHWH vai muito além do que está sendo ensinado e praticado pelos escribas e fariseus. O que foi ensinado pelos antigos deve ser superado pelo novo. Não basta não matar; é preciso reconciliar-se com os adversários. Não basta não adulterar; é preciso manter o coração purificado. Não basta não jurar, mas que o sim seja sempre sim e o não não. Nada de olho por olho ou dente por dente; é preciso oferecer também a face esquerda a quem bate na face direita. Em fim, é preciso amar até o inimigo, e ser perfeito como o Pai celeste é perfeito (Mt 5,17-48). A vinda do Reino de Deus requer uma mudança radical de mente, coração e alma. Os discípulos de Jesus devem ser “a luz do mundo” (Mt 5,14), uma luz que deve chegar a todas as nações (Mt 28,19). No final desta longa caminhada histórica, JHWH reunirá as nações diante de si e fará o julgamento derradeiro. Acolherá em seu Reino apenas “os que deram de comer a quem teve fome; deram de beber a quem teve sede; vestiram a quem estava nu, e visitaram a quem estava doente e na prisão” (Mt 25,35-39).
             A fé perfeita requer ainda um novo encaminhamento político. Na terra de Jesus, as autoridades religiosas eram também as autoridades políticas. Uma falsa religiosidade leva a uma falsa política. Jesus acusa as autoridades religiosas de sua terra, acobertadas pelos 72 membros do grande Conselho de Jerusalém, de temerem mais a Cézar (de Roma) do que a JHWH. São “falsos profetas” (Mt 7,15); escribas sem autoridade (Mt 7,29); conhecidos como flageladores das sinagogas (Mt 10,17); matam o corpo mas não podem matar a alma (Mt 10,28); salvaguardas da lei sabática (Mt 12, 1-14); blasfemadores contra o Espírito (Mt 12,22-32); “raça de víboras” )Mt 12,34); geração má e adúltera (Mt 12,39); ensinam apenas mandamentos humanos (Mt 15,1-9); são cegos conduzindo cegos (Mt 15,14); não sabem interpretar os sinais dos tempos (Mt 16,3); o “fermento” dos fariseus e saduceus é perigoso (Mt 16,5-12); os anciãos e os chefes dos sacerdotes são culpados de sua morte (Mt 16,21; 20,18); são eles que vão fazer sofrer o Filho do Homem (Mt 17,9-13); eles fizeram do Templo um covil de ladrões (Mt 21,12-13); são a figueira estéril (Mt 21,18-22); não acreditaram na autoridade de Jesus (Mt 21,23-27); eles serão preteridos pelas prostitutas no Reino dos Céus (Mt 21,28-32); são como vinhateiros homicidas (Mt 21,33-45); não são dignos do banquete nupcial (Mt 22,1-14); dão a Cézar o que é de Cézar, mas não a Deus o que é de Deus (Mt 22,15-22); não acreditavam em ressurreição (Mt 22,23-33); dizem mas não fazem (Mt 23,3); os escribas e fariseus serão sete vezes condenados (Mt 23,13-32); raça de víboras (Mt 23,33); mataram e apedrejaram os profetas (Mt 23,37); são os chefes dos sacerdotes e dos anciãos do povo que prenderam Jesus (Mt 26,47); são os chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio que sentenciaram Jesus (Mt 26,59; 27,20; 27,41; 27,62); são também os que corromperam os soldados com propina para o povo não crer em vida nova (28,11-15). Todas as acusações de Mateus são também acusações políticas. No cristianismo, religião e política são inseparáveis. Jesus teve a sorte comum dos profetas: morre no silêncio de Deus, abandonado e desacreditado. Morreu como preso político. Ainda assim entrega a JHWH o seu espírito. Deixou para a história humana uma grande lição: não há ressurreição sem cruz. E também: não se pode esperar uma boa política com base numa falsa religiosidade.
II A VOCAÇÃO POLÍTICA NAS SOCIEDADES RELIGIOSAS E SECULARES
            Há um dado que todos nós, sacerdotes, religiosos, leigos e leigas do mundo atual, facilmente esquecemos. Olhamos para a vida do passado com os olhos da vida presente. Não deveríamos fazer isso, pois pode induzir-nos a grandes equívocos. A história só pode ser julgada com fidelidade se a interpretamos dentro do contexto social da época. O mundo secular, moderno, em que vivemos hoje é muito diferente do mundo de alguns séculos atrás, e inteiramente diferente do mundo dos tempos bíblicos. Isso salta aos olhos facilmente se observarmos as diferentes épocas em sua perspectiva política. Na longínqua antiguidade, quando ainda predominava a vida tribal, o mais comum era a política “teocrática”. As tribos se sentiam governados diretamente por Deus ou pelas divindades. As famosas “doze tribos de Israel”, saindo da escravidão do Egito, se sentiram assim. Seu Deus era o Deus Libertador, JHWH, e a fé neste Deus comandava todos os aspectos de sua vida. Nos livros de Samuel ainda percebemos claramente a rejeição, da parte de muitos, da ideia de um rei. As tribos prezavam sua liberdade e bastavam os profetas e juízes para se autogovernarem. Aos poucos, porém, nas sociedades antigas, algumas tribos se tornaram muito mais fortes que outras, e as crescentes rivalidades entre elas fez com que se agrupassem entre si, formando alianças. Surgiram assim os pequenos reinados. Com a continuação das rivalidades, além das dificuldades de sobrevivência, estes também se agruparam ou então foram subjugados pelos mais fortes. Surgiram desta forma os primeiros impérios da antiguidade. A própria Bíblia fala do império do Egito. Fala também do império dos assírios, dos babilônios e, depois, dos persas, gregos e romanos.
            Nos reinados e impérios, as antigas teocracias, cada vez mais, se transformam nas assim chamadas “hierocracias”. Deus continua governando, mas agora “através de” um rei ou um imperador. O rei Davi foi claramente visto desta forma. Um dos mais conhecidos códigos de leis da antiguidade é o famoso “Código de Hamurabi”. Hamurabi fundou o primeiro império babilônico e, aproximadamente em 1772 a.C., fez gravar em pedra – guardada até hoje no Museu do Louvre, em Paris - as 282 leis para uma boa convivência social em seu império. Na pedra deixa claro que governa em nome de Deus, e que as leis são divinas, feitas “para que o forte não prejudique o mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos”. O Código fala em três “classes” de pessoas: os superiores, os comuns, e os escravos. O princípio básico da boa convivência é a “lei do talião”, ou, como lemos na Bíblia, a lei do “olho por olho e dente por dente”. Esta política teocrática ou hierocrática dominou a mente humana por séculos e mais séculos. Podemos definir esta “cosmovisão teológica” como a concepção segundo a qual Deus, ou o mundo das divindades, é, e deve ser, a explicação e a razão de ser de todas as coisas e de todos os eventos. Jesus assume claramente este modo de pensar. A Pilatos diz: ”Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto” (Jo 19,11). Para Jesus, quem deve governar é Deus e ninguém mais. Os profetas, especialmente Jesus, substituíram a lei do talião pela lei do amor, exatamente porque, para Jesus, a sociedade humana deve ser como o próprio Deus, que é Pai de puro amor e misericórdia (Lc 15). Ele vê que este “Reino de Deus” já está presente, mas é como um tesouro escondido no campo. Só vai atrás quem descobre o seu valor (Mt 13,44-45). Jesus, provavelmente, esperava a definitiva instauração do Reino de Deus para muito em breve, mas a história comprovou que se trata de um processo a longo prazo.
            Já nas nossas sociedades modernas, especialmente no mundo ocidental, a concepção é radicalmente diferente. No nosso mundo secular predomina a “cosmovisão antropológica”. Qual sua característica? Na concepção antropológica não é mais Deus, mas é a própria razão humana que se torna o argumento central do crer e do agir. Não que Deus seja necessariamente negado ou descartado, mas Ele é simplesmente colocado de lado. Creia quem quiser. Para todos os efeitos, Deus não é mais a causa explicativa de todas as coisas e de todos os eventos. Nesta nova lógica, o próprio ser humano com sua racionalidade será sempre o ponto de partida e o ponto de chegada. Com este novo entendimento mudou também completamente a forma de pensar a política. Entendeu-se que a influência das Igrejas e das religiões deveria ser banida e que os governos devem ser laicos. Durante alguns séculos, a briga entre as duas concepções foi muito virulenta. Na Idade Média, com a queda do Império Romano, a Igreja Católica assumiu, espontaneamente, uma boa parte do poder político, mas ela nem de longe convenceu a todos. A Igreja se autoproclamava a única dona da verdade, opondo-se às ciências e à “arrogância” da razão humana, mas ela se dividiu em muitas denominações, com inúmeras guerras, sangrentas e intermináveis. Com o passar do tempo, as ciências se impuseram pela própria força de sua argumentação e a Igreja teve que dar razão a elas e reconhecer a sua autonomia. Cosmovisões, porém, expressam as dimensões mais profundas do ser humano e sua mudança requer um longo processo histórico. Podemos dizer que apenas no Concílio Vaticano II, a Igreja fez as pazes com as ciências e com os governos laicos (GS 36; 76). Não cabe aos padres ou aos religiosos em geral dirigir o processo político das sociedades. Esta é a vocação dos leigos e das leigas (das mais diversas denominações), diz a Igreja, hoje. Será?
 III MEU ITINERÁRIO PESSOAL, RUMO À POLÍTICA
            Desde criança (na Holanda) aprendi que o padre não deve dar sua atenção apenas à classe abastada. Nossa vida era a da roça e não era nada fácil sobreviver de um único alqueire de terra. Um comentário comum, nas famílias simples, era que os padres costumavam visitar apenas as casas das famílias mais ricas. Visitar os pobres, nem pensar. As más línguas comentavam que os padres visitavam as famílias católicas mais pobres só quando um novo filho demorava a chegar. “Era só o padre passar e as mulheres engravidavam”, era a brincadeira de sempre. A casa paroquial era a mais bonita da minha aldeia, com exceção apenas da casa do Prefeito. Quando entrei na escola dos padres verbitas (Missionários do Verbo Divino), ainda na Holanda, já entrei com esta ideia: ser missionário é algo legal, mas ser padre apenas das boas famílias, essa não!
            Fazendo o noviciado, na Bélgica, uma nova inspiração ocupou a minha mente e o meu coração. Eram os tempos pré-conciliares e, na Europa em geral, se vivia um clima de grande expectativa com relação à renovação da Igreja. As leituras espirituais oferecidas eram bastante tradicionais e não nos satisfaziam. Lendo a Imitação de Cristo do mais afamado mestre espiritual holandês do século XV, Thomás de Kempis (†1471), a certa altura, este afirmava que “cada vez que saía do convento para ir ao mundo, ele voltava pior”. Pronto, era o que menos queria. Estava me preparando para ir ao mundo, e não para fugir dele! Não toquei mais no livro. Comecei a meditar bons livros de bons autores. Foi o que salvou a minha vocação de padre. Quando, em 1958, minha família emigrou para o Brasil e eu vim estudar teologia em São Paulo, um novo aprofundamento das minhas ideias ocorreu. O Concílio trouxe novos ares à nossa formação. Continuei lendo os bons livros dos bons autores. Entusiasmei-me com uma nova espiritualidade, mais “engajada” se dizia então, e admirava o exemplo dos padres franceses que foram trabalhar nas fábricas, solidarizando-se com as lutas operárias. Também me aprofundei nas então muito faladas “reformas de base” que o Brasil necessitava, especialmente a reforma agrária e, depois, também a reforma urbana.
            Chegando ao Vale do Ribeira, em 1965, já fui trabalhar na paróquia com a profunda convicção que a Igreja não podia ficar presa às suas preocupações pastorais internas, mas que deveria ter uma atenção prioritária ao mundo dos pobres e dos excluídos. Era preciso mudar também o estilo paroquial e transformar as paróquias em verdadeiras “comunidades de fé, culto, e caridade”, como afirmava o primeiro Plano Pastoral da CNBB (1962/65). Uma Igreja feita de comunidades autênticas, com os leigos e leigas assumindo sua autonomia própria. Permaneci no Vale, a região mais pobre do estado de S. Paulo, por 16 anos, dois períodos em Iguape e um em Registro. Depois da Conferência Episcopal Latino-americana de Medellin (1968), nossa preocupação principal foi a organização das CEBs. Éramos todos padres e irmãs jovens e, felizmente, super bem entrosados. Criamos a nova técnica pastoral das “batidas”. Sem olhar divisas paroquiais, íamos em grupo – padres, irmãs e leigos/as – a um determinado local, fazendo, durante três dias, visitas ao povo, por onde estivesse, nas casas, nas roças ou em qualquer outro lugar. À noite fazíamos reuniões em pequenos grupos e, na terceira noite, todos se reuniam no mesmo lugar. O assunto era um só: o que é uma CEB?, e: vocês querem formar uma CEB aqui neste local? Quando, em 1975, a região se transformou na atual Diocese de Registro, sendo nomeado bispo o nosso colega, Dom Aparecido José Dias, o trabalho continuou o mesmo. A atual Diocese de Registro talvez tenha sido a primeira diocese brasileira inteiramente estruturada de acordo com o modelo das Comunidades Eclesiais de Base.
            Também a preocupação social era grande, embora tivéssemos muitas dúvidas sobre a melhor forma de enfrentar os problemas. Com a assessoria de Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio fomos dando início a cursos de alfabetização e à orientação dos agricultores, entre outros para que ficassem firmes em suas terras. Dependendo do lugar, muitas outras pequenas iniciativas foram feitas, mas eu achava que tudo não passava de uma gota no oceano. Fui estudar ciências sociais em São Paulo para adquirir um conhecimento mais amplo e descobrir novas formas de atuação pastoral. Fazer pastoral sem enfrentamento das estruturas opressoras é complicado. Não passa de um assistencialismo caridoso, mas infrutífero. Na minha pré-especialização em economia entendi melhor como principalmente o sistema econômico pode ser de tal forma opressor e dominador que um país inteiro, mesmo com as melhores políticas possíveis, não consiga superá-lo. Uma pastoral, sem esta consciência política, fatalmente cairá numa alienação do mundo em que vivemos. Transferido para a periferia de São Paulo continuei, por dez anos, trabalhando em paróquias da periferia, primeiro na Zona Leste, depois na Zona Sul. Quem se responsabiliza por uma paróquia deve assumir a paróquia em sua totalidade, dando atenção a todas as pastorais. Não deixei de fazer isso, mas continuei priorizando as CEBs e as pastorais sociais, com um especial carinho pela pastoral operária e pelos movimentos populares de saúde e moradia. Na paróquia do Valo Velho, na Zona Sul, sempre atuando em equipe, dávamos especial atenção também ao combate à violência, já que a nossa região, vizinha de Capão Redondo e Jd. Ângela, foi declarada, pela ONU, “a região mais violenta do mundo”, com 110 homicídios para cada cem mil habitantes. Dando aula de pastoral no ITESP (Instituto de Teologia), fui elaborando melhor minha síntese. Ficou claro para mim que uma pastoral sem perspectiva transformadora, ou política, não corresponde à proposta de Jesus, uma vez que não abre nenhuma perspectiva para os que se encontram à beira da estrada.
            Em 1993 fui convidado a integrar a equipe do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, São Paulo (CDHEP/CL). De uma humilde Comissão de Direitos Humanos da Diocese, o CDHEP tinha se transformado numa ONG independente, de grande destaque na cidade. Fui responsabilizado, sempre de novo em equipe, pela formação e dinamização das lideranças das CEBs e das Pastorais Sociais da Diocese de Campo Limpo, então sob a direção de Dom Emílio Pignoli.  Não posso enumerá-las aqui, mas foram inúmeras as atividades desenvolvidas, dando “cursos de monitores” nas paróquias, assessorando os eventos das pastorais sociais – em apoio aos movimentos populares, etc. – e celebrando cultos ou missas em defesa dos direitos humanos, ou dando apoio à “mística da luta”, como então se falava. Fui responsabilizado também pelo Programa “Em Defesa da Vida contra a Violência”, o mais tradicional do CDHEP. Como fruto principal deste Programa constituímos, com grande apoio do Pe. Jaime Crowe, do Jd.Ângela, o Fórum em Defesa da Vida que chegou a articular mais de duzentas entidades da cidade de São Paulo, das mais simples, populares, às mais complexas e abrangentes, de nível acadêmico. Foram muitos os Seminários, especialmente de Segurança Pública e de Educação, obrigando as autoridades municipais e estaduais a tomarem medidas concretas em benefício da população. Das nossas tradicionais “Caminhadas em Defesa da Vida e da Paz”, todos os anos, chegaram a participar mais de quinze mil pessoas, especialmente jovens. O Governador Mário Covas nos convidou a assumir o importante “Programa Estadual de Proteção a Testemunhas” (Provita SP), visando o combate à impunidade e à corrupção. Graças a este Programa (sigiloso), existente até hoje, centenas dos narcotraficantes mais perigosos, além de policiais e parlamentares corruptos, acabaram atrás das grades. Em 1999, o CDHEP, por primeiro, após consulta a diversas entidades de renome nacional, recebeu da Câmara Municipal de São Paulo o cobiçado “Prêmio Betinho” por ter sido “a entidade que melhor construiu a cidadania na cidade de São Paulo no último ano”.
CONCLUINDO: FAZER POLÍTICA É A VOCAÇÃO DE TODOS/AS NÓS
            Após quase quarenta anos dedicados á vida paroquial e à defesa dos direitos humanos, uma nova inquietação veio atormentar a minha mente. Cabe ao padre a tarefa de propagar o Evangelho, pensava. Sua tarefa básica é orientar, ensinar e celebrar. Às ONGs cabe a articulação das forças da sociedade civil para que, pela pressão popular, as políticas públicas de fato aconteçam. Elas cobram, o que é importante, mas não têm poder de decisão. Quem faz acontecer de verdade é a política. Se as decisões políticas são ruins, o povo continua na desgraça. Se, por outro lado, a política for bem feita, não apenas uma, duas ou três pessoas se beneficiam, mas o país inteiro. Se a Igreja, com suas obras de caridade, pode matar a fome do pobre, ela não tem o poder de acabar com a pobreza. Nem as ONGs têm este poder. Somente a política tem o poder de decisão e pode transformar desejos em realidade. Lembrava então a frase do papa: “a política é a forma mais sublime da fraternidade”. Ficou pendente, contudo, um problema. Se a política é a forma mais sublime da fraternidade, por que os padres não podem entrar na política? Não é um pouco estranho que, na Igreja Católica, os padres não podem exercer a forma mais sublime da fraternidade? E, em especial, os homens e as mulheres que optam pela Vida Religiosa Ativa, uma das expressões mais profundas da fé, por que barrar para eles ou para elas uma participação mais ativa na política se esta ocupa um lugar tão central no exercício da fraternidade?
            É evidente que, por trás da proibição, não está algum princípio evangélico, uma vez que este simplesmente não existe. Trata-se de uma questão meramente disciplinar e esta, aliás, não é inteiramente sem sentido. Depois da minha passagem pelo CDHEP, exerci, em Holambra SP, de 2001 a 2008, o cargo de vereador. Um cargo político assumido por estar profundamente convencido de sua importância para a vida cristã e de sua especial relevância para a Vida Religiosa. Pude exercer o cargo com dignidade, honestidade, e colhendo diversos frutos importantes para a população, mas devo reconhecer que não deixa de ser também um grande desafio. É complicado o padre se dirigir ao público em geral sendo conhecido pela sua cor partidária. Por outro lado, acho importante alguns religiosos e religiosas marcarem presença na política, exatamente para testemunharem ao mundo que uma política sem respeito à religiosidade humana levará a humanidade à desgraça. A disciplina poderia ser mais flexível, abrindo espaço para exceções, ou exigir do padre que se licenciasse temporariamente de sua função pastoral.
            Nos países de cultura ocidental, os governos, hoje, costumam ser laicos, com forte tendência para eliminar ou marginalizar a influência das Igrejas e das religiões. De fato, um certo fundamentalismo é inevitável cada vez que um grupo religioso quer governar “em nome de Deus”. As facções e divergências internas serão combatidas a ferro e fogo. Mas, como o Reino de Deus pode se estabelecer na terra, como Jesus pediu, se os governos são laicos, e até anti-religiosos? É possível desde que os governos laicos se deixem guiar não pelos ditames desta ou daquela religião, mas pela espiritualidade e pelas convicções mais profundas que são comuns a todas as religiões. Isso não é nada impossível, e até me parece que o mundo está caminhando nesta direção. As massas populares na rua, por toda parte, mostram claramente o fracasso das democracias ocidentais. Da brasileira também. O sistema financeiro, globalizado e sem ética, tomou conta da política. É preciso criar algo novo. Cabe a todos nós, religiosos e religiosas, leigos e leigas, entrar na luta por uma política com ética, e com respeito à religiosidade humana. Por mais que o momento atual possa deprimir, as perspectivas de futuro são boas. A teologia que, hoje, mais chama a atenção do mundo atual é aquela que une a teologia da libertação com a teologia do chamado “pluralismo religioso”. Procure informar-se a respeito. Os livros estão disponíveis. O conhecido teólogo alemão, Hans Küng, disse recentemente: “se houver paz entre as religiões, haverá paz no mundo”. Será a luz no fim do túnel? Só se todos nós mantermos nossas velas acesas. Nossa vocação não é a sacristia, mas o mundo. Devemos ser a luz do mundo. Não foi isso que Jesus falou?
            Minha mais recente atuação pastoral foi na paróquia Santo Arnaldo Janssen, em Diadema. Já notei aí, claramente, a característica da nossa Igreja nas últimas décadas: um forte afastamento, ou então, desinteresse pelas CEBs e pelas Pastorais Sociais, especialmente por parte de padres e bispos. Não é somente falta de boa vontade. Na prática, porém, não é nada fácil manter certas prioridades quando o contexto geral não ajuda. Está muito difícil, hoje, manter o embalo de décadas atrás. Ainda assim, é possível quando padres e leigos se unem, com consciência e dedicação. Hoje, as CEBs e as Pastorais Sociais ainda conseguem atuar com consistência, mas, normalmente, apenas a nível regional, estadual ou nacional. O grande desafio, neste momento, é fazer acontecer a nível local. Por isso criamos, em Diadema, um pequeno “fórum de entidades”, limitado à Região Norte do Município. No decorrer dos últimos sete anos, os representantes de aproximadamente trinta entidades, de forma suprapartidária e suprarreligiosa, vêm se reunindo todo mês para tratar dos problemas comuns da população. Seminários bem preparados, com pesquisa e tudo, foram realizados nas áreas de saúde, meio ambiente, segurança pública e educação. Nestes momentos fortes, toda a população é convidada e houve, em geral, ótima participação. As autoridades municipais e estaduais não deixaram de comparecer. Em todas as ocasiões, o povo apresentou as suas propostas com muita firmeza. Também as “caminhadas ecológicas” foram feitas todos os anos. Se funcionou entre nós, pode funcionar em qualquer lugar. Basta haver padres e leigos que assumam sua vocação cristã, que é religiosa e política ao mesmo tempo. Ainda somos o sal da terra? Jesus disse: “Se o sal se tornar insosso, com que o salgaremos? Para nada mais serve, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens” (Mt 5,13).
QUESTÕES PARA DEBATE EM GRUPO
1.      O “profetismo” perpassa todas as páginas da Bíblia. O que significa ser “profeta”, na Bíblia, e nos dias de hoje?
2.      Quando Jesus falava do “Reino de Deus”, em que, concretamente, ele pensava?
3.      A vocação cristã é uma vocação política. Como entender isso?
4.      Religião não tem nada a ver com política, dizem muitos. O que você acha?
BIBLIOGRAFIA
1)      Para saber mais sobre o “profetisno”, expresso na Bíblia, leia: Dom Sebastião Armando Gameleira Soares, Curso de Verão Ano XXIX: Economia, promotora dos Direitos Humanos e ambientais, São Paulo: Paulus, 2015, p. 59-115.
2)      Para saber mais sobre as diferentes concepções políticas nas sociedades religiosas, e nas seculares, leia: Nicolau João Bakker, Vida Pastoral, maio/junho 2011: A Pastoral em Novas Perspectivas (I) – Introdução ao tema, p. 8-23; Vida Pastoral, julho/agosto 2011: A Pastoral em Novas Perspectivas (II) – Cosmovisão Ecológica e perspectivas pastorais, p. 5-15; Vida Pastoral, nov./dez. 2011: A Pastoral em Novas Perspectivas (III) – Espiritualidade ecológica e perspectivas pastorais, p. 21-35; Vida Pastoral, jan./fev. 2012: A Pastoral em Novas Perspectivas (IV) – Perspectiva político-ecológica e perspectivas pastorais, p. 10-23. Para maior aprofundamento, veja a bibliografia indicada nos artigos.
3)      Para saber mais sobre a união entre a teologia da libertação e a do pluralismo religioso, leia a série de cinco livros “Pelos muitos Caminhos de Deus”, de iniciativa da ASETT / EATWOT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo / Ecumenical Association of Third World Theologians), sob coordenação de José Maria Vigil, Luiza Tomita e Marcelo Barros: Vol. I: Pelos muitos Caminhos de Deus: Desafios do Pluralismo Religioso à Teologia da Libertação, Goiás: Ed. Rede, 2003; Vol. II: Pluralismo e Libertação: Por uma Teologia Latino-americana pluralista a partir da Fé Cristã, São Paulo: Ed. Loyola, 2004; Vol. III: Teologia Latino-americana pluralista da Libertação, São Paulo: Ed. Paulinas, 2006; Vol. IV: Teologia Pluralista Libertadora Intercontinental, São Paulo: Ed. Paulinas, 2007; Vol. V: Por uma Teologia Planetária, São Paulo: Ed. Paulinas, 2016.